por György Lukács
O “terceiro caminho” e o mito
As considerações precedentes permitem-nos passar agora ao exame dos principais problemas colocados pela filosofia do período imperialista. Iremos estudar primeiramente a noção de objetividade, baseada na teoria do conhecimento do idealismo subjetivo.
As considerações precedentes permitem-nos passar agora ao exame dos principais problemas colocados pela filosofia do período imperialista. Iremos estudar primeiramente a noção de objetividade, baseada na teoria do conhecimento do idealismo subjetivo.
Já falamos do “terceiro caminho” na teoria do conhecimento. Sua origem remonta em parte a Nietzsche, em parte a Mach e Avenarius e vai, passando por Husserl, até a ontologia existencialista, que reconhece um existência independente da consciência, mas persiste em seguir o antigo método idealista quanto à definição, o conhecimento e a interpretação dessa existência. As teorias do conhecimento dominantes do período precedente negam a inteligibilidade da realidade objetiva. O “terceiro caminho”, que mantém intactos todos os princípios da teoria do conhecimento do idealismo subjetivo, escamoteia seus limites, apresentando a questão de uma maneira a parecer admitir implicitamente que as ideias e as noções que existem apenas na consciência são elas mesmas realidades objetivas.
Vejamos, portanto, qual é a realidade de que fala esta filosofia. (Notar, de passagem, que a filosofia burguesa fala sempre da polaridade idealismo-realismo, sem mesmo pronunciar a palavra materialismo.) Mach e os neokantianos elaboram uma teoria do conhecimento que se limita a fazer concessões terminológicas às ciências naturais e esforça-se por aparar as arestas do “realismo ingênuo” dos sábios. Assim como para Berkeley, ideias e realidades são idênticas para eles. A realidade de que falam torna-se assim efetivamente una e indivisível — mas é a realidade do idealismo subjetivo. Esse novo agnosticismo está, entretanto, longe de ser semelhante ao do período precedente, ao qual Engels pôde com razão chamar de “ateísmo envergonhado”, porque a doutrina segundo a qual a realidade é incognoscível significava simplesmente a recusa da filosofia em tirar consequências ideológicas das descobertas das ciências naturais. A escola de Mach ultrapassa e muito essa aspiração puramente negativa, pois seu agnosticismo volta a afirmar que as descobertas das ciências naturais estão em perfeita harmonia com qualquer ideologia reacionária.
Mas, chegada a esse ponto, a evolução da filosofia não parou. A variante moderna do agnosticismo torna-se mística e criadora de mitos. É impossível subestimar aqui a influência decisiva de Nietzsche na evolução do conjunto do pensamento imperialista: poder-se-ia mesmo dizer que ele criou o arquétipo da mitificação. Sem nos querer estender longamente sobre os temas principais desses mitos, insistiremos no papel que neles desempenham o corpo e a carne. Nietzsche rompe efetivamente com a espiritualidade abstrata e a moral pequeno-burguesa da filosofia oficial. Sua teoria do conhecimento e sua moral afirmam e defendem os direitos do corpo, sem fazer nenhuma concessão ao materialismo filosófico. Ora, o aspecto de um corpo assim privado de toda matéria só pode ser mítico. Aí está um elemento desse biologismo particular e dessa psicologia que repousam em pretensas bases biológicas, que tomam em Nietzsche o lugar de uma concepção social. Essa introdução está completa e por assim dizer coroada pela perspectiva mítica da evolução da humanidade, pela aceitação do imperialismo, pela criação da noção de uma aristocracia nova e pela negação do socialismo, ao qual opõe seu mito biológico. Todas as bases filosóficas do racismo encontram-se assim preparadas.
Contentar-nos-emos igualmente em fazer algumas observações de princípio a respeito de alguns outros mitos (Bergson, Spengler, Klages etc.), sem comentá-los em detalhe. Digamos logo que não é preciso confundir os mitos assim formados com certos elementos de sistemas filosóficos antigos, a despeito do aspecto às vezes também mítica desses últimas. Desde que abandona o agnosticismo, o idealismo, qualquer que seja, cai na fabricação de mitos, porque está forçado a atribuir às construções puras do espírito um papel de realidade na explicação dos fenômenos reais.
