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sábado, 25 de setembro de 2021

Einstein contra o relativismo


por Gabriel Landi Fazzio
LavraPalavra

Na contramão do senso comum relativista de nossos tempos, Einstein foi um defensor ferrenho da verdade e da totalidade.
“Tudo é relativo”. O relativismo absoluto desse afirmação anda lado a lado com o multiculturalismo cínico dominante em nossos tempos – ditos líquidos ou pós-modernos por aqueles que tentam negar a manutenção sólida das contradições da modernidade entre nós. Não é raro, inclusive, ver esse tipo de ideia buscar sua comprovação no físico socialista alemão Albert Einstein. Afinal, não seria a Teoria da Relatividade do genial físico alemão a prova de que tudo é relativo, mesmo na natureza?

Antes de mais nada, cabe afirmar que Einstein jamais disse qualquer frase sequer parecida com “tudo é relativo” (que remete na verdade a uma notória afirmação do Dalai Lama!). Em seu artigo original intitulado “Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento”, o cientista nunca sequer utilizou a expressão “Teoria da Relatividade” – cunhada e popularizada pelo seu colega Max Planck. Einstein, ele próprio, se referia à sua teoria como “Teoria da Invariância”. Haveria algo menos relativista que falar em invariância?

Para Einstein, em seu realismo teórico, o Princípio da Relatividade significa que as leis da física são as mesmas para todos referenciais inerciais. Mas a Teoria da Invariância apenas se completa quando tal princípio é combinado ao Princípio da Constância da Velocidade da Luz – aquele que afirma que a velocidade da luz no vácuo é a mesma para todos os referenciais inerciais. Enquanto já Galileu postulava o primeiro princípio, o que torna Einstein pioneiro reside exatamente em afirmar, ao lado disso, o caráter invariável da velocidade da luz.

Além disso, Einstein era mesmo avesso à centralidade dada ao conceito da “probabilidade” na nascente física quântica. “Deus não joga dados”, afirmou o físico certa vez, em polêmica com Niels Bohr. Para muitos, aqui estaria o cerne do anti-relativismo de Einstein: sua convicção na existência da verdade estaria intimamente ligada à sua fé no divino. E, ainda que o segundo ponto distancie o físico alemão do materialismo histórico, não deixa de ser admirável seu esforço filosófico em refletir as implicações teóricas de tal ou qual concepção física da realidade.

O teórico não ignorava a relação que havia, para si, entre a fé e a verdade. Em sua obra “Como vejo o mundo”, afirma:

Devemos escolher como finalidade independente do nosso esforço o conhecimento da verdade ou, exprimindo-nos mais modestamente, a compreensão do mundo inteligível por meio do pensamento lógico? […] Esta atitude, por assim dizer, religiosa do cientista perante a verdade não deixa de ter influência sobre a sua personalidade. Pois, além daquilo que resulta da experiência e além das leis do pensamento, não há para o investigador, por princípio, nenhuma outra autoridade cuja decisão ou informação, por si, possa pretender ser «verdade». Daí resulta o paradoxo de que o homem que dedica o melhor dos seus esforços às coisas objetivas, se torna, socialmente falando, um individualista extremo que — em princípio pelo menos — em nada confia senão no seu próprio juízo.

Qualquer semelhança entre esse cientista instrumentalista que Einstein denuncia como individualista extremo que em nada confia senão no seu próprio juízo e o sofista Protágoras, que afirmava a Sócrates que “a verdade é relativa. É questão de opinião” não é mera coincidência. [1]

Consequente com seu anti-relativismo teórico, Einstein ao fim da vida buscava formular aquilo que veio a vulgarmente ser conhecido como Teoria de Tudo. Se inspirava na evolução teórica que o eletromagnetismo significara para a física: em 1864, James Clerk Maxweel formulou sua teoria dinâmica do campo eletromagnético, primeiro exemplo de teoria capaz de unir duas teorias de campo anteriormente separadas, (a da eletricidade e a do magnetismo) e criar uma teoria unificada do eletromagnetismo. Em seu artigo “Sobre a Teoria do Campo Unificado”, Einstein postulava a possibilidade unificar a teoria da relatividade geral e a teoria do eletromagnetismo – ou seja, superar a concepção segundo a qual o eletromagnetismos e a gravidade seriam forças substancialmente diferentes em nome duma concepção pela qual todas as forças da natureza poderiam ser explicadas por uma mesma teoria unificada. Albert Einstein morreu, no entanto, sem conseguir produzir a contento tal unificação teórica. [2]

Também no tocante às suas convicções políticas Einstein caminhava lado a lado ao ponto de vista da totalidade. Em seu artigo “Porque socialismo?”, escrito por ocasião do lançamento da revista marxista estadunidense Monthly-Review, lançada em maio de 1949, defende uma concepção da história humana como história da luta de classes, e afirma estar convencido “de que existe apenas um caminho para eliminar esses graves males, e esse é o estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional orientado para objetivos sociais. Em uma economia tal, os meios de produção são propriedade da própria sociedade, e utilizados de modo planejado. Uma economia planejada, que ajusta a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre todos os capazes de trabalhar, e garantiria o sustento de cada homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além de desenvolver suas próprias habilidades inatas, se empenharia em desenvolver nele um senso de responsabilidade por seus companheiros de humanidade, em lugar da glorificação do poder e do sucesso, como temos na sociedade atual.”

Em suma: Einstein era um defensor da existência da verdade, de uma concepção total da realidade e da existência de um único meio para a superação da totalidade das contradições do capitalismo. Contra o relativismo pós-moderno, podemos afirmar seguramente, ao lado do físico alemão: “duas coisas são infinitas: a universo e a estupidez humana”, e quem sabe começar por aí a demonstrar o quão frágil é toda a apologia do relativo. Ou, ao menos, combater a apropriação indevida do físico alemão por tal tipo de concepção da realidade. Que seja impossível analisar qualquer fenômeno sem entendê-lo em movimento, em relação com outros, nisso estamos de acordo. Mas se furtar a entender que esta relação se insere em e engendra uma totalidade, uma unidade dialética, é exatamente abrir mão da relação como chave para o entendimento. O que falta, neste caso, é “a dimensão da verdade em sua oposição ao conhecimento: verdade enquanto conhecimento autorreflexivo “engajado” ou “prático” que é validado não por meio de sua adequatio rei, mas pelo modo como ele se relaciona com a posição do sujeito da enunciação.” O que escapa aos relativistas é que não se trata de contrapor a fé numa verdade divina à inexistência de uma verdade, – já que, do ponto de vista da crítica irreligiosa, tais perspectivas são coincidentes – e sim contrapor a busca por um “conhecimento objetivo” à possibilidade de uma verdade prática, ativa e histórica.

Tentando pôr as coisas em seu devido lugar, reiteramos: o Princípio da Relatividade significa que as leis da física são as mesmas para todos referenciais inerciais. Exceto pela luz, não há referencial absoluto a priori – mas tomado um dado referencial, a ele se aplicarão da mesma forma todas as leis da física que se aplicam para outro referencial qualquer relativamente inerte em relação a este. Alguma coisa aqui é relativa – jamais tudo.

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Notas:
[0] P.S: Escrito em 2015. Sobre o tema, vide Lênin e Paul Cockshott.
[1] Ao que respondia Sócrates: “A minha opinião é: a verdade é absoluta, não é opinião, e que você, Sr. Protágoras, está absolutamente errado. Como esta é a minha opinião, então você deve concordar que ela é verdade, de acordo com a sua filosofia.”. Nada mais fácil que enredar um relativista em si próprio!
[2] Como afirma Slavoj Zizek, na obra supracitada: “Tomemos, por exemplo, a impossibilidade de reconciliar a teoria da relatividade e a física quântica em uma consistente Teoria de Tudo: não há como resolver a tensão entre as duas por meio de uma reflexão dialética “imanente” na qual o problema em si torna-se sua própria solução. Tudo o que podemos fazer é esperar um avanço científico contingente – só assim será possível reconstruir retroativamente a lógica do processo.”
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terça-feira, 14 de setembro de 2021

A tirania da verdade relativa


por Achilles Delari Junior
artigo em PDF

Farei aqui uma crítica à tirania apoiada pelos signos já saturados da “verdade relativa”, da “inexistência” ou “morte” da verdade. Primeiro em meios acadêmicos, mas hoje também no senso comum, passou a ganhar força tal “ideologia” – tal “visão parcial imposta como explicação geral”. Ideologia da queda absoluta de qualquer critério objetivo para o entendimento entre as pessoas, na qual tudo se dissipa em apreensões subjetivas do certo ou errado, não cabendo a ninguém, portanto, prestar contas de seus atos – já que “para você é assim, pois esta é sua verdade; para mim não é, pois minha verdade é outra”. Procurarei apresentar ao leitor argumentos e exemplos de como tal modo de pensar e agir é prejudicial para as práticas democráticas e para o pensamento realmente crítico, favorecendo o autoritarismo e o pensamento acrítico, supersticioso. Peço a quem discordar que envie réplica, pois não será verdadeiro o que só eu ou você isoladamente pensamos, mas o que emerge do confronto tenso e franco entre pontos de vista distintos e deles com a própria realidade, que cobra sentido de nossas palavras.

