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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

História idealista em Max Weber: o finalismo histórico



por Ranieri Carli

A crítica burguesa à teoria social marxista alimenta-se de alguns chavões e um dos mais constantes talvez seja associar a Marx uma concepção teleológica da história. Em verdade, é necessário que se diga prontamente que uma teleologia da história é possível de se encontrar em Weber e não em Marx. Ellen Wood discerne:

Foi Weber, e não Marx, quem viu o mundo através do prisma da concepção unilinear, teleológica e eurocêntrica da história, que Marx, mais que qualquer outro pensador ocidental, tentou erradicar. Longe de levar a teoria social a superar as imperfeições do determinismo marxista, Weber a reduziu a uma teleologia pré-marxista, em que toda a história é um movimento no mais das vezes tendencioso em favor do capitalismo, em que o destino capitalista é sempre percebido nos movimentos da história, e em que as diferenças entre as várias formas sociais estão relacionadas aos modos particulares com que incentivam ou obstruem o movimento histórico único (2003: 129).

Nos Gründrisse, Marx afirma a necessidade metodológica de se partir das categorias da sociedade então mais desenvolvida para se capturar a anatomia das sociedades remotas. Parte-se do resultado do processo (a economia burguesa) para lançar luz sobre os aspectos progressistas das formações societárias anteriores. Quanto de relevância histórica adquirem as manufaturas durante o feudalismo, por exemplo, no instante em que se constata que ali nasceu o capital industrial. É claro, esta análise só pode ser feita post festum. O que Marx não permite é que as categorias da sociedade burguesa sejam assim generalizadas para todo o devir do homem. Ele mesmo adiciona à ideia de que a economia burguesa oferece a chave para a apreensão da anatomia das sociedades remotas: “porém não certamente do modo dos economistas, que cancelam todas as diferenças históricas e veem a forma burguesa em todas as formas societárias. Pode-se compreender o tributo, o dízimo, etc., quando se conhece a renda da terra. Mas não se deve identificá-los” (2001: 26). Marx não se esquece de assinalar que as relações capitalistas de produção podem encerrar determinados aspectos herdados de tempos anteriores, como a produção comunal. No entanto, há que se frisar: “elas [as relações burguesas] podem conter estas formas de um modo desenvolvido, atrofiado, caricaturado, etc., porém a diferença será sempre essencial” (Marx, idem: 27). Isso é de imensa importância: a diferença será sempre o essencial. Para a teoria social marxista, o comum entre as formações históricas é o acessório; o essencial é aquilo que as particulariza uma em face da outra.

A crítica de Marx às generalizações abusivas da economia vulgar torna-se mais incisiva em O capital. Segundo Marx, a apologia à sociedade burguesa costuma partir do ponto de vista da mera circulação de mercadorias, quando, na verdade, o método correto seria assumir o ponto de vista do processo de produção. Com este procedimento, a ciência apologética “procura negar as contradições do processo capitalista, reduzindo as relações de seus agentes de produção às relações mais simples que decorrem da circulação das mercadorias” (Marx, 2002: 141). Marx explica que “produção e circulação de mercadorias são, porém, fenômenos que sucedem nos mais diferentes modos de produção, embora com extensão e importância diversas” (idem: 141). A apologia direta ao capital consiste em tomar essas relações abstratas precisamente em seu caráter abstrato: “quando se conhecem apenas as categorias abstratas da circulação, comuns a todos esses modos de produção, é impossível saber qualquer coisa sobre as diferenças características desses modos de produção, não havendo condições para julgá-los” (Marx, idem: 141).

Serve em Weber com toda sua justeza a crítica aos apologistas construída por Marx. Não é difícil de localizar ao longo da obra de Weber a ideia de que as antigas formações sociais não passam de antecipações do que chama de capitalismo racional moderno. Em primeiro lugar, em História geral da economia, Weber define o seu tipo-ideal de capitalismo: “o capitalismo existe onde quer que se realize a satisfação de necessidades de um grupo humano, com caráter lucrativo e por meio de empresas, qualquer que seja a necessidade que se trate” (1968: 249). Qualquer usurário aparece assim como as relações capitalistas de produção projetadas no tempo. É capitalista o homem que entra no mercado com a quantia X e sai com X+1, esteja ele no passado, presente ou futuro. Com este conceito, é fato que Weber atem-se apenas à epiderme da experiência. Mas o sociólogo não é o único. Lujo Brentano lhe faz companhia. Para o economista alemão (que se guia por Werner Sombart), empresa capitalista é a forma econômica que possui o objetivo de aumentar o valor dos bens reais através de uma série de contratos de prestações e contraprestações medidas em dinheiro, e o regime capitalista é aquele em que a empresa capitalista constitui a específica forma econômica (cf. Brentano, 1968: 21). Weber, Brentano e tantos outros tomam as categorias epidérmicas das instituições burguesas como se fossem as características mais peculiares de suas relações de produção.

Mészáros utiliza o tipo-ideal weberiano de capitalismo para colocar em xeque a pretensa “neutralidade axiológica” de seu autor. Lembrem-se de que Weber pretendia-se “neutro” ao criar este tipo (ou qualquer outro). Mészáros distingue muitos elementos a propósito da questão e vamos listar alguns: 1) Weber escolhe definir o capitalismo em termos de uma cultura privada, fomentos de empresas, preterindo alternativas possíveis como “modo de produção”, por exemplo; 2) nada se diz acerca dos fundamentos históricos em que a satisfação das necessidades surge para o homem; 3) o “caráter lucrativo” encobre as relações de exploração da mais-valia entre capital e trabalho; 4) está oculto o fato de que não é só o investimento empresarial, mas também o estatal que caracteriza o capitalismo. Mészáros seleciona outras tantas abstrações do tipo-ideal de capitalismo feito por Weber. O principal é que está problematizada a “neutralidade” do conceito. De forma cabal, o crítico marxista determina que se pode contrapor à definição weberiana esta seguinte: “‘o capitalismo é um modo de produção caracterizado pela extração de mais-valia para efeito de produção e reprodução do capital em escala sempre crescente’. Fica para o leitor decidir qual das duas definições é mais ‘ideológica’” (1993: 29, 30). De fato, deve-se decidir por uma das duas definições porque “não são complementares, mas diametralmente opostas uma à outra: o que absolutamente não seria o caso, se fosse válida a afirmação de Weber quanto ao caráter ‘puramente lógico’ e ‘axiologicamente neutro’ de seus ‘tipos ideais (Mészáros, idem: 30).

Os problemas não se limitam à natureza epidérmica e apologética do conceito de capitalismo em Weber. Na sequência àquela definição que vimos acima, o nosso autor generaliza o seu tipo-ideal para as demais épocas históricas:

O capitalismo se nos apresenta em forma diferente nos diversos períodos da história, porém a satisfação das necessidades cotidianas, baseada em técnicas capitalistas, só é peculiar no Ocidente... O que registramos em séculos anteriores, numa espécie de antecipação, são simples pródromos (Weber, 1968: 250).

São simples e nada mais do que preâmbulos os demais estágios de desenvolvimento do homem. São antecipações que desembocaram inevitavelmente no atual “capitalismo moderno”. Toda a história mundial é compreendida como um trajeto fatal rumo à época capitalista. A pré-história do capitalismo atual é apenas “um simples pródromo” na teleologia designada a resultar na sociedade burguesa. Por isso, repetimos: a crítica que Marx construiu visando atingir os apologistas da sociedade burguesa serve em Weber com todas as suas proporções.
 
Quando captura a história a partir das categorias da sociedade mais desenvolvida, Marx não subtrai as transformações dinâmicas que culminaram na formação social que provisoriamente está no cume do processo evolutivo. Em seu tempo, Weber toma a sociedade burguesa e apaga as particularidades dos modos de produção que lhe precederam; todos não passam de meras “antecipações”. Os diversos estágios de desenvolvimento do ser social, para Marx, possuem sua própria dinâmica interna, sua peculiar totalidade de complexos, suas categorias e estrutura autônoma; uma categoria como “escravidão” pertence à determinada particularidade histórica, e o mesmo se diz para “vassalagem” e “trabalho assalariado”. Para Weber, os demais estágios da evolução humana são apenas tendências que obstruem ou favorecem em maior ou menor grau o destino único rumo ao nascimento do capitalismo moderno ocidental; uma categoria como “capital” pertence a toda e qualquer etapa societária.

Ainda que demarque certos aspectos abstratos de diferenciação histórica, Weber sente-se à vontade para escrever em A ética protestante e o espírito do capitalismo que “‘capitalismo’ existiu na China, na Índia, na Babilônia, na Antiguidade e na Idade Média” (2004b: 45).

É curioso o modo pelo qual são descobertas por Weber as relações capitalistas na Antiguidade romana. A preocupação é compreender até que ponto as leis facilitavam o empreendimento capitalista, um problema que Weber procurava resolver desde os primeiros anos de academia, conforme atesta a sua dissertação (cf. Weber, 2003a). Posteriormente, na História agrária romana, o sociólogo estuda as legislações que versam sobre a propriedade fundiária e encontra-se com o ager publicus, que, segundo ele, desvinculava a propriedade da terra de seu caráter individual (cf. Weber, 1994: 98). Por meio desta lei, estavam concedidos à livre iniciativa a concessão e o usufruto das terras do Estado; a legislação do ager publicus teria incentivado a livre concorrência pela posse da terra pública. Então, Weber presume:

Com toda probabilidade, conforme a natureza dos compromissos da época, estabeleceu-se uma igualdade jurídica de todos os cidadãos ante a terra pública com a concessão geral da liberdade de pastoreio e de ocupação, e tentou-se mascarar, na medida do possível, esse impulso ao capitalismo com a introdução, ao menos em teoria, da obrigatoriedade de um tributo. De fato, observou-se frequentemente que essa livre concorrência não pode ter beneficiado os pequenos proprietários, mas, antes, os grandes capitalistas patrícios ou plebeus; em suma, ela representou o mais desenfreado capitalismo agrário da história (1994: 106).

Na realidade da Roma antiga, Weber deparou-se com o “mais desenfreado capitalismo agrário da história”. O ager publicus equiparou os homens em face das leis — aliás, como sempre quis o liberalismo burguês. A livre concorrência liberal teria aberto as vias que impulsionaram o capitalismo romano nas terras públicas, cuja expansão jamais foi repetida na história. Tentou-se freá-lo com a cobrança de tributos, o que favoreceu os “grandes capitalistas patrícios ou plebeus”; mas, de qualquer forma, não foi suficiente. Weber julga que a livre concorrência do ager publicus representou o mais desenfreado capitalismo agrário da história.

A análise do “capitalismo agrário romano” prossegue: “durante toda a era republicana, continuaram levantando-se vozes que reclamavam a divisão do ager publicus, mas essas vozes perderam sua justificativa íntima quando a massa dos proletários, que as havia erguido, perdeu pouco a pouco suas antigas características” (Weber, 1994: 107). A “massa proletária” da Roma antiga, que se opôs ao ager publicus e ao “capitalismo desenfreado”, foi gradativamente perdendo voz porque perdeu sua identidade, suas antigas características que a uniam em torno de interesses práticos. Roma deixava de ser uma cidade com amplas terras a serem ocupadas; “enquanto Roma ia assumindo cada vez mais o caráter de grande metrópole, o proletariado perdeu sua energia expansiva; concentrou-se numa plebe urbana de tipo moderno” (Weber, idem: 107).

Como se Weber estivesse tratando da Roma do século XX. Sob a égide do “mais desenfreado capitalismo”, a “massa dos proletários” desenvolveu-se em uma “plebe urbana de tipo moderno”. Não se iludam: o tema daquele livro é a história agrária romana da Antiguidade. Livre iniciativa, legislação liberal, concorrência de mercado, grande capital latifundiário, massa proletária de tipo moderno e capitalismo agrário: são categorias que Weber extrai da sociedade burguesa e projeta para a realidade da Antiguidade. Olha-se para o passado remoto e descobre-se a sociedade do presente. A sua teleologia da história possibilita tais exacerbações. Cancelam-se as diferenças e encontra-se a forma atual de sociabilidade no conjunto extensivo da história.

Não pensem que isso se deve à juventude de História agrária romana[1]. Na maturidade de Economia e sociedade, estas ideias foram retomadas e acentuadas com outros componentes. Desta vez, Weber afirma explicitamente que o império romano foi a primeira amostra do capitalismo imperialista: “a expansão ultramarina de Roma... mostra — pela primeira vez na história de forma tão marcante e, ao mesmo tempo, em escala gigantesca — traços que, desde então, semelhantes em seus elementos fundamentais, apresentam-se sempre de novo, até hoje” (1999: 168). Os traços vistos na expansão romana apresentam-se repetidamente na história. Nietzsche arremataria completando que, por isso, a história é um eterno retorno. Weber expõe os elementos que vê na antiga Roma e que se repetem ininterruptamente: “são próprios de um tipo específico, apesar de não se distinguir claramente de outros tipos de relações capitalistas — ou melhor: oferecem-lhe condições de existência — que denominaremos capitalismo imperialista” (idem: 168). Não só houve capitalismo na Antiguidade romana como este capitalismo foi de espécie especificamente imperialista. Os aspectos gerais que estariam presentes em Roma e que se reiteram em giros circulares são estes: “trata-se dos interesses capitalistas de arrendatários de impostos, credores do Estado, fornecedores ao Estado, capitalistas do comércio exterior e coloniais estatalmente privilegiados” (Weber, idem: 168). São traços que sempre retornam à história ao infinito. Não foram poupadas abstrações na tarefa de eternizar para a história as relações da fase monopolista do capital.