Quanto mais um sistema filosófico se aproxima do idealismo objetivo, mais denota essa tendência de fabricar mitos: o “Ich” de Fichte mostra-o mais fortemente que o “Bewusstsein überhaupt” de Kant e o “Weltgeist” de Hegel ainda mais claramente que a construção fichteana. Só que essas construções do espírito tomadas por realidades contêm ainda, nesse estágio, os elementos de uma exploração completamente leal da realidade. É ainda perfeitamente possível reconhecer em toda parte os elementos de realidade dos quais essas construções do espírito são ao mesmo tempo a primeira revelação e a representação desfigurada no plano do pensamento. Essas construções de aparência mítica são apenas, na verdade, a bruma da filosofia, que precede o nascer do sol do conhecimento.
A situação é completamente diferente quando consideramos a filosofia do período imperialista. Aqui, a construção do espírito, o mito, opõe-se primeiramente ao conhecimento científico; a primeira missão do mito é dissimular e tornar obscuras as consequências sociais das aquisições da ciência. Desde o início desse período da filosofia, a mitificação nietzscheana assume esse papel em relação às descobertas do darwinismo. Na época da filosofia clássica, o mito se apresentava sob o aspecto do próprio conhecimento científico, ao passo que, na filosofia da fase imperialista, representa uma atitude, uma relação com o mundo, que seria, por assim dizer, de uma essência superior à que é acessível ao conhecimento científico e que vai até mesmo condenar a ciência. A função social da ideologia, isto é, dos mitos, é portanto, atualmente a seguinte: sugerir uma concepção do mundo que corresponda à da filosofia do imperialismo, onde quer que a ciência se mostre incapaz de oferecer uma visão de conjunto, e substituir a perspectiva oferecida pela ciência, cada vez que esta contradisser a concepção proposta pela filosofia paradoxal do estágio do imperialismo: a filosofia mantém de um lado a teoria do conhecimento do idealismo subjetivo herdada do agnosticismo, mas, por outro, estamos em presença de uma função completamente nova desse agnosticismo, função que consiste em criar um novo pseudo-objetivismo, franqueando o limite que o separa do mito.
Intuição e irracionalismo
O novo objetivismo pressupõe a existência de um instrumento novo de conhecimento. Uma das preocupações essenciais da filosofia moderna consiste em opor essa nova atitude, esse novo instrumento do conhecimento, que é a intuição, ao pensamento racional e discursivo, conquanto na realidade a intuição faça parte, psicologicamente, de todo método científico do conhecimento. No plano psicológico, a intuição pretende ser, com efeito, mais concreta e mais sintética que a reflexão discursiva, que trabalha com noções abstratas. Sem dúvida, isto é apenas uma ilusão, porque a intuição, considerada à luz da psicologia, nada mais é do que a entrada brusca na consciência de um processo de reflexão até então subconsciente. É evidente que todo pensamento científico escrupuloso deve ter por principal missão integrar esse processo inconsciente no seu próprio sistema racional. Essa adoção deve ser completamente orgânica, para que seja quase impossível distinguir a posteriori os resultados da reflexão discursiva dos da intuição. Estabeleçamos, portanto, de uma vez por todas, que na realidade a intuição não é o contrário, mas o complemento do pensamento discursivo e que seu emprego não poderia ser jamais um critério de verdade. A observação psicológica superficial da reflexão científica é que engendra a ilusão segundo segundo a qual a intuição seria um instrumento independente do pensamento discursivo e destinado à compreensão de verdades superiores.