Por que “a realidade cobra sentido”? Porque não podemos pensar tudo sobre qualquer coisa, sem prestar contas à realidade. Um exemplo na construção civil. Contou-me meu pai, mestre de obras aposentado, que certa vez trabalhou com ele um engenheiro recém formado. Deviam decidir sobre a proporção de areia e água para a mistura de uma massa de concreto. O engenheiro decorou bem a fórmula na faculdade e tinha a “verdade” de como deveria ser. Mas a areia estava molhada, e o mestre alertou que assim era preciso diminuir a quantidade de água. O engenheiro insistiu, pois aprendeu a proporção na faculdade e essa era a verdade. Foi feito como decretou. O resultado óbvio: a massa ficou mole demais. O mestre apenas o olhou com calma e disse: “Está aí, o que você queria”! Óbvio que a areia molhada já tinha parte da água necessária na proporção para a massa. O engenheiro nunca se retratou pelo erro. Ele tinha “a verdade dele”? Não, ele estava errado – e do erro fez seu dogma: “assim aprendi na faculdade”. Tal “verdade relativa” nunca faria a massa ficar consistente. A verdade não depende só de nosso pensamento, imaginação ou vontade. Por isso: “a realidade cobra sentido”. O real não se dobra à teimosia do engenheiro. Algo jamais será verdadeiro apenas “porque o professor disse”. Seria necessário que o engenheiro tivesse inteligência para aplicar o que devia ter compreendido, não só decorado. Pois as proporções seriam as mesmas, apenas parte da água já estava na mistura. Marx já disse que o critério da verdade é a prática – a capacidade de transformarmos a realidade – e não a discussão escolástica, ou a “autoridade” de quem diz tê-la.

Seria simples: é verdadeiro o que se pode por em prática; o que melhor explica os fatos e permite transformá-los. Mas não é tão simples, porque também se associou historicamente o “verdadeiro” ao que submete o outro à minha concepção, mesmo que errônea, é o que se chama “dogma”. O dogma não é verdade, mas regra de obediência: “faça assim porque é como aprendi na faculdade” – disse – mesmo sem entender o “aprendido”. Isso nada tem a ver com conhecimento verdadeiro. Entretanto, precisando negar o “dogmatismo” (atitude filosófica que postula o caráter imutável e absoluto de uma suposta “verdade”), o pensamento moderno criou-lhe um oposto também arbitrário: o “relativismo” (atitude filosófica que postula o caráter inexistente ou puramente subjetivo da verdade). Infelizmente, nota-se que: para o dogmático, a “verdade absoluta” é sempre a dele, nunca a de quem pensa diferente; e para o relativista, geralmente a “verdade relativa” é a de quem pensa diferente dele e não a própria. Se ele não aceita nosso pensamento costuma dizer “isso é relativo”, poucas vezes faz o mesmo com o que pensa e defende piamente, tal qual o dogmático. Há uma atitude ética comum: a esquiva de sermos corrigidos pelo outro, de entrarmos em contradição com nossos preceitos. O dogmático não pode ser corrigido, pois tudo que diz é verdade, o relativista não pode ser corrigido, pois, não havendo verdade, tudo que pensar será válido. Para Bakhtin o dogmatismo e o relativismo impossibilitam o diálogo – aquele porque o proíbe, este porque não necessita dele. Para o dialogismo, a verdade reside não em mim nem no outro, mas no diálogo – cobrando esforço pessoal, compromisso ético e atitude democrática.

Mas por que o relativismo não seria democrático? Por um motivo principal: se eu tenho minha verdade e você a sua, se não há verdade comum, nem conceito mais fiel à realidade que o outro, qual das duas prevalecerá? Simples, prevalecerá a de quem tem mais força. Não a de quem está correto, já que “não há ninguém mais correto”. Contou-me uma amiga que seu pai é comerciante e não pode mais cobrar certos clientes inadimplentes, pois já foi ameaçado de morte por fazê-lo. Muito bem, o comerciante tem “sua” verdade: deseja receber pelo produto vendido. E o devedor tem sua “verdade”: não quer pagar. Mas como se decide isso então? Se as verdades são opostas? O vendedor pode recorrer à cobrança, sentindo-se desrespeitado. O devedor pode recorrer à negação de pagar, ofendido por ser cobrado. Tais recursos continuam sendo “verdades” opostas. Qual vencerá? Nesse caso vence a da intimidação, da ameaça: “se me cobrar vou te matar”. Para não se aborrecer mais, o comerciante deixa prevalecer a “verdade” do outro. Sim, o leitor pode dizer que o contrário também ocorre na sociedade capitalista: alguém faz um crediário para comprar um simples fogão, perde o emprego e fica devedor, e por isso o outro ameaça fazer-lhe mal caso não pague – seja o mal dentro da lei ou não. Isto só confirma meu argumento: sendo apenas “verdades diferentes”, como decidir? Sem critérios objetivos para entendimento, a chance de prevalecer a força é maior. Verdade de “quem pode mais”, de quem manda fazer ou proíbe ser feito. É uma armadilha do relativista: nega o autoritarismo do dogmático, mas abre espaço para o dogma ser só “mais uma verdade entre as outras”. Em termos éticos é catastrófico, pois a ética do judeu e a do nazista ficam no mesmo patamar: “verdades” de cada grupo. Daí decorre a pertinência da crítica de KarlOtto Apel ao relativismo de Paul-Michel Foucault, mostrando que a ética transcendental não impede as éticas particulares, mas as garante, pois em que fórum se decidirá quando uma diferença exclui a outra?

Só o diálogo pode transcender verdades exclusivamente individuais, relativas frente às outras e absolutas para cada um. Diálogo entre os homens (critério de Bakhtin) e deles com a realidade pela mediação da prática (critério de Marx). Mas dialogar não é só concordar. Lucília Reboredo, psicóloga social, disse em Piracicaba: “para que haja diálogo é preciso haver diferença”. Se todos pensam igual só há repetição do comum – nem sempre verdadeiro. O mais verdadeiro não é o que “todos dizem”, é o mais fiel às contradições da realidade, mesmo que não gostemos delas. Mas compreendêlas, no conjunto, escapa à ação individual, precisamos confrontar visões em busca de entendimento coletivo. Se todas as visões fossem igualmente válidas tal busca seria desnecessária. Admitir que, em oposição, uma delas ou ambas podem errar é desconfortável. Melhor pensar: “cada um tem sua verdade”. Como ninguém gosta de admitir seus erros, digamos que “todos estão certos” – uma forma de comodismo. Há nisso razões sociais para o sucesso da moda relativista na ciência e na ética.

Temos hoje muitas diferenças, mas paradoxalmente aumenta a intolerância. Existem muitas culturas, mas cada qual vive “sua própria verdade”. Mais que diferenças, temos desigualdades. Nossa preguiça mental e falta de disposição afetiva para buscar saídas dialógicas de entendimento são mascaradas pela falácia da apologia das “verdades relativas”, que já mostra sua face tirânica: “você pode ser diferente, desde que longe de mim”. Mas a verdade não é relativa nem absoluta, é histórica. E a história da humanidade tem sido história de lutas. É lutando, confrontando, transformando o mundo e nossas relações sociais que aprendemos verdades necessárias a esta mesma transformação. Desistir disso é desistir de sermos humanos (seres sociais), para nos alienarmos num mundo subjetivo monológico, no qual só falo sobre mim e para mim, e o outro se torna um estranho ameaçador, a ser afastado, ignorado, temido ou subjugado, como pensam alguns psicanalistas. Ao nos afastarmos assim dos outros, também não nos encontraremos. Talvez nisso esteja a maior tirania em se obliterar qualquer busca de verdades partilhadas: abdicarmos da verdade sobre nós mesmos.

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[0] GETHC – Grupo de Estudos em Teoria Histórico-Cultural Umuarama PR – 03 de setembro de 2009. Psicólogo pela UFPR desde 1993. Mestre em Educação pela Unicamp, desde 2000, na área “Educação, conhecimento, linguagem e arte”. E-mail: delari@uol.com.br
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domingo, 9 de fevereiro de 2020

Vicissitudes da consciência histórica no século XX


 
por István Mészáros

Em relação ao desenvolvimento dessa consciência histórica no século XX, Hannah Arendt nos fornece um exemplo representativo e intrigante. Sobretudo porque as manifestações cada vez mais intensas das contradições e desumanidades da ordem social capitalista impedem a adoção de uma defesa não problemática dessa mesma ordem e Arendt procura com frequência se distanciar da “privatização burguesa”, do consumismo e da hipocrisia. De fato, em discussão acadêmica dedicada à avaliação de seu trabalho, ela chega a ponto de confessar uma “romântica simpatia em relação ao sistema de conselhos”.[1]

E ainda, apesar  do intento crítico de Arendt, a privatização reina suprema em sua obra, não importando quantas referências sejam feitas ao “domínio público” idealizado ou até ao mais idealizado “cidadão”. Não apenas porque ela admite que “nunca senti a necessidade de comprometer-me”[2]. Mais importante sobre esse aspecto é a oposição irreconciliável que ela defende entre pensamento e prática, optando pelo primeiro com a justificativa de que “eu, por natureza, não sou um ator”[3]. E até quando ela reconhece que:
A principal falha e equívoco de A condição humana [1958] é a seguinte: eu sigo observando o que é chamado nas tradições de vita activa a partir do ponto de vista da vita contemplativa, sem jamais dizer algo real a respeito da vita contemplativa.[4]
Não é dada nenhuma indicação de como se deve superar a “falácia” (expressão de Arendt) agora admitida. Ao contrário, a cisão entre pensamento e prática é mantida quando ela insiste que “na medida em que desejo pensar devo retirar-me do mundo”[5], ao reformular a antiga abordagem essencialmente nos mesmos termos[6]. Não é suficiente dizer que “sinto que A condição humana precisa de um segundo volume e estou tentando escrevê-lo”[7]. Pois, como aprendemos também com o exemplo das sínteses filosóficas de Sartre — O ser e o nada [1943] e Crítica da razão dialética [1960] — uma coisa é reconhecer a necessidade de um segundo volume “corretivo”, e outra muito diferente é ser capaz de escrevê-lo, em vistas profundas, mas não visíveis aos atores em questão, incompatibilidades teóricas envolvidas.