Continuemos com Weber a buscar a “ação capitalista” entre os povos da Antiguidade. No Judaísmo antigo, outro livro da maturidade, Weber estuda a conduta religiosa dos judeus no período anterior à diáspora e percebe também ali uma espécie de capitalismo. Eis que igualmente houve capitalismo no antigo Oriente Médio. O interessante nome que Weber lhe dá é “capitalismo pária judeu”. Constituía-se da prática da usura e do comércio com os não-judeus, os homens que não pertenciam aos guetos judaicos. Lembrem-se de que a presença de um simples usurário é pretexto para que Weber transponha as relações capitalistas para as formações socioeconômicas passadas. Apesar de “sentirem-se em casa em várias formas de capitalismo”, os judeus “falharam ao desenvolver os traços específicos do capitalismo moderno. Isto é verdade para a Antiguidade, a Idade Média e os tempos modernos” (Weber, 1967: 345). Dada a especificidade do “capitalismo pária”, os judeus não anteciparam as linhas do capital moderno, estivessem eles entre os antigos, medievais ou modernos. Repete-se o que disse Ellen Wood no início do item, Weber analisa a história para encontrar barreiras ou incentivos ao desenvolvimento do capitalismo moderno ocidental[2].

Após toda esta exegese, não é de se admirar que as abstrações desmesuradas de Weber levem-no a estender as relações capitalistas até a distante China antiga:

Durante o Período dos Reinos Guerreiros e suas lutas por poder político, existiu um capitalismo de provedores de empréstimo monetário, que era politicamente determinado e aparentemente muito significativo. Altas taxas de lucro pareciam ser a regra. Na China, como em outros Estados patrimoniais, este tipo de capitalismo era costumeiro. Somando a estas transações politicamente determinadas, a extração e o comércio são mencionados como fontes de acumulação de bens. Dizem terem existido multimilionários sob a dinastia Han (no padrão do cobre). Quando a China unificou-se politicamente em um império mundial, como o orbis terrarum unificado do Império Romano, o resultado foi um óbvio retrocesso deste capitalismo, essencialmente vinculado à competição entre Estados. Por outro lado, o desenvolvimento do mercado capitalista puro, de busca por livres oportunidades de comércio, era apenas rudimentar (Weber, 1968a: 84).

Acreditamos não ser preciso rediscutir a natureza excessiva das projeções weberianas. À guisa de esclarecimento, a citada dinastia Han perdurou de 206 a.C. ao ano de 220 d.C.

Essas tamanhas abstrações, no entanto, são lidas da pena de autor que escreveu um dia: “nada seria mais perigoso que representar as condições da Antiguidade em uma feição ‘moderna’. Aquele que o faz subestima a variedade das formas que a Idade Média nos produziu, precisamente à sua maneira, no domínio do direito do capital” (Weber, 2001: 96). Estas palavras pertencem à obra que recebeu o titulo original de Relações agrárias na Antiguidade. Haveria perigo em se representar a Antiguidade a partir das categorias “modernas”; isso seria subestimar a variedade histórica. Sugere-se que, no livro de 1909, Weber será menos epidérmico do que no restante de sua extensa produção teórica; dessa vez, não se subestimará a variação das formas históricas. Apesar da aparente cautela, o ponto de vista burguês termina por prevalecer na leitura que Weber produz dos povos antigos neste estudo; é o que justifica a colocação de uma pergunta como esta: “a Antiguidade conheceu a economia capitalista a um grau que seja significativo do ponto de vista da história mundial?” (Weber, idem: 98). Quando Weber fala acerca do “ponto de vista da história mundial”, que se ouça, em verdade, do “ponto de vista da sociedade burguesa”. Com idas e vindas, Weber prescinde da cautela inicial e conclui afirmativamente que “o caráter amplamente ‘capitalista’ de épocas inteiras da história antiga (e precisamente das ‘maiores’ épocas) parece então de todo assegurado” (idem: 101). Épocas inteiras dos povos antigos foram de caráter “capitalista”. Com transparência meridiana, Weber reconheceu que é perfeitamente possível de assegurar a ocorrência das relações capitalistas em etapas distintas da evolução do ser social, se o conceito de capitalismo for “puramente econômico”, “se não se limite, não sem motivo, o conceito de ‘economia capitalista’ ao modo determinado de valorização do capital, isto é, a exploração do trabalho alheio mediante um contrato com o trabalhador ‘livre’, se não se inserirem determinações sociais no conceito” (Weber, idem: 101). Concordamos integralmente com o escrito weberiano: caso não se apreendam as determinações sociais do modo de produção capitalista, caso não se restrinja a produção capitalista à valorização do capital por meio da extração de mais-valia do trabalhador “livre” para vender sua força de trabalho, então é fácil de assegurar a presença do capitalismo na Antiguidade.

Na Antiguidade manifestam-se relações capitalistas. E do mesmo modo no feudalismo. Em História geral da economia, Weber começa o parágrafo que se chama “desenvolvimento capitalista do regime feudal” com o seguinte dizer: “o sistema feudal, determinado por fatores militares, e concebido, a princípio, para assegurar aos senhores a exploração das terras e da mão-de-obra, demonstrou uma forte tendência a orientar-se no sentido capitalista” (1968: 92). O sentido capitalista das relações feudais seria claro nas plantações sob a forma de “fazendas”. A peculiaridade do estudo weberiano sobre a economia dos latifúndios feudais é que os exemplos históricos trazidos às páginas iniciais são concernentes a Inglaterra dos séculos XVI e XVII, quando, em verdade, se avança o processo de acumulação primitiva do capital. Ao longo do texto, outros fatos são reportados, como a organização econômica da Rússia feudal, com os quais Weber tenta provar a existência das instituições capitalistas durante o feudalismo. A conceitualização equivocada coloca em xeque a estrutura da História geral da economia, um livro riquíssimo nos detalhes e, por isso, imprescindível para o conhecimento das relações sociais de produção historicamente constituídas.

A descoberta do “capitalismo medieval” não fez com que Weber se abstivesse de reproduzir a vulgata burguesa que entende a Idade Média como um interlúdio de trevas entre a Antiguidade e a “civilização burguesa moderna”. Weber sustenta que a queda do império romano implicou a queda da antiga economia urbana. Com o término do “ciclo do desenvolvimento econômico” dos povos antigos, “seu gênio criador parece completamente exaurido. Com o comércio, submergiu o esplendor dos mármores das cidades antigas e, com elas, todas as riquezas espirituais que nela repousavam: a arte e a literatura, a ciência e as formas refinadas do direito comercial antigo” (Weber, 2001: 82). O fim da grande civilização antiga implicou o retorno para o campo: “a civilização torna-se rural” (Weber, idem: 82). A economia perde seu caráter “burguês urbano” e parte rumo ao feudalismo, à autoridade despótica dos senhores fundiários. “Deste modo, desaparece o véu da civilização antiga e a vida espiritual da humanidade ocidental mergulha em uma longa noite” (Weber, idem: 82). Se um dos autores clássicos acordasse em qualquer dos mosteiros medievais, consideraria tudo estranho: “ele seria assaltado pelo odor do esterco do domínio feudal” (Weber, idem: 83). Entretanto, após a longa noite do feudalismo, o homem retorna à claridade diurna com a sociedade burguesa. Apenas com o desenvolvimento da burguesia urbana durante a Idade Média, “os velhos gigantes armaram-se de novas forças e o testamento espiritual da Antiguidade foi revivido à luz da moderna civilização burguesa” (Weber, idem: 83).

Afinal, as passagens acima são suficientes para demonstrar que, para a interpretação teleológica da história em Weber, haveria relações capitalistas em todo o tempo e lugar. Basta que alguém atue em busca do lucro para que o capitalismo esteja presente.
 
Falamos do capitalismo que Weber transpõe para o passado, mas não ainda daquele previsto para o futuro. Isso se clarifica de melhor forma com a análise que o sociólogo faz da burocracia. E aqui nos ocuparemos bastante do tema. A natureza teleológica que Weber imputa ao devir histórico não possuiria melhor estampa do que as suas teses acerca da “liderança burocrática”. A fundamental característica dos burocratas seria a extrema “racionalidade” com que executam as tarefas; o aparato burocrático desenvolve sua peculiaridade “com tanto maior perfeição quanto mais se ‘desumaniza’, vale dizer, quanto mais perfeitamente consegue realizar aquela qualidade específica que é louvada como sua virtude” (Weber, 1999: 213). Weber fala especificamente da “eliminação do amor, do ódio e de todos os elementos sentimentais, puramente pessoais e, de modo geral, irracionais, que se subtraem ao cálculo, na execução das tarefas oficiais” (idem: 213). Com este modelo de ação racional relativa a fins, “esta burocracia pode operar muito melhor do que qualquer outra estrutura de dominação” (Weber, 1974: 31).

O verdadeiro triunfo do cálculo burocrático é observado por Weber nas indústrias que se guiam pela organização “científica” do trabalho. Os delineamentos da “gerência científica” são descritos em Economia e sociedade:

O aparelho psicofísico do homem é aqui completamente adaptado às exigências do mundo externo, do instrumento, da máquina ou, em uma palavra, da função, despojado de seu ritmo dado por sua própria estrutura orgânica e submetido a um novo ritmo que, depois da análise sistemática das funções de cada músculo e da criação de uma ótima economia de forças, corresponde perfeitamente às condições do trabalho (Weber, 1999: 362).

Weber dá a este processo a denominação de “adestramento e treinamento do trabalho produtivo”. Em verdade, são as modalidades de exploração capitalista da força de trabalho que ficaram associadas ao nome de Taylor. Para Weber, são apenas métodos racionais de medição do “ótimo de rentabilidade” de cada trabalhador individual (cf. Weber, 1999: 362).

A burocratização da vida social é uma tendência que Weber qualifica como “inevitável”; em Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída, trata-se “do avanço irresistível da burocratização” (Weber, 1974: 32). Detém uma natureza teleológica e não haveria exército que impedisse o seu triunfo. E, caso fosse tentada uma revolução que instituísse uma sociabilidade para além dos limites do capital, Weber avisa: “a burocracia estatal reinaria absoluta se o capitalismo fosse eliminado. As burocracias privada e pública, que agora funcionam lado a lado, e potencialmente uma contra a outra, assim restringem-se mutuamente até certo ponto, fundir-se-iam numa única hierarquia” (idem: 31). Weber aprecia que, durante a vigência do capital, as burocracias estatal e privada atuam em paralelo e limitam-se reciprocamente; a derrocada do capitalismo só faria congregar as duas modalidades de burocracia, o que ampliaria a força do império burocrático. A eliminação do capitalismo instituiria o reino absoluto da burocracia. Na letra de Weber, a luta contra a burocracia seria então uma luta inglória, fadada ao fracasso.
 
Em meio às ideias de Weber, é necessário ter atenção sobre o que está em jogo quando se lê acerca da inexorabilidade da burocratização. Com efeito, o que Weber promove em sua teoria é uma generalização de seu próprio tempo histórico:
 
O ponto mais discutível de suas ideias é, sem dúvida, a afirmação — que é o cerne de sua “sociologia política” e o resultado de uma abstração injustificável e de uma “desistorização da História” — do destino burocratizado dos tempos modernos, ou seja, de que “o futuro pertence à burocratização”. Mas esse ponto, na verdade, nada mais reflete do que a generalização da experiência alemã por parte de Weber, em primeiro lugar para o capitalismo em geral e, depois, para o conjunto da humanidade (Nogueira, 1977: 146).

A teoria weberiana encoberta o fato de que a burocratização da vida social é uma característica do estágio monopolista do capital, em que não só a produção mas todas as esferas da cotidianidade são reificadas, o que demanda o controle burocrático, a manipulação do consumo inteiro dos homens. “A disciplina burocrática transcende o domínio do trabalho para regular a vida inteira de quase todos os homens, do útero à cova” (Netto, 1981: 82). O caso da Alemanha é ainda de maior dimensão haja vista o forte peso adquirido pelo Estado prussiano de Bismarck. As determinações de classe do movimento de regulação da vida cotidiana não são levadas em conta pela teleologia da história de Weber. A fase imperialista do capital particularizada na Alemanha é o período histórico que Weber transforma em inevitável necessidade, encontrando antecipações suas desde a Antiguidade (Egito, Roma, China, Pérsia, Esparta, etc.) e fazendo-o perdurar até as sociedades do futuro.

Ao contrário do que relata acima Marco Aurélio Nogueira, a generalização de um período histórico por parte de Weber não é uma “abstração injustificável”. Não paira a menor dúvida de que seja uma enorme abstração; porém, que se justifica pelo fato de que Weber atuava dentro das fronteiras objetivamente postas pelas lutas de classe de seu tempo. Para a burguesia do pós-1848, qualquer abstração era justificável caso fosse conveniente à conservação do estado de coisas.

