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terça-feira, 17 de setembro de 2019

A mitificação e a intuição ontológica


por György Lukács

O “terceiro caminho” e o mito 

As considerações precedentes permitem-nos passar agora ao exame dos principais problemas colocados pela filosofia do período imperialista. Iremos estudar primeiramente a noção de objetividade, baseada na teoria do conhecimento do idealismo subjetivo.

Já falamos do “terceiro caminho” na teoria do conhecimento. Sua origem remonta em parte a Nietzsche, em parte a Mach e Avenarius e vai, passando por Husserl, até a ontologia existencialista, que reconhece um existência independente da consciência, mas persiste em seguir o antigo método idealista quanto à definição, o conhecimento e a interpretação dessa existência. As teorias do conhecimento dominantes do período precedente negam a inteligibilidade da realidade objetiva. O “terceiro caminho”, que mantém intactos todos os princípios da teoria do conhecimento do idealismo subjetivo, escamoteia seus limites, apresentando a questão de uma maneira a parecer admitir implicitamente que as ideias e as noções que existem apenas na consciência são elas mesmas realidades objetivas.

Vejamos, portanto, qual é a realidade de que fala esta filosofia. (Notar, de passagem, que a filosofia burguesa fala sempre da polaridade idealismo-realismo, sem mesmo pronunciar a palavra materialismo.) Mach e os neokantianos elaboram uma teoria do conhecimento que se limita  a fazer concessões terminológicas às ciências naturais e esforça-se por aparar as arestas do “realismo ingênuo” dos sábios. Assim como para Berkeley, ideias e realidades são idênticas para eles. A realidade de que falam torna-se assim efetivamente una e indivisível — mas é a realidade do idealismo subjetivo. Esse novo agnosticismo está, entretanto, longe de ser semelhante ao do período precedente, ao qual Engels pôde com razão chamar de “ateísmo envergonhado”, porque a doutrina segundo a qual a realidade é incognoscível significava simplesmente a recusa da filosofia em tirar consequências ideológicas das descobertas das ciências naturais. A escola de Mach ultrapassa e muito essa aspiração puramente negativa, pois seu agnosticismo volta a afirmar que as descobertas das ciências naturais estão em perfeita harmonia com qualquer ideologia reacionária.

Mas, chegada a esse ponto, a evolução da filosofia não parou. A variante moderna do agnosticismo torna-se mística e criadora de mitos. É impossível subestimar aqui a influência decisiva de Nietzsche na evolução do conjunto do pensamento imperialista: poder-se-ia mesmo dizer que ele criou o arquétipo da mitificação. Sem nos querer estender longamente sobre os temas principais desses mitos, insistiremos no papel que neles desempenham o corpo e a carne. Nietzsche rompe efetivamente com a espiritualidade abstrata e a moral pequeno-burguesa da filosofia oficial. Sua teoria do conhecimento e sua moral afirmam e defendem os direitos do corpo, sem fazer nenhuma concessão ao materialismo filosófico. Ora, o aspecto de um corpo assim privado de toda matéria só pode ser mítico. Aí está um elemento desse biologismo particular e dessa psicologia que repousam em pretensas bases biológicas, que tomam em Nietzsche o lugar de uma concepção social. Essa introdução está completa e por assim dizer coroada pela perspectiva mítica da evolução da humanidade, pela aceitação do imperialismo, pela criação da noção de uma aristocracia nova e pela negação do socialismo, ao qual opõe seu mito biológico. Todas as bases filosóficas do racismo encontram-se assim preparadas.

Contentar-nos-emos igualmente em fazer algumas observações de princípio a respeito de alguns outros mitos (Bergson, Spengler, Klages etc.), sem comentá-los em detalhe. Digamos logo que não é preciso confundir os mitos assim formados com certos elementos de sistemas filosóficos antigos, a despeito do aspecto às vezes também mítica desses últimas. Desde que abandona o agnosticismo, o idealismo, qualquer que seja, cai na fabricação de mitos, porque está forçado a atribuir às construções puras do espírito um papel de realidade na explicação dos fenômenos reais.

Quanto mais um sistema filosófico se aproxima do idealismo objetivo, mais denota essa tendência de fabricar mitos: o “Ich” de Fichte mostra-o mais fortemente que  o “Bewusstsein überhaupt” de Kant e o “Weltgeist” de Hegel ainda mais claramente que a construção fichteana. Só que essas construções do espírito tomadas por realidades contêm ainda, nesse estágio, os elementos de uma exploração completamente leal da realidade. É ainda perfeitamente possível reconhecer em toda parte os elementos de realidade dos quais essas construções do espírito são ao mesmo tempo a primeira revelação e a representação desfigurada no plano do pensamento. Essas construções de aparência mítica são apenas, na verdade, a bruma da filosofia, que precede o nascer do sol do conhecimento.

A situação é completamente diferente quando consideramos a filosofia do período imperialista. Aqui, a construção do espírito, o mito, opõe-se primeiramente ao conhecimento científico; a primeira missão do mito é dissimular e tornar  obscuras as consequências sociais das aquisições da ciência. Desde o início desse período da filosofia, a mitificação nietzscheana assume esse papel em relação às descobertas do darwinismo. Na época da filosofia clássica, o mito se apresentava sob o aspecto do próprio conhecimento científico, ao passo que, na filosofia da fase imperialista, representa uma atitude, uma relação com o mundo, que seria, por assim dizer, de uma essência superior à que é acessível ao conhecimento científico e que vai até mesmo condenar a ciência. A função social da ideologia, isto é, dos mitos, é portanto, atualmente a seguinte: sugerir uma concepção do mundo que corresponda à da filosofia do imperialismo, onde quer que a ciência se mostre incapaz de oferecer uma visão de conjunto, e substituir a perspectiva oferecida pela ciência, cada vez que esta contradisser a concepção proposta pela filosofia paradoxal do estágio do imperialismo: a filosofia mantém de um lado a teoria do conhecimento do idealismo subjetivo herdada do agnosticismo, mas, por outro, estamos em presença de uma função completamente nova desse agnosticismo, função que consiste em criar um novo pseudo-objetivismo, franqueando o limite que o separa do mito.

Intuição e irracionalismo

O novo objetivismo pressupõe a existência de um instrumento novo de conhecimento. Uma das preocupações essenciais da filosofia moderna consiste em opor essa nova atitude, esse novo instrumento do conhecimento, que é a intuição, ao pensamento racional e discursivo, conquanto na realidade a intuição faça parte, psicologicamente, de todo método científico do conhecimento. No plano psicológico, a intuição pretende ser, com efeito, mais concreta e mais sintética que a reflexão discursiva, que trabalha com noções abstratas. Sem dúvida, isto é apenas uma ilusão, porque a intuição, considerada à luz da psicologia, nada mais é do que a entrada brusca na consciência de um processo de reflexão até então subconsciente. É evidente que todo pensamento científico escrupuloso deve ter por principal missão integrar esse processo inconsciente no seu próprio sistema racional. Essa adoção deve ser completamente orgânica, para que seja quase impossível distinguir a posteriori os resultados da reflexão discursiva dos da intuição. Estabeleçamos, portanto, de uma vez por todas, que na realidade a intuição não é o contrário, mas o complemento do pensamento discursivo e que seu emprego não poderia ser jamais um critério de verdade. A observação psicológica superficial da reflexão científica é que engendra a ilusão segundo segundo a qual a intuição seria um instrumento independente do pensamento discursivo e destinado à compreensão de verdades superiores.

Essa ilusão, que consiste em confundir um método subjetivo de trabalho com uma metodologia objetiva e que é mantida pelo subjetivismo geral próprio do estágio imperialista, servirá portanto de base a todas as teorias modernas da intuição. Encontra-se ainda reforçada por certas falsas referências ao método dialético. A filosofia subjetiva admite com efeito de bom grado a origem da polaridade dialética pela via discursiva, conquanto atribua a solução (devida à síntese) à intuição, que opera num plano mais elevado. É evidente que é um erro, porque a verdadeira dialética dá a toda síntese uma expressão perfeitamente racional e não reconhece a nenhuma síntese um caráter definitivo e absoluto. O pensamento dialético, que reflete a realidade efetiva, constitui sempre, por essa mesma razão, um sistema discursivo. Eis porque a intuição, enquanto instrumento do conhecimento ou elemento de uma metodologia científica, não poderia encontrar nenhum lugar na dialética. Tudo isto aliás explicado claramente por Hegel, em resposta a Schelling, na introdução da Fenomenologia.

A filosofia do estágio do imperialismo atribui à intuição um lugar central na sua metodologia objetiva. A intuição adquiriu esse lugar preponderante, antes de mais nada porque os filósofos abandonaram o formalismo do conhecimento, próprio ao período precedente. Estavam de fato obrigados a afastar-se deles, porque a própria procura de uma ideologia obrigava-os a colocar a questão do conteúdo da filosofia, enquanto a teoria do conhecimento própria ao idealismo subjetivo esgota-se fatalmente na análise não dialética de noções puramente especulativas. Desde que a reflexão pretenda ultrapassar esses limites, e almeje o conhecimento filosófico concreto, deve necessariamente recorrer à teoria materialista, segundo a qual o pensamento é capaz de refletir o mundo exterior real e, por outro lado, ao sistema universal da dialética. Deve considerar esse sistema não somente como uma doutrina da correlação estática de entidades do mundo exterior, mas como uma lei universal da evolução progressiva e da história racional. A filosofia moderna serve-se do falso aspecto da intuição para abandonar aparentemente tanto o formalismo do conhecimento como o idealismo subjetivo e o agnosticismo, conquanto conservando-os sobre bases que parecem inatacáveis.

Nessas condições, o objeto dessa filosofia, a finalidade ideológica que se propõe atingir, dar-se-á sempre como uma realidade de essência superior e qualitativamente diferente daquilo que é acessível à reflexão discursiva. Graças a esse subterfúgio, a própria noção da intuição parecerá ser a prova irrefutável de um conhecimento superior. É aqui que a negação de toda crítica analítica torna-se uma questão de vida ou de morte para a filosofia nova. Nos sistemas filosóficos antigos desse gênero e mesmo em certas místicas religiosas antigas, a defesa da intuição estava assegurada por uma teoria aristocrática do conhecimento. Esta última afirma, desde o início, que todo o mundo não é suscetível de compreender a realidade superior de uma maneira intuitiva. Aquele que procura encaixar as descobertas intuitivas num quadro racional prova, por conseguinte, que não é capaz de ascender à realidade superior por via intuitiva.