Essa ilusão, que consiste em confundir um método subjetivo de trabalho com uma metodologia objetiva e que é mantida pelo subjetivismo geral próprio do estágio imperialista, servirá portanto de base a todas as teorias modernas da intuição. Encontra-se ainda reforçada por certas falsas referências ao método dialético. A filosofia subjetiva admite com efeito de bom grado a origem da polaridade dialética pela via discursiva, conquanto atribua a solução (devida à síntese) à intuição, que opera num plano mais elevado. É evidente que é um erro, porque a verdadeira dialética dá a toda síntese uma expressão perfeitamente racional e não reconhece a nenhuma síntese um caráter definitivo e absoluto. O pensamento dialético, que reflete a realidade efetiva, constitui sempre, por essa mesma razão, um sistema discursivo. Eis porque a intuição, enquanto instrumento do conhecimento ou elemento de uma metodologia científica, não poderia encontrar nenhum lugar na dialética. Tudo isto aliás explicado claramente por Hegel, em resposta a Schelling, na introdução da Fenomenologia.
A filosofia do estágio do imperialismo atribui à intuição um lugar central na sua metodologia objetiva. A intuição adquiriu esse lugar preponderante, antes de mais nada porque os filósofos abandonaram o formalismo do conhecimento, próprio ao período precedente. Estavam de fato obrigados a afastar-se deles, porque a própria procura de uma ideologia obrigava-os a colocar a questão do conteúdo da filosofia, enquanto a teoria do conhecimento própria ao idealismo subjetivo esgota-se fatalmente na análise não dialética de noções puramente especulativas. Desde que a reflexão pretenda ultrapassar esses limites, e almeje o conhecimento filosófico concreto, deve necessariamente recorrer à teoria materialista, segundo a qual o pensamento é capaz de refletir o mundo exterior real e, por outro lado, ao sistema universal da dialética. Deve considerar esse sistema não somente como uma doutrina da correlação estática de entidades do mundo exterior, mas como uma lei universal da evolução progressiva e da história racional. A filosofia moderna serve-se do falso aspecto da intuição para abandonar aparentemente tanto o formalismo do conhecimento como o idealismo subjetivo e o agnosticismo, conquanto conservando-os sobre bases que parecem inatacáveis.
Nessas condições, o objeto dessa filosofia, a finalidade ideológica que se propõe atingir, dar-se-á sempre como uma realidade de essência superior e qualitativamente diferente daquilo que é acessível à reflexão discursiva. Graças a esse subterfúgio, a própria noção da intuição parecerá ser a prova irrefutável de um conhecimento superior. É aqui que a negação de toda crítica analítica torna-se uma questão de vida ou de morte para a filosofia nova. Nos sistemas filosóficos antigos desse gênero e mesmo em certas místicas religiosas antigas, a defesa da intuição estava assegurada por uma teoria aristocrática do conhecimento. Esta última afirma, desde o início, que todo o mundo não é suscetível de compreender a realidade superior de uma maneira intuitiva. Aquele que procura encaixar as descobertas intuitivas num quadro racional prova, por conseguinte, que não é capaz de ascender à realidade superior por via intuitiva.
Como não pensar no conto de Andersen, onde os que não veem o traje maravilhosos do rei — que na verdade passeava completamente nu — eram proclamados desonestos? A teoria do conhecimento da intuição presta aliás serviços apreciáveis, porque as “realidades” apreensíveis pela intuição são de natureza arbitrária e incontrolável. Órgão de um conhecimento pretensamente superior, a intuição serve ao mesmo tempo para justificar o arbitrário.
Uma rápida recapitulação nos permitirá melhor compreender o essencial da filosofia no estágio do imperialismo. A filosofia do período clássico colocava o problema da ideologia sob o signo do conhecimento científico. Em outras palavras, sua ideologia era a ideologia da ciência. A filosofia do período de transição traçava-se limites intransponíveis justamente onde terminava o conhecimento registrado pelas ciências especializadas. A filosofia no estágio do imperialismo aceita esses limites, pretendendo criar uma nova ideologia supracientífica ou anticientífica, graças à intuição, novo instrumento do conhecimento.