Uma constante no processo de decadência ideológica da burguesia é o convite à resignação. Com Schelling, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e outros decadentes, foram vistas algumas formas de se educar o homem para a passividade. À sua maneira, Weber apresenta uma forma de resignação pessimista e de apologia indireta do capital: a burocratização da vida moderna é uma “jaula de ferro” que, embora aprisione os indivíduos, não é reversível. A racionalidade da vida social caminha sem perturbações e que os homens deixem-se levar. São os “malefícios” da sociedade burguesa alçados à condição humana inelutável.
 
No passado (Antiguidade e Idade Média), Weber via formas do capitalismo que impediam ou antecipavam os traços racionais da “ação de se obter lucro”; no presente, está em vigência o capitalismo de específico caráter racional; e no futuro, a racionalidade burocrática do capital persistirá em vigor.

É profundamente mistificador perder de vista o caráter teleológico que Weber atribui à racionalidade do capital quando se analisa a sua relação com a tese do fetichismo da mercadoria descrita por Marx. Para o bem dos fatos, deve-se rejeitar categoricamente a seguinte observação: “entre a ‘racionalização’ de Weber e a ‘alienação’ de Marx, a distância não é grande” (Colliot-Thélène, 1995: 48). O inverso é o verdadeiro: a distância é abismal. Dissemos acima que Weber apreende traços imediatos do processo de reificação do cotidiano no período do capitalismo monopolista, transformando-os em eternos. Marx abarca a totalidade contraditória das relações capitalistas dentro de seu processo histórico de gênese, desenvolvimento, crise e possibilidades concretas de superação. Weber não pretendia unir a ciência à ação, mas, se fosse o caso, uma crítica técnica reparadora é o máximo de prática que as suas teses permitiriam; a crítica resignada ao capital não pretende a sua superação, senão sua apologia indireta. É ocioso recordar que Marx concebe uma autêntica crítica revolucionária à sociedade burguesa; a transformação radical do modo de produção capitalista é o máximo de ação prática que as teses marxistas permitem. Colliot-Thélène não considera esses grandes pontos de discordância ao afirmar que a racionalização em Weber não distancia em muito da alienação em Marx.

A socióloga não é única a afirmar o íntimo parentesco entre Marx e Weber. Beetham sugere que existem “ecos” do “conceito de alienação de Marx” em Weber no instante em que este último afirma que a racionalização assume “forças e valores próprios”, independentes do homem (cf. Beetham, 1974: 71). Há inclusive quem sustente que é “consensual” a afinidade entre os dois: “[há] um consenso (embora frágil) que existe um certo paralelo entre a visão de Weber sobre a racionalidade e a visão de Marx sobre a alienação, que existem muitos pontos pacíficos entre Marx e Weber na conceitualização do capitalismo” (Holton & Turner, 1990: 17, 18). Nunca é demais recordar que este consenso não nos inclui.

Até mesmo nos instantes que Weber parece reproduzir algumas determinações capturadas por Marx, as diferenças dos pontos de vista de classe ganham relevo. Quando parece que a teoria da racionalização burocrática tangencia em alguns pontos o processo de fetichização do capital descrito por Marx, Weber é incapaz de ultrapassar o “círculo familiar dos objetos”, assim expressaria Schiller. Prestem atenção na maneira pela qual, ao estudar as condições dos trabalhadores nas fábricas alemãs, Weber chega perto de processos descritos por Marx como a transformação do operário em apêndice da maquinaria:

Na questão da “rentabilidade”, a capacidade de rendimento do trabalhador é considerada no mesmo sentido que a rentabilidade de uma classe qualquer de carvão ou de um mineral ou de qualquer outra “matéria prima”, de uma fonte de energia ou de uma determinada máquina. O trabalhador é aqui, em princípio, nada mais que um meio de produção rentável..., com cujas capacidades e “falhas” há que se contar, como se conta com as de qualquer meio de produção mecânico (Weber, 1999b: 131).

Weber chega perto das determinações do capítulo sobre a maquinaria de O capital, mas não as reproduz. Faltou dizer que, embora em aparência possa ser tratada como um “meio de produção”, um apêndice da maquinaria, a força de trabalho é, em verdade, a mercadoria particular sem a exploração da qual não existiriam as relações de produção capitalista. O trabalhador é um “apêndice” que gera mais-valor, o que nenhum meio de produção poderia efetuar; não se extrai mais-trabalho de um meio de produção. A “rentabilidade” da força de trabalho será sempre imperiosa ao capital. Ao contrário do argumento de Weber citado acima, as falhas da rentabilidade da força de trabalho possuem uma grandeza que não se compara com as falhas da rentabilidade do carvão ou de qualquer matéria prima. São estas as contradições essenciais que movem o processo. Para o capital, a classe trabalhadora nunca foi “nada mais que um meio de produção rentável”.

Nesta pesquisa sobre os trabalhadores alemães, quando se ocupa da extensão da jornada de trabalho, Weber põe às claras as diferenças entre o que chama de racionalização burocrática em face das formas capitalistas de alienação apreendidas por Marx. Nesse caso, a interrogação de Weber respeita à influência do aumento ou da diminuição da jornada sobre o “rendimento” do trabalhador; que espécie de mudança na jornada causa a “fatiga psicofísica” na classe operária. Menciona o exemplo a fábrica de tecelagem Zeiss que reduziu a jornada e o trabalho “rendeu” tanto ou inclusive mais do que uma jornada ampliada (cf. Weber, 1999b: 143). A propósito do assunto, escaparam a Weber elementos importantes que constam em O capital: a extensão da jornada e sua divisão entre o custo de reprodução da força de trabalho e o mais valor produzido; a ampliação ou redução da jornada de trabalho e a sua relação com a transformação da mais-valia absoluta em relativa; os métodos de exploração de mais-valia relativa caso a jornada esteja limitada por lei (incremento da produtividade do trabalho, o exército industrial de reserva, a introdução de novidades tecnológicas, etc.); a passagem da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital; a intensificação do trabalho; as melhorias ou os retrocessos do custo de reprodução da força de trabalho de acordo com as lutas travadas entre capital e trabalho, e outros. Se não houver grande distância entre a “racionalização” de Weber e a “alienação” de Marx, é de se explicar o porquê do abissal intervalo entre o que os autores disseram sobre a jornada de trabalho.

Disso não resulta que Weber não tenha capturado determinadas formas de resistência do trabalhador face aos avanços do capital. O debate sobre a “autorrestrição” cumpre um papel importante neste seu estudo empírico sobre a classe trabalhadora alemã. O trabalhador impõe-se conscientemente um limite de produção; restringe o próprio trabalho para que não dê maiores ganhos ao capital. A autorrestrição demanda um certo grau de consciência dos seus interesses por parte do trabalhador em antagonismo aos interesses do capital. Weber afirma que “a ‘autorrestrição’ intencional e consciente, não apenas involuntária e dependente do ânimo, dá-se em todos os lugares em que exista algum sentimento de solidariedade entre os trabalhadores ou em uma parte significativa deles, a despeito da organização sindical” (1999b: 157). Weber capta uma modalidade de resistência do operário e, ademais, atrela esta resistência à solidariedade de classe. Contudo,o sociólogo não transgride as fronteiras colocadas para sua classe; não vislumbra que a resistência espontânea do trabalho frente ao capital possa evoluir para a política revolucionária. Não era de se esperar que Weber pusesse tais temas em pauta de discussão. Pois, é evidente, logo nos capítulos introdutórios a Sociologia do trabalho industrial, declara-se que a empresa monopolista moderna “transformou o rosto espiritual do gênero humano quase até não reconhecê-lo e seguirá transformando-o” (Weber, idem: 74). Que resistam os trabalhadores porque o capitalismo burocrático modelou e seguirá modelando a face do gênero humano.

Lukács sempre teve enorme prudência ao traçar paralelos de Marx com os filósofos burgueses. Na análise da relação entre Marx e Vischer, Lukács apreende questões metodológicas que podem servir ao presente debate. Sabe-se que Marx acompanhou atentamente a produção teórica do esteta irracionalista. Lukács encontra algumas ressonâncias da leitura de Vischer na obra de Marx, como, por exemplo, nas passagens sobre os mitos gregos nos Gründrisse. Obviamente, não seria a circunstância para reproduzir a discussão completa; o decisivo é reter a afirmação de Lukács quando compara os trechos de Marx que parecem nascer da influência de Vischer: “é impossível não notar que as duas exposições apresentam certos traços comuns, ainda que sejam de natureza muito geral” (1957: 297). Isso, no entanto, não é suficiente para que Lukács convença-se de que Marx corrobora com a estética irracionalista de Vischer: “certamente o confronto entre os autores revelará ao mesmo tempo de modo mais explícito a radical diferença entre as duas concepções, o seu diverso fundamento de classe e, por isso, a sua linha de desenvolvimento diametralmente oposta” (Lukács, 1957: 297, 298). Daí, Lukács aprofunda o cotejo entre os dois, o que evidencia a mencionada “radical diferença”. Nas mãos de Marx, as influências de Vischer mudam de caráter, ganham uma “linha de desenvolvimento diametralmente oposta”.
 
É esta a postura metodológica a ser seguida quando se trata da relação entre Marx e Weber. Os prováveis ecos de Marx em Weber adquirem uma “linha de desenvolvimento diametralmente oposta”. A “racionalização” de Weber e a “alienação” de Marx distam remotamente; discutiram a introdução da maquinaria no processo produtivo, a jornada de trabalho, as formas de resistência do trabalho ao capital, mas assumiram pontos de vista de classes distintas.

É preferível que se descartem os paralelos com Marx e que se procurem com autores diversos os laços da interpretação de Weber acerca do capitalismo burocrático. Ao concluir o capítulo sobre Weber em A destruição da razão, Lukács diz que o sociólogo faz a ponte entre a filosofia imperialista do neokantismo e o existencialismo (cf. 1968: 500). A correlação é exata, a nosso ver. Também em Heidegger a situação do capital monopolista é eternizada para todo o ser social, com a peculiaridade que aqui se transforma na condição ontológica do homem. A angústia dos tempos do estágio imperialista do capital é um dos elementos que constituem a ontologia existencialista: “aquilo com que a angústia se angustia é o ‘nada’ que não se revela ‘em parte alguma’. Fenomenalmente, a impertinência do nada e do em parte alguma intramundanos significa que a angústia se angustia com o mundo como tal” (Heidegger, 1997: 250). Para Heidegger, o princípio motivador da angústia é o mundo enquanto tal e não o mundo do capital monopolista. Kierkegaard havia escrito que um pouco de eternidade compunha o desespero humano e Heidegger afirma que o homem jamais supera o estado de angústia. O homem está condenado à angústia. É a resignação frente à fase imperialista do capital compartilhada entre os existencialistas e Weber. Efetivamente, as circunstâncias históricas não são de todo distintas. A segunda e completa edição de A ética protestante e o espírito do capitalismo é de 1920 e a publicação de O ser e o tempo é de 1927. Respondem à mesma particularidade histórica. Não se duvida que haja especificidades entre Weber e os existencialistas (e mesmo entre os existencialistas; que se comparem os franceses com os alemães). Mas todos fincam estacas no mesmo território político-teórico.
 
Lukács estabelece a correlação entre o neokantismo de Weber e existencialismo de Heidegger que, a nosso parecer, é correta. No terreno do pensamento burguês, Weber é ponte de transição que conduz a Heidegger. Em contrapartida, existe novamente em Colliot-Thélène a tendência de equiparar as teses de Weber acerca do Estado burocrático com as de Hegel; não só Marx mas igualmente Hegel seria correlato de Weber quanto à burocracia. Com efeito, é a tese central do livro O desencantamento do Estado: de Hegel a Weber, de Colliot-Thélène. As palavras introdutórias já exibem a tendência: “as similitudes que existem entre as análises hegeliana e weberiana do Estado moderno foram raramente assinaladas. São, entretanto, completamente perceptíveis” (Colliot-Thélène, 1992: 07). A socióloga discorre a propósito das semelhanças dos dois autores a respeito do funcionalismo estatal. Por exemplo, segundo ela, em Weber também haveria “o tema da dedicação ao bem público, igualmente presente, e fundamentalmente, no Estado hegeliano” (idem: 15). Todo o texto direciona-se no sentido de construir um parentesco entre a “filosofia política” de Hegel e a “sociologia da dominação” de Weber.

Colliot-Thèléne acredita ter encontrado o grande trunfo de seus argumentos no fato de que Hegel teria percebido o desprendimento da esfera administrativa estatal em face das demais esferas societárias. Tal desprendimento autônomo seria posteriormente analisado em larga escala por Weber. É feito o vínculo: “Hegel, como vimos, antecipou esta dissociação das práticas sociais que está no coração do processo de ‘racionalização’ descrito por Weber” (Colliot-Thèléne, 1992: 261). Ali estão as similitudes perceptíveis entre os pensadores. Apesar de ressalvar certas distinções metodológicas (o projeto hegeliano de uma filosofia da história que nunca esteve nos planos weberianos), este foi o argumento com o qual Colliot-Thèléne procura convencer-nos das afinidades teóricas entre o dialético idealista e o positivista neokantiano: a burocracia desprende-se enquanto classe autônoma na gerência cotidiana dos negócios do Estado.