Como não pensar no conto de Andersen, onde os que não veem o traje maravilhosos do rei — que na verdade passeava completamente nu — eram proclamados desonestos? A teoria do conhecimento da intuição presta aliás serviços apreciáveis, porque as “realidades” apreensíveis pela intuição são de natureza arbitrária e incontrolável. Órgão de um conhecimento pretensamente superior, a intuição serve ao mesmo tempo para justificar o arbitrário.

Uma rápida recapitulação nos permitirá melhor compreender o essencial da filosofia no estágio do imperialismo. A filosofia do período clássico colocava o problema da ideologia sob o signo do conhecimento científico. Em outras palavras, sua ideologia era a ideologia da ciência. A filosofia do período de transição traçava-se limites intransponíveis justamente onde terminava o conhecimento registrado pelas ciências especializadas. A filosofia no estágio do imperialismo aceita esses limites, pretendendo criar uma nova ideologia supracientífica ou anticientífica, graças à intuição, novo instrumento do conhecimento.

Essa nova ideologia procura antes de tudo destronar a razão. Os precursores dessa orientação são Schopenhauer e Kierkegaard, assim como o romantismo filosófico. Dilthey é o homem da transição para a nova época da qual Nietzsche, Bergson, Spengler, Klages e enfim o existencialismo marcam as etapas mais importantes. Ainda uma vez: a base, no plano da teoria do conhecimento, é sempre o agnosticismo e o relativismo que o acompanha. A única diferença é que a nova filosofia vai mais longe que a antiga na sua ofensiva contra o pensamento racional. Simmel, em um dos seus livros, esboça uma crítica do conjunto dos últimos resultados da ciência atual, para compará-la às críticas que formulava o racionalismo nascente contra as superstições da Idade Média e conclui que temos todas as razões para crer que os séculos que virão terão de nossas ciências uma opinião análoga àquela que temos das crenças supersticiosas da Idade Média. Esse agnosticismo relativista, esse ceticismo a respeito de tudo, conduz em linha reta ao mito da filosofia atual, cujo valor central é o antirracionalismo, ou, em todo caso, a aceitação de métodos e realidades suprarracionais. Antes da Primeira Guerra Mundial, Bergson foi o precursor em maior evidência dessa filosofia. A crise geral que se seguiu a 1918, transformou o irracionalismo em uma filosofia concreta da história, a qual terminou por levar, através de Spengler, Klages e Heidegger, às visões infernais do fascismo.

Analisando os objetos propriamente ditos desse suprarracionalismo, veremos os laços estreitos que o ligam a sistemas filosóficos mais antigos. Veremos também que no fundo apenas atualiza certos pontos fracos da filosofia burguesa. Toda filosofia antidialética, portanto desprovida de compreensão verdadeira para a história, engana-se sobre a realidade ao fazer do presente uma “lei eterna” ou uma “existência eterna”. Na época em que florescia a fé em um capitalismo, era regra, mesmo para os historiadores com tendências empiristas, projetar sobre toda a história as noções essenciais do capitalismo (por exemplo, Mommsen). A moral abstrata da filosofia kantiana reforçava estas concepções. No momento da crise do imperialismo, quando tudo vacila e tudo está em vias de desmoronar, a intelligentzia burguesa obrigada a duvidar das verdades que ela acreditava eternas, encontra-se diante de uma alternativa filosófica. De um lado, deve reconhecer-se incapaz de abarcar intelectualmente toda a verdade. Neste caso, a própria realidade não estaria privada de seu caráter racional, o que provaria a falência do pensamento burguês. Ora, a burguesia não pode reconhecer sua falência porque seria preciso então aderir ao socialismo. Eis porque a filosofia burguesa deve fatalmente se orientar em direção ao outro termo da alternativa e declarar a falência da razão. A filosofia está em condições de cumprir esta operação, considerando a razão como uma atitude subjetiva, relativamente ao mundo real, o qual, por seu lado, abriria a todo instante brechas nesta razão subjetiva (cf. Scheler, Benda, Valéry, “a impotência da razão”). É necessário, entretanto, reconhecer que este esquema não corresponde à orientação geral da filosofia em crise. Segundo os pensadores em maior evidência, nessa época, na verdade a razão não existe, a verdadeira realidade, a realidade superior, é irracional e suprarracional. O dever da filosofia é antes de tudo levar em conta este dado fundamental da existência humana e é assim que se constitui o irracionalismo, ideologia da filosofia em crise.

A evolução em direção a este objetivo está também sublinhada e acelerada pelo fato de que o capitalismo, e em particular o imperialismo, destrói ou pelo menos restringe de uma maneira extrema toda margem de liberdade necessária ao desenvolvimento da personalidade. O exame abstrato deste problema abre possibilidades a duas reações diferentes. É, de um lado, perfeitamente possível explicar esta situação a partir da ordem social e econômica do capitalismo e daí tirar as consequências que se impõe. Nos primórdios do período imperialista, esta atitude está presente, se bem que sob formas bastante incertas, como, por exemplo, no ataque romântico de Nietzsche contra a cultura capitalista, na Kulturkritik geral de Simmel e em sua teoria do “trágico da cultura”. Mas todas estas formas incertas terminam por atingir um “terceiro caminho”, isto é, uma apologia indireta do capitalismo. Enquanto que em Nietzsche a visão mítica de uma sociedade nova ocupa o primeiro plano, em Simmel o retorno do indivíduo sobre si mesmo, o voltar-se para a interioridade pura encontram-se facilitados pelo fetichismo rígido que reina na sociedade capitalista. Simmel utiliza-se desse “racionalismo” frio do mundo capitalista fetichizado, como de um trampolim, para chegar ao irracionalismo pretensamente superior de uma existência puramente individualista.

É aqui que encontramos o elemento mais importante da ideologia irracionalista: transformar, mistificando-a, a condição do homem no capitalismo imperialista em uma condição humana geral e universal. O cumprimento desta tarefa exige um desdobramento do método. Tudo que é social, racional e conforme as leis da evolução será declarado inumano e inimigo da personalidade. A personalidade será declarada antirracional e irracional por sua própria natureza. Notemos de passagem, que as origens desta atitude já se encontram entre os primeiros neokantianos, tais como Windelband e Rickert. As diversas variantes mistificadas desta atitude correspondem, por sua vez, perfeitamente  à necessidades universais da época, que se resumem sob o signo do “terceiro caminho”. Com efeito, desde que se conseguiu opor a razão, inumana e inferior, à realidade superior, humana e irracional, capitalismo e socialismo apresentam-se como duas entidades inteiramente semelhantes, que se colocam num mesmo plano, posto que ambas foram criadas pela fria razão. Ambos, contudo, devem ser combatidos, em nome da personalidade, categoria puramente individual (cf. Klages, o círculo de Stefan George). É necessário acrescentar que o fascismo adota integralmente esta metodologia, limitando-se somente a complemetá-la com algumas exposições grosseiramente demagógicas?...

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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências humanas, 1979, p. 47-58.
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sexta-feira, 24 de maio de 2019

Indivíduo e instituições: a oposição entre iluministas e românticos


por Domenico Losurdo

Outro importante motivo teórico remete, em Hegel, à tradição de pensamento revolucionário. Referimo-nos à ênfase sobre a objetividade do ético e das instituições políticas que também, estranhamente, mas não muito, foi, em geral, colocada na conta do conservadorismo ou, pior, foi atribuída ao filósofo. Na realidade, um crítico implacável de Hegel dá prova da maior profundidade no momento em que o contrapõe a Wilhelm von Humboldt: “O individualismo, por natureza, não é revolucionário” (R. Haym). O individualismo tinha salvado Wilhelm von Humboldt do entusiasmo da cultura alemã do tempo da Revolução Francesa, que, não por acaso, pretendia impor uma virada à história, não fazendo apelo à mudança in interiore homine do indivíduo, mas transformando radicalmente as instituições políticas objetivas, intervindo com força na objetiva configuração e organização da vida social.

Sim, Haym tinha razão: à absolutização revolucionária das “instituições políticas” (Einrichtungen der Regierungen) e à reivindicação de uma radical transformação delas, mediante “revoluções políticas” (Staatsrevolutionen), Humboldt contrapõe a centralidade do indivíduo. E esse é o terreno sobre o qual, desde o início, na Alemanha, desenvolve-se a luta ou a tomada de distância com relação à Revolução Francesa, responsabilizada por difundir a ilusão, usando as palavras de Schiller, da “regeneração no campo político”, a partir bem mais da “constituição” e das instituições políticas do que do modo de pensar e sentir do indivíduo. E, ao contrário, “o bem dos povos” — reforça Gentz — “não está ligado exclusivamente a nenhuma forma de governo”, a nenhuma “constituição estatal”. Exatamente oposta é a orientação da filosofia que acompanha a preparação e a eclosão da Revolução Francesa. Para Rousseau, “é certo que os povos são, a longo prazo, o que o governo faz com que se tornem”. E mais claramente Kant: “O importante não é um bom governo, mas uma boa maneira de governar”. A atenção — declara em À paz perpétua, em polêmica com contrarrevolucionário Mallet du Pan — deve ser voltada não para a qualidade dos indivíduos que governam, mas para o “modo de governar”, para a “constituição política”. E, de fato, a história demonstra que até mesmo monarcas excelentes têm como sucessores tiranos sanguinários; por exemplo, Marco Aurélio é sucedido por Cômodo. Não diversamente se exprime Hegel: “Que a um povo seja dado pelo destino um nobre monarca deve ser considerado, certamente, uma grande fortuna. Mas, em um grande Estado até mesmo isso tem pouca importância: o Estado tem a sua força na sua razão”.

Ao contrário do teórico liberal celebrado por Haym pelo seu individualismo, ou seja, Wilhelm von Humboldt, Hegel tinha experimentado entusiasmo, e ainda continuava a senti-lo nos anos da maturidade, pela Revolução Francesa e, não por acaso, a ênfase na objetividade do ético e das instituições políticas caracteriza o filósofo em todo o ciclo da sua evolução: “Se deve haver uma mudança [sublinha em um escrito da juventude] alguma coisa deve de qualquer modo também ser mudada”, e eis que a atenção se volta para o “edifício estatal”, para as “instituições, constituições, leis” (Einrichtungen, Verfassungen, Gesetze). E até o fim Hegel salienta o fato de que a realização de uma real mudança pressupõe a intervenção sobre “leis e situações” (Gesetze und Verhältnisse), um recurso não a “meios morais”, e tampouco à “associação dos indivíduos na sua singularidade”, mas à “modificações das instituições”. A luta ideológica e a subsequente mudança de consciência têm certamente grande importância, mas somente na medida em que levam “a modificar leis e instituições da vida política” (ad corrigendas leges er instituta civilia), na medida em que incidem sobre as “leis” e as “instituições da comunidade política” (instituta civitatis). Mesmo a liberdade do indivíduo não pode ser assegurada sem a intervenção sobre a configuração objetiva das instituições.