O fracasso de Arendt em desafiar o problema da privatização, apesar de seu sincero desejo em fazê-lo, repete-se em sua crítica da “burocracia” — enquanto “governo de ninguém” —. formulada em um vácuo social. De fato, sua crítica sustenta-se apenas em sua idealização da Constituição Americana e dos “Pais Fundadores”, explicitada ao lado de uma duvidosa interpretação de [Charles-Louis de Secondat] Montesquieu, elaborada para esse propósito. E quando ela é criticada por falta de evidência efetivamente histórica e pela idiossincrática interpretação de obras, tudo o que tem a oferecer em defesa da posição advogada é uma elevação circularmente especuladora da prática weberiana de construção de “tipos ideais” para o estatuto axiomático de regra geral inquestionável[8].

De forma compreensível, portanto, a crítica da burocracia proposta permanece bastante impotente. Opõe-se verbalmente à burocracia enquanto também a aceita, baseando-se na ideia de que “a enormidade e a centralidade exigem tais burocracias”[9]. E, da mesma forma, após declarar que o trabalho da administração “pode apenas ser realizado de uma maneira mais ou menos centralizada”, tudo que nos é oferecido, no lugar de uma solução, é um dilema do qual não pode haver saída: “Por outro lado, essa centralização é um perigo assombroso, porque essas estruturas são muito vulneráveis, Como poderiam ser mantidas sem centralização? E se for o caso, a vulnerabilidade é imensa”[10].

Seria surpreendente se pudesse ser de outra forma no sistema de Hannah Arendt. Pois a crítica que corrói seu próprio terreno e qualquer possibilidade de intervenção eficaz na transformação para melhor do quadro estrutural e institucional da sociedade — corrói ao rejeitar peremptoriamente não apenas a noção marxiana de superestrutura, definida em termos de suas reciprocidades dialéticas com a base material da prática social, mas também as categorias de classes sociais, tendências e movimentos, com a curiosa justificativa de que conceitos como esses pertencem ao “século XIX”[11] — deve ser extremamente impotente diante de tais dilemas autoimpostos.

Apesar de sua polêmica, às vezes feroz, contra o “burguês”, Arendt compartilha de sua tradição não apenas o ponto de vista da individualidade isolada — que a induz a idealizar as misteriosas e internas “experiências entre o homem e si mesmo[12], para ser capaz de concluir, opondo Weber a Marx, que “o que distingue a era moderna é alienação em relação ao mundo e não, como pensava Marx, a alienação em relação ao ego”[13] —, mas Arendt compartilha também outras características metodológicas com as quais no ocupamos a seguir.

Sua concepção de consciência histórica é inseparável da teorização extremamente relativista de [Werner Karl] Heisenberg da ciência moderna — com seu quase mítico “princípio da incerteza” — no qual ela pretende “embasar” uma noção insuperavelmente cética da história.

Ao mesmo tempo, dualismos e dicotomias estão em evidência por todo seu sistema, da separação apriorística de pensamento e prática à irreconciliável oposição entre o “político” e o “social”. Ademais, as categorias articuladas de forma dual não são estabelecidas sobre a base da evidência verificável, mas com a premissa meramente estipulada de definições formalistas, combinadas com um culto heideggeriano/irracionalista do “incidente”, e também com constantes polêmicas contra as “teorias e definições” de outros[14].

Ademais, sua identificação consciente com o ponto de vista da economia política burguesa fica claramente visível em sua defesa apaixonada da propriedade privada, quando argumenta que:

A palavra “privada” em conexão com a propriedade, mesmo em termos do pensamento político dos antigos, perde imediatamente o seu caráter privativo e grande parte de sua oposição à esfera pública em geral; aparentemente, a propriedade possui certas qualificações que, embora situadas na esfera privada, sempre foram tidas como absolutamente importantes para o corpo político. [...] A propriedade e a riqueza são de maior relevância para a esfera pública que qualquer outra questão ou preocupação privada e desempenharam, pelo menos formalmente, mais ou menos o mesmo papel como principal condição para a admissão do indivíduo à esfera pública e à plena cidadania. [...] Antes da era moderna [...], todas as civilizações tiveram por base o caráter sagrado da propriedade privada.[15]

E alhures:

A propriedade é, na realidade, muito importante. [...] E, creia-me, essa propriedade está sob sério risco, seja pela inflação, que é apenas outro modo de expropriar o povo, ou por tributos exorbitantes, que constituem também outra via de exploração. Esses processos de expropriação ocorrem por todas as partes. Se colocarmos à disposição de qualquer humano uma quantidade decente de propriedade — não expropriar, mas sim distribuir a propriedade — haverá possibilidades para a liberdade, mesmo que sob condições totalmente inumana da produção moderna.[16]

Assim, em sofisticado contraste com a apologética crua da “revolução gerencial” de [James] Burnham e suas variantes mais recentes, Hannah Arendt nos oferece a mitologia do “capitalismo do povo” como um ideal pelo qual lutar, em vez de um fato consumado. A verdade infeliz, no entanto, de que a maioria esmagadora da humanidade foi e continua sendo impiedosamente desprovida até mesmo das mais escassas posses por precisamente aqueles que vêm utilizando a propriedade privada, decerto já por um longo tempo, para qualquer fim exceto “as possibilidades de liberdade”, não parece ter muito peso, se é que possui algum, no esquema de reparação idealista — e, em face de toda a evidência histórica, espantosamente contrafactual — de Arendt.

Além disso, o que piora as coisas é que a economia política das práticas socieconômicas capitalistas — por ela transubstanciada na dita “esfera estritamente econômica” (seja lá o que isso signifique) — é dicotomicamente oposta por Arendt à esfera do pensamento considerada apropriada para a interação política, acarretando (de modo revelador, de fato) um fim para a sua preocupação programática com a “recuperação do mundo público” no domínio crucialmente importante de nossa vida socioeconômica.

A teorização de um tipo científico ou técnico pertence apenas ao lugar onde não há espaço para a ação ou debate, na esfera estritamente econômica, na qual os homens se envolvem nas atividades de trabalho e labor, quando produzem e consomem. Aqui, por necessidade, a categoria de meio e fins governa sua atividade e seu pensar sobre a atividade, que toma a forma de cálculo, planejamento e administração com o objetivo de predição e controle. Aqui a eficiência é cara e a economia pode ser bem servida por decisões que são elaboradas por um ou poucos homens, e não debatidas por todos. Pois o que está em jogo não é a variedade de experiências e julgamento do que é o melhor para um mundo comum, mas simplesmente os meios corretos para um fim.[17]

Dessa forma, as dicotomias de Hannah Arendt, formuladas do ponto de vista da economia do capital, servem a um propósito ideológico fácil de se identificar. Pois a insuperável oposição a priori entre “o político” e a “esfera estritamente econômica” exime esta última até mesmo da possibilidade do exame público legítimo, com a desculpa de que pertence ao domínio do raciocínio “técnico”, preocupado com a relação puramente instrumental entre meios e fins.

Em outras palavras, sua abordagem subestima e, simultaneamente, racionaliza o domínio do capital dos “poucos” privilegiados, que já estão bem consolidados em sua posição de comando na sociedade e exercem no lugar da classe dominante (este “nome abstrato do século XIX”) o poder da decisão econômica e alocação de recursos “estritamente racional”. Uma solução baseada em pressuposições ideológicas que são indistinguíveis das ilusões pós-guerra sobre o “fim da ideologia”[18]. Isso tem sido indiretamente reconhecido até por um dos mais simpáticos comentadores de Arendt, que salientou:

O que ela almejava era uma solução para o problema da pobreza “através de meios técnicos”, através de um “desenvolvimento racional, não ideológico e econômico”. O que isso pode vir a ser, ela não disse. Sua suposição era que a tecnologia pode ser “politicamente neutra” — uma suposição bastante problemática.[19]

Sem dúvida!