Na verdade, a socióloga francesa atem-se a aspectos formais de Princípios da filosofia do direito e de Economia e sociedade. Se ambos teorizaram sobre a burocracia desencantada, as suas respectivas teses assumem funções históricas bem diversas; refletem contextos distintos. Tomando de novo o modelo de Lukács ao estudar Marx e Vischer, veremos que as similitudes formais desaparecem ao analisarmos o conteúdo histórico dado ao Estado burocrático em Hegel e em Weber.

Bom leitor de Hobbes, Hegel entendia a sociedade civil como “o campo de batalha dos interesses individuais de todos contra todos” (1976: 265). No âmbito da sociedade civil, os homens portam-se conforme seus interesses mais imediatos, particulares. A manifestação de tais particularidades dá-se nas “corporações”. O Estado, emseu turno, representa os interesses universais, “o ponto de vista mais elevado”. É justamente a burocracia, a “classe de funcionários”, que está em possibilidade de engendrar a universalidade em meio às particularidades da sociedade civil; o funcionalismo é o portador da universalidade do Estado. É a generalidade da burocracia versus o imediatismo das corporações civis. Leiamos da letra de Hegel a sua definição da classe burocrata: “a classe universal ocupa-se dos interesses gerais, da vida social” (idem: 185). O ofício do funcionário é o interesse universal da razão. Para que esteja em condições de atuação, a classe universal deve ser “dispensada do trabalho direto requerido pelas carências, seja mediante a fortuna privada, seja mediante uma indenização dada pelo Estado que solicita a sua atividade, de modo que, nesse trabalho pelo universal, possa encontrar satisfação o seu interesse privado” (Hegel, idem: 185). É imperativo que o burocrata esteja acima das carências da sociedade civil para que possa resolver os conflitos particulares em nome da razão de Estado. Eis que a burocracia desprende-se, autonomiza-se das esferas sociais.

Os juízos de Hegel a propósito da “classe universal” suscitaram o seguinte comentário de Marx: “os fins do Estado convertem-se em fins de escritório e os fins de escritório em fins do Estado. A burocracia é um círculo de que nada pode escapar” (2002a:120). Logo adiante: “o Estado só existe na forma de diversos espíritos burocráticos fixos,cuja única coerência é a subordinação e a obediência passiva” (Marx, idem: 121).

O Estado de Hegel é uma projeção, um ideal a ser alcançado, um dever ser. É um conceito construído a partir das potencialidades do seu presente exacerbadas especulativamente. Diz Marx: “constrói-se uma categoria e conforma-se em encontrar uma existência que lhe corresponda. Hegel concede à sua Lógica um corpo político; o que não dá é a lógica do corpo político” (idem: 122). Ainda na esteira de Feuerbach, o jovem Marx procura resolver as mistificações hegelianas a partir de um ponto de vista materialista, mesmo que neste instante de sua formação não tenha descoberto a chave metodológica da crítica da economia política.

A teoria política de Hegel é a principal manifestação da contradição entre o seu método, que afirma a historicidade das relações sociais, e o sistema, que aponta para um “fim da história”.

Lukács diz que somente se pode entender a ideia de que o Estado é a realização da razão ao se reter a situação histórica da Alemanha de Hegel. Diante da fragmentação das nações germânicas, o Estado poderia engendrar a unidade nacional. “Só deste ponto de vista o Estado aparece como algo que se encontra para além de todos os contrastes da sociedade civil” (Lukács, 1975: 511). Assim, Hegel pensa o Estado como a encarnação unitária das figuras do espírito; o filósofo sempre acreditou que as contradições da sociedade pudessem ser resolvidas pela intervenção do Estado. E, para Hegel, a burocracia é a implementação do Estado burguês, a consolidação revolucionária deste Estado. Pode-se dizer que, segundo os Princípios da filosofia do direito, a maturação da revolução burguesa ocorre com o desenvolvimento da casta burocrática. Hegel era um ideólogo do período revolucionário da burguesia, do período heroico do nascimento do Estado burguês em face das relações feudais. A filosofia do direito de Hegel é a tentativa de elevar a conceito o Estado da revolução francesa (em especial do período napoleônico).

Inteiramente distante é a situação histórica de Weber. A sua apologia indireta ao Estado burocrático é o embate contra a possibilidade de ruptura deste Estado por parte da classe trabalhadora. Tanto Weber quanto Hegel estavam a favor do Estado burocrático burguês; porém, com a determinante diferença de que isso significava em Hegel uma tomada de posição contra a miséria da Alemanha aristocrática, enquanto que em Weber implicava a luta a favor da conservação da ordem. Entre ambos, há a mudança qualitativa da burguesia em direção à manutenção do estado de coisas. Entre os Princípios da filosofia do direito e Economia e sociedade há o surgimento do novo sujeito revolucionário, a classe trabalhadora.

Colliot-Thèléne não compreende que a advocacia de Hegel favorável ao Estado burguês revolucionário não é passível de equalização com a defesa do Estado burguês conservador de Weber. A identificação só é possível se nos atermos aos contornos mais abstratos do pensamento dos dois teóricos. A linha histórica que parte de Hegel e conduz a Weber somente pode ser construída sob aspectos puramente formais. Para alguém que tenha lido e entendido as teses de Lukács em A destruição da razão, soa extremamente problemático traçar uma linha de pensamento que chega até Weber desde Hegel e não de Schelling. Sabemos que a herança das grandes aquisições da dialética hegeliana não está em Weber, senão em Marx. Com mordaz ironia, Isaac Deutscher (1973) disse que, se houver algum parentesco entre Hegel e Weber, este último seria um “neto pigmeu” daquele primeiro.

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Notas:
[1] Quanto à existência do “proletário de tipo moderno” em Roma, Weber reformulou suas ideias juvenis e, em 1909, escreveu que, na Antiguidade, “enquanto classe, o proletariado moderno não existia” (2001: 92). Pelo menos enquanto classe, Weber não mais projetou o proletariado moderno para o passado antigo.
[2] Marx também abordou as formas antigas de aquisição de lucro. Para Weber, os usurários e comerciantes antigos constituíam manifestações do sistema capitalista. Ao contrário, Marx disse que “a forma comercial e a forma a juros são mais antigas do que a da produção capitalista, do que o capital industrial, forma básica da relação capital enquanto domina a sociedade burguesa” (1974a: 279). A produção capitalista não engendra estas formas de aquisição de lucro: “encontra estas formas mais antigas na época de sua constituição e de sua geração, encontra-as como prévias pressuposições, que não são todavia pressuposições postas por si próprias, formas de seu processo de vida” (Marx, idem: 279). A usura e o comércio não são gerados pela produção capitalista; em seu processo de constituição histórica, as relações de produção de capital já se deparam com estas formas de lucro. De fato, são pressupostos para o metabolismo capitalista: do dinheiro acumulado com a usura e o comércio, investe-se na compra de força de trabalho; então, usurário e o comerciante transformamse em capitalistas industriais. Contudo, para que isso ocorra, há que se contar com determinadas circunstâncias históricas: o acúmulo de dinheiro dos usurários e comerciantes é meio para a constituição deuma nova sociabilidade “somente numa época em que se encontram disponíveis as demais condições para a produção capitalista — trabalho livre, mercado mundial, dissolução do vínculo social antigo, desenvolvimento do trabalho até determinado nível, desenvolvimento da ciência, etc.” (Marx, idem: 328).Uma vez desenvolvida a produção capitalista, as antigas formas de obtenção de lucro subordinam-se à nova estrutura societária. Indubitavelmente, é uma abordagem teórica diversa desta que estudamos em Weber.
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CARLI, R. György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 119-136.
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quinta-feira, 23 de julho de 2020

Tönnies e o nascimento da sociologia alemã


por Ranieri Carli

Em terras alemãs, os eventos ganharam um rumo particular. Como a burguesia toma o poder político baixo ao coturno prussiano de Bismarck, “a sociologia alemã nasce, pois, dentro dos marcos da apologética derivada desta transição” (Lukács, 1968: 474). Isso implica que está posta para a sociologia alemã uma série de tarefas distintas daquelas que se observam na França e na Inglaterra. Lukács diz que a apologia ao Estado prussiano fazia com que os problemas da vida social fossem identificados como meras questões jurídicas de Estado; bastava a intervenção do Estado (diga-se, de Bismarck) para que se decidisse o assunto.
 
Esta era a ideia do historiador e político Heinrich Treitschke, que predominava nos primórdios da sociologia alemã (cf. Lukács, 1968: 474). Efetivamente, Treitschke defendia que “o Estado demanda obediência: suas leis devem ser mantidas, forçosamente ou não. É um passo adiante quando a silenciosa obediência dos cidadãos torna-se um consenso racional interno, mas este consenso não é absolutamente necessário” (s/d: 12). O consenso liberal não é necessário; basta a intercessão do Estado. Um pouco depois no texto, o ideólogo de Bismarck assevera que “o Estado diz: para mim, é indiferente o que pensas sobre o assunto, mas deves obedecer” (Treitschke, idem: 13). Exige-se, portanto, a obediência servil ao Estado imperialista. Treitschke estava longe de ser um liberal democrata.

Tudo se submetia ao Estado prussiano: esta era a ideia hegemônica naqueles anos, conforme os estudos de Lukács. Por esta razão, a sociologia ficava momentaneamente sem objeto na Alemanha. O que poderia ser enfocado pela sociologia, na verdade, resolvia-se lançando mão da teoria do direito e da política.

A situação muda de figura quando há o florescimento das lutas de classes entre burguesia e operariado; “nesta nova situação, um grupo de economistas alemães (Brentano, Schmoller, Wagner e outros) trata de estender os domínios da economia nacional até convertê-la em uma ciência da sociedade” (Lukács, 1968: 474). O operariado torna-se força ativa no palco político da Alemanha; organiza-se no partido social-democrata. Essa nova objetividade histórica é a demanda à qual a sociologia virá a conceder respostas. A ciência burguesa volta seu foco para o movimento do trabalho; reage a ele. Para que não fiquemos no purificado plano das ideias e, assim, mistificarmos todo o processo, deve-se dar a devida atenção às particularidades históricas da Alemanha de então:uma sociologia fazia-se necessária para dar conta da “questão social”, tratando-a empiricamente, autonomamente, sem se reportar às contradições econômicas, como designa o método das ciências vulgares.

O positivismo não influencia esta sociologia produzida na Alemanha, pelo menos não em sua versão clássica comteana. Dada a herança de Kant entre os teóricos alemães, quando aspectos positivistas transpõem os limites da fronteira com a França, eles são filtrados por um subjetivismo kantiano. O pensamento alemão sempre manteve uma atitude de reserva ao positivismo clássico. E, no momento em que nasce a sociologia, os mandarins alemães já estão parcialmente imunizados contra a cientificidade naturalista da escola de Comte, Spencer e Durkheim. Produz-se, na verdade, um positivismo peculiar à Alemanha, de tipo neokantiano, que geralmente mantém a rígida separação entre ser e dever ser e a fragmentação entre as disciplinas, ainda que não conceba as sociedades enquanto um todo orgânico.
 
Lukács estabelece a obra de Ferdinand Tönnies enquanto o grande momento da nascente sociologia alemã. Em 1887, Tönnies publica Comunidade e sociedade. Essa é uma amostra de como a sociologia alemã elabora o positivismo à sua maneira. O sociólogo distingue entre comunidade e sociedade fundamentando-se em categorias das ciências naturais: a primeira seria um corpo cujos membros estariam agregados de forma homogênea, enquanto a segunda seria uma formação mecânica, o que pressupõe a existência plural de centros de força (cf. Tönnies, 1947: 19). A sociedade viria substituir cronologicamente a comunidade; é a leitura que Tönnies fazia do surgimento da sociedade burguesa à época de Comunidade e sociedade.

Não é ocioso lembrar que, concomitantemente, Durkheim estabelecia distinção similar no livro Divisão do trabalho social, também se valendo dos usuais paralelos com as ciências da natureza.

A particularidade de Tönnies reside no fato de que a sua recepção de Marx não é de rejeição. As teorias de O capital sobre a transição da simples cooperação à grande indústria são qualificadas como “magistral análise” (Tönnies, 1947: 97). Por certo, Marx servia até certo ponto para a crítica romântica e reformadora que o sociólogo pretendia fazer ao capital. Para Tönnies, a sociedade é uma “construção artificial” que dista longinquamente da “unidade perfeita” de uma autêntica comunidade; o romantismo está posto nestes termos: “comunidade é a vida em comum duradoura e autêntica; sociedade é só uma vida em comum passageira e aparente” (Tönnies, idem: 21). A fim de enaltecer o “espírito de união” perdido com o advento da sociedade, o sociólogo recorria a Marx, muito embora subtraísse o aspecto revolucionário da crítica marxiana à economia política.