São, ao contrário, o publicismo e a filosofia empenhados na luta contra a revolução e contra o movimento constitucional que procuram deslocar a atenção da esfera das relações e das instituições políticas para a da dimensão interior da consciência. No segundo capítulo do presente trabalho, já se falou de Schelling. Não é o único. Pense-se em Baader, que à “liberdade exterior” garantida pelas leis e instituições, e que pode andar simultaneamente com “a iliberdade interior”, contrapõe a “autolibertação” que cada indivíduo é chamado a realizar a partir, em primeiro lugar, de si mesmo. Mas contra Rehberg, que se opõe à supressão da servidão da gleba com o argumento de que “a liberdade do servo da gleba, do escravo, tem a sua sede somente no espírito”, Hegel responde que “o espírito, enquanto apenas espírito, é uma representação vazia; ele deve ter realidade, existência, deve ser objetivo”. Para Schelling, Baader, Rehberg, a única mudança significativa se desenvolve in interiore homine, reside no melhoramento moral do indivíduo; o resto é exterioridade. Ao afirmar a centralidade do “exterior” ou a configuração objetiva das leis e instituições, Hegel recolhe ainda uma vez a herança da filosofia que remete à preparação ou à defesa da Revolução Francesa. Kant, embora tão atento às razões da moral, escreve: não é da “moralidade interna que se pode esperar a boa constituição do Estado; aliás, é sobretudo de uma boa constituição do Estado que se deve esperar a boa educação moral de um povo”. E, antes dele, Rousseau afirma que “os vícios não pertencem tanto ao homem, mas ao homem mal governado”.

Contrapor à mudança das instituições políticas a mudança da consciência e da interioridade do indivíduo, seja o súdito ou o soberano, significa contrapor a conservação à mudança. Disso está ciente Hegel: “alguma coisa [etwas] deve também ser mudada”. Sobretudo Marx está consciente disso: “Essa exigência de modificar a consciência conduz à outra exigência, a de interpretar diversamente o que existe, ou seja, de reconhecê-lo mediante uma diferente interpretação”, e isso configura o maior conservadorismo. Mas também quando à transformação política se contrapõe não tanto a renovação da consciência individual, mas a substituição de indivíduo por outro, não se chega s resultados substancialmente diversos. Em tal modo — nota o jovem hegeliano Karl Marx — “os defeitos objetivos de uma instituição são imputados a indivíduos, para insinuar, sem melhoramento essencial, a aparência de um melhoramento”. O problema perde a sua dimensão objetiva, a atenção é desviada da coisa para se concentrar na pessoa: “Na análise da situação estatal, se é facilmente tentado a negligenciar a natureza objetiva das relações e explicar tudo a partir da vontade das pessoas agentes”. E, ao contrário, uma correta análise política requer que se identifiquem “relações”, Verhältnisse — o termo, nós já vimos, remete imediatamente a Hegel —, “onde à primeira vista parecem agir somente pessoas”.

Por haver comparado o rei a uma coisa insignificante, por ter desvalorizado o indivíduo mesmo no nível mais alto, na pessoa do monarca, Hegel é considerado por Haym como estando irremediável contraposição com a inspiração de fundo do liberalismo moderno. Mas vem à tona ainda uma vez a inconsistência da alternativa liberal/conservador, pois Haym acaba por ver no individualismo a barreira mais eficaz não contra a conservação, mas contra a “revolução”. É verdade que, por outro lado, o autor de Hegel e o seu tempo denuncia, no pensador por ele investigado, um teórico do absolutismo, mas isso entra novamente no topos liberal, já visto, que busca assimilar, sob o signo do absolutismo, tudo o que não faz parte da tradição liberal propriamente dita.

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LOSURDO, D. Hegel, Marx e a tradição liberal: liberdade, igualdade, estado. Trad. C. A. F. Nicola Dastoli. São Paulo: Editora Unesp, 1998, pp. 201-4.
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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A questão da emergência



por Eleutério Prado
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Introdução

Parte-se aqui do exame crítico da ciência moderna, mantendo a tese de que esse padrão de cientificidade está fundado numa concepção de mundo o mecanicismo que enseja e mesmo requer a aplicação generalizada do método de explanação que, em outro texto, denominou-se de reducionismo clássico. Concebendo ainda esse método como expressão de uma ideia de ciência incongruente com a de complexidade, busca-se investigar criticamente o rumo do desenvolvimento de certas concepções de mundo que propiciaram o surgimento de novos métodos capazes de ir além do modo moderno de fazer ciência. Procura-se mostrar que a expansão da cientificidade positiva propiciada por essas concepções encontra ainda dificuldades importantes, as quais apenas podem ser superadas retomando os caminhos da dialética hegeliana tal como foi recuperada e redirecionada por Marx.

Já aqui é preciso mencionar, até para evitar confusões terminológicas, que as concepções de complexidade usualmente encontradas na literatura pertinente são bem problemáticas. Normalmente, elas se originam de uma compreensão conservadora de razão e, por isso, se levantam sobre a base de uma visão meramente intelectiva do conhecimento, mesmo se não se eximem de tratar o objeto como realidade densa e não meramente como fenomenalidade aparente. Nessa perspectiva, em primeiro lugar, é preciso notar que se pode entender por complexidade algo que pode ser conhecido e representado por meio de algoritmos; nesse caso, aquilo que é assim entendido será aqui reconhecido pelo termo “complicação”. Em segundo lugar, é preciso observar que também se pode compreender por complexidade aquela propriedade de certos sistemas que faz com que eles não possam ser representados por meio de algoritmos. Essa propriedade vem a ser a mutualidade, a qual se configura como ficará evidente por impedir que tais sistemas possam ser decompostos em suas partes constituintes para serem assim apreendidos enquanto tais, a partir delas. Em consequência, tais sistemas são entendidos, de algum modo, como todos que transcendem e determinam de certo modo as partes constituintes. Por isso mesmo, aquilo que é assim referido será aqui reconhecido pelo termo “mutualidade”.

Ao fim e ao cabo, mesmo já nesse capítulo e mais completamente no estudo como um todo, chega-se à conclusão que se deve compreender complexidade como condição ontológica ou pressuposto material da práxis e, assim, da percepção, do entendimento e da dialética. Nesse sentido, o termo ‘sistema complexo’ só poderá ser empregado, de modo totalmente pertinente, para fazer referência ao objeto da ação e do conhecimento em sua existência real. Por isso mesmo, o conhecimento teórico em geral, seja ele analítico, sistêmico ou dialético, sempre apreende até certo ponto a complexidade do mundo real, nunca deixando de ser algo aproximativo que se mantém sempre em certo nível de abstração e simplicidade (Kosik, 1969, p. 38-39). Inspira essa posição uma consideração de Hegel sobre a “efetividade” que deve ser lida aqui substituindo a expressão “ideia” que nela aparece pela expressão “conteúdo material”; diz esse autor: “no que toca à natureza, não é raro que se costume admirá-la principalmente por causa da riqueza e da complexidade de suas formações. Mas essa riqueza como tal, abstraindo do desdobramento da ideia aí presente, não apresenta nenhum interesse racional mais elevado, e só nos proporciona, na grande complexidade das formações inorgânicas e orgânicas, a intuição da contingência perdendo-se do indeterminado” (Hegel, 1995, p. 271). Nesse sentido, o conhecimento científico em geral só apreende aquilo que pode ser posto numa forma racional e que captura a necessidade e a possibilidade inscritas nos fenômenos sejam eles naturais, sociais ou psicológicos e nunca a mera contingência.

Para conduzir a investigação aqui encetada é preciso retomar certos resultados do estudo anterior sobre a mesma temática (Prado, 2009). E, com esse objetivo, deve-se perguntar logo de início, na primeira seção que se segue, o que se deve entender precisamente por reducionismo clássico. Ao responder a essa questão, discute-se um particular caminho, muito expressivo, e que se tornou bem importante no correr do século XX, para a sua superação um processo atribulado e múltiplo, aliás, em andamento na ciência contemporânea. Um pioneiro no ensaio de ir além do mecanicismo, Bertalanffy, escrevendo sobre ele já na primeira metade do século passado (na verdade, desde os anos 20), apresentou uma nova concepção de ciência a qual ele denominou de teoria geral dos sistemas. E, para melhor especificá-lo e distingui-lo, contrastou-o com a cientificidade dominante desde o século XVII, assinalada por ele mediante o termo “ciência clássica”. Ele próprio acentuou que o reducionismo vinha a ser a característica central da ciência clássica.

Ao apresentar as principais características das teses de Bertalanffy, chega-se inexoravelmente à questão da emergência. Pois, a concepção de mundo que embasa a sua teorização dos sistemas diz que ele não é estruturalmente homogêneo e que, ao contrário, tem de ser apreendido como uma hierarquia de estratos de complexidade crescente. Ora, se assim é, isto requer da ciência em elaboração que ela seja capaz de fornecer explicação para a formação progressiva de tais estratos, os quais surgiram, pouco a pouco, uns a partir dos outros que os antecederam, no evolver do universo até chegar à conformação complexa presentemente conhecida. O tema não é tranquilo; ao contrário, é bem controverso. Descobre-se na literatura pertinente que diferentes autores apresentaram diversas teses sobre a natureza da emergência. Porém, os estudos que buscaram sintetizar o assunto mostram que elas podem ser classificadas em duas grandes orientações explanatórias, as quais são conhecidas como emergentismo fraco e emergentismo forte. Procura-se explicar o teor dessas duas orientações na segunda seção que se segue.

Na exposição dessas duas grandes correntes de pensamento emergentista não se escapa de enfrentar questões, entre si relacionadas, de ontologia e de lógica. A emergência é sempre um processo contínuo formado de pequenas mudanças ou vem a ser um salto qualitativo? O pensamento é capaz de explicar os processos de emergência por meio de construções dedutivas, logicamente consistente, ou precisa recorrer, diante deles, à intuição e às postulações de ordem metafísica? Ora, essas questões obrigam a enfrentar o grande tema filosófico da compreensão do ser e do devir que encontra em Aristóteles e em Hegel, como vem a ser bem sabido, os seus grandes mestres clássicos. Para abordar esse tema de um modo pertinente, será necessário examinar as antigas teses de Lukács sobre a interversão do racionalismo no irracionalismo, as quais expõem certas dificuldades do pensamento raciocinativo. Eis que essas dificuldades apenas podem ser superadas e essa vem a ser a tese central aqui exposta por meio da dialética que vem de Hegel e Marx. Trata-se do problema e de sua possível solução na penúltima e na última seção deste texto.