Essa nova ideologia procura antes de tudo destronar a razão. Os precursores dessa orientação são Schopenhauer e Kierkegaard, assim como o romantismo filosófico. Dilthey é o homem da transição para a nova época da qual Nietzsche, Bergson, Spengler, Klages e enfim o existencialismo marcam as etapas mais importantes. Ainda uma vez: a base, no plano da teoria do conhecimento, é sempre o agnosticismo e o relativismo que o acompanha. A única diferença é que a nova filosofia vai mais longe que a antiga na sua ofensiva contra o pensamento racional. Simmel, em um dos seus livros, esboça uma crítica do conjunto dos últimos resultados da ciência atual, para compará-la às críticas que formulava o racionalismo nascente contra as superstições da Idade Média e conclui que temos todas as razões para crer que os séculos que virão terão de nossas ciências uma opinião análoga àquela que temos das crenças supersticiosas da Idade Média. Esse agnosticismo relativista, esse ceticismo a respeito de tudo, conduz em linha reta ao mito da filosofia atual, cujo valor central é o antirracionalismo, ou, em todo caso, a aceitação de métodos e realidades suprarracionais. Antes da Primeira Guerra Mundial, Bergson foi o precursor em maior evidência dessa filosofia. A crise geral que se seguiu a 1918, transformou o irracionalismo em uma filosofia concreta da história, a qual terminou por levar, através de Spengler, Klages e Heidegger, às visões infernais do fascismo.
Analisando os objetos propriamente ditos desse suprarracionalismo, veremos os laços estreitos que o ligam a sistemas filosóficos mais antigos. Veremos também que no fundo apenas atualiza certos pontos fracos da filosofia burguesa. Toda filosofia antidialética, portanto desprovida de compreensão verdadeira para a história, engana-se sobre a realidade ao fazer do presente uma “lei eterna” ou uma “existência eterna”. Na época em que florescia a fé em um capitalismo, era regra, mesmo para os historiadores com tendências empiristas, projetar sobre toda a história as noções essenciais do capitalismo (por exemplo, Mommsen). A moral abstrata da filosofia kantiana reforçava estas concepções. No momento da crise do imperialismo, quando tudo vacila e tudo está em vias de desmoronar, a intelligentzia burguesa obrigada a duvidar das verdades que ela acreditava eternas, encontra-se diante de uma alternativa filosófica. De um lado, deve reconhecer-se incapaz de abarcar intelectualmente toda a verdade. Neste caso, a própria realidade não estaria privada de seu caráter racional, o que provaria a falência do pensamento burguês. Ora, a burguesia não pode reconhecer sua falência porque seria preciso então aderir ao socialismo. Eis porque a filosofia burguesa deve fatalmente se orientar em direção ao outro termo da alternativa e declarar a falência da razão. A filosofia está em condições de cumprir esta operação, considerando a razão como uma atitude subjetiva, relativamente ao mundo real, o qual, por seu lado, abriria a todo instante brechas nesta razão subjetiva (cf. Scheler, Benda, Valéry, “a impotência da razão”). É necessário, entretanto, reconhecer que este esquema não corresponde à orientação geral da filosofia em crise. Segundo os pensadores em maior evidência, nessa época, na verdade a razão não existe, a verdadeira realidade, a realidade superior, é irracional e suprarracional. O dever da filosofia é antes de tudo levar em conta este dado fundamental da existência humana e é assim que se constitui o irracionalismo, ideologia da filosofia em crise.