A aceitação de um certo Marx particulariza Tönnies em respeito a seus contemporâneos. Tönnies até mesmo retém a teoria do valor-trabalho: “coisas são consideradas iguais na medida em que cada objeto ou cada quantidade de objeto detém uma certa quantidade de trabalho necessário” (1947: 70). O autor de Comunidade e sociedade chega a defender Marx diante das críticas da escola austríaca de economia (cf. Tönnies, idem: 115, 116). Apesar de delimitar o valor-trabalho à sociedade burguesa (quando em verdade corresponde à totalidade extensiva da história), não há como não notar uma coragem em Tönnies no instante em que afirma o trabalho como medida do valor, em plena vigência do estágio monopolista do capital. Enquanto seus contemporâneos estão apartando da teoria os inconvenientes ao capital, é possível de se ler na obra de Tönnies que a produção de valores está a cargo da classe trabalhadora; trata-se de um verdadeiro triunfo da objetividade, embora Lukács não lhe dê o devido crédito[1].

Dada a sua condição de classe, pode-se supor que Tönnies não leve às últimas consequências a constatação de que a classe produtora é o operariado. A sua crítica ao capital retira suas armas da cultura [Kulturkritik]; é uma crítica à hostilidade da economia capitalista às formas elevadas de objetivação (arte, filosofia).

Ao longo de Comunidade e sociedade, Tönnies presta tratamentos diferentes às duas formas societárias: ao analisar a comunidade, o sociólogo privilegia os aspectos culturais, instituições como o matrimônio, a família, a autoridade política, a nobreza de sangue, a honra, etc; quando o assunto é a sociedade, põe-se a discorrer sobre a economia, a divisão do trabalho, a produção de valores, a mercantilização da vida social, o dinheiro, o lucro, a desapropriação dos meios de produção dos trabalhadores, a mais-valia, etc. Parece que o momento econômico vem a nascer com a sociedade burguesa. Não são extraídas maiores determinações da relação de exploração entre o senhor feudal e o servo da gleba; não se leva em conta a economia quando se aborda a comunidade e não se considera acultura na análise da sociedade. Tönnies não é neutro na escolha do método: de um lado,fazem-se um elogio à cultura comunitária e, de outro, um ato de repúdio à economia da sociedade.

No livro de 1887, o aspecto contraditório da sociedade é ressalvado para ser e afirmar a “unidade perfeita”, o “consenso”, a “reciprocidade de relações” da antiga comunidade. Biógrafo de Hobbes, Tönnies retira do iluminista inglês a noção de que em sociedade o homem é o lobo do homem; de que os indivíduos agem conforme seus interesses mais particulares, mais imediatos na formação societária. Enquanto que em sociedade, “cada qual está para si somente e em estado de tensão contra todos os demais” (Tönnies, 1947: 65), em comunidade, “consenso e concordância são também uma mesma coisa: vontade comunal em suas formas elementares; como consenso em cada uma de suas relações e efeitos, como concordância em sua força e natureza total” (Tönnies, idem: 41).

Já em Princípios de sociologia, de 1931, Tönnies fala não em “sociedade” mas sim em sociedade burguesa; afinal, como diria Aristóteles, o sociólogo dá o nome certo à coisa. Apesar de proporcionar algumas novidades em face de outros textos, nos Princípios de sociologia, o elemento romântico não se perde na caracterização da burguesia:
 
De todos os elementos favorecidos, em conexão parcial com os subsistentes do estamento senhorial, forma-se uma “classe” dominante, que se diferencia do estamento senhorial por não ser fechada por natureza, senão aberta, e por que se destaca menos da grande massa do povo por signos exteriores como nome, título e tradições (Tönnies, 1946: 109).

Entre todos os aspectos que poderiam diferenciar a burguesia dos senhores feudais, Tönnies optou pelo prosaísmo da classe dominante moderna. Os burgueses não detêm o nome, o título e as tradições que os diferenciariam da grande massa proletária. A burguesia não porta a “coloração de nobreza”; ela é passível de se confundir com a massa do povo. Ainda que Tönnies não caia na franca reação, é indubitável que um reacionário convicto como Nietzsche corroboraria com boa parte de tais ideias esboçadas pelo sociólogo.

A maneira de Tönnies conduzir a crítica à burguesia é cheia de particularidades (que não foram deixadas de lado na maturidade dos Princípios de sociologia). O seu método termina por conceber as formações sociais de modo supra-histórico: nas tipologias da sociedade não se compactuam elementos que pertencem às comunidades e vice-versa. O sociólogo compõe assim dois imensos blocos históricos, opostos rigidamente, a saber, o capitalismo e o pré-capitalismo.

Lukács analisa os resultados que decorrem deste tipo de destruição da razão:
Esta exaltação anti-histórica de conceitos derivados, por sua origem, da análise concreta de formações sociais concretas, não só dilui estes conceitos..., senão quer e força, ao mesmo tempo, seu caráter anticapitalista romântico. A “comunidade” se converte assim na categoria que abarca o campo de todo o pré-capitalista, na glorificação dos estados “orgânicos” primitivos e, ao mesmo tempo, na consigna contra a ação mecanizadora e anticultural do capitalismo (1968: 483).
De um lado, a comunidade a abarcar o todo do passado pré-capitalista — a despeito das particularidades sócio-históricas; de outro, a sociedade, que representa a emergência da sociabilidade burguesa. É uma antinomia lógica em que A não detém determinações de B. Os dois conceitos estão opostos entre si, sem mediações; não se tomam em conta aspectos de transição histórica entre as duas modalidades societárias; onde se inicia uma delas, termina a outra.

Tönnies era um romântico resignado; olhava para a história passada com saudades no mesmo instante em que acreditava que a sociedade burguesa e a substituição das comunidades eram inevitáveis:
Nesse aspecto, foi influenciado por Marx. Não há dúvida, em sua mente, de que o capitalismo era a principal força que levaria da comunidade à sociedade, do comunismo primitivo ao socialismo moderno. A agricultura, a guilda da cidade pequena, as tradições legais comunais e mesmo a própria família tinham de ser sacrificadas para que houvesse mercados de âmbito mundial, padrões racionais de organização social, produção em massa e um exército de trabalhadores sem raízes a ser explorados nas fábricas. Não tinha a menor dúvida sobre isso e não podia tolerar frases “idealistas” destinadas a disfarçar essas realidades (Ringer, 2000:163).
É verdade que Tönnies qualificava como idealismos “condenados ao fracasso” quaisquer empenhos em reconstruir as relações comunitárias do modo como estavam postas no antigo regime. A restauração da “unidade perfeita” conduziria a uma outra modalidade de cooperação distinta das medievais e antigas.

Há uma importante passagem dos Princípios de sociologia em que Tönnies clarifica a sua posição em face das lutas de classes entre burguesia e proletariado; declara que não se retorna para o passado, muito embora lamente o espírito cooperativo perdido na modernidade. Por isso, põe-se a favor da luta pelo “novo”; põe-se ao lado do “novo e jovem” representado pelos trabalhadores e contra o velho burguês, sob a condição que o novo oriente-se para a constituição de um re-atualizado espírito de unidade, de cooperação. Tönnies realmente não leva às últimas consequências a constatação de que a produção de valores está a cargo da classe trabalhadora. Escutemos de sua própria voz:
O novo e o jovem [os trabalhadores] constituem precisamente um esforço em direção à comunidade, representando concretamente a tendência, condenada sempre ao fracasso, de restabelecer circunstâncias passadas e mortas; porém também representam mais frequentemente e com melhores perspectivas de êxito uma tendência em direção ao estabelecimento de uma nova base econômica que quer diferenciar-se por princípio da capitalista e societária — mesmo quando tenha igualmente necessidade do capital. Neste sentido, são de grande importância, antes de tudo, as tão reiteradamente mencionadas organizações cooperativas, as quais partem nada menos que do princípio que faz da produção de valores de uso um objeto imediato do trabalho societário; é dizer, de um princípio que afirma a guerra ao valor de troca, cuja generalização devem-se os enormes êxitos do capitalismo, e que trata de conciliar..., pelo menos, o capital e o trabalho, procurando que o próprio trabalho domine e tome em suas mãos o capital em forma de instrumentos que lhe são necessários (Tönnies, 1946: 342,343).
O repúdio ao prosaísmo burguês levou Tönnies a aliar-se ao operariado, o que já era indicado pela sua apropriação da teoria do valor-trabalho. Entretanto, o intento não era a revolução. Tönnies pretendia a reforma, a conciliação entre trabalho e capital. A restauração da “unidade perfeita” da comunidade não implica a volta ao passado, senão a reforma do presente rumo à constituição de cooperativas; nelas, as características mais lesivas da divisão capitalista do trabalho seriam abrandadas.

Não existe, portanto, nenhum paradoxo entre a tomada de partido favorável à classe trabalhadora e a crítica de caráter romântico à sociedade burguesa; era um romantismo que se desvinculava da restauração reacionária. O novo e o jovem da luta proletária significam o estabelecimento contemporâneo da comunhão corrompida pela sociedade burguesa. Tönnies resigna-se com a instauração da sociedade burguesa e procura amenizá-la com as reformas que não transbordem para além das fronteiras do capital.

Os problemas aumentam quando Tönnies associa às formas societárias duas noções de “vontade” — o que Ringer chamará de “dicotomia fundamental” da obra de Tönnies (cf. Ringer, 2000: 160). Tönnies pretende estabelecer a seguinte diferença: uma espécie de “vontade essencial” fez vir ao mundo as comunidades e toda a sua coesão interna, enquanto que uma “vontade arbitrária” produziu a sociedade desagregadora (cf. Tönnies. 1947: 119). De acordo com o sociólogo, “a comunidade parte da unidade perfeita da vontade humana” (1947: 25). Tönnies hipertrofia a subjetividade criadora e atribui a ela o papel instituidor da dinâmica social. O sujeito torna-se uma entidade supra-histórica que funda as formações societárias com a sua vontade[2].

O contraditório de sua resignação romântica é realçado tendo em vista que Tönnies dava um grande relevo à “vontade subjetiva”. Se bastasse que os indivíduos desejem a restauração do sentimento comunitário, não haveria por que a resignação. Todavia, o estudo do movimento do capital ensinou a Tönnies que vontade não é onisciente ou onipotente; foi obrigado a constatar que a dinâmica social é muito mais abrangente do que os indivíduos isoladamente, do que as vontades e os interesses particulares do sujeito. Ainda que quisesse, a “vontade essencial” por si só não traria de volta o espírito comunitário; não foi por outra razão que Tönnies engajou-se na luta política pelas reformas que conciliassem capital e trabalho.

Tönnies exerceria uma grande influência no desenvolvimento da sociologia alemã. A sua crítica romântica ao capitalismo circunscreveu o terreno em que os sociólogos posteriores caminharam.

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Notas:
[1] Lukács comenta que Tönnies entendia como similares as versões de Marx, Ricardo e Rodbertus para a teoria do valor-trabalho (cf. 1968: 478). Isso é verdade, mas, sob nossa ótica, esse fato não reduz a importância do movimento de Tönnies no sentido de apreender as contradições da realidade burguesa; a confusão de Marx com Ricardo e Rodbertus não suprime dos seus textos a teoria valor-trabalho; ela continua lá. Entretanto, Lukács prefere desmerecer a enaltecer a tentativa de Tönnies em se apropriar de elementos da teoria marxista. A destruição da razão foi escrita em um momento conturbado, em plena guerra fria, e uma concessão desse porte às ciências burguesas talvez fosse impensável.
[2] “O sujeito de ambas [a vontade arbitrária e a essencial] põe em movimento o corpo (de outra sorte representável como desprovido de movimento) por meio de um impulso exterior. Este sujeito é uma abstração. É o ‘eu’ humano, concebido como desprendido de todas qualidades e como essencialmente cognoscente, como se representando as consequências (prováveis ou seguras) de possíveis efeitos que partam dele mesmo e medindo-as por um resultado final, cujas ideias se fixam como norma para separar esses possíveis efeitos, ordená-los e dispô-los para que se convertam em realidade no futuro” (Tönnies: 1947:121). O sujeito de Tönnies é a descrição de um ente divino, onipotente e onisciente.
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CARLI, R. György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 61-68.
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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Uma contribuição à crítica da Teoria das Elites

 
por Décio Saes

Cientistas políticos neoliberais sugeri­ram, inúmeras vezes, que a teoria clássica das elites — aquela presente nos textos de Mosca, Pareto, Michels e Sorel — está bem morta e enterrada; isto é, exerce uma influ­ência muito reduzida no terreno da análise dos processos políticos contemporâneos. Ora, um exame panorâmico da Ciência Po­lítica contemporânea desmente essa afirma­ção. Ou seja: elementos nucleares da teoria clássica das elites (algo mais que o uso iso­lado e “pragmático” da noção de “elite”) ins­piraram análises de processo político típicas do liberalismo conservador, como as de Karl Mannheim na década de 1930 (Homem e sociedade, Ensaios de sociologia da cultu­ra), Joseph Schumpeter na década de 1940 (Capitalismo, socialismo e democracia), Raymond Aron na década de 1950 (Luta de classes; Democracia e totalitarismo) e Robert Dahl na década de 1960 (A moderna análise política).

Se isso é correto, como se explica a ten­dência de muitos cientistas políticos neolibe­rais a minimizar a influência exercida pela teoria clássica das elites sobre a análise polí­tica contemporânea? A explicação para essa tendência é mais política que científica: pode parecer incômodo aos cientistas políticos neoliberais da atualidade o dever intelectual de indicar o parentesco teórico entre o libera­lismo conservador contemporâneo (a que eles próprios se filiam) e uma escola de pen­samento cujos integrantes foram não só críti­cos do regime democrático como também simpatizantes (ainda que temporários) do fascismo italiano.