Razão sistêmica

Segundo Bertalanffy, a ciência clássica caracteriza-se, sobretudo, por ser estritamente analítica. Em todos os campos do conhecimento, ela “procura isolar os elementos de uma região observável do universo” com a finalidade de descobrir as suas propriedades constitutivas, “esperando, ao pô-los junto de novo, reconstituir o todo, conceitual e experimentalmente, tornando-o inteligível” (Bertalanffy, 2003, p. xix). Nesse sentido, por isso mesmo, ela crê que as propriedades dos todos considerados nas diversas áreas da investigação científica sejam redutíveis às propriedades dos seus elementos componentes, deles decorrendo material e logicamente. A ciência clássica trata os todos como agregações das partes constituintes.

A ciência nova contraria essa orientação passando a enfocar certas regiões observáveis do universo como sistemas, ou seja, como conjuntos integrados de partes que interagem entre si. Atribuindo certo peso ontológico aos todos em consideração, ela entende que “vem a ser requerido não apenas um entendimento dos elementos [que os compõem], mas também as suas inter-relações [constitutivas]” (Bertalanffy, 2003, p. xix). Dito de outro modo, tais todos são caracterizados não apenas por seus componentes elementares, mas também pelos modos de organização em que estes componentes se encontram inseridos e, assim, articulados. Porém, sem se afastar da perspectiva da cientificidade positiva, a teoria geral dos sistemas concentra-se no estudo das interações dinâmicas e complicadas que constituem em processo os todos organizados, os quais são visados por ela como composições e não apenas como meros agregados. Mesmo se afastando de uma perspectiva estritamente atomista na compreensão de mundo, para tanto, essa teoria vale-se ainda da noção de causalidade mecânica da ciência moderna, buscando expressar a formação dos sistemas, privilegiadamente, por meio da matemática dos sistemas dinâmicos (assim como, também, da cibernética, da teoria dos grafos, da teoria dos autômatos, etc.). Nesse sentido, ela contém uma ambiguidade e esta precisará ser esclarecida.

Bertalanffy encara a teoria geral dos sistemas como um novo paradigma (no sentido de Kuhn) e o contrasta com o “paradigma da ciência clássica que é analítico, mecanicista e unidirecional em matéria de causalidade”. Mais do que isso, ele o vê mesmo, pretensiosamente, com uma “nova filosofia da natureza”, a qual se despede da “visão mecanicista de mundo” para adotar uma “visão organicista” que passa a enxergar “o mundo como uma grande organização” (Bertalanffy, 2003, p. xxi).

Por isso mesmo, a teoria geral dos sistemas não se intimida com a acusação de que vem a ser uma abordagem que recai na velha metafísica, pois busca explorar cientificamente os “todos” e as “totalidades” encarando-os explicitamente como sistemas. Bertalanffy, ademais, justifica o aparecimento e o fortalecimento desse modo de pensar de um modo materialista, ainda que enviesado em sentido utilitário e pragmático: ele nascera e crescera por exigência histórica do próprio desenvolvimento da sociedade. A sociedade contemporânea, com as suas modernas tecnologias, tornara-se tão complexa que os velhos métodos científicos surgidos na modernidade deixaram de ser suficientes para tratar de seus problemas mais importantes. É ela própria, pois, que passou a exigir uma abordagem científica mais holística ou sistêmica, mais generalista e mais interdisciplinar. Os ecossistemas, os sistemas sociais, econômicos, políticos, nacionais e internacionais, que se desenvolveram extraordinariamente no século XX reclamaram segundo ele “controle científico”. Ora, os problemas sistêmicos se configuram sempre como “problemas de inter-relação de um grande número de variáveis” (Bertalanffy, 2003, p. xx). Por isso mesmo, esses próprios problemas exigiram o desenvolvimento tanto de ferramentas informais quanto de “teorias matemáticas altamente sofisticadas” capazes de operar com mecanismos complexos que envolvem causação intrincada, retroalimentação negativa e positiva, assim como não-linearidades (Bertalanffy, 2003, p. xxi).

Que problemas são estes que foram notados com certo assombro no desenvolvimento recente da sociedade moderna? Foram aqueles ele mesmo responde que se afiguraram como problemas complexos, não tratáveis pelo método reducionista da ciência moderna. De natureza tecnológica, educacional, burocrática, militar ou outra qualquer, eles surgiram para os mais variados tipos de analistas e gerentes na indústria, na gestão estatal, nas relações internacionais, na guerra, etc.

A teoria geral dos sistemas não se apresenta primariamente como uma ontologia, ainda que não se recuse a admitir que os sistemas reais existam independentemente dos observadores e que eles vêm a ser apreendidos por meio da observação. Enfatiza, em contradistinção, que há também os sistemas simbólicos abstratos, existentes, por exemplo, no interior da própria ciência e da matemática, os quais ela encara tipicamente como construções conceituais. Situando-se, em consequência, na perspectiva da razão subjetiva e construtiva, o autor dessa teoria registra então, com certa contradição, que os sistemas reais não são objetos da percepção ou da observação direta, mas sim que são objetos construídos pela mente humana com base em “fatores mentais” intrínsecos, assim como em herança linguística e cultural, os quais determinam “como atualmente vemos ou percebemos” os fenômenos do mundo real (Bertalanffy, 2003, p. xxi). Com uma mesma chave argumentativa, ele encerra assim a ontologia num espaço bem estreito e abre a porta para a entrada triunfante da epistemologia na consideração dos sistemas complexos.

A teoria geral dos sistemas preocupa-se com a questão do conhecimento nas ciências biológicas, comportamentais e sociais e, por isso, despede-se do atomismo, do fisicalismo e do reducionismo que figuram como características inerentes à ciência clássica, a qual se desenvolvera tal como bem se sabe inicialmente no campo das ciências físicas. Bertalanffy compara essa ciência nova com a ciência clássica mais uma vez. Se o procedimento analítico dessa última requer a decomposição dos todos em componentes elementares e também, em consequência, o emprego da noção de causalidade unidirecional, “a investigação dos todos organizados... requer novas categorias de interação, transação, organização, teleologia, etc.” (Bertalanffy, 2003, p. xxii). E tudo isto suscita não apenas novos problemas de modelagem matemática, mas também novas considerações de ordem epistemológica, as quais advêm intrinsecamente da própria concepção sistêmica de mundo. E aqui, para ser bem fiel ao autor, é preciso citá-lo por extenso:

Outrossim, a percepção não é reflexão da ‘coisa real’ (qualquer que seja o seu status metafísico), e o conhecimento não é simplesmente uma aproximação da ‘verdade’ ou da ‘realidade’. Vem a ser interação entre o conhecedor e o conhecido, a qual é dependente de uma multiplicidade de fatores de natureza biológica, psicológica, cultural, linguística, etc. A física ensina que não há entidades últimas tais como corpúsculos ou ondas, existindo independentemente do observador. Isto gera uma filosofia perspectivista segundo a qual a física, mesmo com o reconhecimento de suas realizações em seu próprio campo e em campos afins, não monopoliza o modo do conhecimento. Contra o reducionismo e contra as teorias que declaram que a realidade ‘não é mais do que’ (uma coleção de partículas, genes, reflexos, tendências ou qualquer outras coisas), vemos a ciência como coleção de perspectivas criadas pelo homem para se relacionar com o universo em que ‘foi lançado’, ou melhor, no qual ele tem de se adaptar devido à evolução e à história, fazendo uso de sua dotação e dependência linguística, cultural e biológica.” (Bertalanffy, 2003, p. xxii).

A citação fala por si, mas é preciso registrar aqui, explicitamente, que este autor, ao abandonar a epistemologia empirista que apresenta o conhecimento como mero reflexo subjetivo dos eventos e conjunções de eventos na mente humana, cai numa forma de relativismo. Ao manter separados e estranhos entre si o sujeito cognoscitivo e o objeto do conhecimento, ao pensar a relação entre eles como relação meramente externa, uma polaridade excludente se impõem ao pensador como resultado de seu próprio modo de pensar raciocinativo: ou o conhecimento e o objeto conhecido são identificados dogmaticamente ou eles são irrevogavelmente diferenciados e, nesse caso, o conhecimento não pode deixar de se afigurar como construção da mente pensante, mesmo ao serem considerados os seus múltiplos condicionamentos cognitivos, sociais e históricos. Ao por ênfase na interação como elemento constitutivo daquilo que existe no mundo do homem, a teoria geral dos sistemas não podia deixar de cair nessa segunda alternativa.

O reducionismo tal como foi definido por Bertalanffy implica no dedutivismo, ou seja, na crença de que os únicos argumentos válidos nas formulações científicas em geral são aqueles que obedecem estritamente as regras da lógica formal. Elas consistem de proposições primeiras que mantêm o caráter de definição ou de fundação (postulados, hipóteses, conjecturas, etc.) e em proposições que delas se derivam mediante aplicação de princípios de inferência universalmente válidos. Algumas das proposições científicas são particulares – por exemplo, quando se referem às condições iniciais associadas à ocorrência de um dado fenômeno mas outras são gerais , por exemplo, quando expressam leis universais ou regras de comportamento com validade circunstancial. De um modo ou outro, as teorias científicas visam produzir proposições particulares com conteúdo factual. Basta ver como Bertalanffy distingue o procedimento analítico tradicional do procedimento lógico da ciência sistêmica, que busca apreender os processos interativos complicados. O primeiro é um caso particular do segundo, o qual é aplicável sempre que “as interações entre as partes sejam inexistentes ou suficientemente fracas para serem negligenciadas” e sempre que o comportamento das partes esteja relacionado ao comportamento do todo de um modo linear (sendo esse último, então, obtido por mera soma) (Bertalanffy, 2003, p. 19). Nessa perspectiva, portanto, o dedutivismo não implica no reducionismo.

O dedutivismo surge como questão e como fonte de dúvida quando se pergunta se as propriedades macroscópicas de um determinado sistema são mesmo explicáveis pelas propriedades microscópicas dos elementos que o compõem, pouco importa se essa derivação é simples, complicada ou muito complicada. Ora, aqui, explicar significa estritamente deduzir: tem-se uma redução explanatória quando as propriedades macroscópicas de um determinado todo são dedutíveis das propriedades microscópicas dos elementos que o compõem, assim como das regras de comportamento a que estão submetidos, além obviamente das configurações e condições iniciais. E isto ocorre porque a perspectiva da teoria geral dos sistemas, ao considerar a organização como elemento estruturador da realidade, implica necessariamente numa compreensão hierárquica do mundo em termos de estratos de complexidade crescente.