A evolução em direção a este objetivo está também sublinhada e acelerada pelo fato de que o capitalismo, e em particular o imperialismo, destrói ou pelo menos restringe de uma maneira extrema toda margem de liberdade necessária ao desenvolvimento da personalidade. O exame abstrato deste problema abre possibilidades a duas reações diferentes. É, de um lado, perfeitamente possível explicar esta situação a partir da ordem social e econômica do capitalismo e daí tirar as consequências que se impõe. Nos primórdios do período imperialista, esta atitude está presente, se bem que sob formas bastante incertas, como, por exemplo, no ataque romântico de Nietzsche contra a cultura capitalista, na Kulturkritik geral de Simmel e em sua teoria do “trágico da cultura”. Mas todas estas formas incertas terminam por atingir um “terceiro caminho”, isto é, uma apologia indireta do capitalismo. Enquanto que em Nietzsche a visão mítica de uma sociedade nova ocupa o primeiro plano, em Simmel o retorno do indivíduo sobre si mesmo, o voltar-se para a interioridade pura encontram-se facilitados pelo fetichismo rígido que reina na sociedade capitalista. Simmel utiliza-se desse “racionalismo” frio do mundo capitalista fetichizado, como de um trampolim, para chegar ao irracionalismo pretensamente superior de uma existência puramente individualista.
É aqui que encontramos o elemento mais importante da ideologia irracionalista: transformar, mistificando-a, a condição do homem no capitalismo imperialista em uma condição humana geral e universal. O cumprimento desta tarefa exige um desdobramento do método. Tudo que é social, racional e conforme as leis da evolução será declarado inumano e inimigo da personalidade. A personalidade será declarada antirracional e irracional por sua própria natureza. Notemos de passagem, que as origens desta atitude já se encontram entre os primeiros neokantianos, tais como Windelband e Rickert. As diversas variantes mistificadas desta atitude correspondem, por sua vez, perfeitamente à necessidades universais da época, que se resumem sob o signo do “terceiro caminho”. Com efeito, desde que se conseguiu opor a razão, inumana e inferior, à realidade superior, humana e irracional, capitalismo e socialismo apresentam-se como duas entidades inteiramente semelhantes, que se colocam num mesmo plano, posto que ambas foram criadas pela fria razão. Ambos, contudo, devem ser combatidos, em nome da personalidade, categoria puramente individual (cf. Klages, o círculo de Stefan George). É necessário acrescentar que o fascismo adota integralmente esta metodologia, limitando-se somente a complemetá-la com algumas exposições grosseiramente demagógicas?...
Quanto mais um sistema filosófico se aproxima do idealismo objetivo, mais denota essa tendência de fabricar mitos: o “Ich” de Fichte mostra-o mais fortemente que o “Bewusstsein überhaupt” de Kant e o “Weltgeist” de Hegel ainda mais claramente que a construção fichteana. Só que essas construções do espírito tomadas por realidades contêm ainda, nesse estágio, os elementos de uma exploração completamente leal da realidade. É ainda perfeitamente possível reconhecer em toda parte os elementos de realidade dos quais essas construções do espírito são ao mesmo tempo a primeira revelação e a representação desfigurada no plano do pensamento. Essas construções de aparência mítica são apenas, na verdade, a bruma da filosofia, que precede o nascer do sol do conhecimento.
A situação é completamente diferente quando consideramos a filosofia do período imperialista. Aqui, a construção do espírito, o mito, opõe-se primeiramente ao conhecimento científico; a primeira missão do mito é dissimular e tornar obscuras as consequências sociais das aquisições da ciência. Desde o início desse período da filosofia, a mitificação nietzscheana assume esse papel em relação às descobertas do darwinismo. Na época da filosofia clássica, o mito se apresentava sob o aspecto do próprio conhecimento científico, ao passo que, na filosofia da fase imperialista, representa uma atitude, uma relação com o mundo, que seria, por assim dizer, de uma essência superior à que é acessível ao conhecimento científico e que vai até mesmo condenar a ciência. A função social da ideologia, isto é, dos mitos, é portanto, atualmente a seguinte: sugerir uma concepção do mundo que corresponda à da filosofia do imperialismo, onde quer que a ciência se mostre incapaz de oferecer uma visão de conjunto, e substituir a perspectiva oferecida pela ciência, cada vez que esta contradisser a concepção proposta pela filosofia paradoxal do estágio do imperialismo: a filosofia mantém de um lado a teoria do conhecimento do idealismo subjetivo herdada do agnosticismo, mas, por outro, estamos em presença de uma função completamente nova desse agnosticismo, função que consiste em criar um novo pseudo-objetivismo, franqueando o limite que o separa do mito.