Já os pesquisadores situados fora do cam­po ideológico neoliberal e consequentemen­te imunes aos preconceitos políticos próprios dessa posição estão aptos a detectar a conti­nuidade teórica existente entre a Escola ma­quiavélica (Mosca, Pareto, Michels e Sorel) e o liberalismo conservador da atualidade. E, mais do que isso, tais pesquisadores têm condições de avaliar a real importância da teoria da elites na Ciência Política contem­porânea, já que as declarações de paterni­dade e filiação intelectuais, feitas nesse terre­no, não lhes trazem embaraços políticos aná­logos aqueles que poderiam ser suscitados nos seus colegas neoliberais. Finalmente: impõe-se que esses pesquisadores, reconhecendo a relevância dos problemas formula­ dos pela Teoria das Elites, trabalhem decididamente na crítica dessa teoria, o que implica não só expor os seus desajustes internos co­mo também propor um modelo alternativo de análise dos processos políticos contempo­râneos. Esse modelo, lembre-se, será proposto por pesquisadores que, não obstante as suas intenções críticas, reconhecem a relevância da Teoria das Elites. Ele não pode, portanto, consistir numa mera volta a um padrão de análise política anterior à emergência dessa corrente teórica; ele deverá conter, na verdade, soluções para os problemas formulados pela Teoria das Elites, bem como respostas para os desafios lançados pelos seus adeptos, maquiavélicos ou liberal-conservadores.

I. Uma reconstituição da Teoria das Elites

A Teoria das Elites deve ser estudada enquanto sistema concatenado de conceitos e, portanto, enquanto sistema de relações entre conceitos. Isso significa que tal teoria não se reduz ao mero emprego da expressão “elite”, a que recorrem, frequentemente por pura inadvertência teórica, muitos cientistas políticos que não se identificam com o conjunto desse sistema teórico. Mas tal sistema não se “realiza” do mesmo modo em todos os autores que o adotam como modelo de análise política. Em primeiro lugar, os diferentes autores não enfatizam igualmente, nas suas análises políticas, os diversos conceitos e relações entre conceitos; alguns desses elementos podem predominar, no plano da ex- posição, sobre outros, o que não significa que estes últimos estejam ausentes. Em segundo lugar, certos elementos desse sistema teórico se apresentam, nalguns autores, em estado puramente virtual, enquanto que outros elementos se atualizam plenamente. Essa coexistência de “virtual” e “atual” é possível, desde que não intervenham na análise política elementos que, pertencendo a um sistema teórico diferente, ocupem neste um lugar homólogo àquele ocupado pelos elementos “virtuais” na Teoria das Elites; caso essa intervenção ocorra, a própria virtualidade de alguns elementos estará ameaçada. Em terceiro lugar, existe sempre a possibilidade de o modelo de análise política, proposto por algum autor, ser internamente contraditório, filiando-se simultaneamente a sistemas diferentes. Nesse caso, impõe-se verificar — o que é, reconheça-se, uma tarefa bastante complexa — qual sistema teórico predomina dentro do modelo, relegando o outro sistema à condição de elemento subordinado.

Isso significa que há textos predominantemente filiados à Teoria das Elites; nesses textos, os elementos provenientes de outros sistemas teóricos são globalmente “sufocados” — sem que isso elimine as contradições localizadas — pelos conceitos e relações entre conceitos que integram a Teoria das Elites.

Essas observações preliminares já indicam nossa perspectiva de trabalho. Não pretendemos, aqui, reproduzir o pensamento de tal ou qual autor, convencionalmente reputa- do membro da Escola das Elites. Buscaremos, isto sim, reconstituir a Teoria das Elites como sistema concatenado de conceitos e de relações entre conceitos que funciona como modelo de análise dos processos políticos contemporâneos. Essa reconstituição abre o caminho para uma avaliação, em novos termos, do pensamento dos autores maquiavélicos ou dos autores liberal-conservadores do século XX. O objetivo de tal avaliação será a caracterização do modo de filiação de cada autor à Teoria das Elites; e não a fixação do pensamento de um autor particular como o paradigma básico da Teoria das Elites e, a seguir, a mensuração do grau de desvio dos demais pensamentos com relação a esse paradigma.

Comecemos, portanto, o trabalho de reconstituição da Teoria das Elites. O seu conceito central é o de “minoria politicamente ativa”: a minoria de homens que assume, em qualquer espécie de sociedade humana, o controle do processo de tomada das grandes decisões políticas.

Pode-se entender a centralidade do conceito de “minoria politicamente ativa” para a Teoria das Elites quando se percebe que ele está estreitamente ligado a uma tese fundamental acerca da configuração do processo político nas sociedades humanas. Vejamos essa tese: em qualquer espécie de sociedade humana (passada, presente ou futura), uma minoria de homens tende sempre a as- sumir o controle do processo de tomada das grandes decisões políticas. Através dessa tese, a Teoria das Elites define como um fenômeno universal, presente em diferentes épocas históricas e em diferentes espécies de sociedade humana, a dominação política da maioria social pela minoria social. Os procedimentos metodológicos formalmente fixa- dos como caução para essa tese são três: a) a observação histórica; b) o estudo da Psicologia Social com vistas à descoberta de eventuais elementos invariantes —isto é, universais — do comportamento social; c) a combinação de ambos os procedimentos metodológicos.

Uma vez apresentada a tese das “minorias politicamente ativas” como o ponto nuclear da Teoria das Elites, deve-se colocar a seguinte questão: tal tese mantém algum parentesco com a visão marxista dos processos macro-políticos? Essa questão não pode ser evitada, já que a teoria política marxista também sustenta que os processos macro-políticos são monopolizados por uma mino- ria social. Porém, a resposta a essa pergunta só pode ser negativa. O parentesco entre Teoria das Elites e teoria política marxista é apenas longínquo, e não próximo, por duas razões. Em primeiro lugar: enquanto na Teoria das Elites a dominação dos processos macro-políticos por minorias sociais é definida como um fenômeno universal, permanente e eterno, na teoria política marxista a existência de minorias dominantes é encarada como um jato histórico, relacionado com a existência da sociedade de classes (vale dizer: um fato inexistente nas sociedades primitivas e suscetível de ser liquidado na época contemporânea através da implantação do socialismo ou, mais precisamente, através da evolução da sociedade socialista para o comunismo). Em segundo lugar: a própria concepção marxista de “minoria politicamente dominante”, existente apenas nas sociedades de classe, é diferente da concepção elitista de “minoria politicamente ativa”, presente em toda e qualquer sociedade humana. A minoria politicamente dominante numa sociedade de classes — isto é, a classe politicamente dominante —é, segundo a teoria política marxista, a classe dos proprietários dos meios de produção (vale dizer, a classe economicamente dominante). Ora, a Teoria das Elites se configura como uma crítica da correlação marxista entre dominação econômica de classe e exercício de poder político. No terreno da Ciência Política, a Teoria das Elites se delineia como um dispositivo de combate à tese marxista do “caráter cumulativo do poder”: vale dizer, a tese que atribui um caráter cumulativo ao exercício dos poderes econômico e político nas sociedades contemporâneas (de classe). A Teoria das Elites nega, portanto, a ocorrência de qualquer correlação entre exercício do poder econômico e exercício do poder político; bem como entre a situação de classe economicamente dominante e a situação de grupo politicamente dirigente.

É preciso, entretanto, agregar alguns esclarecimentos acerca da crítica elitista à teoria política marxista. A Teoria das Elites não exclui a possibilidade de que, numa sociedade histórica concreta, uma classe economicamente dominante seja, por coincidência, o grupo politicamente dirigente. O que ela exclui é a afirmação de que uma dessas condições (detenção do poder econômico ou, inversamente, do poder político) deriva da posse da outra. Em suma: o que a Teoria das Elites nega não é a possibilidade de coincidência entre dominação econômica e dominação política; e sim, que o exercício de tais poderes tenha um caráter cumulativo na sociedade contemporânea[1].

Registre-se também que a Teoria das Elites não exclui a presença do conceito de classe social, o que ela rejeita é a caracterização de uma correlação invariante entre as condições de classe economicamente superior ou dominante (definida de diferentes modos conforme a escola sociológica) e de grupo politicamente dirigente.

O segundo elemento crucial da Teoria das Elites é o modelo de explicação sociológica subjacente à afirmação da existência universal de “minorias politicamente ativas”, distintas das minorias dominantes detectadas pela teoria política marxista nas sociedades de classe. A rigor, pode-se dizer que tal modelo se decompõe em dois, na medida em que a Teoria das Elites abre duas vias teóricas distintas para a explicação da universalidade das minorias dominantes. De um lado, a Teoria das Elites comporta uma linha de argumentação oriunda da “Sociologia das organizações”: uma minoria social tende, sempre e em qualquer lugar, a governar a maioria social, pura e simplesmente por ser mais organizada que essa maioria; e a minoria social é sempre mais organizada que a maioria social justamente por ser minoria (Mosca, The Ruling Class: “É mais fácil para poucos estar de acordo e agir de modo uniforme que para muitos”). De outro lado, a Teoria das Elites comporta uma linha de argumentação oriunda da “Psicologia de massas” (Sighele, Le Bon, Tarde): em qualquer sociedade humana, a maioria social “massa” — caracteriza-se, no plano da ação coletiva, pela irracionalidade; por isso, ela é incapaz, no plano político, de identificar os seus verdadeiros interesses e de agir racionalmente na defesa dos mesmos. Conclusão: a massa tende inevitavelmente a ser dominada, no plano político, por uma minoria social que monopoliza a “técnica” política; vale dizer, qualidades políticas essenciais — apontadas por Maquiavel em O príncipe — como a sede de poder, a força e a astúcia.

Essas duas linhas de argumentação — a “técnica” (oriunda da “Sociologia das organizações”) e a “filosófica” (oriunda da “Filosofia da história” subjacente à “Psicologia de massas”) — podem ser utilizadas isoladamente; porém, tendem a ser utilizadas simultaneamente. Isso não significa, entretanto, que esses argumentos distintos estejam efetivamente articulados, do ponto de vista teórico, num modelo único de explicação sociológica. A utilização de tais argumentos pode ser simultânea; porém, nesses casos, ela será sempre compartimentada, já que cada um desses argumentos pode ser brandido contra o outro. Exemplificando: se a massa é sempre inconsciente dos seus interesses e incapaz de defendê-los na arena política, a minoria social tenderá em qualquer caso a estabelecer sua dominação política, independentemente de existirem ou não facilidades técnicas na organização política de minorias. Inversamente: se a minoria social está fadada a ser politicamente dominante justamente em razão dessas facilidades técnicas, tanto faz que a massa — isto é, a maioria social — seja politicamente racional ou não; em qualquer caso, ela seria derrotada pelo fator “técnico”, favorável invariavelmente à minoria social.

Vê-se portanto que essas duas vias para a explicação da universalidade das minorias dominantes são contraditórias. Entretanto ambas se filiam legitimamente à Teoria das Elites, na medida em que se configuram como instrumentos — diferenciados, é verdade — de ataque a toda e qualquer teoria materialista dos recursos políticos. O que as afirmações da superioridade organizacional das minorias ou da irracionalidade das massas contestam igualmente é a tese de que os recursos políticos da classe dominante derivam, na sociedade contemporânea (de classe), da posse de recursos econômicos, que se transfiguram naqueles de modo direto ou com a mediação do elemento educacional e cultural. É esta vocação antimaterialista das duas linhas de argumentação que ameniza a contradição em que incorrem muitos textos filiados à Teoria das Elites; na lógica interna do discurso elitista, todos os argumentos são bons para desacreditar qualquer análise sociológica, de cunho efetivamente científico, dos recursos políticos da classe dominante na sociedade contemporânea (de classe).

Neste ponto da exposição, podemos indicar outro elemento central da Teoria das Elites: a crítica da noção de representação política. Nas sociedades contemporâneas, as minorias sociais não se lançam à conquista do poder político na defesa dos interesses da classe economicamente dominante ou do conjunto da sociedade. E, no exercício do poder político, essas minorias agem em função de interesses (como o de preservar o poder político conquistado e as vantagens materiais dele decorrentes) dos seus membros, e não dos interesses de uma classe social determinada ou do “interesse geral da sociedade”. O que move politicamente as minorias sociais é o conhecimento da facilidade de se organizar minorias ou a consciência de sua superioridade política(no plano da vontade de poder, da força e da astúcia) diante das massas; e não a defesa de quaisquer interesses coletivos já constituídos num plano extrapolítico (econômico, cultural etc.). Na Teoria das Elites, portanto, a minoria dominante não representa ninguém; pode-se dizer, na melhor das hipóteses, que ela “representa” a si própria. Nessa medida, os autores que recorrem a noção de “elite política” e ao mesmo tempo postulam a constituição, nas sociedades contemporâneas, de “elites” politicamente representativas com relação à sociedade (é o caso de Maurice Duverger ou de W. G. Runciman) já se situam fora do campo da Teoria das Elites.