Destarte, essa relação de ordens que se sobrepõem umas sobre as outras se manifesta, para ela, já na distinção tradicional entre os estratos físico, orgânico e social do mundo objetivo. De modo mais amplo, eis que Boulding, de modo consistente com a teoria geral dos sistemas, tentara formular uma teoria geral do crescimento, distinguindo no mundo real pelo menos nove níveis de complexidade crescente: estruturas primárias (átomos, moléculas, etc.), mecanismos relojoeiros (máquinas, sistema solar, etc.), mecanismo com controle (termostato, servos-mecanismos, etc.), sistemas abertos simples (células), organismos simples (bactérias, plantas, etc.), animais, homens, sistemas sociais e sistemas simbólicos (linguagem natural, matemática, etc.) (Boulding, 1956).

A questão da emergência

A questão referida na introdução do parágrafo anterior é chave na temática aqui discutida. Ela aparece na literatura pertinente sob um rótulo bem significativo: problema da emergência. Pois aquilo que se manifesta num certo nível da realidade e que se origina supostamente do que ocorre num nível inferior afigura-se possuir certa autonomia em relação a essa base originária. Parece que entre o nível constitutivo e os fenômenos emergentes no nível superior há uma descontinuidade, um salto que se afigura como de difícil explicação ou mesmo, eventualmente, como inexplicável, pelo menos a primeira vista. Aquilo que é emergente vem a ser realmente novo? O que, afinal, está em curso nesse processo em que algo novo ou aparentemente novo sobrevém? Como essa novidade ou aparência de novidade pode ser explicada? Há, de fato, um salto nessa passagem que engendra a novidade? Na busca de respostas para essas perguntas, deve-se confiar ainda nas características do processo de acarretamento tal como este é modelado por meio de deduções complicadas ou se deve recorrer a algo que não cabe nesse procedimento porque ele próprio vem a ser logicamente estreito?

Ao se deixar para trás o reducionismo, se aceita e este é um ponto de partida que os fenômenos emergentes são irredutíveis àqueles fenômenos que admitidamente os originam e que, portanto, eles são verdadeiramente novos. Considera-se, nesse sentido, que tais fenômenos são supervenientes em relação aos elementos originários e que eles são propriamente novos porque têm características diversas das características desses elementos. Ao se admitir que os todos formados a partir de processos que envolvem as partes apresentam novidades reais, fica ainda a questão de saber em que consistem precisamente essas novidades? De qualquer modo, os fenômenos ditos emergentes aparecem para o pensamento analítico como ocorrências intransparentes que não podem ser pensadas clara e distintamente e que, por isso mesmo, são enxergadas por ele como complexas (ou seja, difíceis de entender e de explicar seja por razões de ordem epistemológica ou ontológica). Pela mesma razão certos sistemas são encarados, no mesmo sentido, como sistemas complexos.

O esclarecimento das questões restantes dentre aquelas acima postas resume-se, em última análise, em saber se há ou não um salto qualitativo nos processos de emergência. Na literatura de origem anglo-saxônica que versa sobre a temática da complexidade, costuma-se indicar que duas grandes orientações prevalecem na busca de resposta para essa questão (Clayton, 2008, p. 9-11). Elas precisam ser distinguidas no plano ontológico, ainda que uma delas prefira se expressar melhor no plano epistemológico.

Aquela orientação que não recua diante do compromisso ontológico é denominada de emergentismo forte, enquanto que a outra é classificada como emergentismo fraco. A primeira orientação sustenta que o processo evolutivo da natureza como um todo é responsável pelo aparecimento histórico e sucessivo de novos níveis de complexidade organizacional, os quais apenas podem ser bem distinguidos examinando aquilo que intrinsecamente são. E isto significa que cada um desses níveis tem constituição própria, submete-se a leis características, apresentando propriedades diferenciadas. Para a primeira orientação, portanto, os processos emergentes são saltos distinguíveis ontologicamente. Em contraposição, a segunda orientação o emergentismo fraco concebe as novidades aparecidas no curso do desenvolvimento da natureza como ocorrências que surgem por meio de encadeamentos causais ordinários, podendo ser descritas no plano teórico, em princípio, por meio de construções rigorosamente dedutivas. Se essa orientação distingue também níveis de complexidade crescente no mundo real, estes são entendidos como estruturas que emergem indiretamente por meio das interações dos elementos componentes, as quais são descritíveis ainda mecanicamente.

A teoria geral dos sistemas acima discutida isto fica claro agora se estabelece nos marcos do emergentismo fraco. Ao privilegiar a matemática como forma de expressão teórica, ela assume que os todos por ela considerados emergem por meio das interações das partes, supondo ainda que essas partes assim se definam como tais independentemente do todo. Os sistemas assim considerados, já constituídos enquanto tais, constrangem o comportamento das partes constituintes, não tendo, porém, quaisquer poderes causais próprios; eis que eles, como tais, não podem influenciar determinativamente as partes do modo usualmente conceituado como “causação para baixo”. Essa orientação rejeita terminantemente essa última concepção de causação, ainda que aceite normalmente a ideia de retroalimentação; pois, essa última noção exige somente que o todo possa ser uma fonte de restrição para a parte não vindo, porém, a determiná-la reflexivamente. Pois, para ela, admitir tal noção de causação implicaria em cair em circularidades lógicas, em contradições formais. Portanto, para o emergentismo fraco não existem verdadeiramente saltos nem nos processos da natureza inorgânica e orgânica nem no devir histórico das sociedades. Ele admite, porém, a existência de certas descontinuidades nos processos reais já que por meio deles emergem novas estruturas ou modo de organização.

Os saltos eventualmente observados na experiência do mundo, os quais se afiguram como descontinuidades ontológicas fortes, são considerados como falsas aparências, frutos da falta de conhecimento, enigmas que podem ser resolvidos por meio do desenvolvimento inexorável da ciência positiva. Esse apelo ao progresso do conhecimento como forma de chegar a formulações que dissolvem os saltos em processos gradualistas, em última análise, manifesta de maneira iniludível o caráter epistemológico e formalista do emergentismo fraco. Ademais, como assevera Clayton, “por colocar forte ênfase nas continuidades entre os processos físicos e os processos dos níveis subsequentes, o emergentismo fraco mostra estar próximo do desiderato de uma ciência unitária” (Clayton, 2008, p. 10), ou seja, de uma ciência metodologicamente unificada sabidamente uma aspiração tradicional do positivismo.

Nessa perspectiva, o modo de explicação dos fenômenos a ser empregado nas esferas inorgânica, orgânica e social do mundo conservar-se-ia sempre o mesmo. O que realmente vem diferenciar a ciência nova da ciência tradicional vem a ser a disponibilidade de novas técnicas de processamento da informação, as quais permitem modelar processos interativos complicados ou mesmo extraordinariamente complicados com base em simulações. O propósito da ciência, assim desenvolvida, vem a ser reconstruir os processos naturais por meios de modelos artificiais: eis que a vida, assim, é tentativamente reconstruída de modo computacional como vida artificial, a sociedade, como sociedade artificial e a mente, como mente artificial. E esse tipo de expansão da cientificidade positiva tem sido capaz de suscitar grandes esperanças tecnocráticas de poder vir a resolver os problemas do mundo contemporâneo. Um divulgador norte-americano desse tipo de teoria declarou, com certa ingenuidade, que “o santo graal da ciência da complexidade é entender, predizer e controlar os fenômenos emergentes em particular aqueles potencialmente catastróficos...” (Johnson, 2007, p.5).

Em contraposição, o emergentismo forte acolhe a tese de que a natureza se desenvolve por meio de saltos e que tais mudanças qualitativas são apreensíveis apenas de modo ontológico. Tal com a outra orientação, ela concebe o mundo como resultado de um processo de evolutivo e histórico. Porém, ela o apreende como resultado de um constante evolver pontuado por transformações mais ou menos decisivas que, ao longo do tempo, foi fazendo aparecer novas formas de existência que se caracterizam pelo mutualismo. Em perspectiva diacrônica, veem nesse processo uma tendência geral para uma maior diversificação dos seres do universo, mas em geral não creem que se possa pensar que tudo ocorreu numa sequência de sentido unívoco, sem quaisquer espécies de contramarchas. Os autores que seguem essa orientação usualmente aceitam que o mundo, em perspectiva sincrônica, tem de ser encarado como uma hierarquia de formas de existência que se dispõem segundo uma ordem de mutualidade e complexidade crescente ainda que essa noção algo enevoada comporte também certo grau de ambiguidade.

Como o próprio mundo enquanto objeto científico se mostra ontologicamente heterogêneo, os autores dessa corrente não acolhem o projeto de uma ciência unificada. Contrariando essa normatividade, julgam que é preciso empregar formas distintas de cientificidade nos diversos campos do conhecimento, à medida mesmo que estes se distingam entre si por apresentarem níveis diversos de complexidade e de organização. Para eles, em geral, não se pode apreender adequadamente o mundo, por exemplo, em seus estratos inorgânico, orgânico e social, com base num único procedimento metodológico padrão a saber, tal como se faz usualmente, o método nomológico e dedutivo. Mais do que isso, recusam que seja possível explicar os acarretamentos inerentes aos processos de emergência por meio de raciocínios estritamente dedutivos.

Diferentemente, no afã de explicar os saltos qualitativos que encontram no mundo e que se manifestam ao observador científico não-reducionista, o emergentismo forte fia-se sempre numa forma de saber que, ao fim e ao cabo, revela-se como um saber de algo não empírico e que se afigura como imediato. Este texto não tem a intenção de sintetizar as teorias dos autores que se inserem nesse campo e que seguem de um modo ou outra essa orientação, mas todos eles em geral apelaram para noções algo misteriosas tais como enteléquias, leis de emergência, élan vital, princípios de evolução criativa para explicar os processos de emergência (Clayton, 2008, p. 11-25). E o fazem mesmo quando descartam como boa compreensão de mundo o dualismo que afirma a existência de uma substância imaterial ao lado da substancialidade material e aceitam que todo o universo habitando pelo homem está constituído, em última análise, por uma única espécie de coisa. Ao raciocinarem desse modo, eles recaem na velha metafísica que se distingue justamente por se fundar na crença de que o pensamento pode apreender verdadeiramente a essência das coisas por meio de uma faculdade intuitiva que, outrossim, afigura-se também como algo misteriosa.