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Notas:
[1] Melvyn A. Hill (org.), Hannah Arendt: the recovery of the Public World (Nova York, St. Martin's Press, 1979), p. 327. É claro que ela imediatamente acrescenta: “o sistema de conselhos, o qual nunca foi testado”. As instâncias históricas efetivas de conselhos, da Comuna de Paris até certas tentativas recentes em afirmar sua importância prática para uma transformação  socialista da sociedade, parecem não contar. Nem mesmo como “testes”. Pois uma vez que o horizonte social com o qual Arendt se identifica não pode conciliar-se com o projeto socialista, ela prefere rotulá-lo e sumariamente descartá-lo como inseparável do “totalitarismo”.
[2] Ibidem, p. 306.
[3] Ibidem. E ao entrevistador, que pergunta: “O que a senhora é? Uma conservadora? Uma liberal? Qual sua posição no interior das possibilidades contemporâneas?”, ela responde: “Eu não sei. Eu realmente não sei e nunca soube. E suponho que nunca assumi alguma dessas posições. Você sabe que a esquerda me considera conservadora e os conservadores pensam que sou de esquerda ou algum tipo de dissidente ou sabe lá Deus o quê. E devo dizer que não me importa nem um pouco. Não penso que as reais questões deste século receberão alguma forma de iluminação deste tipo de coisa. [...] Nunca fui uma socialista. Nunca fui uma comunista. Tenho antecedentes socialistas. Meus pais eram socialistas. Mas eu, nunca. Jamais quis algo daquele tipo. Então não posso responder à questão. Nunca fui uma liberal. Nunca acreditei no liberalismo. [...] Então você me pergunta onde me situo. Em lugar algum. Não estou nas correntes políticas do pensamento político presente ou qualquer outro. Mas não porque quero ser original — acontece apenas que não me encaixo. [...] Não quero dizer que sou incompreendida. Pelo contrário, sou muito bem compreendida. Mas se você surge com algo assim e tira das pessoas seus pontos de apoio — suas seguras linhas-mestras (e falam a respeito da ruína da tradição sem sequer saber o que isto quer dizer! Que isso significa que você realmente está ao léu!) então, é claro que a reação será — e este tem sido meu caso muito frequentemente — que você é simplesmente ignorado. [...] E, bem você sabe, não reflito muito sobre o que faço. Penso ser uma perda de tempo. Você nunca se conhece de qualquer forma. Então é bem inútil. Esse negócio de que a tradição está em ruínas e o fio de Ariadne está perdido. Bem, isto é não tão novo quanto fiz parecer. Foi, no final de contas, Tocqueville que disse que ʽo passado deixou de projetar sua luz sobre o futuro, e a mente do homem vaga pela escuridãoʼ. É esta a situação desde meados do último século e, vista da perspectiva de Tocqueville, totalmente verdadeira”, ibidem, p. 333-7.
[4] Ibidem, p. 305.
[5] Ibidem, p. 304.
[6] Ver a esse respeito, ibidem, p. 303-6.
[7] Ibidem, p. 306.
[8] “Bem, é claro que fiz algo similar ao que Montesquieu fez com a Constituação Inglesa ao construir certo tipo ideal da Constituição Americana. [...] Na verdade todos fazemos isso. Todos criamos aquilo que Max Weber chamou de ʽtipo idealʼ. Quer dizer, meditamos sobre um certo conjunto de fatos históricos, e discursos, ou qualquer outra coisa”. Quer dizer, meditamos sobre um certo conjunto de fatos históricos, e discursos, ou qualquer outra coisa, até que se torne  um tipo de regra consistente”, ibidem, p. 329.
[9] Ibidem, p. 327.
[10] Ibidem, p. 328.
[11] “Creia-me, a burocracia é uma realidade muito mais [reveladora ou ocultadora] hoje do que a classe. Em outras palavras, você usa certo númeor de nomes abstratos que um dia forma reveladores, a saber, no século XIX” (ibidem, p. 319). Lenin, também, é “tão agradavelmente do século XIX, sabia? Não acreditamos mais em nada disso”, ibidem, p. 324.
[12] Ou, como ela coloca em outro lugar: “o hábito de viver explicitamente comigo mesma, ou seja, de estar engajada naquele diálogo silencioso entre mim e eu mesma”, Hannah Arendt, “Personal Responsability under Dictatorship”, The Listener, 6 de agosto de 1964.
[13] Hannah Arendt, A condição humana (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999), p. 266. É, obviamente, uma característica distorção afirmar que a preocupação de Marx é com a “alienação do ego”. Seu interesse em revelar como a “alienação do trabalho” assume um papel central no funcionamento da sociedade sob o domínio do capital, afetando profundamente todos os aspectos da vida, da produção material a imagens religiosas e conceituações filosóficas, está concentrando em determinações e processos dialéticos altamente objetivos, cujo significado não pode ser reduzido ou encapsulado por termos subjetivistas como “alienação do ego”.
[14] “O único ganho que se pode esperar legitimamente dessa atividade humana das mais misteriosas [ou seja, pensar] não são definições ou tampouco teorias, mas antes a vagarosa e morosa descoberta e, talvez, um mapeamento investigativo da região a qual algum incidente tenha iluminado por um fugaz momento”, Hannah Arendt, “Action and the Pursuit of Happiness”, artigo apresentado no Encontro da American Political Science Association, em setembro de 1960. Citado no elaborado ensaio de Melvyn A. Hill, “The Fictions of Mankind and the Stories of  Men”, em Hannah Arendt: the Recovery of the Public World, cit.
[15] Hannah Arendt, A condição humana, cit., p. 70.
[16] Melvyn A. Hill (org.), Hannah Arendt: the Recovery of the Public World, cit., p. 320.
[17] Ibidem, p. 287.
[18] Não é surpreendente, portanto, que Daniel Bell tenha recebido a publicação das obras de Hannah Arendt com tanto entusiasmo. (Denecessário dizer, a simpatia foi recíproca, já que Arendt também recomendou o livro de Daniel Bell, Work and Its Discontents, como uma “excelente crítica da voga das ʽrelações humanasʼ”.
[19] Elisabeth Young-Bruehl, “From the Pariah's Point of View: Reflections on Hannah Arendt's Life and Work”, em Melvyn A. Hill (org.), Hannah Arendt: the Recovery of the Public World, cit., p. 24.
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MÉSZÁROS, I. Estrutura social e formas de consciência I: a determinação social do método. Trad. Luciana Pudenzi, Francisco Raul Cornejo e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 83-87.
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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

O paraíso perdido do “marxismo ocidental”


por István Mészáros

I
 
A principal razão pela qual Merleau-Ponty idealiza História e consciência de classe [1923] de Lukács em seu As aventuras da dialética [1955] como a corporificação clássica do “marxismo ocidental” (em contraposição ao “marxismo do Pravda”) é o tratamento que o filósofo húngaro confere à problemática hegeliana do sujeito-objeto idêntico.
 
Para seu crédito, Merleau-Ponty está pronto a admitir que sua reconstrução do significado de Lukács é feita “muito livremente ... para avaliar o comunismo de hoje, para perceber ao que ele renunciou e ao que ele se resignou”[1]. Em consonância com esta aspiração, a tendência geral de As aventuras da dialética é a legitimação teórica do extremo relativismo. Esta é a razão de ter superado até mesmo seu ídolo intelectual, Max Weber, dizendo que este “grande intelecto”[2] “não persegue a relativização do relativismo até os seus limites[3]. Consequentemente, Merleau-Ponty procura uma retificação adequada de Weber e anuncia que a encontrou no jovem Lukács. Pois, na visão de Merleau-Ponty, o mérito exemplar da posição assumida pelo filósofo húngaro em História e consciência de classe deve ser reconhecido com base no alegado fato segundo o qual
ele não reprova Weber por ter sido muito relativista, mas antes por não ter sido suficientemente relativista e por não ter ido tão longe quanto “relativizar as noções de sujeito e objeto”. Pois, quando isto é feito, obtém-se um tipo de totalidade.[4]
Merleau-Ponty necessita da “relativização do relativismo até os seus limites” por duas razões fortemente interligadas.
 
Primeira, para ser capaz de relativizar de tal modo o significado do que deveria ser ou não considerado progressista no campo da ação sociopolítica a fim de que pudesse reverter completamente sua rejeição anterior dos “compromissos com a opressão colonial e social”[5]. Assim, o novo relativismo fornece a Merleau-Ponty uma desculpa para condenar o que ele, agora, rotula de “fracasso moralizante” absoluto[6] dos militantes anticolonialistas que disputam e lutam pelo direito de autodeterminação nos territórios coloniais franceses ainda remanescentes. Na sua nova posição, Merleau-Ponty os castiga com base no fato de “eles não aceitarem qualquer compromisso com a política colonial”[7]. Melancolicamente, neste primeiro sentido, a “relativização do relativismo até os seus limites” é empregada por Merleau-Ponty para glorificar a política colonial francesa – e fazê-lo na época da guerra da Argélia e do retorno ao poder de De Gaulle – como um “Plano Marshall para a África”[8]. E ele conclui sua autoidentificação apologética com os exploradores e opressores proclamando que “não mais podemos dizer que o sistema foi feito para a exploração; não há mais, como se usava dizer, qualquer ‘exploração colonial’”[9].
 
A segunda razão pela qual as virtudes do relativismo extremo são cantadas pelo filósofo francês diz respeito à natureza da própria estrutura teórica na qual pode ser realizada a reversão completa da postura política prática antes genuinamente advogada pelo intelectual radical Merleau-Ponty. Apenas alguns anos antes de escrever As aventuras da dialética, o fenomenólogo “marxizante” condenou duramente aqueles antigos marxistas americanos que, em sua visão, aderiram à “liga da esperança abandonada”. Ele os censura por se terem “livrado de todo tipo de crítica marxista, todo o tipo de índole radical. Os fatos da exploração através do mundo representavam para eles apenas problemas isolados que devem ser examinados e solucionados um a um. Eles não possuem mais quaisquer ideias políticas”[10]. E o radical Merleau-Ponty – na época em que escreveu o artigo citado, ainda um camarada de armas de Sartre – resume assim sua posição contra os membros da “liga da esperança abandonada”:
tudo considerado, o reconhecimento do homem pelo homem e da sociedade sem classes é menos vago, como princípios de uma política mundial, do que a prosperidade americana, e a missão histórica do proletariado é em última análise uma ideia mais precisa do que a missão histórica dos Estados Unidos.[11]
Dois anos e meio depois da publicação de As aventuras da dialética, a “filosofia da história marxista” é sumariamente rejeitada por Merleau-Ponty, que agora afirma que “a própria ideia de um poder proletário se tornou problemática”[12].
 
Esta mudança é preparada teoricamente pela interpretação “muito livre” que relativiza não apenas o sujeito e o objeto – nos termos os mais gerais, com o propósito confesso de “obter algum tipo de totalidade” –, mas especificamente a relação da filosofia com a base material da vida social. Assim, Merleau-Ponty esvazia a estrutura teórica marxiana de seu conteúdo estabelecendo – não por uma análise construída por evidências históricas e textuais, mas por meio de um decreto completamente arbitrário – uma oposição, que depois virou moda, entre o jovem Marx “filosófico” e o criador do socialismo científico. Como resultado dessa linha de abordagem, o assim denominado “marxismo ocidental” – a “relativização do relativismo até seus limites” na filosofia – é inventado por Merleau-Ponty para, com sua ajuda, minar radicalmente não apenas o marxismo dos seguidores de Marx, mas a própria estrutura conceitual de Marx. Caracterizado como uma espécie de marxismo “antes da queda”, o idealizado marxismo ocidental postula-se como representante do antídoto – algo mítico – não apenas aos “dogmáticos Pravda-marxistas” mas, muito mais significativamente, ao próprio Marx historicamente conhecido.
 