Intuição e irracionalismo
O novo objetivismo pressupõe a existência de um instrumento novo de conhecimento. Uma das preocupações essenciais da filosofia moderna consiste em opor essa nova atitude, esse novo instrumento do conhecimento, que é a intuição, ao pensamento racional e discursivo, conquanto na realidade a intuição faça parte, psicologicamente, de todo método científico do conhecimento. No plano psicológico, a intuição pretende ser, com efeito, mais concreta e mais sintética que a reflexão discursiva, que trabalha com noções abstratas. Sem dúvida, isto é apenas uma ilusão, porque a intuição, considerada à luz da psicologia, nada mais é do que a entrada brusca na consciência de um processo de reflexão até então subconsciente. É evidente que todo pensamento científico escrupuloso deve ter por principal missão integrar esse processo inconsciente no seu próprio sistema racional. Essa adoção deve ser completamente orgânica, para que seja quase impossível distinguir a posteriori os resultados da reflexão discursiva dos da intuição. Estabeleçamos, portanto, de uma vez por todas, que na realidade a intuição não é o contrário, mas o complemento do pensamento discursivo e que seu emprego não poderia ser jamais um critério de verdade. A observação psicológica superficial da reflexão científica é que engendra a ilusão segundo segundo a qual a intuição seria um instrumento independente do pensamento discursivo e destinado à compreensão de verdades superiores.
Essa ilusão, que consiste em confundir um método subjetivo de trabalho com uma metodologia objetiva e que é mantida pelo subjetivismo geral próprio do estágio imperialista, servirá portanto de base a todas as teorias modernas da intuição. Encontra-se ainda reforçada por certas falsas referências ao método dialético. A filosofia subjetiva admite com efeito de bom grado a origem da polaridade dialética pela via discursiva, conquanto atribua a solução (devida à síntese) à intuição, que opera num plano mais elevado. É evidente que é um erro, porque a verdadeira dialética dá a toda síntese uma expressão perfeitamente racional e não reconhece a nenhuma síntese um caráter definitivo e absoluto. O pensamento dialético, que reflete a realidade efetiva, constitui sempre, por essa mesma razão, um sistema discursivo. Eis porque a intuição, enquanto instrumento do conhecimento ou elemento de uma metodologia científica, não poderia encontrar nenhum lugar na dialética. Tudo isto aliás explicado claramente por Hegel, em resposta a Schelling, na introdução da Fenomenologia.
A filosofia do estágio do imperialismo atribui à intuição um lugar central na sua metodologia objetiva. A intuição adquiriu esse lugar preponderante, antes de mais nada porque os filósofos abandonaram o formalismo do conhecimento, próprio ao período precedente. Estavam de fato obrigados a afastar-se deles, porque a própria procura de uma ideologia obrigava-os a colocar a questão do conteúdo da filosofia, enquanto a teoria do conhecimento própria ao idealismo subjetivo esgota-se fatalmente na análise não dialética de noções puramente especulativas. Desde que a reflexão pretenda ultrapassar esses limites, e almeje o conhecimento filosófico concreto, deve necessariamente recorrer à teoria materialista, segundo a qual o pensamento é capaz de refletir o mundo exterior real e, por outro lado, ao sistema universal da dialética. Deve considerar esse sistema não somente como uma doutrina da correlação estática de entidades do mundo exterior, mas como uma lei universal da evolução progressiva e da história racional. A filosofia moderna serve-se do falso aspecto da intuição para abandonar aparentemente tanto o formalismo do conhecimento como o idealismo subjetivo e o agnosticismo, conquanto conservando-os sobre bases que parecem inatacáveis.