Note-se que a Teoria das Elites, ao criticar a problemática da representação política, entra em luta não só com a teoria política marxista como também com o liberalismo clássico. De um lado, a Teoria das Elites rejeita a tese da representatividade de classe da ação política (ponto de partida teórico da análise histórica empreendida por Marx em O dezoito brumário e As lutas de classe na França). De outro lado, ela descarta o ideal do governo representativo, defendido pelo liberalismo clássico. É finalmente curioso sublinhar que, na crítica da noção de representação política, a Teoria das Elites se aproxima de uma corrente política contemporânea: o anarquismo (o que talvez explique, em parte, que Sorel tenha se lançado, na época das Reflexões sobre a violência, à formulação de um elitismo anarcossindicalista).

II. “Elite” e burocracia

A Teoria das Elites nega, portanto, que a minoria dominante represente, na esfera política (processo de tomada das decisões macro-políticas), interesses coletivos previa- mente constituídos. Mas, como vimos anteriormente, isso não equivale a negar que a minoria dominante — chame-se ela “elite política”, “classe governante”, “categoria dirigente” ou “elite do poder” — possa, uma vez conquistado o poder político, definir interesses próprios, estritamente ligados à condição de detentora desse poder (ou seja: os interesses de preservação do poder conquistado e de fruição das vantagens materiais dele decorrentes).

Esse esclarecimento nos obriga a abordar uma nova questão. Se a Teoria das Elites supõe a disjunção do grupo politicamente dirigente e da classe economicamente dominante na sociedade contemporânea e sustenta, além do mais, que a minoria dominante age politicamente em função de interesses próprios, não estaria ela sugerindo a existência de um poder burocrático na sociedade contemporânea? Mais precisamente: não estaria contida na Teoria das Elites a tese de que é a burocracia de Estado, enquanto grupo social absolutamente independente da classe economicamente dominante e enquanto agente controlador do processo de tomada das decisões macro-políticas, quem detém efetivamente o poder político na sociedade contemporânea?

A única resposta possível a essa questão é a negativa; portanto, a enunciação dessa resposta nos permite continuar a caracterização — agora, evidentemente, de modo negativo — do núcleo básico da Teoria das Elites. A Teoria das Elites não é uma “teoria do poder burocrático na sociedade contemporânea”, já que ela se define justamente como um dispositivo teórico de ataque aos conceitos de Estado, burocracia de Estado e Estado burocrático.

Aqui estamos dando um passo adiante na caracterização da Teoria das Elites como um sistema de conceitos: o conceito de “elite política” (ou os de “classe governante”, “categoria dirigente” ou “elite do poder”) não se contrapõe apenas ao conceito de classe politicamente dominante contido no marxismo como também a qualquer conceito de burocracia estatal que siga o caminho encetado por Weber na análise do Estado moderno. Na Teoria das Elites, o Estado não é uma realidade, e sim, um dos grandes mitos políticos contemporâneos; o que significa, entre outras coisas, que o “poder” da burocracia estatal moderna — tese corrente no pensamento político contemporâneo —não passa de uma ilusão. Entenda-se: a Teoria das Elites não nega a possibilidade de alguns burocratas estatais — mais provavelmente aqueles situados no topo do aparelho —participarem do processo de tomada das decisões macro-políticas e de, conseqüentemen- te, integrarem a minoria dominante. Porém, isso não equivale a identificar a burocracia estatal, enquanto grupo funcional, com a “elite política”; e nem mesmo a supor que a burocracia estatal, no seu conjunto, é um dos elementos integrantes de uma “elite política” heteróclita. A rigor, a Teoria das Elites “secciona”, na análise do processo político contemporâneo, a burocracia estatal; ou seja, considera que a “elite política” atravessa a burocracia estatal, absorvendo tão somente alguns dos seus membros (cuja identidade não pode ser estabelecida teoricamente) e relegando consequentemente todos os de- mais à condição de “massa”.

Resumindo: na Teoria das Elites, o controle do processo de tomada das decisões macro-políticas não está nas mãos da burocracia estatal, e sim, da “elite política” (da qual podem participar até mesmo alguns membros da burocracia estatal). À vista disso, a Teoria das Elites não pode ser artificial- mente aproximada como fazem alguns comentaristas — da teoria weberiana do Estado burocrático moderno. É verdade que Weber se preocupou, teórica e politicamente, com a questão dos líderes políticos no Esta- do moderno, bem como com a do modo de relacionamento entre esses líderes e a burocracia estatal. Ocorre entretanto que os líderes políticos do Estado moderno, do modo como são caracterizados por Weber, não equivalem teoricamente à “elite política” delineada pela Teoria das Elites. Se, na sociologia política weberiana, a ação política daqueles é em última instância enquadrada pela burocracia estatal, na Teoria das Elites o poder político da “elite” não se sujeita a esse tipo de constrangimento, já que o Estado moderno e o poder da própria burocracia estatal não passam de mitos. É portanto desarrazoado buscar na obra de Weber uma “teoria da elite burocrática”, a menos que, nesse exercício interpretativo, a expressão “burocracia” seja esvaziada do seu sentido weberiano (o que seria, evidentemente, um procedimento absurdo). Em suma: uma “teoria da elite burocrática” só seria minimamente congruente no caso de um desses termos ser esvaziado do seu sentido teórico preciso. Isto é: ou a noção de “elite” se distanciaria do conceito contido na Teoria das Elites; ou, inversamente, a noção de “burocracia” se afastaria da matriz weberiana.

III. A crítica da Teoria das Elites


Uma vez reconstituída a Teoria das Elites, podemos passar à crítica das teses nela contidas, o que implica a crítica, por via in- direta, dos conceitos com que elas operam e das relações entre conceitos que elas estabelecem. Tal crítica começa pela indicação, ainda uma vez[2], da principal debilidade interna da Teoria das Elites: ela é visceralmente incapaz de cumprir a sua própria plataforma. Organizando-se como dispositivo de ataque à teoria marxista da classe dominante, a Teoria das Elites busca — sem lograr alcançá-lo — um modelo alternativo de explicação para a formação de um grupo politicamente dominante. Em que consiste essa incapacidade de cumprir a sua promessa? A Teoria das Elites não é débil quando atribui coesão interna à minoria já detentora do poder político. Essa coesão, afinal, pode ser explicada, ao menos numa primeira rodada do debate teórico, pela descoberta, por parte dos membros da “elite” política, das vantagens estritamente decorrentes de sua nova condição de detentores do poder político (a preservação do próprio poder político, recompensas materiais etc.). Na verdade, a debilidade reside no fato de que a Teoria das Elites, ao desconsiderar qualquer conexão entre ação política e interesses coletivos constituídos noutras esferas, mostra-se incapaz de explicar a formação de um grupo politicamente dirigente na sociedade contemporânea.

Para indicar de modo mais claro essa incapacidade, voltemos aos dois modelos explicativos contidos na Teorias das Elites. O primeiro modelo, oriundo da “Sociologia das organizações”, implica a afirmação de que a minoria social, por ser mais organizada, tende sempre a governar a maioria social. Entretanto, esse modelo não explica porque um grupo de homens, nada tendo em comum, tomaria a decisão consciente de se organizar como minoria politicamente ativa com vistas a dominar a maioria social. A partir de tal modelo, só se pode explicar a formação de uma minoria dominante pela emergência de uma consciência coletiva quanto à maior facilidade de organização de minorias. Ora, é difícil acreditar que tal consciência baste para induzir homens que não têm interesses comuns no presente a se organizar politicamente com o objetivo de se constituírem em comunidades no futuro.

O segundo modelo, oriundo da“Psicologia de massas”, implica a afirmação de que a “massa” (isto é, a maioria social) tende sempre a agir, no plano político, de modo irracional, o que faz com que ela seja dominada por uma minoria de homens detentores do monopólio das qualidades políticas (vontade de poder, força, astúcia). Ora, esse modelo não logra explicar porque a posse comum de tais qualidades induziria certos homens a se organizarem como grupo, no presente, com vistas a exercerem coletivamente, no futuro, o poder político. Na verdade, é perfeitamente plausível sustentar o contrário; isto é, que os detentores de qualidades políticas, não se congregando no presente em torno de interesses comuns, exerçam-nas uns contra os outros. Nesse caso, tal minoria, ao invés de fundar uma comunidade polarizada pelo objetivo da conquista do poder político, será dilacerada por um conflito permanente, o que engendra a possibilidade de instauração da “anarquia” nessa sociedade.

A crítica da Teoria das Elites começa, portanto, pela exposição dessa debilidade: ela se anuncia como uma alternativa ao economicismo marxista no terreno da teoria da “classe dirigente”; não dispõe, entretanto, de qualquer dispositivo teórico sólido que explique a gênese dos grupos politicamente dirigentes[3]. Porém, tal crítica não pode parar por aí, pois essa fraqueza interna é apenas o sintoma de uma insuficiência muito mais grave e profunda: o caráter falso da visão elitista do processo de tomada das decisões macro-políticas nas sociedades de classe em geral e na sociedade capitalista em particular.

É Herbert Marcuse quem, em Ideias sobre uma teoria crítica da sociedade, detecta a raiz dessa falsidade: o formalismo da Teoria das Elites. Ou seja, a tese da existência recorrente de minorias dominantes é defendida, na Teoria das Elites, de um modo formalista. O procedimento metodológico inerente a esse sistema teórico determina que, na análise dos processos macro-políticos, caracterize-se apenas o modo pelo qual são tomadas as decisões, e não o conteúdo de tais decisões (vale dizer, o teor substantivo da política efetivamente implementada). Mas especificamente: a Teoria das Elites busca definir“quem” toma as grandes decisões políticas com vistas a atribuir a esse agente — e nisso reside o formalismo da análise elitista do processo político — a condição de detentor do poder político. Ela não leva portanto em conta, na análise do processo político, o conteúdo das diferentes decisões, pois esse procedimento exigiria a investigação, imediatamente após, da eventual conexão entre esses conteúdos e certos interesses de grupo. Ora, tal investigação só poderia se concluir pela atribuição do poder político ao grupo social cujos interesses fossem prioritariamente concretizados pelas grandes decisões políticas; e não ao grupo de homens fisicamente participantes do processo macro-decisório. É claro que esse passo jamais pode- ria ser dado sem provocar a dissolução da própria Teoria das Elites.

Mas, para que se complete a crítica ao formalismo da análise elitista do processo político, é preciso denunciar a Teoria das Elites pelo fato de ela jogar” com o tema das “grandes decisões políticas” sem no entanto dispor de qualquer teoria sobre as decisões políticas fundamentais na sociedade contemporânea (ou em qualquer outro tipo de sociedade). E a ausência de uma teoria das decisões políticas fundamentais na análise política elitista não é ocasional; ambas são radicalmente incompatíveis. A definição de um elenco de decisões políticas fundamentais, num tipo de sociedade qualquer, choca-se com o formalismo da Teoria das Elites, pois ela exige a hierarquização das decisões — das fundamentais às subalternas — conforme o seu conteúdo. Só se pode, portanto, construir uma teoria das decisões políticas fundamentais quando se vai além da observação da mera forma do processo de tomada das grandes decisões políticas; e se passa à análise — rejeitada pela Teoria das Elites — do conteúdo das decisões políticas.

Além do mais, uma teoria que especifique o conteúdo invariante das decisões políticas fundamentais, num tipo qualquer de sociedade, tende a ser inevitavelmente parte integrante de uma teoria do Estado. Ora, a Teoria das Elites descarta como teoricamente irrelevante a problemática do Estado, e se define explicitamente como um “substituto” da teoria de Estado. Na Teoria das Elites, o Estado é o maior mito político contemporâneo; enquanto tal, tem a função de ocultar a realidade política essencial, isto é, a monopolização do processo de tomada das grandes decisões políticas, controlado invariavelmente por uma minoria política ativa. Rejeitando qual- quer variante de teoria do Estado (marxista, weberiana ou liberal), a Teoria das Elites se mostra incapaz de analisar o conteúdo da política de Estado na sociedade capitalista (ou em sociedades anteriores). Consequentemente, ela não se coloca a questão de uma eventual conexão entre o conteúdo da política de Estado e certos interesses sociais; e não pode portanto levantar a hipótese de que o poder político (em geral) e o poder de Esta- do (em particular) sejam exercidos por algum grupo social específico na medida em que ocorra uma convergência entre a política de Estado e os interesses desse grupo.

Para encerrar esta crítica, é importante mencionar um subproduto do formalismo da Teoria das Elites: a baixa operacionalidade desse sistema teórico no terreno da análise dos processos políticos. Ou seja, como a Teoria das Elites não especifica o conteúdo das decisões políticas fundamentais nem estabelece conexões entre tais conteúdos e certos interesses de grupo, ela é incapaz de estabelecer uma clara linha de demarcação entre o que é participação efetiva no processo de tomada das grandes decisões políticas e mera submissão aos agentes que monopolizam o processo. Essa dificuldade de operacionalizar a Teoria das Elites na análise política foi pressentida, mas não explicitada teoricamente, por Mosca (The Ruling Class). Sua resposta a essa dificuldade consistiu em pro- por o emprego, na análise política da sociedade contemporânea, de um continuum de poder, decomposto em “participação”, “influência” e “submissão”. Operando com esse continuum — destinado a substituir a dicotomia simples entre “elite política” e “massa” —, Mosca pondera que as classes superiores participam do processo macro-decisório (constituindo-se portanto em classe politicamente dirigente); os trabalhadores sindicalizados exercem influência sobre o processo macro-decisório, sem no entanto participarem dele; e a massa desorganizada se submete, pura e simplesmente, às decisões tomadas pela classe politicamente dirigente.

A nosso ver, a solução de Mosca para o problema da baixa operacionalidade da Teoria das Elites é ilusória, pois ela apenas trans- fere o problema para outro patamar, sem no entanto resolvê-lo. Ou seja: se a versão elementar da Teoria das Elites não indica como se pode estabelecer uma linha de demarcação, na análise política concreta, entre os detentores do poder político e a massa, tampouco as formulações de Mosca esclarecem como se pode diferenciar concretamente “participação” de “influência”, e esta, de “submissão”.

Assim, o problema da baixa operacionalidade da Teoria das Elites persiste, mal- grado os esforços de Mosca. É por isso que os pesquisadores contemporâneos situados no campo da Teoria das Elites se sentem obrigados a construir indicadores práticos que lhes permitam demarcar concretamente, na análise do processo macro-decisório, a “elite política” da “massa”. Por exemplo, um estudioso das “elites políticas locais” numa sociedade como a norte-americana pode estabelecer o controle efetivo dos tributos municipais ou da política de obras públicas como o critério prático de delimitação da “elite política” que opera nas municipalidades.

A construção de indicadores práticos pode ser uma “solução” para os pesquisadores, individualmente considerados; porém não o é para a Teoria das Elites, já que tal estratégia projeta invariavelmente esses estudiosos para o terreno da definição das decisões políticas fundamentais e, consequentemente, para o campo da teoria do Estado, cuja legitimidade teórica é contestada por aquela corrente. Isso significa que a únicas solução, encontrada pelos pesquisadores, para a baixa operacionalidade da Teoria das Elites tem sido, na prática, o deslizamente subreptício para um outro terreno teórico.

IV. Um caminho alternativo para a análise do processo político

Procuramos demonstrar acima que o modelo de análise política, proposto pela Teoria das Elites, é incapaz de apreender a dinâmica efetiva do processo político nas sociedades contemporâneas (de classe), ou em qualquer outra espécie de sociedade humana. É preciso, no entanto, reconhecer que a Teoria das Elites está amplamente difundida na Ciência Política contemporânea, a despeito dessa incapacidade. Devemos, portanto, pronunciar-nos sobre as possíveis razões dessa difusão.

Mencionem-se, em primeiro lugar, as razões de ordem fundamentalmente ideológica. Para os defensores do modelo capitalista de sociedade, é útil a dimensão apologética da Teoria das Elites; vale dizer, o fato de que ela apresenta o grupo politicamente dominante na sociedade capitalista como um conjunto de homens dotados de qualidades — isto é, uma “elite” —, só restando portanto à maioria da sociedade, intrinsecamente desprovida de tais qualidades (isto é, a “massa”), submeter-se ao seu poder. Além disso, também é útil, agora especificamente para os críticos contemporâneos de toda e qualquer proposta (reformista) da ampliação da democracia capitalista, a dimensão antidemocrática da Teoria das Elites; vale dizer, o fato de que ela recorre a argumentos conservadores, oriundos da “Sociologia das organizações” ou da “Psicologia de massas”, para dar fundamentação teórica a uma postura de reserva — mais ou menos explícita — com relação a processos de ampliação da democracia na sociedade contemporânea[4].

Existe, ao lado dessas razões de ordem ideológica, uma razão propriamente teórica para a grande amplitude da difusão contemporânea da Teoria das Elites. Tal razão foi apontada por Nicos Poulantzas em Poder político e classes sociais: a Teoria das Elites propõe uma solução — inadequada, é verdade — para problemas teóricos reais, que a teoria política marxista clássica não logrou resolver.

Faz parte, indubitavelmente, da tradição teórica marxista a tese segundo a qual, nas sociedades de classe, o exercício do poder econômico leva ao exercício, num momento cronologicamente posterior, do poder político. Ora, a Teoria das Elites considera, acertadamente, que essa tese é problemática; e essa postura crítica explica, em parte, o seu sucesso acadêmico. Porém, o erro desse sistema teórico está em se fixar exclusivamente na versão economicista clássica da tese do “exercício cumulativo dos poderes”, apresentando-a, na prática, como a única versão, possível para o marxismo, da tese do “exercício cumulativo dos poderes”.

Ora, essa tese comporta outra versão, viável dentro dos limites da teoria política marxista. Tal tese está indicada em textos de Nicos Poulantzas (Poder político e classes sociais) e Etienne Balibar (“Os conceitos fundamentais do materialismo histórico”). Trata-se da tese segundo a qual, no funcionamento das sociedades de classe (em geral) e da sociedade capitalista (em particular), estabelece-se uma relação da causação recíproca entre poder econômico e poder político, não havendo portanto nesse terreno específico — o da reprodução das sociedades de classe — um poder determinante e um poder subordinado. Essa tese traz como consequência a afirmação de que a classe economicamente dominante é sempre, igualmente, a classe politicamente dominante; e vice-versa. Isso ocorre porque, na perspectiva da “causação recíproca”, a dominação econômica de classe e a dominação política de classe são definidas, cada uma, como condição de reprodução da outra. Evidentemente, estamos longe, aqui, da afirmação unilateral segundo a qual a dominação econômica de classe tem sempre como efeito a conquista da dominação política de classe.

É interessante, neste ponto, notar que o próprio Poulantzas não extraiu todas as implicações da tese da “causação recíproca” entre poder econômico e poder político nas sociedades de classe. Mais especificamente: ao invés de propor a cumulatividade (sem determinação) das condições de classe economicamente dominante e de classe politicamente dominante, Poulantzas levanta teoricamente a possibilidade de que a classe economicamente dominante, no capitalismo, não seja a classe politicamente dominante. Portanto, Poulantzas admite, em contradição com a tese da “causação recíproca”, que ocorra no capitalismo a disjunção da dominação econômica de classe e da dominação política de classe. Ora, essa afirmação de Poulantzas é surpreendente, pelo menos, por duas razões. Em primeiro lugar, ele converge para a tese fundamental da Teoria das Elites, segundo a qual não há correlação invariante, na sociedade contemporânea, entre grupo politicamente dirigente e classe economicamente dominante. Essa convergência entra em contradição com a postura poulantziana de crítica à Teoria das Elites, já que ela não se estabelece a propósito de aspectos secundários, e sim, de uma tese crucial do sistema teórico elitista.

Em segundo lugar, é intrigante que Poulantzas tenha se deixado momentaneamente envolver pela aparência (ou seja, a disjunção da dominação econômica de classe e da dominação política de classe) de certos fenômenos políticos, típicos da sociedade capitalista, sobretudo porque a conceituação rigorosa desses fenômenos foi empreendida pioneiramente pelo próprio Poulantzas em Poder político e classes sociais.

Examinemos rapidamente tais fenômenos políticos. Em primeiro lugar, para que a dominação política capitalista se mantenha, não é necessário que a classe dominante ocupe diretamente — isto é, sem intermediários e através dos seus próprios membros — o topo do aparelho de Estado. Por isto, é possível a emergência, em certas conjunturas ou períodos, de uma classe detentora do aparelho de Estado, distinta da classe dominante (por exemplo, a pequena burguesia ou a classe média). A classe “detentora”, que exerce controle sobre o aparelho de Estado, é a classe social de que são egressos os ocupantes do topo do aparelho de Estado capitalista. Ela não se configura, só por esse fato, como classe dominante, pois só é dominante a classe social cujo interesse político geral é garantido pelo Estado; e só nesse caso se pode dizer que uma classe social detém o poder político e o poder de Estado. Isso significa, finalmente, que a classe detentora do aparelho de Estado não se constitui em classe dirigente ou elite política que detenha o poder político, ao mesmo tempo em que as classes proprietárias detêm o poder econômico.

Em segundo lugar, também não é necessário, para a manutenção da dominação política capitalista, que a classe dominante organize, ela própria, partidos políticos; e que os seus partidos políticos preponderem dentro do sistema partidário. Por isto, é possível a emergência, em certas conjunturas ou períodos, de uma classe reinante, distinta da classe dominante. A classe reinante — ou aquilo que Marx chama “a classe governante” — é a classe social que predomina na “cena política”; isto é, a classe social que organiza de modo direto e sem intermediários o partido político que prepondera no sistema partidário, assumindo assim o comando do sistema partidário na sua relação com o Estado capitalista. Frequentemente, em sociedades capitalistas concretas, a classe reinante é a pequena burguesia ou a classe média. É o caso, por exemplo, de certas sociedades capitalistas europeias nas fases em que o seu sistema partidário foi dominado pela social-democracia ou pelo movimento radical. A classe reinante não coincide necessariamente, portanto, com a classe dominante. Mas isso não significa — como poderia concluir o analista político polarizado pelas aparências — que tal classe se constitua em elite detentora do poder político, separado este do poder econômico exercido pelas classes proprietárias.

Fenômenos políticos como os anterior- mente mencionados — classe “detentora”, classe reinante — não podem ser captados pela Teoria das Elites, que se limita à observação da sua aparência e daí deduz, indevidamente, a disjunção do poder econômico e do poder político na sociedade contemporânea. A Teoria das Elites tem o mérito, no ponto de partida, de suscitar a análise morfológica do processo político; porém, apresenta o defeito, na reta de chegada, de propor tão somente uma visão formalista do processo político. Já a teoria política marxista em processo de renovação, ao aceitar o repto da Teoria das Elites, pode chegar, no próprio plano morfológico de análise, à diferenciação da classe dominante, classe detentora do aparelho de Estado e classe reinante (os agentes coletivos que, respectivamente, exercem o poder político, ocupam o topo do aparelho de Estado e prevalecem no sistema partidário).

Chegamos desse modo — e essa é a conclusão de nosso artigo — à diferença básica existente entre a Teoria das Elites e a teoria política marxista renovada. A análise puramente morfológica do processo político é o limite além do qual a Teoria das Elites não pode avançar; caso o faça, ela estará se dissolvendo e se convertendo noutro sistema teórico. Já a teoria política marxista em processo de renovação pode incorporar, até mesmo por “pressão” da Teoria das Elites, a análise morfológica do processo político; mas jamais a definirá como tarefa exclusiva do analista político. Ao contrário: a sua plataforma consiste em integrar os resultados dessa análise morfológica à análise substantiva do processo político, que é, em última instância, análise do caráter de classe do poder político. Nessa medida, a comparação entre os dois sistemas teóricos nos permite, independentemente da avaliação de sua falsidade ou justeza, estabelecer o contraste entre a limitação de um (Teoria das Elites) e a abrangência de outro (teoria política marxista renovada), na análise das sociedades de classe e, em particular, da sociedade capitalista.

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Notas
[1] Esclareça-se desde logo que não estamos lidando aqui com a acepção convencional — sem dúvida, mais ampla — da expressão “cumulativo”; e sim, com a acepção — mais restrita — que essa expressão progressivamente assumiu no curso da luta elitista contra a teoria política marxista (ou seja: correlação entre os exercícios de um e outro poder).
[2] Dizemos: “ainda uma vez”, pois essa indicação foi feita por praticamente todos os críticos da Teoria das Elites.
[3] Algum cientista político que se oriente, na análise do processo histórico, pela problemática das estruturas (econômica, jurídico-política) poderia sustentar que essa desconsideração para com a gênese das minorias dominantes é teoricamente correta e, portanto, não pode servir como instrumento de crítica à Teoria das Elites. A nosso ver, entretanto, esse tipo de ponderação é desarrazoado, pois ele não leva em conta que é a Teoria das Elites, e não os seus críticos (ou, pelo menos, não necessariamente todos eles), que aponta para a necessidade de construção de uma teoria do agrupamento político que se constitua numa efetiva alternativa à teoria marxista da classe dominante.
[4] É interessante, a esse respeito, lembrar que Mosca, quando não defende a implantação de Estados “fortes” ou “cesaristas” (uma decorrência inevitável, a seu ver, da crise das democracias contemporâneas), revela a sua preferência política por um “sistema representativo”, cujo aspecto central não é o funcionamento efetivo da representação política, e sim, a submissão da classe governante a um “pluralismo de influências”, emanadas de diferentes forças políticas (dinheiro, trabalho, ciência, religião etc.). Talvez seja desnecessário chamar a atenção para o fato de que o “pluralismo” de Mosca pode se concretizar através da implantação de um Estado corporativo, destituído de qualquer caráter democrático-representativo. Recorde-se também que Mannheim preferia explicitamente os Estados censitários do século XIX às democracias “ampliadas” e “populistas” vale dizer, fundadas no sufrágio universal — do século XX. Quanto a Schumpeter, são conhecidas a sua concepção elitista de democracia, bem como a sua falta de entusiasmo quanto a uma ampla participação popular no processo político.
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Bibliografia
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Resumo: O objetivo deste artigo é reconstituir o “núcleo duro” da Teoria das Elites para, a seguir, fazer sua crítica e sugerir um caminho alternativo para a análise do processo político.
Palavras-chave: elite, massa, poder, Estado, classe dominante. 
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SAES, D. “Uma contribuição à crítica da Teoria das Elites”. In: Revista de sociologia e política, n. 3, 1994, p. 7-19.
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