É para o estabelecimento desse objetivo teórico dúbio que se faz necessária a reconstrução “muito livre” da linha de argumentação de Lukács em História e consciência de classe. Ao final – totalmente relativizado –, o marxismo aprovado por Merleau-Ponty não é outro senão
o do pré-1850. Depois disso vem o socialismo “científico”, e o que é dado à ciência é retirado da filosofia. ... Nesse período posterior, portanto, quando Marx reafirma sua lealdade a Hegel, isto não deveria ser mal compreendido, porque o que ele procura em Hegel não é mais uma inspiração filosófica; antes, é o racionalismo, para ser empregado para o benefício da “matéria” e “taxas ou estimativas de produção”, que são consideradas uma ordem em si mesmas, um poder externo e completamente positivo. Não é mais uma questão de salvar Hegel da abstração, de criar a dialética dando-a em confiança ao próprio movimento do seu conteúdo, sem qualquer postulado idealista: é muito mais uma questão de anexar a lógica de Hegel à economia .... O conflito entre o “marxismo ocidental” e o leninismo já está fundado em Marx como um conflito entre o pensamento dialético e o naturalismo, e a ortodoxia leninista eliminou a tentativa de Lukács assim como o próprio Marx eliminou seu próprio primeiro período “filosófico”.[13]
Naturalmente, a periodização arbitrária de Merleau-Ponty enfrenta dificuldades desde o primeiro momento da sua formulação. Pois o filósofo francês, depois de declarar que o comentado Marx “filosófico” é “aquele pré-1850”, é imediatamente forçado a recuar o relógio por pelo menos cinco anos até o “jovem filosófico” Marx. Nesse sentido, Merleau-Ponty afirma na próxima linha de suas As aventuras da dialética, sem se preocupar em solucionar a contradição nessa periodização, que “A ideologia alemã já falava em destruir a filosofia ao invés de realizá-la”[14]. Desse modo, nem sequer ao Marx pré-1850 é permitido juntar-se às exaltadas fileiras do “marxismo ocidental”. Tal status é atribuído apenas a um Marx que nunca existiu.
 
Como podemos ver, então, a reconstrução relativista de História e consciência de classe, em As aventuras da dialética, serve a um propósito ideológico muito preciso e extremamente problemático. Em termos pessoais, melancolicamente, marca um estágio importante no curso do desenvolvimento político e intelectual de Merleau-Ponty desde a sua sarcástica condenação da “liga da esperança abandonada” até a sua identificação sem reservas com as opiniões ideológicas conservadoras dela própria[15].
 
II
 
Com certeza a celebrada obra de Lukács absolutamente nada tem a ver com as intenções ideológicas antimarxistas de Merleau-Ponty. Nem ninguém poderia identificar no autor de História e consciência de classe o ancestral intelectual daqueles que contrapuseram o jovem Marx “filosófico” ao pensador “economista científico” que veio a seguir[16].Pelo contrário, é completamente justificável que Lukács sublinhe no seu Prefácio à edição de 1967 de História e consciência de classe que
eu incluí os primeiros trabalhos de Marx no quadro global de sua visão de mundo. Eu o fiz em uma época em que a maioria dos marxistas estava propensa a ver neles nada mais que documentos históricos importantes apenas para seu desenvolvimento pessoal. Além disso, História e consciência de classe não pode ser acusada se, décadas depois, a relação foi revertida de tal modo que as primeiras obras fossem vistas como produtos da verdadeira filosofia marxista, enquanto os trabalhos mais recentes eram negligenciados. Certo ou errado, eu sempre tratei as obras de Marx como tendo uma unidade essencial (p. xxvi; ed. port., p. 366).
Em História e consciência de classe as dificuldades reais são abundantes. Como o próprio Lukács assinalou em 1967, ele tenta “hegelianamente superar Hegel” em seu “constructo puramente metafísico” que retrata o proletariado como o “sujeito-objeto idêntico da história real da espécie humana” (p. xxiii; ed. port., p. 363).
 
Como resultado da abordagem dos problemas do desenvolvimento sócio-histórico nesse espírito, Lukács termina com “um edifício audaciosamente erigido acima de qualquer realidade possível” (p. xxiii; ed. port., p. 363), reproduzindo ao mesmo tempo também a fusão hegeliana dos conceitos de “alienação” e “objetivação”: um procedimento que deve ser considerado duplamente desconcertante em uma concepção histórica materialista que explicitamente visa identificar a alavanca objetiva materialmente eficaz da emancipação social. Pois, uma vez que a objetivação é descartada como “reificação” e “alienação”, não resta nenhum solo concebível no qual até mesmo a estratégia emancipatória teoricamente mais sofisticada poderia ser implementada com sucesso no mundo real.
 
Contudo, se Lukács tenta “hegelianamente superar Hegel” em História e consciência de classe, Merleau-Ponty vai muito além disso em As aventuras da dialética, pois ele tenta “weberianamente superar Weber” com a ajuda de Lukács para “relativizar o relativismo até seus limites”. Além disso, o filósofo francês muito simplesmente se recusa a examinar qualquer outra coisa que possa ser encontrada em a História e consciência de classe além da problemática hegeliana do sujeito-objeto idêntico. E mesmo este aspecto é abordado em As aventuras da dialética apenas de uma forma “para-além-de-weberiana”, extremamente relativizada e subjetivada. De uma forma, na qual, em todas as referências às condições reais de existência do proletariado e às exigências estratégicas de sua transformação – presentes, ao menos em alguma extensão, em História e consciência de classe, mesmo se em uma forma muito problemática –, as formas objetivas desaparecem completamente em Merleau-Ponty. Desse modo, este aspecto, de longe o mais questionável de História e consciência de classe, é transformado em uma mitologia neoweberiana, enquanto todas as realizações reais dessa importante obra de transição são intencionalmente ignoradas.
 
Além disso, mesmo a questão do relativismo é caracteristicamente deturpada na reinterpretação ideologicamente motivada de História e consciência de classe que faz Merleau-Ponty. Pois ele aplaude Lukács por ter pretensamente ido além de Weber ao “perseguir a relativização do relativismo até seus limites”. Ainda mais, o único lugar em História e consciência de classe em que podemos encontrar algo que vagamente se assemelha à alegação de Merleau-Ponty é onde Lukács insiste que
somente a dialética da história tem condições de criar uma situação radicalmente nova. Não apenas porque ela relativiza todos os limites, ou melhor, porque ela os põe em um estado de fluxo contínuo. Nem porque todas aquelas formas de existência que constituem a contrapartida do absoluto são dissolvidas em processos e vistas como manifestações concretas da história de tal forma que o absoluto não é tanto negado quanto dotado de sua forma histórica concreta e tratado como um aspecto do processo em si (p. 188; ed. port., pp. 209-10).
Portanto, enquanto o ideal de Merleau-Ponty de “perseguir a relativização do relativismo até seus limites” (o que quer que signifique esta curiosa expressão) tem por atributo a “superação-weberiana de Weber”, ou seja, do próprio filósofo relativista, Lukács está de fato se referindo a algo completamente diferente. Ele levanta a questão da relativização (ou, melhor, como ele acrescenta, a questão coloca os limites das coisas “em um estado de fluxo”, sublinhando assim seu caráter inerentemente processual) em relação à dialética da história como tal. É esta última que “relativiza todos os limites” no curso do seu desdobramento objetivo no interior da estrutura na qual tudo deve assumir uma “forma histórica concreta”. Tanto é assim que, apenas algumas linhas depois da passagem da página 188 (ed. port., pp. 209-10), Lukács – antecipando e rejeitando o duvidoso cumprimento de Merleau-Ponty – afirma muito categoricamente que “é profundamente enganador descrever o materialismo dialético como ‘relativismo’(p. 189; ed. port., p. 210).

III
 
Para fazer de fato justiça ao autor de História e consciência de classe, contudo, devemos citar uma outra passagem também dessa obra para mostrar até onde vai Lukács em sua insistência no caráter longe de relativista das determinações que, em sua visão, emanam da dialética objetiva da história. Na seção final do ensaio mais importante de História e consciência de classe, “Reificação e a consciência do proletariado” – acerca das dificuldades de encontrar um modo de “romper a estrutura reificada da existência” (p. 197; ed. port., p. 219) sob a forma histórica concreta da sociedade capitalista –, Lukács insistentemente argumenta que
a estrutura pode ser rompida apenas se as contradições imanentes do processo [como uma totalidade histórica em desenvolvimento] forem tornadas conscientes. Apenas quando a consciência do proletariado for capaz de apontar o curso pelo qual a dialética da história é objetivamente impelida, mas que ela não pode percorrer sem ajuda, a consciência do proletariado será despertada para uma consciência do processo, e apenas então o proletariado se torna o sujeito-objeto idêntico da história cuja práxis mudará a realidade. Se o proletariado falhar em dar este passo, as contradições permanecerão irresolutas e serão reproduzidas pela mecânica dialética do desenvolvimento em um patamar superior, em uma forma alterada e com intensidade crescente. É nisto que consiste a necessidade objetiva da história. A obra do proletariado não pode jamais ser mais do que dar o próximo passo no processo[17] (pp. 197-8; ed. port., p. 219).
Como podemos ver, neste esforço para sublinhar a inevitável natureza objetiva do processo histórico em andamento, Lukács não hesita em recorrer a um conceito tão excêntrico – à primeira vista até contraditório – como a “mecânica dialética do desenvolvimento” (die dialektische Mechanik der Entwichlung)[18]. O que ele quer dizer com isso é que a dialética da história (isto é, a dialética do desenvolvimento histórico global, Gesamtentwicklung) é ela própria objetivamente impelida – como um mecanismo dialeticamente produtivo – a revelar, numa intensidade sempre crescente, as contradições subjacentes da sociedade capitalista como uma necessidade objetiva do processo de desenvolvimento (die objektive Notwendigkeit des Entwicklungsprozesses), mesmo se a consciência do proletariado falhar em sua “missão histórica”.