Nessas condições, o objeto dessa filosofia, a finalidade ideológica que se propõe atingir, dar-se-á sempre como uma realidade de essência superior e qualitativamente diferente daquilo que é acessível à reflexão discursiva. Graças a esse subterfúgio, a própria noção da intuição parecerá ser a prova irrefutável de um conhecimento superior. É aqui que a negação de toda crítica analítica torna-se uma questão de vida ou de morte para a filosofia nova. Nos sistemas filosóficos antigos desse gênero e mesmo em certas místicas religiosas antigas, a defesa da intuição estava assegurada por uma teoria aristocrática do conhecimento. Esta última afirma, desde o início, que todo o mundo não é suscetível de compreender a realidade superior de uma maneira intuitiva. Aquele que procura encaixar as descobertas intuitivas num quadro racional prova, por conseguinte, que não é capaz de ascender à realidade superior por via intuitiva.
Como não pensar no conto de Andersen, onde os que não veem o traje maravilhosos do rei — que na verdade passeava completamente nu — eram proclamados desonestos? A teoria do conhecimento da intuição presta aliás serviços apreciáveis, porque as “realidades” apreensíveis pela intuição são de natureza arbitrária e incontrolável. Órgão de um conhecimento pretensamente superior, a intuição serve ao mesmo tempo para justificar o arbitrário.
Uma rápida recapitulação nos permitirá melhor compreender o essencial da filosofia no estágio do imperialismo. A filosofia do período clássico colocava o problema da ideologia sob o signo do conhecimento científico. Em outras palavras, sua ideologia era a ideologia da ciência. A filosofia do período de transição traçava-se limites intransponíveis justamente onde terminava o conhecimento registrado pelas ciências especializadas. A filosofia no estágio do imperialismo aceita esses limites, pretendendo criar uma nova ideologia supracientífica ou anticientífica, graças à intuição, novo instrumento do conhecimento.
Essa nova ideologia procura antes de tudo destronar a razão. Os precursores dessa orientação são Schopenhauer e Kierkegaard, assim como o romantismo filosófico. Dilthey é o homem da transição para a nova época da qual Nietzsche, Bergson, Spengler, Klages e enfim o existencialismo marcam as etapas mais importantes. Ainda uma vez: a base, no plano da teoria do conhecimento, é sempre o agnosticismo e o relativismo que o acompanha. A única diferença é que a nova filosofia vai mais longe que a antiga na sua ofensiva contra o pensamento racional. Simmel, em um dos seus livros, esboça uma crítica do conjunto dos últimos resultados da ciência atual, para compará-la às críticas que formulava o racionalismo nascente contra as superstições da Idade Média e conclui que temos todas as razões para crer que os séculos que virão terão de nossas ciências uma opinião análoga àquela que temos das crenças supersticiosas da Idade Média. Esse agnosticismo relativista, esse ceticismo a respeito de tudo, conduz em linha reta ao mito da filosofia atual, cujo valor central é o antirracionalismo, ou, em todo caso, a aceitação de métodos e realidades suprarracionais. Antes da Primeira Guerra Mundial, Bergson foi o precursor em maior evidência dessa filosofia. A crise geral que se seguiu a 1918, transformou o irracionalismo em uma filosofia concreta da história, a qual terminou por levar, através de Spengler, Klages e Heidegger, às visões infernais do fascismo.