Ainda que não seja possível recensear aqui as teorias do emergentismo forte, nem total nem parcialmente, é interessante apresentar um caso clássico que pode ser encarado como paradigmático. Em A evolução criadora, Bergson, depois de duvidar que a vida e a evolução venham a ser acessíveis à lógica formal e de abjurar o mecanicismo como forma exemplar de conhecimento, conclui pela necessidade de recorrer ao saber originado pelas “formas instintivas de consciência” para compreendê-los:

O nosso pensamento lógico, sob sua forma puramente lógica, é incapaz de representar a verdadeira natureza da vida, o significado profundo do movimento evolutivo. (...) É necessário, portanto, renunciar a aprofundar [o conhecimento sobre] a natureza da vida? (...) Mas a linha de evolução que chega até o homem não é a única. Em outros caminhos, por sua vez divergentes, foram criadas outras formas da consciência, que não souberam libertar-se das limitações externas, nem reconquistar a si mesmas, conforme a inteligência humana, mas que tampouco exprimem menos qualquer coisa de imanente e de essencial ao movimento evolutivo. Aproximando-as e em seguida fundindo-as com a inteligência, não obteríamos assim uma consciência coextensiva da vida que, ao voltar-se bruscamente para o impulso vital, o qual ela sente atrás de si, é capaz de obter uma visão integral dele, ainda que fugidia?” (Bergson, 2010, p. 8-11).

Para finalizar essa seção dois registros devem ser feitos. É preciso mencionar, em primeiro lugar, que o emergentismo forte, ainda que nem sempre de um modo transparente, costuma vir acompanhado da crença em forças divinas imanentes ou transcendentes, as quais seriam responsáveis, em última análise, pela potencialidade inovadora observada nos diversos estratos do mundo. E, nesse caso, essa corrente de pensamento, como diz criticamente um autor que achou por bem reduzir o processo evolutivo darwinista a um mero algorítmico natural, está se fiando em “ganchos celestes” ou seja, “em elevadores milagrosos, não-sustentados e insustentáveis” com a finalidade de explicar as mudanças evolutivas que aconteceram e continuam acontecendo na face da terra (Dennett, 1998, p. 78). Ao contrário, para ele, essas grandes mudanças, por mais maravilhosas que pareçam ao olhar humano desprecavido, não são mais do que um acúmulo milenar de pequenas mutações em que não está ausente certa aleatoriedade e que sobreviveram por seleção natural.

Em segundo lugar, é preciso registrar a reação ao emergentismo forte desenvolvida por aqueles que se atém aos limites da cientificidade positiva e ao suposto rigor da lógica formal na investigação de todos os tipos de fenômenos. Segundo essa orientação que se conserva na perspectiva da ciência moderna, o emergentismo forte vem a ser uma forma de misticismo que recorre a noções vagas e que introduz intuições metafísicas no campo da ciência com o intuito de explicar os fenômenos considerados emergentes (Epstein, 2006, p. 31-33). E o faz porque identifica emergência com não-dedutibilidade, ou seja, porque abre uma brecha lógica uma lacuna misteriosa entre o todo e as partes, afirmando a impossibilidade de inferir as propriedades do todo a partir das propriedades das partes por meio de construtos lógicos adequados. Para não cortejar o irracional, ficam então com o emergentismo fraco, sustentando que pelo termo emergência deve-se entender simplesmente “geração recursiva”. Ou seja, afirmam que os fenômenos emergentes são padrões macroscópicos relativamente estáveis gerados por interações das partes microscópicas de certos sistemas ditos complexos, em geral formados por grandes conjuntos de elementos heterogêneos entre si. Convêm também que esses processos interativos podem ser tranquilamente apreendidos por meio de derivações algorítmicas que os apreendem proposicional e formalmente. Nessa perspectiva, certos autores diferentemente de Bertalanffy que reconhece no mutualismo uma característica do mundo real identificam o dedutivismo que acolhe a complicação como um reducionismo ampliado (não analítico em sentido estrito), passando a afirmar que a teoria dos sistemas é também, em última análise, um reducionismo, ainda que altamente sofisticado.

Assalto à razão


Lukács, no segundo capítulo do livro que leva esse mesmo título, indica como o termo irracionalismo surgira na filosofia idealista alemã (Lukács, 1968). Menciona a existência de um contexto em que o pensamento reflexivo está na presença de certos processos que envolvem origem e originado, gerador e gerado, projeto e projetado, de tal modo que, para ele, entre esses polos disjuntos parece haver “um interstício vazio e obscuro”. Segundo Lukács, diante desse problema, Fichte, em sua Teoria da ciência, escrevera que o pensamento assim se encontra diante de algo que ele próprio “chamaria, de um modo um pouco escolástico, mas bastante expressivo, (...) de projectio per hiatum irrationalem” (apud Lukács, 1968, p. 76). Ora, é evidente que o hiato aí referido como irracional não decorre de uma percepção meramente episódica daquele filósofo germânico, mas consiste numa expressão que aponta para o aparecimento de lacunas, as quais surgem inevitavelmente na apreensão de processos projetivos, generativos e transformativos.

Lukács nota, em sequência, que essa mesma questão aparece nos textos de Hegel quando ele polemiza com o emprego do “saber imediato” como recurso para o fechamento de hiatos espantosos que surgem no curso de argumentações teóricas admitidamente lógicas. Não, porém, porque pretenda endossar a sugestão de Fichte, mas sim, justamente, porque quer superá-la.

Ao criticar o entendimento (Verstand), em particular mesmo quando este atua no campo da matemática, Hegel notara que esse modo de pensamento, o qual abomina a contradição, nunca deixa de cair em contradição. Eis aqui o que escreveu sobre a aplicação do método matemático (aquele que se vale de axiomas, teoremas, construções e provas) num dos campos em que tem condições ideais para prosperar: a geometria, “no seu curso o que é muito digno de nota choca-se finalmente com incomensurabilidades e irracionalidades, onde, se quiser seguir adiante no determinar, é impelida para além do princípio do entendimento” (Hegel, 1995, p. 363; apud Lukács, 1968, p. 77). Ou seja, mesmo a geometria, quando encontra lacunas no raciocínio, passa a se valer de intuições e postulados. Nos campos em que o pensamento tende ao formalismo, o entendimento mostra-se bem contido já que aí ele quer ser rigoroso ao máximo. Em outras esferas, porém, ele se mostra bem menos exigente. “Outras ciências quando chegam ao limite de seu prosseguir (...) o que lhes sucede necessariamente e com frequência (...) encontram facilmente uma saída. Rompem a consequência de seu prosseguir e tomam de fora o que necessitam – muitas vezes o contrário do que precedeu – da representação, da opinião, da percepção ou donde for” (Hegel, 1995, p. 363).

Nessa exposição do que ocorre no caminho do raciocínio formal segundo a sua própria ordem lógica é preciso perceber , foi assumido que o próprio entendimento vem a ser o racional e que a postulação e a intuição (no campo da matemática) vêm a ser aquilo que o transcende, sem perturbá-lo no interior de seus próprios limites. Como tais recursos estão além do estritamente lógico, Lukács, lendo o que diz o próprio Hegel, vê neles as marcas indeléveis do irracionalismo. Assim, o surgimento de hiatos no curso do pensamento intelectivo, os quais se afiguram para ele como obstáculos logicamente insuperáveis, faz com que recorra, conforme o campo em que opera, à intuição, à fé, à revelação, etc., de tal modo que o racional passa assim no não-racional e no irracional.

Hegel, ademais, vê aí uma inversão terminológica: “o que se chama racional é o que pertence ao entendimento, mas se chama irracional o que é, antes, um indício e vestígio da racionalidade” (Hegel, 1995, p. 363; apud Lukács, 1968, p. 77). É evidente que essa interversão conceitual demanda um melhor esclarecimento; como este, entretanto, não pode ser dado imediatamente, deve permanecer como uma pendência que apenas poderá ser eliminada num certo momento do evolver da argumentação já encetada. Pode-se dizer de imediato, porém, que Hegel convém que o entendimento encontra limites, não se comporta adequadamente diante deles, pois fica aí ou tentar ir além, assim caindo de qualquer modo, direta ou indiretamente, em irracionalismos. E que ele próprio visa um conhecimento superior e autoconsciente que sabe desses limites e de como ultrapassá-los, assim como sobre sua própria relação com os conteúdos considerados e que, em consequência, não tropeça em irracionalidades. É esse conhecimento que chama de dialético.

Para Lukács, ademais, o entendimento pode ser bem mistificador, pois ele eventualmente chama o “saber imediato” do qual se vale para ir adiante de saber super-racional. Por isso, escreve que o pensamento identificante “detém-se precisamente nesse ponto, faz do problema algo absoluto, converte os limites do conhecimento intelectivo, petrificando-os, em limites do conhecimento em geral; mistifica o problema, converte-o assim, artificiosamente, em insolúvel, fazendo dele uma solução ‘super-racional’” (Lukács, 1968, p. 77).

Lukács menciona, então, que Hegel, chegando nesse ponto, faz aparecer um dos problemas centrais do conhecimento que o método dialético vem apresentar e resolver. Pois, trás à luz aquilo que, ao mesmo tempo, o limita e o move. Esse modo de pensamento reconhece que o real apresenta saltos e que tais transformações qualitativas não podem ser apreendidas pelo mero raciocínio dedutivo. Mantém a certeza de que é sempre possível avançar, sabendo também que o conhecimento, eventualmente alcançável com muito esforço por meio da apreensão das mediações, é sempre aproximativo.

Lukács fornece uma ilustração com o fito de esclarecer esse ponto a limitação do conhecimento , a qual se afigura precioso para a argumentação aqui desenvolvida. Eis que Hegel escrevera na Enciclopédia das ciências filosóficas que o “reino das leis é a imagem quieta do mundo existente ou manifesto” e que “o fenômeno seja, frente à lei, a totalidade, pois esta encerra a lei” (apud Lukács, p. 1968, p. 77). Para Hegel, fenômeno diz respeito a todo o existente vem a ser a unidade imediata do ser e da reflexão (ou seja, da aparência e da essência) que inclui em si não apenas a necessidade, mas também a contingência. Por isso, como o fenômeno expressa a riqueza inesgotável do real, ele não pode ser apreendido acabadamente pelo pensamento (mova-se este como entendimento ou mesmo como razão dialética). O pensamento apreende o evolver dos processos mundanos por meio de leis ou seja, de relações necessárias que regem os fenômenos , mas essa apreensão da essência do real (e não, meramente, das conjunções de eventos) tem, mesmo quando se mostra bem suficiente diante dos propósitos humanos, um caráter de saber aproximado.