Dessa visão seguem-se duas conclusões:
  • Primeira, que não pode haver tal integração permanente do proletariado, mas tão só uma integração que seja estritamente temporária. O “mecanismo dialético” e a “necessidade objetiva do desenvolvimento” tornam impossíveis para o proletariado viver permanentemente integrado à estrutura capitalista exploradora e desumanizadora. Pois o Gesamtprozess continua a reproduzir as contradições imanentemente antagônicas da sociedade capitalista, tanto num patamar superior como com uma intensidade crescente, precisamente porque a dialética da história não “é auxiliada”, na sua propensão objetivamente impelida para a resolução das contradições em questão, pela atualização da consciência de classe potencial (ou “atribuída”) do proletariado. Sendo assim, as contradições devem ser seguidamente enfrentadas pelos trabalhadores, não importando quanto esforço seja investido nos vários esquemas de acomodação por meio dos quais a ordem dominante – com a colaboração ativa do reformismo social-democrata – tenta varrê-las para baixo do tapete.
  • A segunda conclusão se refere às dramáticas alternativas implícitas nas tendências objetivas do desenvolvimento histórico real na era do capitalismo global e do imperialismo. Nesse aspecto o autor de História e consciência de classe está em completo acordo com o dictum de Rosa Luxemburgo: “socialismo ou barbárie[19]. Pois, segundo Lukács, a dialética objetiva da necessidade histórica não pode assegurar, por si só, o resultado positivo das quase inevitáveis confrontações pelas quais as duas classes hegemônicas da ordem produtiva dada – capital e trabalho – devem resolver pela força seus conflitos em uma conclusão historicamente viável, sob a pressão da “mecânica dialética do desenvolvimento”. Afirmou-se que o proletariado é “o sujeito-objeto idêntico do processo histórico, isto é, o primeiro sujeito na história que é (objetivamente) capaz de uma consciência social adequada” (p. 199; ed. port., pp. 218-9). Mas “capaz” permanece o termo operativo chave. Tudo depende, portanto, da atualização vitoriosa da “capacidade objetiva” constantemente reiterada por Lukács.
As categorias que vimos na passagem citada das páginas 197-8 (ed. port., p. 219) de História e consciência de classe são trazidas à nossa atenção por Lukács para articular a estrutura teórica no interior da qual estas duas conclusões podem ser tiradas. Elas são, de fato, descritas por ele com a maior clareza, nas palavras finais do ensaio sobre a “Reificação e a consciência do proletariado” e sem o menor sinal de qualquer “relativização do relativismo até seus limites”. Desse modo:
Conforme os antagonismos se tornam agudos, duas possibilidades se abrem ao proletariado. É dada a oportunidade de substituir a carcaça velha e superada pelo seu próprio conteúdo objetivo. Mas, pelo menos por um tempo, ele também está exposto ao perigo de se adaptar ideologicamente a estas formas mais vazias e mais decadentes da cultura burguesa... A evolução econômica objetiva não pode fazer mais do que criar a posição do proletariado no processo de produção. Foi esta posição que determinou seu ponto de vista. Mas a evolução objetiva poderia apenas dar ao proletariado a oportunidade e a necessidade de mudar a sociedade. Qualquer transformação pode se efetivar apenas como produto da ação – livre – do próprio proletariado (pp. 208-9; ed. port., pp. 231).
Coerente com a linha geral da sua abordagem, Lukács define novamente o obstáculo à resolução positiva das contradições identificadas em termos de ideologia. Um obstáculo que, em sua visão, poderia ser superado pelo trabalho de consciência sobre consciência, e tornado possível instrumental/organizacionalmente na forma da atividade ideológica esclarecedora do partido, desde que o próprio partido se tornasse digno da sua tarefa histórica, como vimos Lukács argumentar em outro contexto. A circunstância, contudo, não retira do diagnóstico de Lukács da situação, e da sua discussão do modo pelo qual se poderia romper a “estrutura reificada da existência” (die verdinglichte Struktur des Daseins), os seus termos de referência objetivos.
 
Felizmente em História e consciência de classe nem tudo é deixado ao artifício mágico do “sujeito-objeto idêntico da história”, que o autor buscou em Hegel e na tradição filosófica idealista elevada pelo grande dialético alemão ao seu nível mais alto. Há também as categorias “necessidade histórica objetiva”, “mecânica dialética do desenvolvimento”, “necessidade objetiva do processo de desenvolvimento”, “forma histórica concreta”[20] dos objetos, tendências e estruturas, “luta entre capital coletivo e trabalho coletivo” etc., com as quais o discurso quase místico de Merleau-Ponty acerca da “relativização do relativismo até seus limites” é totalmente incompatível.
 
No que diz respeito a Lukács, não há qualquer possibilidade de “recuperar um tipo de totalidade”. Para ele “totalidade” não é algo romanticamente perdido e ainda mais romanticamente reencontrado graças a sua subsunção à categoria idealista da “identidade sujeito-objeto”. Por mais inadequado que seja o tratamento de Lukács do postulado hegeliano adotado, mesmo na época em que escrevia “A reificação e a consciência do proletariado”, a identidade sujeito-objeto historicamente concretizada é apenas parte de toda a história.
 
Totalidade, em História e consciência de classe, é o desdobramento do processo histórico global (Gesamtprozess) que se afirma – para o melhor ou para o pior – em sua necessidade histórica objetiva, e inseparavelmente dialética, tanto se nos tornamos dela conscientes como se falhamos em fazê-lo. Apesar de Lukács considerar, com uma esperança e uma expectativa muito irrealistas, o poder da consciência de transformar o “mundo reificado” na direção almejada, ele não tenta equalizar o processo objetivo do desenvolvimento histórico com a “consciência do processo” (p. 197; ed. port., p. 219).
 
Esta é a razão pela qual a estrutura conceitual de História e consciência de classe, apesar de todos os seus traços problemáticos, não pode se reduzir a um denominador comum com sua reconstrução “muito livre” por Merleau-Ponty em suas As aventuras da dialética. De fato, Lukács explicitamente rejeita não apenas “todo ‘humanismo’ou ponto de vista antropológico” (pp. 186-7; ed. port., p. 208) – que supostamente deveriam ser o traço distintivo do “jovem Marx filosófico” e do próprio primeiro Lukács – como também o relativismo muito admirado pelo filósofo francês. Ele argumenta, com força e de forma clara, que “o relativismo se move num mundo essencialmente estático” (p. 187; ed. port., p. 208), representando uma posição filosófica dogmática devido à sua falha em tratar dialeticamente tanto os seres humanos com a sua situação histórica concreta.

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Notas
[1] Maurice Merleau-Ponty, Adventures of the Dialectic, Londres, Heinemann, 1974, pp. 57-8. 
[2] Id., ibid., p. 25.
[3] Id., ibid., p. 31.
[4] Id., ibid. Como é característico da interpretação “muito livre” de Merleau-Ponty de História e consciência de classe, nenhuma evidência textual é fornecida por ele para apoiar esta impetuosa asserção.
[5] Merleau-Ponty, “The URSS and the camps”, Signs, Northwestern University Press, 1964, p. 272
[6] “On Madagascar”, Signs, p. 331.
[7] Ibid., p. 329.
[8] Ibid., p. 332.420.
[9] Ibid., p. 333.
[10] “The URSS and the camps”, Signs, p. 269.
[11] Ibid., p. 270.
[12] “On Madagascar”, Signs, p. 329.
[13] Merleau-Ponty, Adventures of Dialectic, pp. 62-4.
[14] Id., ibid., p. 62.
[15] Discuti mais longamente o desenvolvimento político e intelectual de Merleau-Ponty em The Power of Ideology. Ver em particular pp. 153-6 e 161-7 (ed. brasileira, O poder da ideologia, São Paulo, Ensaio, 1996, pp. 207-10 e 218-225).
[16] Podemos encontrar a mesma contradição que vimos em As aventuras da dialética de Merleau-Ponty na periodização do desenvolvimento intelectual de Marx por Louis Althusser, ainda que a intenção ideológica do filósofo comunista seja diametralmente oposta à do seu modelo. Lamentavelmente, contudo, Althusser aceita a classificação autocontraditória de Merleau-Ponty, apenas revertendo o “sinal” da sua falsa equação. Diferente de Merleau-Ponty, em seus dois primeiros volumes de ensaios – For Marx e Reading Capital – Althusser elogia o “Marx científico” contra o “jovem Marx filosófico”, que em sua visão é supostamente culpado de hegelianismo, devido à sua preocupação com o “conceito ideológico” de alienação. Mais tarde, contudo, ele descobre que também o “Marx maduro”, incluindo o autor de O capital, recai pesadamente nos mesmos pecados. Aprisionado pela lógica do esquematismo adotado, Althusser chega à conclusão peculiar de que apenas algumas poucas páginas da Crítica ao Programa de Gotha (1875) e as Marginal Notes on Wagner (1882) devem ser consideradas obras propriamente marxistas, livres das aberrações ideológicas denunciadas (ver acerca disto a Introdução de Althusser à edição da Garnier-Flammarion do volume I de O capital de Marx, publicado em Paris em 1969). Isto demonstra que não é suficiente reverter a intenção ideológica de um adversário político e intelectual sem submeter a um escrutínio crítico a sua substância teórica. Esta omissão traz consigo a infeliz consequência de permanecer cativa de suas lendas.
[17] As palavras “nisto” e “próximo passo” foram italizadas por Lukács. E reafirmando sua rejeição de que a flexibilidade estratégica do materialismo pudesse ser considerada uma forma de relativismo ele acrescenta em uma nota de rodapé que
O feito de Lenin é que ele redescobriu esse lado do marxismo que aponta a vida para uma compreensão de seu nódulo prático. Seus constantes e reiterados alertas para se agarrar o “próximo elo” da cadeia com todo o nosso poder, aquele elo do qual o destino da totalidade depende naquele momento, sua recusa de todas as demandas utópicas, isto é, seu “relativismo”, sua “Realpolitik”: todas essas coisas não são nada mais que a realização prática das Teses sobre Feuerbach do jovem Marx (p. 221; ed. port., pp. 219-20).
A palavra “prático” foi grifada por Lukács.
[18] Lukács, Geschichte und Klassenbewusstsein. Studiem über marxistische Dialektik, Berlim, Malik Verlag, 1923, p. 216. A edição inglesa que corrigimos nessa passagem interpreta “die dialektische Mechanik der Entwicklung” como “dialectical mechanics of history” (dialética mecânica da história).
[19] Como Lukács observa em outro ensaio, “Observações críticas sobre a Crítica da Revolução Russa de Rosa Luxemburgo”: O socialismo jamais aconteceria “por si mesmo”, como resultado de um inevitável desenvolvimento econômico natural. As leis naturais do capitalismo de fato levam inevitavelmente à sua crise última, mas o fim de sua trajetória seria a destruição de toda civilização e um novo barbarismo. História e consciência de classe, p. 282; ed. port., p. 291. Itálicos de Lukács.
[20] “A reificação e a consciência de classe do proletariado”, História e consciência de classe, p. 188 (ed. port., pp. 209-210). E em outra passagem da mesma obra Lukács argumenta que “a totalidade concreta do mundo histórico, o processo histórico concreto e total, é o único ponto de vista a partir do qual a compreensão torna possível” (p. 145; ed. port., p. 164).
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MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Trad. Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 419-426.
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terça-feira, 17 de setembro de 2019

A mitificação e a intuição ontológica


por György Lukács

O “terceiro caminho” e o mito 

As considerações precedentes permitem-nos passar agora ao exame dos principais problemas colocados pela filosofia do período imperialista. Iremos estudar primeiramente a noção de objetividade, baseada na teoria do conhecimento do idealismo subjetivo.

Já falamos do “terceiro caminho” na teoria do conhecimento. Sua origem remonta em parte a Nietzsche, em parte a Mach e Avenarius e vai, passando por Husserl, até a ontologia existencialista, que reconhece um existência independente da consciência, mas persiste em seguir o antigo método idealista quanto à definição, o conhecimento e a interpretação dessa existência. As teorias do conhecimento dominantes do período precedente negam a inteligibilidade da realidade objetiva. O “terceiro caminho”, que mantém intactos todos os princípios da teoria do conhecimento do idealismo subjetivo, escamoteia seus limites, apresentando a questão de uma maneira a parecer admitir implicitamente que as ideias e as noções que existem apenas na consciência são elas mesmas realidades objetivas.

Vejamos, portanto, qual é a realidade de que fala esta filosofia. (Notar, de passagem, que a filosofia burguesa fala sempre da polaridade idealismo-realismo, sem mesmo pronunciar a palavra materialismo.) Mach e os neokantianos elaboram uma teoria do conhecimento que se limita  a fazer concessões terminológicas às ciências naturais e esforça-se por aparar as arestas do “realismo ingênuo” dos sábios. Assim como para Berkeley, ideias e realidades são idênticas para eles. A realidade de que falam torna-se assim efetivamente una e indivisível — mas é a realidade do idealismo subjetivo. Esse novo agnosticismo está, entretanto, longe de ser semelhante ao do período precedente, ao qual Engels pôde com razão chamar de “ateísmo envergonhado”, porque a doutrina segundo a qual a realidade é incognoscível significava simplesmente a recusa da filosofia em tirar consequências ideológicas das descobertas das ciências naturais. A escola de Mach ultrapassa e muito essa aspiração puramente negativa, pois seu agnosticismo volta a afirmar que as descobertas das ciências naturais estão em perfeita harmonia com qualquer ideologia reacionária.

Mas, chegada a esse ponto, a evolução da filosofia não parou. A variante moderna do agnosticismo torna-se mística e criadora de mitos. É impossível subestimar aqui a influência decisiva de Nietzsche na evolução do conjunto do pensamento imperialista: poder-se-ia mesmo dizer que ele criou o arquétipo da mitificação. Sem nos querer estender longamente sobre os temas principais desses mitos, insistiremos no papel que neles desempenham o corpo e a carne. Nietzsche rompe efetivamente com a espiritualidade abstrata e a moral pequeno-burguesa da filosofia oficial. Sua teoria do conhecimento e sua moral afirmam e defendem os direitos do corpo, sem fazer nenhuma concessão ao materialismo filosófico. Ora, o aspecto de um corpo assim privado de toda matéria só pode ser mítico. Aí está um elemento desse biologismo particular e dessa psicologia que repousam em pretensas bases biológicas, que tomam em Nietzsche o lugar de uma concepção social. Essa introdução está completa e por assim dizer coroada pela perspectiva mítica da evolução da humanidade, pela aceitação do imperialismo, pela criação da noção de uma aristocracia nova e pela negação do socialismo, ao qual opõe seu mito biológico. Todas as bases filosóficas do racismo encontram-se assim preparadas.

Contentar-nos-emos igualmente em fazer algumas observações de princípio a respeito de alguns outros mitos (Bergson, Spengler, Klages etc.), sem comentá-los em detalhe. Digamos logo que não é preciso confundir os mitos assim formados com certos elementos de sistemas filosóficos antigos, a despeito do aspecto às vezes também mítica desses últimas. Desde que abandona o agnosticismo, o idealismo, qualquer que seja, cai na fabricação de mitos, porque está forçado a atribuir às construções puras do espírito um papel de realidade na explicação dos fenômenos reais.

Quanto mais um sistema filosófico se aproxima do idealismo objetivo, mais denota essa tendência de fabricar mitos: o “Ich” de Fichte mostra-o mais fortemente que  o “Bewusstsein überhaupt” de Kant e o “Weltgeist” de Hegel ainda mais claramente que a construção fichteana. Só que essas construções do espírito tomadas por realidades contêm ainda, nesse estágio, os elementos de uma exploração completamente leal da realidade. É ainda perfeitamente possível reconhecer em toda parte os elementos de realidade dos quais essas construções do espírito são ao mesmo tempo a primeira revelação e a representação desfigurada no plano do pensamento. Essas construções de aparência mítica são apenas, na verdade, a bruma da filosofia, que precede o nascer do sol do conhecimento.

A situação é completamente diferente quando consideramos a filosofia do período imperialista. Aqui, a construção do espírito, o mito, opõe-se primeiramente ao conhecimento científico; a primeira missão do mito é dissimular e tornar  obscuras as consequências sociais das aquisições da ciência. Desde o início desse período da filosofia, a mitificação nietzscheana assume esse papel em relação às descobertas do darwinismo. Na época da filosofia clássica, o mito se apresentava sob o aspecto do próprio conhecimento científico, ao passo que, na filosofia da fase imperialista, representa uma atitude, uma relação com o mundo, que seria, por assim dizer, de uma essência superior à que é acessível ao conhecimento científico e que vai até mesmo condenar a ciência. A função social da ideologia, isto é, dos mitos, é portanto, atualmente a seguinte: sugerir uma concepção do mundo que corresponda à da filosofia do imperialismo, onde quer que a ciência se mostre incapaz de oferecer uma visão de conjunto, e substituir a perspectiva oferecida pela ciência, cada vez que esta contradisser a concepção proposta pela filosofia paradoxal do estágio do imperialismo: a filosofia mantém de um lado a teoria do conhecimento do idealismo subjetivo herdada do agnosticismo, mas, por outro, estamos em presença de uma função completamente nova desse agnosticismo, função que consiste em criar um novo pseudo-objetivismo, franqueando o limite que o separa do mito.

Intuição e irracionalismo

O novo objetivismo pressupõe a existência de um instrumento novo de conhecimento. Uma das preocupações essenciais da filosofia moderna consiste em opor essa nova atitude, esse novo instrumento do conhecimento, que é a intuição, ao pensamento racional e discursivo, conquanto na realidade a intuição faça parte, psicologicamente, de todo método científico do conhecimento. No plano psicológico, a intuição pretende ser, com efeito, mais concreta e mais sintética que a reflexão discursiva, que trabalha com noções abstratas. Sem dúvida, isto é apenas uma ilusão, porque a intuição, considerada à luz da psicologia, nada mais é do que a entrada brusca na consciência de um processo de reflexão até então subconsciente. É evidente que todo pensamento científico escrupuloso deve ter por principal missão integrar esse processo inconsciente no seu próprio sistema racional. Essa adoção deve ser completamente orgânica, para que seja quase impossível distinguir a posteriori os resultados da reflexão discursiva dos da intuição. Estabeleçamos, portanto, de uma vez por todas, que na realidade a intuição não é o contrário, mas o complemento do pensamento discursivo e que seu emprego não poderia ser jamais um critério de verdade. A observação psicológica superficial da reflexão científica é que engendra a ilusão segundo segundo a qual a intuição seria um instrumento independente do pensamento discursivo e destinado à compreensão de verdades superiores.

Essa ilusão, que consiste em confundir um método subjetivo de trabalho com uma metodologia objetiva e que é mantida pelo subjetivismo geral próprio do estágio imperialista, servirá portanto de base a todas as teorias modernas da intuição. Encontra-se ainda reforçada por certas falsas referências ao método dialético. A filosofia subjetiva admite com efeito de bom grado a origem da polaridade dialética pela via discursiva, conquanto atribua a solução (devida à síntese) à intuição, que opera num plano mais elevado. É evidente que é um erro, porque a verdadeira dialética dá a toda síntese uma expressão perfeitamente racional e não reconhece a nenhuma síntese um caráter definitivo e absoluto. O pensamento dialético, que reflete a realidade efetiva, constitui sempre, por essa mesma razão, um sistema discursivo. Eis porque a intuição, enquanto instrumento do conhecimento ou elemento de uma metodologia científica, não poderia encontrar nenhum lugar na dialética. Tudo isto aliás explicado claramente por Hegel, em resposta a Schelling, na introdução da Fenomenologia.

A filosofia do estágio do imperialismo atribui à intuição um lugar central na sua metodologia objetiva. A intuição adquiriu esse lugar preponderante, antes de mais nada porque os filósofos abandonaram o formalismo do conhecimento, próprio ao período precedente. Estavam de fato obrigados a afastar-se deles, porque a própria procura de uma ideologia obrigava-os a colocar a questão do conteúdo da filosofia, enquanto a teoria do conhecimento própria ao idealismo subjetivo esgota-se fatalmente na análise não dialética de noções puramente especulativas. Desde que a reflexão pretenda ultrapassar esses limites, e almeje o conhecimento filosófico concreto, deve necessariamente recorrer à teoria materialista, segundo a qual o pensamento é capaz de refletir o mundo exterior real e, por outro lado, ao sistema universal da dialética. Deve considerar esse sistema não somente como uma doutrina da correlação estática de entidades do mundo exterior, mas como uma lei universal da evolução progressiva e da história racional. A filosofia moderna serve-se do falso aspecto da intuição para abandonar aparentemente tanto o formalismo do conhecimento como o idealismo subjetivo e o agnosticismo, conquanto conservando-os sobre bases que parecem inatacáveis.

Nessas condições, o objeto dessa filosofia, a finalidade ideológica que se propõe atingir, dar-se-á sempre como uma realidade de essência superior e qualitativamente diferente daquilo que é acessível à reflexão discursiva. Graças a esse subterfúgio, a própria noção da intuição parecerá ser a prova irrefutável de um conhecimento superior. É aqui que a negação de toda crítica analítica torna-se uma questão de vida ou de morte para a filosofia nova. Nos sistemas filosóficos antigos desse gênero e mesmo em certas místicas religiosas antigas, a defesa da intuição estava assegurada por uma teoria aristocrática do conhecimento. Esta última afirma, desde o início, que todo o mundo não é suscetível de compreender a realidade superior de uma maneira intuitiva. Aquele que procura encaixar as descobertas intuitivas num quadro racional prova, por conseguinte, que não é capaz de ascender à realidade superior por via intuitiva.

Como não pensar no conto de Andersen, onde os que não veem o traje maravilhosos do rei — que na verdade passeava completamente nu — eram proclamados desonestos? A teoria do conhecimento da intuição presta aliás serviços apreciáveis, porque as “realidades” apreensíveis pela intuição são de natureza arbitrária e incontrolável. Órgão de um conhecimento pretensamente superior, a intuição serve ao mesmo tempo para justificar o arbitrário.

Uma rápida recapitulação nos permitirá melhor compreender o essencial da filosofia no estágio do imperialismo. A filosofia do período clássico colocava o problema da ideologia sob o signo do conhecimento científico. Em outras palavras, sua ideologia era a ideologia da ciência. A filosofia do período de transição traçava-se limites intransponíveis justamente onde terminava o conhecimento registrado pelas ciências especializadas. A filosofia no estágio do imperialismo aceita esses limites, pretendendo criar uma nova ideologia supracientífica ou anticientífica, graças à intuição, novo instrumento do conhecimento.

Essa nova ideologia procura antes de tudo destronar a razão. Os precursores dessa orientação são Schopenhauer e Kierkegaard, assim como o romantismo filosófico. Dilthey é o homem da transição para a nova época da qual Nietzsche, Bergson, Spengler, Klages e enfim o existencialismo marcam as etapas mais importantes. Ainda uma vez: a base, no plano da teoria do conhecimento, é sempre o agnosticismo e o relativismo que o acompanha. A única diferença é que a nova filosofia vai mais longe que a antiga na sua ofensiva contra o pensamento racional. Simmel, em um dos seus livros, esboça uma crítica do conjunto dos últimos resultados da ciência atual, para compará-la às críticas que formulava o racionalismo nascente contra as superstições da Idade Média e conclui que temos todas as razões para crer que os séculos que virão terão de nossas ciências uma opinião análoga àquela que temos das crenças supersticiosas da Idade Média. Esse agnosticismo relativista, esse ceticismo a respeito de tudo, conduz em linha reta ao mito da filosofia atual, cujo valor central é o antirracionalismo, ou, em todo caso, a aceitação de métodos e realidades suprarracionais. Antes da Primeira Guerra Mundial, Bergson foi o precursor em maior evidência dessa filosofia. A crise geral que se seguiu a 1918, transformou o irracionalismo em uma filosofia concreta da história, a qual terminou por levar, através de Spengler, Klages e Heidegger, às visões infernais do fascismo.

Analisando os objetos propriamente ditos desse suprarracionalismo, veremos os laços estreitos que o ligam a sistemas filosóficos mais antigos. Veremos também que no fundo apenas atualiza certos pontos fracos da filosofia burguesa. Toda filosofia antidialética, portanto desprovida de compreensão verdadeira para a história, engana-se sobre a realidade ao fazer do presente uma “lei eterna” ou uma “existência eterna”. Na época em que florescia a fé em um capitalismo, era regra, mesmo para os historiadores com tendências empiristas, projetar sobre toda a história as noções essenciais do capitalismo (por exemplo, Mommsen). A moral abstrata da filosofia kantiana reforçava estas concepções. No momento da crise do imperialismo, quando tudo vacila e tudo está em vias de desmoronar, a intelligentzia burguesa obrigada a duvidar das verdades que ela acreditava eternas, encontra-se diante de uma alternativa filosófica. De um lado, deve reconhecer-se incapaz de abarcar intelectualmente toda a verdade. Neste caso, a própria realidade não estaria privada de seu caráter racional, o que provaria a falência do pensamento burguês. Ora, a burguesia não pode reconhecer sua falência porque seria preciso então aderir ao socialismo. Eis porque a filosofia burguesa deve fatalmente se orientar em direção ao outro termo da alternativa e declarar a falência da razão. A filosofia está em condições de cumprir esta operação, considerando a razão como uma atitude subjetiva, relativamente ao mundo real, o qual, por seu lado, abriria a todo instante brechas nesta razão subjetiva (cf. Scheler, Benda, Valéry, “a impotência da razão”). É necessário, entretanto, reconhecer que este esquema não corresponde à orientação geral da filosofia em crise. Segundo os pensadores em maior evidência, nessa época, na verdade a razão não existe, a verdadeira realidade, a realidade superior, é irracional e suprarracional. O dever da filosofia é antes de tudo levar em conta este dado fundamental da existência humana e é assim que se constitui o irracionalismo, ideologia da filosofia em crise.

A evolução em direção a este objetivo está também sublinhada e acelerada pelo fato de que o capitalismo, e em particular o imperialismo, destrói ou pelo menos restringe de uma maneira extrema toda margem de liberdade necessária ao desenvolvimento da personalidade. O exame abstrato deste problema abre possibilidades a duas reações diferentes. É, de um lado, perfeitamente possível explicar esta situação a partir da ordem social e econômica do capitalismo e daí tirar as consequências que se impõe. Nos primórdios do período imperialista, esta atitude está presente, se bem que sob formas bastante incertas, como, por exemplo, no ataque romântico de Nietzsche contra a cultura capitalista, na Kulturkritik geral de Simmel e em sua teoria do “trágico da cultura”. Mas todas estas formas incertas terminam por atingir um “terceiro caminho”, isto é, uma apologia indireta do capitalismo. Enquanto que em Nietzsche a visão mítica de uma sociedade nova ocupa o primeiro plano, em Simmel o retorno do indivíduo sobre si mesmo, o voltar-se para a interioridade pura encontram-se facilitados pelo fetichismo rígido que reina na sociedade capitalista. Simmel utiliza-se desse “racionalismo” frio do mundo capitalista fetichizado, como de um trampolim, para chegar ao irracionalismo pretensamente superior de uma existência puramente individualista.

É aqui que encontramos o elemento mais importante da ideologia irracionalista: transformar, mistificando-a, a condição do homem no capitalismo imperialista em uma condição humana geral e universal. O cumprimento desta tarefa exige um desdobramento do método. Tudo que é social, racional e conforme as leis da evolução será declarado inumano e inimigo da personalidade. A personalidade será declarada antirracional e irracional por sua própria natureza. Notemos de passagem, que as origens desta atitude já se encontram entre os primeiros neokantianos, tais como Windelband e Rickert. As diversas variantes mistificadas desta atitude correspondem, por sua vez, perfeitamente  à necessidades universais da época, que se resumem sob o signo do “terceiro caminho”. Com efeito, desde que se conseguiu opor a razão, inumana e inferior, à realidade superior, humana e irracional, capitalismo e socialismo apresentam-se como duas entidades inteiramente semelhantes, que se colocam num mesmo plano, posto que ambas foram criadas pela fria razão. Ambos, contudo, devem ser combatidos, em nome da personalidade, categoria puramente individual (cf. Klages, o círculo de Stefan George). É necessário acrescentar que o fascismo adota integralmente esta metodologia, limitando-se somente a complemetá-la com algumas exposições grosseiramente demagógicas?...

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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências humanas, 1979, p. 47-58.
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