Analisando os objetos propriamente ditos desse suprarracionalismo, veremos os laços estreitos que o ligam a sistemas filosóficos mais antigos. Veremos também que no fundo apenas atualiza certos pontos fracos da filosofia burguesa. Toda filosofia antidialética, portanto desprovida de compreensão verdadeira para a história, engana-se sobre a realidade ao fazer do presente uma “lei eterna” ou uma “existência eterna”. Na época em que florescia a fé em um capitalismo, era regra, mesmo para os historiadores com tendências empiristas, projetar sobre toda a história as noções essenciais do capitalismo (por exemplo, Mommsen). A moral abstrata da filosofia kantiana reforçava estas concepções. No momento da crise do imperialismo, quando tudo vacila e tudo está em vias de desmoronar, a intelligentzia burguesa obrigada a duvidar das verdades que ela acreditava eternas, encontra-se diante de uma alternativa filosófica. De um lado, deve reconhecer-se incapaz de abarcar intelectualmente toda a verdade. Neste caso, a própria realidade não estaria privada de seu caráter racional, o que provaria a falência do pensamento burguês. Ora, a burguesia não pode reconhecer sua falência porque seria preciso então aderir ao socialismo. Eis porque a filosofia burguesa deve fatalmente se orientar em direção ao outro termo da alternativa e declarar a falência da razão. A filosofia está em condições de cumprir esta operação, considerando a razão como uma atitude subjetiva, relativamente ao mundo real, o qual, por seu lado, abriria a todo instante brechas nesta razão subjetiva (cf. Scheler, Benda, Valéry, “a impotência da razão”). É necessário, entretanto, reconhecer que este esquema não corresponde à orientação geral da filosofia em crise. Segundo os pensadores em maior evidência, nessa época, na verdade a razão não existe, a verdadeira realidade, a realidade superior, é irracional e suprarracional. O dever da filosofia é antes de tudo levar em conta este dado fundamental da existência humana e é assim que se constitui o irracionalismo, ideologia da filosofia em crise.
A evolução em direção a este objetivo está também sublinhada e acelerada pelo fato de que o capitalismo, e em particular o imperialismo, destrói ou pelo menos restringe de uma maneira extrema toda margem de liberdade necessária ao desenvolvimento da personalidade. O exame abstrato deste problema abre possibilidades a duas reações diferentes. É, de um lado, perfeitamente possível explicar esta situação a partir da ordem social e econômica do capitalismo e daí tirar as consequências que se impõe. Nos primórdios do período imperialista, esta atitude está presente, se bem que sob formas bastante incertas, como, por exemplo, no ataque romântico de Nietzsche contra a cultura capitalista, na Kulturkritik geral de Simmel e em sua teoria do “trágico da cultura”. Mas todas estas formas incertas terminam por atingir um “terceiro caminho”, isto é, uma apologia indireta do capitalismo. Enquanto que em Nietzsche a visão mítica de uma sociedade nova ocupa o primeiro plano, em Simmel o retorno do indivíduo sobre si mesmo, o voltar-se para a interioridade pura encontram-se facilitados pelo fetichismo rígido que reina na sociedade capitalista. Simmel utiliza-se desse “racionalismo” frio do mundo capitalista fetichizado, como de um trampolim, para chegar ao irracionalismo pretensamente superior de uma existência puramente individualista.
É aqui que encontramos o elemento mais importante da ideologia irracionalista: transformar, mistificando-a, a condição do homem no capitalismo imperialista em uma condição humana geral e universal. O cumprimento desta tarefa exige um desdobramento do método. Tudo que é social, racional e conforme as leis da evolução será declarado inumano e inimigo da personalidade. A personalidade será declarada antirracional e irracional por sua própria natureza. Notemos de passagem, que as origens desta atitude já se encontram entre os primeiros neokantianos, tais como Windelband e Rickert. As diversas variantes mistificadas desta atitude correspondem, por sua vez, perfeitamente à necessidades universais da época, que se resumem sob o signo do “terceiro caminho”. Com efeito, desde que se conseguiu opor a razão, inumana e inferior, à realidade superior, humana e irracional, capitalismo e socialismo apresentam-se como duas entidades inteiramente semelhantes, que se colocam num mesmo plano, posto que ambas foram criadas pela fria razão. Ambos, contudo, devem ser combatidos, em nome da personalidade, categoria puramente individual (cf. Klages, o círculo de Stefan George). É necessário acrescentar que o fascismo adota integralmente esta metodologia, limitando-se somente a complemetá-la com algumas exposições grosseiramente demagógicas?...
= = =
LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências humanas, 1979, p. 47-58.
= = =
LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências humanas, 1979, p. 47-58.
= = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário