domingo, 9 de fevereiro de 2020

Vicissitudes da consciência histórica no século XX


 
por István Mészáros

Em relação ao desenvolvimento dessa consciência histórica no século XX, Hannah Arendt nos fornece um exemplo representativo e intrigante. Sobretudo porque as manifestações cada vez mais intensas das contradições e desumanidades da ordem social capitalista impedem a adoção de uma defesa não problemática dessa mesma ordem e Arendt procura com frequência se distanciar da “privatização burguesa”, do consumismo e da hipocrisia. De fato, em discussão acadêmica dedicada à avaliação de seu trabalho, ela chega a ponto de confessar uma “romântica simpatia em relação ao sistema de conselhos”.[1]

E ainda, apesar  do intento crítico de Arendt, a privatização reina suprema em sua obra, não importando quantas referências sejam feitas ao “domínio público” idealizado ou até ao mais idealizado “cidadão”. Não apenas porque ela admite que “nunca senti a necessidade de comprometer-me”[2]. Mais importante sobre esse aspecto é a oposição irreconciliável que ela defende entre pensamento e prática, optando pelo primeiro com a justificativa de que “eu, por natureza, não sou um ator”[3]. E até quando ela reconhece que:
A principal falha e equívoco de A condição humana [1958] é a seguinte: eu sigo observando o que é chamado nas tradições de vita activa a partir do ponto de vista da vita contemplativa, sem jamais dizer algo real a respeito da vita contemplativa.[4]
Não é dada nenhuma indicação de como se deve superar a “falácia” (expressão de Arendt) agora admitida. Ao contrário, a cisão entre pensamento e prática é mantida quando ela insiste que “na medida em que desejo pensar devo retirar-me do mundo”[5], ao reformular a antiga abordagem essencialmente nos mesmos termos[6]. Não é suficiente dizer que “sinto que A condição humana precisa de um segundo volume e estou tentando escrevê-lo”[7]. Pois, como aprendemos também com o exemplo das sínteses filosóficas de Sartre — O ser e o nada [1943] e Crítica da razão dialética [1960] — uma coisa é reconhecer a necessidade de um segundo volume “corretivo”, e outra muito diferente é ser capaz de escrevê-lo, em vistas profundas, mas não visíveis aos atores em questão, incompatibilidades teóricas envolvidas.

O fracasso de Arendt em desafiar o problema da privatização, apesar de seu sincero desejo em fazê-lo, repete-se em sua crítica da “burocracia” — enquanto “governo de ninguém” —. formulada em um vácuo social. De fato, sua crítica sustenta-se apenas em sua idealização da Constituição Americana e dos “Pais Fundadores”, explicitada ao lado de uma duvidosa interpretação de [Charles-Louis de Secondat] Montesquieu, elaborada para esse propósito. E quando ela é criticada por falta de evidência efetivamente histórica e pela idiossincrática interpretação de obras, tudo o que tem a oferecer em defesa da posição advogada é uma elevação circularmente especuladora da prática weberiana de construção de “tipos ideais” para o estatuto axiomático de regra geral inquestionável[8].

De forma compreensível, portanto, a crítica da burocracia proposta permanece bastante impotente. Opõe-se verbalmente à burocracia enquanto também a aceita, baseando-se na ideia de que “a enormidade e a centralidade exigem tais burocracias”[9]. E, da mesma forma, após declarar que o trabalho da administração “pode apenas ser realizado de uma maneira mais ou menos centralizada”, tudo que nos é oferecido, no lugar de uma solução, é um dilema do qual não pode haver saída: “Por outro lado, essa centralização é um perigo assombroso, porque essas estruturas são muito vulneráveis, Como poderiam ser mantidas sem centralização? E se for o caso, a vulnerabilidade é imensa”[10].

Seria surpreendente se pudesse ser de outra forma no sistema de Hannah Arendt. Pois a crítica que corrói seu próprio terreno e qualquer possibilidade de intervenção eficaz na transformação para melhor do quadro estrutural e institucional da sociedade — corrói ao rejeitar peremptoriamente não apenas a noção marxiana de superestrutura, definida em termos de suas reciprocidades dialéticas com a base material da prática social, mas também as categorias de classes sociais, tendências e movimentos, com a curiosa justificativa de que conceitos como esses pertencem ao “século XIX”[11] — deve ser extremamente impotente diante de tais dilemas autoimpostos.

Apesar de sua polêmica, às vezes feroz, contra o “burguês”, Arendt compartilha de sua tradição não apenas o ponto de vista da individualidade isolada — que a induz a idealizar as misteriosas e internas “experiências entre o homem e si mesmo[12], para ser capaz de concluir, opondo Weber a Marx, que “o que distingue a era moderna é alienação em relação ao mundo e não, como pensava Marx, a alienação em relação ao ego”[13] —, mas Arendt compartilha também outras características metodológicas com as quais no ocupamos a seguir.

Sua concepção de consciência histórica é inseparável da teorização extremamente relativista de [Werner Karl] Heisenberg da ciência moderna — com seu quase mítico “princípio da incerteza” — no qual ela pretende “embasar” uma noção insuperavelmente cética da história.

Ao mesmo tempo, dualismos e dicotomias estão em evidência por todo seu sistema, da separação apriorística de pensamento e prática à irreconciliável oposição entre o “político” e o “social”. Ademais, as categorias articuladas de forma dual não são estabelecidas sobre a base da evidência verificável, mas com a premissa meramente estipulada de definições formalistas, combinadas com um culto heideggeriano/irracionalista do “incidente”, e também com constantes polêmicas contra as “teorias e definições” de outros[14].

Ademais, sua identificação consciente com o ponto de vista da economia política burguesa fica claramente visível em sua defesa apaixonada da propriedade privada, quando argumenta que:

A palavra “privada” em conexão com a propriedade, mesmo em termos do pensamento político dos antigos, perde imediatamente o seu caráter privativo e grande parte de sua oposição à esfera pública em geral; aparentemente, a propriedade possui certas qualificações que, embora situadas na esfera privada, sempre foram tidas como absolutamente importantes para o corpo político. [...] A propriedade e a riqueza são de maior relevância para a esfera pública que qualquer outra questão ou preocupação privada e desempenharam, pelo menos formalmente, mais ou menos o mesmo papel como principal condição para a admissão do indivíduo à esfera pública e à plena cidadania. [...] Antes da era moderna [...], todas as civilizações tiveram por base o caráter sagrado da propriedade privada.[15]

E alhures:

A propriedade é, na realidade, muito importante. [...] E, creia-me, essa propriedade está sob sério risco, seja pela inflação, que é apenas outro modo de expropriar o povo, ou por tributos exorbitantes, que constituem também outra via de exploração. Esses processos de expropriação ocorrem por todas as partes. Se colocarmos à disposição de qualquer humano uma quantidade decente de propriedade — não expropriar, mas sim distribuir a propriedade — haverá possibilidades para a liberdade, mesmo que sob condições totalmente inumana da produção moderna.[16]

Assim, em sofisticado contraste com a apologética crua da “revolução gerencial” de [James] Burnham e suas variantes mais recentes, Hannah Arendt nos oferece a mitologia do “capitalismo do povo” como um ideal pelo qual lutar, em vez de um fato consumado. A verdade infeliz, no entanto, de que a maioria esmagadora da humanidade foi e continua sendo impiedosamente desprovida até mesmo das mais escassas posses por precisamente aqueles que vêm utilizando a propriedade privada, decerto já por um longo tempo, para qualquer fim exceto “as possibilidades de liberdade”, não parece ter muito peso, se é que possui algum, no esquema de reparação idealista — e, em face de toda a evidência histórica, espantosamente contrafactual — de Arendt.

Além disso, o que piora as coisas é que a economia política das práticas socieconômicas capitalistas — por ela transubstanciada na dita “esfera estritamente econômica” (seja lá o que isso signifique) — é dicotomicamente oposta por Arendt à esfera do pensamento considerada apropriada para a interação política, acarretando (de modo revelador, de fato) um fim para a sua preocupação programática com a “recuperação do mundo público” no domínio crucialmente importante de nossa vida socioeconômica.

A teorização de um tipo científico ou técnico pertence apenas ao lugar onde não há espaço para a ação ou debate, na esfera estritamente econômica, na qual os homens se envolvem nas atividades de trabalho e labor, quando produzem e consomem. Aqui, por necessidade, a categoria de meio e fins governa sua atividade e seu pensar sobre a atividade, que toma a forma de cálculo, planejamento e administração com o objetivo de predição e controle. Aqui a eficiência é cara e a economia pode ser bem servida por decisões que são elaboradas por um ou poucos homens, e não debatidas por todos. Pois o que está em jogo não é a variedade de experiências e julgamento do que é o melhor para um mundo comum, mas simplesmente os meios corretos para um fim.[17]

Dessa forma, as dicotomias de Hannah Arendt, formuladas do ponto de vista da economia do capital, servem a um propósito ideológico fácil de se identificar. Pois a insuperável oposição a priori entre “o político” e a “esfera estritamente econômica” exime esta última até mesmo da possibilidade do exame público legítimo, com a desculpa de que pertence ao domínio do raciocínio “técnico”, preocupado com a relação puramente instrumental entre meios e fins.

Em outras palavras, sua abordagem subestima e, simultaneamente, racionaliza o domínio do capital dos “poucos” privilegiados, que já estão bem consolidados em sua posição de comando na sociedade e exercem no lugar da classe dominante (este “nome abstrato do século XIX”) o poder da decisão econômica e alocação de recursos “estritamente racional”. Uma solução baseada em pressuposições ideológicas que são indistinguíveis das ilusões pós-guerra sobre o “fim da ideologia”[18]. Isso tem sido indiretamente reconhecido até por um dos mais simpáticos comentadores de Arendt, que salientou:

O que ela almejava era uma solução para o problema da pobreza “através de meios técnicos”, através de um “desenvolvimento racional, não ideológico e econômico”. O que isso pode vir a ser, ela não disse. Sua suposição era que a tecnologia pode ser “politicamente neutra” — uma suposição bastante problemática.[19]

Sem dúvida!

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Notas:
[1] Melvyn A. Hill (org.), Hannah Arendt: the recovery of the Public World (Nova York, St. Martin's Press, 1979), p. 327. É claro que ela imediatamente acrescenta: “o sistema de conselhos, o qual nunca foi testado”. As instâncias históricas efetivas de conselhos, da Comuna de Paris até certas tentativas recentes em afirmar sua importância prática para uma transformação  socialista da sociedade, parecem não contar. Nem mesmo como “testes”. Pois uma vez que o horizonte social com o qual Arendt se identifica não pode conciliar-se com o projeto socialista, ela prefere rotulá-lo e sumariamente descartá-lo como inseparável do “totalitarismo”.
[2] Ibidem, p. 306.
[3] Ibidem. E ao entrevistador, que pergunta: “O que a senhora é? Uma conservadora? Uma liberal? Qual sua posição no interior das possibilidades contemporâneas?”, ela responde: “Eu não sei. Eu realmente não sei e nunca soube. E suponho que nunca assumi alguma dessas posições. Você sabe que a esquerda me considera conservadora e os conservadores pensam que sou de esquerda ou algum tipo de dissidente ou sabe lá Deus o quê. E devo dizer que não me importa nem um pouco. Não penso que as reais questões deste século receberão alguma forma de iluminação deste tipo de coisa. [...] Nunca fui uma socialista. Nunca fui uma comunista. Tenho antecedentes socialistas. Meus pais eram socialistas. Mas eu, nunca. Jamais quis algo daquele tipo. Então não posso responder à questão. Nunca fui uma liberal. Nunca acreditei no liberalismo. [...] Então você me pergunta onde me situo. Em lugar algum. Não estou nas correntes políticas do pensamento político presente ou qualquer outro. Mas não porque quero ser original — acontece apenas que não me encaixo. [...] Não quero dizer que sou incompreendida. Pelo contrário, sou muito bem compreendida. Mas se você surge com algo assim e tira das pessoas seus pontos de apoio — suas seguras linhas-mestras (e falam a respeito da ruína da tradição sem sequer saber o que isto quer dizer! Que isso significa que você realmente está ao léu!) então, é claro que a reação será — e este tem sido meu caso muito frequentemente — que você é simplesmente ignorado. [...] E, bem você sabe, não reflito muito sobre o que faço. Penso ser uma perda de tempo. Você nunca se conhece de qualquer forma. Então é bem inútil. Esse negócio de que a tradição está em ruínas e o fio de Ariadne está perdido. Bem, isto é não tão novo quanto fiz parecer. Foi, no final de contas, Tocqueville que disse que ʽo passado deixou de projetar sua luz sobre o futuro, e a mente do homem vaga pela escuridãoʼ. É esta a situação desde meados do último século e, vista da perspectiva de Tocqueville, totalmente verdadeira”, ibidem, p. 333-7.
[4] Ibidem, p. 305.
[5] Ibidem, p. 304.
[6] Ver a esse respeito, ibidem, p. 303-6.
[7] Ibidem, p. 306.
[8] “Bem, é claro que fiz algo similar ao que Montesquieu fez com a Constituação Inglesa ao construir certo tipo ideal da Constituição Americana. [...] Na verdade todos fazemos isso. Todos criamos aquilo que Max Weber chamou de ʽtipo idealʼ. Quer dizer, meditamos sobre um certo conjunto de fatos históricos, e discursos, ou qualquer outra coisa”. Quer dizer, meditamos sobre um certo conjunto de fatos históricos, e discursos, ou qualquer outra coisa, até que se torne  um tipo de regra consistente”, ibidem, p. 329.
[9] Ibidem, p. 327.
[10] Ibidem, p. 328.
[11] “Creia-me, a burocracia é uma realidade muito mais [reveladora ou ocultadora] hoje do que a classe. Em outras palavras, você usa certo númeor de nomes abstratos que um dia forma reveladores, a saber, no século XIX” (ibidem, p. 319). Lenin, também, é “tão agradavelmente do século XIX, sabia? Não acreditamos mais em nada disso”, ibidem, p. 324.
[12] Ou, como ela coloca em outro lugar: “o hábito de viver explicitamente comigo mesma, ou seja, de estar engajada naquele diálogo silencioso entre mim e eu mesma”, Hannah Arendt, “Personal Responsability under Dictatorship”, The Listener, 6 de agosto de 1964.
[13] Hannah Arendt, A condição humana (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999), p. 266. É, obviamente, uma característica distorção afirmar que a preocupação de Marx é com a “alienação do ego”. Seu interesse em revelar como a “alienação do trabalho” assume um papel central no funcionamento da sociedade sob o domínio do capital, afetando profundamente todos os aspectos da vida, da produção material a imagens religiosas e conceituações filosóficas, está concentrando em determinações e processos dialéticos altamente objetivos, cujo significado não pode ser reduzido ou encapsulado por termos subjetivistas como “alienação do ego”.
[14] “O único ganho que se pode esperar legitimamente dessa atividade humana das mais misteriosas [ou seja, pensar] não são definições ou tampouco teorias, mas antes a vagarosa e morosa descoberta e, talvez, um mapeamento investigativo da região a qual algum incidente tenha iluminado por um fugaz momento”, Hannah Arendt, “Action and the Pursuit of Happiness”, artigo apresentado no Encontro da American Political Science Association, em setembro de 1960. Citado no elaborado ensaio de Melvyn A. Hill, “The Fictions of Mankind and the Stories of  Men”, em Hannah Arendt: the Recovery of the Public World, cit.
[15] Hannah Arendt, A condição humana, cit., p. 70.
[16] Melvyn A. Hill (org.), Hannah Arendt: the Recovery of the Public World, cit., p. 320.
[17] Ibidem, p. 287.
[18] Não é surpreendente, portanto, que Daniel Bell tenha recebido a publicação das obras de Hannah Arendt com tanto entusiasmo. (Denecessário dizer, a simpatia foi recíproca, já que Arendt também recomendou o livro de Daniel Bell, Work and Its Discontents, como uma “excelente crítica da voga das ʽrelações humanasʼ”.
[19] Elisabeth Young-Bruehl, “From the Pariah's Point of View: Reflections on Hannah Arendt's Life and Work”, em Melvyn A. Hill (org.), Hannah Arendt: the Recovery of the Public World, cit., p. 24.
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MÉSZÁROS, I. Estrutura social e formas de consciência I: a determinação social do método. Trad. Luciana Pudenzi, Francisco Raul Cornejo e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 83-87.
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