Diante da dificuldade de adequar o pensamento ao objeto, o entendimento segue dois caminhos alternativos assim parece porque cada um deles, de partida, nega o outro peremptoriamente. Porém, como esses caminhos se cruzam na chegada, ele deve retornar de certo modo, inevitavelmente, ao ponto de partida negado. O primeiro deles consiste em se aferrar à lógica formal, em circunscrever a razão ao entendimento, procurando expulsar da esfera científica tudo aquilo que não pode ser apresentado pelo método axiomático-dedutivo (na matemática e na ciência formalizada) ou pelo método nomológico-dedutivo (na ciência empírica em geral). Nesse caso, o pensamento conservador se entrincheira no “racionalismo formalista”, tornando-se, na expressão de Coutinho, agnóstico no que se refere à possibilidade de compreender em profundidade o mundo realmente existente. Para tanto, identifica a razão com o intelecto, ou seja, com aquela forma de pensamento que se mostra adequada, necessária e suficiente, à mera manipulação técnica ou burocrática de “dados” (Coutinho, 2010, p. 16-20). Porém, ao escolher esse caminho, ao buscar apreender apenas as formas aparentes dos fenômenos, o pensamento assim reduzido põe para si mesmo uma formidável barreira; por causa dela, ele se atrapalha frequentemente na tarefa de chegar a um conhecimento consistente da própria realidade. À medida que esta lhe apresenta saltos qualitativos, estruturais ou processuais, aos quais quer negar existência enquanto tais, ele cai em contradição e, assim, tendo partido de uma posição fortemente racionalista, não pode deixar de deslizar em seu contrário, ou seja, no irracionalismo – o que, evidentemente, fica quase sempre implícito.

Considere-se, por exemplo, o que acontece com o padrão de cientificidade característico da teoria geral dos sistemas de Bertalanffy. Essa teoria sustenta, como foi visto, que o mundo real está estruturado em níveis de complexidade crescente; concebe, assim, este mundo como resultado de um processo evolutivo que fez nascer, pouco a pouco, ao longo da história do universo, nível sobre nível, até que chegou às formas mais complexas conhecidas e que se autoconhecem. Para explicar a emergência de tais níveis, ela se fia na apresentação matemática dos processos evolutivos ou seja, na construção de modelos , os quais apenas podem dar expressão à causalidade mecânica inerente à ciência moderna. Fica, assim, nos limites do que foi denominado de emergentismo fraco. Para simular o aparecimento de uma determinada configuração macroscópica, precisa, então, impor formalmente constrangimentos no comportamento dos elementos microscópicos do sistema considerado por meio de regras que regulam as suas interações complicadas. Ora, isto só pode ser feito incorporando no nível microscópico características de comportamento que advém já do conhecimento do sistema como um todo pois, em caso contrário, o resultado da simulação se tornaria absolutamente incerto. A circularidade é um indicativo de que o raciocínio caiu em contradição: ele pretendeu produzir uma explicação, mas, em última análise, apresentou uma tautologia.

O segundo caminho consiste em reconhecer explicitamente a existência de lacunas na apreensão das estruturas e dos processos reais por meio do entendimento. Nesse caso, como esclarece Lukács, o pensamento se depara com uma “necessária e insuperável ainda que sempre relativa discrepância entre a imagem mental e o original objetivo” (Lukács, 1968, p. 79). Ao enfrentá-la, não podendo ir além do mesmo modo, transforma essa falha numa característica intrínseca da própria realidade, diante da qual o pensamento racional encontra supostamente um limite intransponível. Assim, a incapacidade do pensamento formal para captar uma determinada realidade é hipostasiada para convertê-la numa incapacidade do pensamento enquanto tal, do conhecimento em geral, para dominar a essência da realidade (Lukács, 1968, p. 79). Segue-se daí que o entendimento, por não se conformar com a própria incapacidade, obriga-se a ultrapassar a si mesmo, entrando no domínio de um suposto conhecimento que ele quer dar a conhecer como super- racional. Ou seja, para justificar a sua entrada forçada nas sendas do não-racional, o pensamento enxerga o próprio salto mortal como um “conhecimento superior”, sob a forma de intuição, princípio metafísico, etc.

Se a teoria geral dos sistemas é um exemplo das desventuras do pensamento que transita pelo primeiro caminho, as teorias evolucionistas do emergentismo forte seguem pelo segundo caminho, não menos hostil a um saber verdadeiramente racional. Como foi visto anteriormente, elas acolhem explicitamente a existência de saltos qualitativos nas estruturas e nos processos da natureza e da sociedade e, para explicá-los, recorrem sempre a alguma forma de saber imediato capaz de penetrar misteriosamente na profundidade do ser. Portanto, pode-se dizer que, por quaisquer dos dois caminhos, para usar uma expressão forte, chega-se à miséria da razão. Segundo Coutinho que a empregou em sua crítica ao estruturalismo, o predomínio de uma ou outra posição depende da situação histórica: “quando atravessa momentos de crise, a burguesia acentua ideologicamente o momento irracionalista, subjetivista; quando enfrenta períodos de estabilidade, de ‘segurança’, prestigia as orientações fundadas num ‘racionalismo formal’” (Coutinho, 2010). Como está implícito nessa citação – a qual apresenta um problema lógico como um problema histórico – e como se argumentou anteriormente, tais momentos não são arbitrários, mas se pertencem um ao outro de modo indissociável enquanto momentos do entendimento. De qualquer modo, chegar a apontar a interversão conceitual nos discursos de entendimento vem a ser um elemento crucial na crítica de ideologia.

Enfim, a dialética

Não é estranho ao pensamento de Hegel e de Marx conceber a formação da realidade em estratos de complexidade crescente, assim como ajuizar todo existente como um processo evolutivo ou evolvente. É bem sabido que, com base nos conceitos de mecanismo, quimismo e organismo, Hegel tratou a realidade natural como uma hierarquia formada por estruturas cada vez mais complexas. Os conceitos de estrutura e sistema, portanto, também não são estrangeiros ao pensamento desses dois autores. Ainda que tenham ressurgido no desenvolvimento da ciência moderna quando esta precisou ir além do mecanicismo, como acentuou Kosik, “só a concepção dialética do aspecto ontológico e gnosiológico da estrutura e do sistema permite chegar a uma boa solução, evitando os extremos do formalismo matemático, de um lado, e do ontologismo metafísico, de outro” (Kosik, 1969, p. 38). Este é, pois, o momento de mostrar neste texto como e porque a dialética vem a ser uma superação progressiva do entendimento, mostrando que aquilo que antes fora apresentado como “hiato de irracionalidade” deve ser apreendido, de um modo lógico, como salto racional. Para tanto, é preciso fazer primeiro uma crítica do alcance dos conceitos de estrutura e sistema.

Note-se que, em geral, jamais há uma correspondência perfeita entre as formas lógicas por meio das quais se apreende e se explica a realidade e essa própria realidade. E o conhecimento é aproximativo não apenas porque a riqueza do mundo real é inesgotável, mas também porque este se transforma por meio da criação de novas formas de existência. Se isto é verdade, então, apenas até certo ponto, numa primeira aproximação, os conceitos de estrutura e sistema podem ser adequados para apresentá-la, isto é, com certa plausibilidade e veracidade. Além desse ponto, eles distorcem a realidade e se tornam falsos. Pois, a própria realidade sempre escapa das noções que fixam e imobilizam as determinações reais – ou seja, as determinações possuídas pela própria realidade enquanto totalidade concreta. Ora, isto não ocorre apenas com essas duas noções, mas acontece com todas as noções fixadoras de mundo, pertençam elas ao mecanicismo, ao sistemismo, ou ainda, a qualquer outra abordagem que se encerre nas fronteiras do entendimento. Como, além de interconectada, a realidade, ademais, está em constante transformação e, assim, sabota o conhecimento que, devido ao seu próprio caráter conservador, quer permanecer válido sem se transformar. Frente ao constante evolver do mundo real, o saber do entendimento se mostra limitado e limitador. Os modelos de largo uso nas ciências naturais e sociais, por exemplo, sejam eles estáticos ou dinâmicos, atomísticos ou estruturais, nunca deixam de apresentar uma “imagem quieta do mundo”. Pois, vale generalizar aqui aquilo que Hegel asseverou, muito apropriadamente, a respeito das leis.

A dialética é precisamente o pensamento que quer superar o entendimento e, por isso, se recusa a apreender o mundo por meio de noções fixas e petrificadas, as quais, em consequência, por isso mesmo, se mostram como distintas e claras. Sem deixar de tomar o saber provindo do mero raciocínio como momento necessário do verdadeiro, a dialética propõe como conhecimento do mundo um modo de apresentação que nunca fica sossegado e que nunca recorre às simplificações isolantes mesmo ao custo de certas obscuridades.

Sem querer ir muito longe, é preciso dizer aqui que esse modo de apresentação de regiões do mundo se desenvolve com base nos princípios da totalidade pressuposta e da contradição assumida. E, para tentar explicar esses pontos, vai se recorrer aqui pesadamente aos textos de dois filósofos contemporâneos, Karel Kosik e Ruy Fausto, além dos textos do próprio Hegel.

Segundo Kosik, a dialética mantém como princípio da compreensão do mundo que este é em si e por si uma totalidade concreta – uma realidade inexaurível para o conhecimento humano. E esse princípio ontológico fora já estabelecido por Hegel quando dissera que “tudo o que existe está em relação, e essa relação é o verdadeiro de toda existência (Hegel, 1995, p. 255). Ora, isto é de certo modo evidente mesmo para o pensamento subjetivamente reflexivo que, porém, toma toda relação como conexão exterior entre fatos. Para a dialética, a relação acima referida é essencial e, portanto, interior ao existente e se manifesta universalmente no aparecer de todas as coisas. Vem a ser, pois, os próprios fenômenos que revelam a sua essência, as relações que os constituem enquanto tais. E se isto se mostra como uma impossibilidade para o entendimento é porque ele quer apreender os fenômenos abstratamente.

Esse princípio hegeliano se revela em toda a sua força quando se visa compreender a relação do todo e das partes. Enquanto o pensamento mecânico consiste em tomar as partes como autônomas entre si e em relação ao todo, para o pensamento dialético cada parte apenas pode ser compreendida como momento do todo. O todo, em consequência, não pode ser entendido como mera agregação, mas apenas como composição das partes. Por isso, a parte, ao mesmo tempo em que se define a si mesma como parte, define também o todo. O todo, nessa mesma medida, só define a si mesmo quando também define as partes. Ele é, igualmente, momento das partes. Por isso, a dialética encara o todo e as partes como determinações ontologicamente reflexivas. As partes isoladas do todo são abstrações “mortas”; igualmente, o todo pensado só como todo é uma abstração carente de concreticidade. Ora, a primeira dessas duas alternativas a que dá prioridade às partes em relação ao todo está na base da concepção atomista e reducionista de mundo e a segunda – a que dá prioridade ao todo em relação às partes – fundamenta a concepção organicista.

A ciência positiva, implícita ou explicitamente, pensa o mundo que lhe interessa como coleção de eventos, os quais sempre se apresentam na experiência segundo supostas relações de concomitância, sucessão, recorrência, etc. Diante de todas as regiões do mundo que enfrenta como problema, a sua tarefa consiste, pois, em apreender os eventos aí ocorrentes, com as suas regularidades, por meio de expressões funcionais que os captam como se mantivessem entre si apenas relações exteriores. Essa ciência cresce quando o conjunto de fatos apropriados desse modo cresce. O seu método investigativo é analítico e sistemático; o seu método de exposição é dedutivo. Após condensar a experiência corrente dessa forma, por indução e generalização, ela se vale da dedução para inferir novos fatos e para explicar as ocorrências do mundo. Para ela, em consequência, o todo que só pode encarar como o conjunto de todos os fatos apenas pode permanecer com um horizonte inatingível, ou seja, como algo incognoscível ou mesmo absurdo.

A dialética, ao contrário, por pensar tudo o que existe como plexos intrínsecos de relações, ou seja, como realidade estruturada que se reproduz, desenvolve e inova em permanente processualidade, encara de modo diferente a tarefa do conhecimento. Não despreza o saber do entendimento, mas costuma encarar todos os fatos e todas as relações entre fatos como momentos aparentes de totalidades em movimento. Por isso mesmo, não investiga a realidade ficando apenas com o método analítico e reducionista característico do entendimento, mas trabalha de um modo que pode ser considerado como analítico e compositivo. Pois, examina as partes não em isolamento umas das outras, mas em suas conexões internas, as quais encara como constitutivas das próprias partes e do todo. Ao investigar a realidade, busca descobrir as determinações abstratas dos fenômenos, assim como os nexos formadores de todas as coisas, partindo do concreto aparente que, a primeira vista sempre se afigura como algo caótico. Essa investigação, entretanto, é apenas o caminho preparatório para aquilo que a dialética chama de apresentação, a qual consiste em partir das determinações abstratas descobertas na investigação para reconstruir o concreto como concreto pensado de um modo progressivo e enriquecedor.

É assim que Kosik apresenta o método da apresentação dialética empregado por Hegel e Marx:

O pensamento dialético parte do pressuposto de que o conhecimento humano se processa num movimento em espiral, do qual cada início é abstrato e relativo. Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o conhecimento concreto da realidade não consiste em um acrescentamento sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras noções. É um processo de concretização que procede do todo para as partes e das partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade; e justamente nesse processo de correlações em espiral no qual todos os conceitos entram em movimento recíproco e se elucidam mutuamente, atinge a concreticidade. (Kosik, 1969, p. 41-42).

A dialética, além de pressupor a totalidade concreta e de trabalhar em seu conhecimento para reconstruí-la da melhor maneira possível e de modo infindável pelo menos em princípio , assume que a própria realidade é permeada por contradições. E que, para apreendê-las convenientemente, é preciso acolhê-las no pensamento e no discurso. Ora, mas que são as contradições admitidas pela dialética? De imediato, pode-se dizer que tais contradições não são aquelas que a lógica da identidade rejeita. A dialética não permite dizer que A seja B e não-B ao mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias. Algo, por exemplo, não pode, aqui e agora, ser branco e preto. Eis que, precisamente por isso, vem a ser necessário distinguir bem a negação dialética da negação vulgar.

Para compreender esse ponto, é preciso ver que a dialética quer apreender as esferas do mundo em seu modo de devir, como incessante processualidade, ou seja, como realidades que mudam por lógica própria, sem fixá-las como inertes e sem tratá-las como meramente históricas. Pois, as transformações em geral em particular, a geração e a corrupção são, para ela, passíveis de compreensão racional e não hiatos de irracionalidade. Para tanto, ela se recusa a ficar no método da ciência positiva que, para se apropriar do mundo, trabalha com noções rígidas de coisas e de relações que se afiguram, em última análise, como positivas e a-históricas; pois, é dessa maneira que o entendimento trabalha em todos os campos científicos com a pretensão de submeter a si mesmo todas as ocorrências e todas as regularidades eventualmente apresentadas pelo mundo. Mas, ela recusa também o pensamento logicamente frouxo que se volta à temporalidade da história e, para tanto, adota modos de expressão em que toda noção e toda relação permanece precária e submetida às mudanças no fluxo dos acontecimentos. Pois, de um modo ou outro, apresente-se ele como histórico ou como a-histórico, o mundo se afigura como superfície de “dados” (“fatos”, “eventos” ou “positividades”), que são devidamente organizados pelo entendimento, conforme as leis da lógica da identidade.

Para abranger os modos de mudança os saltos qualitativos em todas as esferas, a dialética assume que tudo aquilo que existe está constituído de modo dúplice, como possibilidade e como efetividade, como negatividade e como positividade. E que, portanto, é preciso admitir no discurso da ciência a coexistência de determinações pressupostas e determinações postas, as quais se negam umas às outras, em todas as coisas em processo de mudança. Como explica Fausto, para a dialética a posição é determinação: “o ponto essencial no nível lógico é que (...) não pode haver compreensão da dialética, sem o movimento do que é exprimido (posto) e do que não é exprimido (pressuposto). (...) E sem isso não há dialética” (Fausto, 1983, p. 19). Assim, o objeto do conhecimento, para ela, pode estar plenamente determinado sem estar posto e, se está não-posto, difere de si mesmo posto (Fausto, 1987, p. 149-160). Eis aqui, pois, a chave da questão antes levantada: as contradições acolhidas pela dialética são aquelas existentes entre determinações pressupostas e postas – e não aquelas em que determinações opostas estão igualmente postas.

O pensamento dialético tem certa semelhança com o pensamento aristotélico que admite a existência de possibilidades objetivas. Este último, para apreender o movimento, pensa o mundo por meio dos conceitos de potência e de ato. Para Aristóteles, como bem se sabe, uma coisa é existir em potência; outra coisa é a existência em ato. E, a mudança em geral é, para ele, a passagem do ser em potencia para o ser em ato. A semelhança e a diferença desses dois modos de aprender o mundo aparece quando se correlacionam os conceitos de pressuposição e posição da dialética, respectivamente, aos de potência e ato do aristotelismo.

Ambos admitem a existência de negações na referência a todas as coisas produzidas na natureza e na sociedade. Pois, o ser em potência é o não-ser em ato e o ser em ato é o não-ser em potência. Porém, o pensamento aristotélico, diferentemente da dialética hegeliana, não acolhe essas negações como contradições reais. Ao contrário, por não se afastar suficientemente da lógica formal, ele acolhe tais negações como se fossem diferentes aspectos do ser em consideração, os quais podem ser então apreendidos distintamente pelo intelecto humano. Eis que o ser em potência e o ser em ato são distintos porque, por exemplo, determinada matéria veio a receber formas diferentes em diferentes circunstâncias e em diferentes momentos do tempo. Assim, para esse modo de pensamento, a potência e o ato coexistem, mas, ao mesmo tempo, excluem-se entre si. A dialética, porém, empenhada em compreender o devir e não apenas a mudança pensa as contradições como inscritas nos próprios objetos do conhecimento os quais, assim, se tornam para ela objetos-movimento. A dialética, por isso, diferentemente do aristotelismo, contempla como crucial a categoria de negação determinada que expressa, precisamente, a passagem da pressuposição à posição. Mediante essa lógica, Hegel e Marx mas não Aristóteles apreendem a lógica de constituição das coisas, de esferas da realidade e dos níveis de complexidade do mundo, assim como o movimento daquilo que já está constituído.

Na esfera do pensamento e da exposição discursiva, a lógica dialética assume as contradições para não se contradizer. Na esfera do objeto, ela assume que as contradições são reais. E o faz porque quer aprender racionalmente as transformações qualitativas e os processos de emergência por meio da categoria de negação determinada. O entendimento, ao recusar corretamente à má contradição, recusa também àquela que é boa, ou seja, aquela que procurar dar expressão ao ser como devir e que se vale do conceito (no sentido de Hegel). E que, para tanto, diz do ser que aí está que ele difere de si mesmo enquanto ser que está prenhe de possibilidades reais. Como as transformações qualitativas e os processos de emergência confrontam o entendimento, ele se atrapalha: ou procura se conservar enquanto tal e, assim, acaba caindo em contradição ou motiva a busca de sua própria ultrapassagem e, assim, se interverte em irracionalismo.

E essa consideração fecha o círculo argumentativo iniciado com o problema da superação da ciência moderna, ou dizendo melhor, da cientificidade newtoniana. A história da ciência mostrou que essa superação era não apenas possível, mas necessária. Porém, mostrou também que esse desenvolvimento fracassa em certa medida quando se mantém na perspectiva estreita e burguesa de um saber que apenas quer dominar o mundo, tendo em vista a conservação. A argumentação acima procurou mostrar que uma superação da ciência moderna – a qual se caracteriza por ser, ao mesmo tempo, medíocre e altamente eficaz , uma superação que, ademais, contra ela não se revolta exasperadamente, apenas pode se tornar coerente quando abraça a dialética – ou seja, a lógica da mudança constitutiva.

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Referências
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Resumo: No artigo, procura‐se, em primeiro lugar, distinguir a ciência clássica da teoria dos sistemas, tal como foi formulada por Bertalanffy. Como essa segunda concepção de ciência apreende o mundo como uma hierarquia de sistemas de complexidade crescente, ela põe o problema da emergência. Discutem‐se, em sequência, duas grandes orientações na compreensão desse problema: o emergentismo fraco e o emergentismo forte. Mostra‐se, depois, que ambas essas orientações não deixam de chegar a impasses lógicos, os quais as levam a cair em problemas lógicos: contradições ou irracionalismos. Trabalhando os conceitos de totalidade e contradição reflexiva, indica‐se na seção final como a dialética de Hegel e Marx veio superar aqueles impasses, estabelecendo a possibilidade e a necessidade de um modo de pensamento que enfrenta o devir e as transformações qualitativas racionalmente.

Palavras-chave: Emergência, método e dialética

Abstract: This article intends to, first of all, distinguish between classical science and system theory, as it was formulated by Bertalanffy. As the second science conception capture the world as a hierarchy of systems with growing complexity, it poses the problem of emergence. The article discuss, in sequence, two big orientations in the comprehension of this problem: the weak emergentism and the strong emergentism. It shows, then, that both orientations do not avoid logical impasses, wich let them in logical problems: contradictions or irrationalisms. Working with the concepts of totality and reflexive contradiction, it indicates in the ending section how the dialectics of Hegel and Marx overcame that impasses, establishing the possibility and necessity of a way of thinking that faces the becoming
and the qualitative transformations rationally.

Keywords: Emergency, method and dialectics
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PRADO, E. F. S. “A questão da emergência”. In: Marx e o marxismo (Niep-Marx). UFF, Niterói, nov/dez 2011.
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