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terça-feira, 15 de abril de 2025

Sobre Proudhon


  Carta de Marx a J. B. Schweitzer[1]

Londres, 24 de Janeiro de 1865

Caro senhor:

Recebi ontem a sua carta, na qual me solicita um julgamento aprofundado sobre Proudhon. A falta de tempo não me permite atender a seu pedido. Entretanto, para lhe demonstrar a minha boa vontade, redigi à pressa um breve esboço. O senhor pode fazer adições ou reduzi-lo; numa palavra: pode fazer com este material o que lhe aprouver[2].

Não me recordo já dos primeiros ensaios de Proudhon. Seu trabalho de escolar sobre a língua universal[3] comprova a falta de cerimônia com que tratava problemas para cuja solução lhe faltavam os conhecimentos mais elementares.

Sua primeira obra, Qu'est-ce que la propriété?[4], é, sem dúvida, a melhor. Ela marcou época, se não pela originalidade do seu conteúdo, ao menos pela maneira nova e audaciosa de dizer coisas antigas. Nas obras dos socialistas e comunistas franceses, que ele conhecia, a propriedade fora, não só, como é natural, criticada sob vários pontos de vista, mas também utopicamente abolida. Com este livro, Proudhon colocou-se, em relação a Saint-Simon e a Fourier, quase no mesmo plano em que Feuerbach se encontra em relação a Hegel. Comparado a Hegel, Feuerbach é muito pobre. Contudo, depois de Hegel, ele assinalou uma época, já que realçou alguns pontos pouco agradáveis para a consciência cristã e importantes para o progresso da crítica, que Hegel deixara em mística penumbra [clair-obscur, em francês].

O estilo de Proudhon, aí, é — permita-me a expressão — vigorosamente musculado, constituindo, no meu entender, a principal qualidade deste estudo. Mesmo nas passagens em que Proudhon limita-se a repetir o conhecido, a simples reprodução é para ele um descobrimento; o que diz é, para ele, original, algo novo, e passa como tal. A audácia provocadora com que ele ataca o “santuário” da economia política, os engenhosos paradoxos com que ironiza a vulgaridade do burguês, seus juízos corrosivos, a ironia amarga, um profundo e sincero sentimento de indignação expresso intermitentemente contra as infâmias da ordem existente, sua convicção revolucionária — todas essas qualidades contribuíram para que Qu'est-ce que la propriété? eletrizasse os leitores e produzisse uma grande impressão, desde o primeiro momento em que viu a luz. Numa história rigorosamente científica da economia política, este texto mal seria mencionado. Mas, como na literatura romanesca, obras sensacionais como esta desempenham um papel na ciência. Pense-se, por exemplo, no livro de Malthus, Sobre a população[5]; sua primeira edição não constitui mais que um panfleto sensacional e, ademais, era um plágio da primeira à última linha. E, apesar de tudo, como esta pasquinada causou impacto sobre o gênero humano!

Se eu tivesse à mão o livro de Proudhon, ser-me-ia fácil demonstrar, com alguns exemplos, a sua maneira inicial de escrever. Nos parágrafos considerados mais importantes por ele mesmo, imita o método das antinomias de Kant — o único filósofo alemão que conhecia naquela época, através de traduções —, oferecendo-nos a sólida impressão de que, assim como Kant, busca a solução das antinomias num mais além do entendimento humano, isto é: a solução permanece obscura para ele mesmo.

Apesar da sua aparência de assalto ao céu, encontra-se em Qu'est-ce que la propriété? esta contradição: de um lado, Proudhon critica a sociedade a partir do ponto de vista do pequeno camponês (mais tarde, pequeno burguês) francês; de outro, aplica a ela a escala que lhe transmitiram os socialistas.

O próprio título indica as deficiências do texto. O problema fora tão mal colocado que a solução não podia ser correta. As “relações de propriedade” dos tempos antigos foram destruídas pelas feudais; e estas, pelas burguesas. Assim, a própria história encarregou-se de submeter à crítica as relações de propriedade do passado. No fundo, Proudhon trata é da moderna propriedade burguesa, tal como existe hoje. À pergunta — o que é a propriedade? — só podia responder com uma análise crítica da economia política, que abarcasse o conjunto dessas relações de propriedade, não em expressão jurídica, como relações de vontade, mas eu sua forma real, isto é, como relações de produção. Mas como Proudhon vinculava a totalidade destas relações ao conceito jurídico geral de “propriedade”, não podia ir além da resposta que Brissot já dera[6], numa obra similar, anterior a 1789, repetindo-a com as mesmas palavras: a propriedade é um roubo.

No melhor dos casos daí se pode deduzir que o conceito jurídico burguês de “roubo”, como violação da propriedade, pressupõe a propriedade, Proudhon enredou-se em toda sorte de elucubrações sobre a verdadeira propriedade burguesa.

Durante minha estância em Paris, em 1844, travei conhecimento pessoal com Proudhon. Menciono aqui o fato porque, em certa medida, sou responsável pela sua sophistication, como os ingleses chamam à adulteração de mercadorias. Em nossas longas discussões, que frequentemente duravam noites, contagiei-o, para grande desgraça sua, com o hegelianismo que, por seu desconhecimento da língua alemã, não podia estudar a fundo. Após a minha expulsão de Paris, o sr. Karl Grün continuou o que eu iniciara. Professor de filosofia alemã, ele tinha sobre mim a vantagem de não entender uma palavra do que ensinava.

Pouco antes da publicação da sua segunda obra importante Philosophie de la misère, Proudhon anunciou-me sua próxima edição numa carta muito detalhada, em que, entre outras coisas, dizia-me o seguinte: “Espero a férula de sua crítica[7]. Com efeito, a minha crítica caiu rapidamente sobre ele (em meu livro Misére de la philosophie, Paris, 1847), de tal forma que pôs fim, para sempre, à nossa amizade.

Como o senhor poderá ver, na sua Philosophie de la misère ou Système des contradictions économiques, Proudhon responde, realmente, pela primeira vez, à pergunta — o que é a propriedade? De fato, somente depois da publicação do seu primeiro livro, Proudhon iniciou seus estudos econômicos; compreendera que, à pergunta em tela, não se podia responder com invectivas, mas por meio de uma análise da economia política moderna. Ao mesmo tempo, tentou expor, dialeticamente, o sistema das categorias econômicas. No seu método de análise, à insolúvel “antinomia” kantiana devia substituir-se, intervindo como meio de desenvolvimento, a “contradição” hegeliana.

O senhor encontrará, na réplica que escrevi em seguida, a crítica aos dois grossos volumes da obra. Nessa réplica demonstro, entre outras coisas, o pouco que Proudhon penetrou nos segredos da dialética científica e até que ponto, por outro lado, compartilha das ilusões da filosofia especulativa, quando, em vez de considerar as categorias econômicas como expressões teóricas de relações de produção históricas e correspondentes a um determinado nível do desenvolvimento da produção material, converte-as, absurdamente, em ideias eternas, preexistentes. Com essa meia-volta, ele retorna ao ponto de vista da economia burguesa[8].

Mais adiante, demonstrei, também, o quanto é insuficiente o seu conhecimento — às vezes, digno de um escolar — da economia política, ciência a cuja crítica se dedica e como, à semelhança dos utopistas, corre atrás de uma pretensa “ciência”, da qual se pode arrancar a priori uma fórmula para a “solução do problema social”, em vez de ir buscar a fonte da ciência no conhecimento crítico do movimento histórico, movimento que cria ele mesmo, as condições materiais da emancipação. Demonstrei, sobretudo, que Proudhon só tem ideias vagas, falsas e parciais sobre o valor de troca, fundamento de toda economia, e como, inclusive, vê na interpretação utópica da teoria de Ricardo a base de uma ciência. Meu juízo sobre a sua concepção geral, resumo-o nas seguintes palavras:

Cada relação econômica tem um lado bom e um lado mau, esse é o único ponto em que o sr. Proudhon não se desmente. O lado bom, ele o vê exposto pelos economistas; o mau, denunciado pelos socialistas. Dos economistas, ele toma a necessidade de relações eternas; dos socialistas, a ilusão de ver na miséria apenas a miséria (em vez de ver nela o lado revolucionário, destrutivo, que há de acabar com a velha sociedade)[9].

Proudhon está de acordo com uns e outros quando se trata de apoiar-se na “autoridade” da ciência. Para ele, a ciência se reduz às magras proporções de uma fórmula científica. É um homem à caça de fórmulas. Assim, o sr. Proudhon jacta-se de oferecer-nos uma crítica da economia política e do comunismo, quando, na realidade, permanece muito abaixo de uma e de outro: dos economistas, porque, como filósofo, de posse de uma fórmula mágica, julga-se dispensado da obrigação de entrar em detalhes puramente econômicos; dos socialistas, porque carece da perspicácia e da coragem necessárias para elevar-se, ainda que apenas no terreno da especulação, para além dos horizontes da burguesia.

Pretende, como homem da ciência, pairar acima de burgueses e proletários, mas não passa do pequeno-burguês que oscila, constantemente, entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo[10].

Por mais severo que possa parecer esse juízo, subscrevo ainda hoje cada uma das suas palavras. Ao mesmo tempo, é preciso recordar que, na época em que afirmei, e demonstrei teoricamente, que o livro de Proudhon era o código do socialismo pequeno-burguês, os economistas e os socialistas o excomungaram como um herético ultrarrevolucionário. Essa é a razão pela qual, posteriormente, jamais fiz coro com os que denunciaram a sua “traição” à revolução. Não foi culpa sua se, incompreendido inicialmente tanto pelos outros como por si mesmo, ele não satisfez expectativas infundadas.

Em contraste com Qu'est-ce que la propriété?, na Philosophie de la misère todos os defeitos do estilo proudhoniano ressaltam particularmente. Estilo ampoulé, como dizem os franceses: sempre que lhe falta a acuidade gaulesa, aparece uma pomposa algavaria especulativa que pretende ser o estilo filosófico alemão. O tom charlatanesco, fanfarrão e vaidoso e, especialmente, o leilão que faz de uma pretensa “ciência”, a bazófia com que a apresenta – tudo isso assombra. O entusiasmo sincero que anima a sua primeira obra é aqui, em inúmeras passagens, substituído sistematicamente pelo ardor febril da declamação. A isso se soma o afã pedante de fazer gala de erudição, afã próprio de um autodidata, cujo orgulho inato por seu pensamento original e independente se perdeu e que, em sua qualidade de parvenu da ciência, orgulha-se do que não é e não tem. E, de sobra, essa mentalidade de pequeno-burguês, que o leva a atacar de um modo indigno, grosseiro, torpe, superficial e até injusto a um homem como Cabet – merecedor de respeito pela sua atividade prática entre o proletariado francês –, enquanto exibe extremos de amabilidade para Dunoyer[11], conselheiro de Estado, é verdade, mas cuja importância se reduz à cômica seriedade com que, em três grossos volumes, insuportavelmente entediantes, prega o rigorismo, caracterizado por Helvetius nestes termos: “On veut que lês malheureux soient parfaits” [Pretende-se que os desgraçados sejam perfeitos].

A revolução de fevereiro foi uma surpresa desagradável para Proudhon, já que ele, poucas semanas antes, demonstrara irrefutavelmente que a “era da revoluções” passara para sempre. No entanto, a sua intervenção na Assembleia Nacional merece elogios, apesar de ter evidenciado o pouco que compreendia do que estava ocorrendo. Efetuada após a insurreição de junho, foi um ato de grande coragem[12]. Sua intervenção teve, além disso, resultados positivos: no discurso que pronunciou em oposição a Proudhon, e que, mais tarde, foi publicado em folheto, o sr. Thiers demonstrou a toda a Europa quão mísero e infantil era o catecismo que servia de pedestal a esse pilar espiritual da burguesia francesa[13]. Comparado ao sr. Thiers, Proudhon adquiria, certamente, as dimensões de um colosso antediluviano.

A descoberta do “crédito gratuito” e do “banco do povo” baseado nele são as últimas “façanhas” econômicas de Proudhon. Na minha Zur Kritik der Politischen Ökonomie (Berlim, 1859, parte primeira, pp. 59-64), demonstrei que a base teórica das ideias proudhonianas tem sua origem na ignorância dos princípios elementares da economia política burguesa, a saber: a relação entre a mercadoria e o dinheiro. Quanto ao edifício erguido sobre essa base, não é mais que uma simples reprodução de esquemas velhos e muito melhor desenvolvidos. Não há dúvida, e é evidente por si mesmo, que o crédito, como ocorreu em inícios do 19, contribuiu para as riquezas passassem das mãos de uma classe às de outra, e que, em determinadas condições econômicas e políticas, poderá ser um fator que acelere a emancipação do proletariado. Mas é uma fantasia genuinamente pequeno-burguesa considerar que o capital que produz juros é a forma principal do capital e tratar de converter uma aplicação particular do crédito – uma suposta abolição do juro – em base de transformação social. Com efeito, essa fantasia já fora minuciosamente desenvolvida pelos porta-vozes econômicos da pequena burguesia inglesa do século 17. A polêmica de Proudhon com Bastiat (1850), sobre o capital que produz juros[14], está muito aquém da Philosophie de la misère. Proudhon consegue ser derrotado até por Bastiat, e entra em furor cômico cada vez que o adversário lhe assesta um golpe.

Há alguns anos, Proudhon escreveu, para um concurso organizado, se bem me recordo, pelo governo de Lausanne, uma trabalho sobre impostos[15]. Aí desapareceram, por completo, os últimos vestígios do gênio e nada mais resta que o petit bourgeois tout pur[16].

No que respeita às obras políticas e filosóficas de Proudhon, todas elas apresentam o mesmo caráter ambíguo e contraditório dos seus trabalhos sobre economia. Além do mais, seu valor não ultrapassa as fronteiras francesas. Entretanto, seus ataques à religião, à Igreja etc., possuem um grande mérito, por terem sido escritos na França num época em que os socialistas franceses julgavam oportuno fazer constar que seus sentimentos religiosos os situavam acima do voltaireanismo burguês do século 18 e do ateísmo alemão do século 19. Se Pedro, o Grande, derrotou a barbárie russa com a barbárie, Proudhon fez o que pôde para derrotar com frases a fraseologia francesa.

Seu texto sobre o golpe de Estado[17] não deve ser considerado, simplesmente, como uma obra ruim, mas como uma verdadeira vilania que, ademais, corresponde plenamente a seu ponto de vista pequeno-burguês. Nesse livro, lisonjeia Luís Bonaparte, procurando torná-lo aceitável aos operários franceses. O mesmo vale para a sua última obra contra a Polônia, na qual, para a maior glória do tsar, demonstra o cinismo próprio de um cretino[18].

Frequentemente, Proudhon foi comparado a Rousseau. Nada tão falso. Está mais próximo a Nicholas Linguet, cujo livro Théorie des lois civiles é uma obra genial[19].

Proudhon possuía uma inclinação natural para a dialética. Mas nunca compreendeu a verdadeira dialética científica — não foi além dos sofismas. Na verdade, isso se explica pela sua mentalidade pequeno-burguesa. À semelhança do historiógrafo Raumer, o pequeno-burguês constitui-se de “por uma parte” e “por outra parte”. Como tal se nos revela em seus interesses econômicos e, logo, também em sua política e em suas concepções religiosas, científicas e artísticas. Assim nos aparece em sua moral e so in everything[20]. É a contradição personificada. E se é, além disso, como Proudhon, uma pessoa de espírito, logo aprenderá a fazer prestidigitação com as suas próprias contradições e convertê-las, segundo as circunstâncias, em paradoxos inesperados, espetaculares, ora escandalosos, ora brilhantes. Charlatanismo científico e oportunismo político são elementos inseparáveis de semelhante posição. A homens assim só resta um estímulo: a vaidade. Como a todos os vaidosos, preocupa-lhes unicamente o êxito momentâneo, a sensação de um dia. E é aí que se perde, fatalmente, o tato moral que sempre preservou Rousseau, por exemplo, de todo compromisso, mesmo aparente, com os poderes estabelecidos[21].

Talvez a posteridade, caracterizando esse período recente da história da França, diga que Luís Bonaparte foi o seu Napoleão e Proudhon o seu Rousseau-Voltaire.

O senhor me atribuiu uma tarefa penosa: o juízo sobre um homem morto, um homem que faleceu há pouco. Debito-lhe a responsabilidade que me foi imposta.

Respeitosamente,
Karl Marx

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Notas agregadas:
[1] Imediatamente após a morte de Proudhon (16 de janeiro de 1865), Scweitzer e W. Liebknetch pediram a Marx uma nota necrológica para o Social-Demokrat (cf. “Prefácio à primeira edição alemã” da Miséria da filosofia). O jornal publicou sem modificações esta carta de Marx, nas suas edições de 1, 3 e 5 de fevereiro de 1865. Numa carta a Engels, de 25 de janeiro, Marx comentou: “Atendendo a um pedido urgente de Schweitzer (...) remeti-lhe, ontem, um artigo sobre Proudhon. Você verá que alguns golpes bem fortes, aparentemente dirigidos a Proudhon, atingem o nosso Aquiles, a quem eram destinados”. Aquiles é referência a Lassalle.
[2] Quando da publicação da carta, a redação do Social-Demokrat, aqui, introduziu a seguinte nota: “Consideramos preferível publicar a carta sem qualquer modificação”.
[3] Trata-se do ensaio de Proudhon sobre gramática comparada, publicado no volume de Bergier, Os elementos primitivos das línguas, Besançon, 1838.
[4] Trata-se do texto O que é a propriedade? (ou Pesquisas sobre o princípio do direito e do governo), Paris, 1840.
[5] Trata-se da obra An essay of the principle of population as it affects the future improvement of society, with remarks on the speculations of Mr. Godwin, Mr. Condorcet and others writes, Londres, 1798.
[6] Trata-se da obra de Brissot de Varville, Recherches philosophiques. Sur Le droit propriété ET sur Le vol, considérés dans la nature ET dans la société, publicada no volume 6 da Bibliothèque Philosophique du Législateur, du Politque, du Jurisconsulte, Berlim-Paris-Lyon, 1782.
[7] Marx refere-se à carta de Proudhon que se insere nos Anexos deste volume.
[8] Cf., neste volume, pp. 125-126.
[9] No texto Miséria da filosofia não figura o parênteses introduzido aqui por Marx. Cf. p. 142 deste volume.
[10] Idem.
[11] Cabet: socialista utópico francês, figura de relevo na orientação do movimento operário da França entre os anos de 1830 e 1840. Dunoyer: político e economista vulgar: a obra referida por Marx é De la liberté du travail, ou simple exposé des conditions dans lesquelle les forces humaines s
‘exercent avec le plus de puissance, Paris, 3 volumes, 1845. [12] A intervenção referida por Marx é o discurso de Proudhon à Assembleia Nacional, em 31 de julho de 1848: nele, Proudhon denuncia a repressão aos revolucionários de 23-26 de junho como violência e arbítrio.
[13] Contra as propostas que Proudhon fizera à Comissão Financeira da Assembleia Nacional, Thiers replicou num discurso pronunciado em 26 de julho de 1848. Na Nova Gazeta Renana, de 5 de agosto de 1848, Engels publicou um artigo em que analisava as posições de ambos os políticos (“Discurso de Thiers contra Proudhon”).
[14] Marx se refere ao volume Gratuité du crédit. Discussion entre M. Fr. Bastiat e M. Proudhon, Paris, 1850.
[15] Trata-se da obra Théorie de l’impôt (Question mise au concors par le Conseil d’État du canton de Vaud en 1860), Bruxelas-Paris, 1861.
[16] Em francês: pequeno-burguês puro e simples.
[17] Trata-se do livro La révolution sociale démonstrée par le coup d’État du 2 de décembre, Paris, 1852.
[18] Trata-se da obra Si les Traités de 1815 ont cessé d’exister? Actes du futur congrès, Paris, 1863. Nesta obra, Proudhon protesta contra a revisão do Tratado de 1815 (Congresso de Viena) sobre a Polônia e se volta contra o apoio europeu ao movimento de libertação dos poloneses face à opressão do tsarismo russo. Aliás, sobre a posição dos políticos franceses diante do problema polonês, Marx chegou a observar (em carta a Engels, de 10 de dezembro de 1864) “a permanente traição dos franceses para com a Polônia, de Luís XV a Bonaparte II”.
[19] Essa obra foi publicada em Londres, em dois volumes, em 1767.
[20] Em inglês: então em tudo.
[21] É bem claro que essas últimas frases visam Lassalle.
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MARX, K. “Carta a J. B. Schweitzer”. In: MARX. K.  A miséria da filosofia: resposta à Filosofia da miséria, do sr. Proudhon. Trad. José Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 259-269.
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quarta-feira, 29 de novembro de 2023

O racha e seu reflexo na juventude


A Coordenação Nacional da União da Juventude Comunista (CN/UJC), organização de juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) vinculada a ele histórica e organicamente por meio de seus quadros compartilhados e por submissão à sua linha política e deliberações partidárias, vem por meio desta nota se manifestar publicamente acerca do racha em andamento em nosso partido, que se cristalizou especialmente por meio da atuação da juventude fracionista cuja argumentação construída para se justificar já é de conhecimento público.

Sabemos que esta nota é tardia. Infelizmente, houve entre os militantes restantes da Coordenação Nacional uma sobrecarga produzida pela necessidade de sustentar o trabalho organizativo da juventude a nível nacional, enquanto a grande maioria dos então membros debandavam para uma outra organização que buscava disputar e incorporar, primeiro internamente e depois publicamente, o nome e os trabalhos da UJC, desvinculando nossa organização do PCB.

Se, por um lado, parte de nossos trabalhos foi gravemente prejudicado ou tomado de assalto pela nova organização, como nossa construção da UNE (no qual alguns dissidentes assumiram as cadeiras que legitimamente foram conquistadas com esforço coletivo e pertenciam à UJC e, portanto, ao PCB), não permitiremos que deem fim aos esforços da juventude comunista por meio de práticas oportunistas e fracionistas. Da mesma forma, não permitiremos que roubem nosso nome e história. Assim, ressaltamos que este é o posicionamento legítimo da UJC, que vem paulatinamente lutando para recuperar nossas redes e canais de comunicação usurpados, e que foi redigido pela Coordenação Nacional eleita em congresso e que goza da plenitude de seus direitos estatutários e políticos na organização, diferentemente de tantos ex-membros que hoje compõem fileiras alheias e disseminam a confusão por falsearem sua identidade organizativa.

O racha já é um fato consumado, apesar das tentativas de manutenção da unidade da UJC a nível nacional. A organização que se constituiu com o racha do PCB – intitulada PCB-RR – forçou uma profunda ruptura no interior da UJC. Dessa forma, a CN/UJC entende que é necessário assumir postura decisiva em meio a esta crise, debatendo-a politicamente e defendendo nossos princípios organizativos: o centralismo democrático, a ligação orgânica com o PCB e o compromisso com a Revolução Socialista.
 
Antecedentes da crise

Toda questão organizativa é também uma questão política, então não podemos iniciar o debate por outra forma que não analisando quais as teses políticas defendidas por este grupo, que passou a se constituir enquanto um partido próprio ao adotar a sigla de PCB-RR, anunciar a existência de uma Coordenação Nacional própria, criar espaços de articulação paralela em distintos estados e construir seus próprios meios de comunicação. Dentro dessas posições encontraremos as razões de fundo para a ruptura e os indícios que nos permitirão diagnosticar o futuro deste partido e do nosso.

A primeira tese defendida pelo PCB-RR é a polêmica pública, um posicionamento retirado da literatura leninista sobre a construção do Partido Revolucionário, como um pré-requisito para organizar a disputa interna, permitindo que as ideias se confrontem livremente. Na prática, essa proposta abre alas para a organização de tendências dentro do Partido, expressas enquanto correntes de opinião e com potencial para constituírem estrutura própria. Em resumo, se trata da adoção de um princípio que regia o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Este debate é, em si, relevante. A todos interessa a construção do Partido Revolucionário e nenhum comunista pode abdicar de discutir os meios necessários para essa construção, por mais difíceis e desgastantes que sejam. Contudo, essa é uma tese já debatida em congresso, tanto no XVI Congresso do PCB quanto no IX Congresso Nacional da UJC (CONUJC), e em ambos foi derrotada, com graus diferentes de maioria. Portanto, é compreendido que o intelectual coletivo que constitui a militância do PCB e da UJC rejeita essa tese, e entende que a atual forma organizativa do PCB (o Partido Comunista herdado da III Internacional) é a adequada para construir a Revolução Socialista no Brasil, e neste caso este entendimento se dá sem abrir mão da crítica e a autocritica interna constantemente praticada nas devidas instâncias.

Contudo, embora rejeitada coletivamente, essa tese encontrou uma brecha na atual forma organizativa do complexo partidário para se expressar ilegitimamente. A autonomia relativa dos coletivos partidários, principalmente da UJC, foi instrumentalizada para construir tendências internas. Não negamos que há um descompasso na relação entre o PCB, seus coletivos e sua Juventude. Uma organização que exercita o centralismo democrático não deve se abster da crítica ou menosprezá-la. Os erros devem ser combatidos e superados. Contudo, não é negando os princípios da nossa própria organização que construiremos o caminho para superar essa contradição. Enquanto marxista-leninistas, temos o compromisso histórico de melhorar nossa organização e não cindi-la quando a conjuntura não nos favorece do ponto de vista individual.

A segunda tese defendida pelo PCB-RR é a questão da independência proletária. Trata-se de uma contraposição importada dos nossos camaradas portugueses entre as políticas defendidas por Álvaro Cunhal e Francisco Martins Rodrigues (FMR), a frente ampla contra a independência proletária. O debate colocado é a identificação no Brasil das condições necessárias para romper com a política da frente ampla, entendida enquanto necessária no combate ao fascismo, e preparar a ofensiva proletária na constituição de um bloco de poder sob nossa hegemonia.

Mais uma vez, a polêmica justa é deturpada em prol da ruptura. Uma vez que não há uma política de frente ampla generalizada dentro do PCB, parte-se para a criação de espantalhos. Sabemos que essa questão foi um amplo debate dentro da conjuntura brasileira nas últimas eleições e saímos orgulhosos da nossa política independente frente a hegemonia forçada do petismo, sem nos abdicar de construir as lutas unitárias com o conjunto dos movimentos sociais e partidos políticos contra o bolsonarismo. Cultivamos nossa independência e, inclusive, pautamos o acirramento das lutas de massas nas ruas quando o petismo buscava travar isso visando o cálculo eleitoral. Por conta disso, tivemos um crescimento amplo como não víamos há muito tempo, principalmente na Juventude. Não negamos a grande dificuldade que o PCB tem demonstrado para encontrar as mediações táticas diante da conjuntura nos últimos anos, mas, entre erros e acertos, reconhecemos que uma linha revolucionária acertada tem prevalecido.

O primeiro espantalho construído foi sobre a Plataforma Mundial Anti-Imperialista (PMAI), quando a quebra de centralismo por parte do camarada Eduardo Serra foi usada para imputar um suposto giro a direita que estaria sendo planejado pelo conjunto do Comitê Central do PCB. Em seguida, dada a própria fragilidade do argumento, mudaram as acusações para a não caracterização do terceiro governo Lula pelo CC e um suposto rebaixamento tático do PCB em relação ao governo petista. Entretanto, outras ações, que dentro de uma interpretação mais estrita da independência proletária seriam condenáveis, como a participação em entidades representativas hegemonizadas pelo petismo e pela socialdemocracia (a exemplo das maiores entidades estudantis da América Latina, UNE e UBES), ou mesmo pela direita, não são sequer apontadas, dado o absurdo que seria defender essa política mais estreita na atual conjuntura. Então são apontados supostos rebaixamentos em questões onde a relação com o poder é mais distante – as relações internacionais e o governo federal – mas nas situações concretas, um alto grau de pragmatismo político é adotado pelo novo partido.

Vale lembrar que o debate sobre o papel da UJC na UNE já foi incansavelmente realizado durante todos os anos de governo petista e amadurecido até se concretizar a mudança no 55º CONUNE, iniciando nossa retomada ativa na disputa da direção da entidade. Esta ação foi construída coletivamente e referendada em nosso VIII Congresso. Desde então, a UJC tem realizado um importante trabalho na entidade que ajudou a fundar, disputando a linha política e fortalecendo o papel da mesma rumo a construção de uma universidade popular.

Dentro do PCB e do seu complexo partidário não há centralismo teórico. Todos os seus militantes são livres para defender o que acreditam, dentro dos princípios do marxismo-leninismo. O que não aceitamos é que a autonomia relativa da Juventude e das suas instâncias seja utilizada para romper com o centralismo-democrático, corrompendo nossa forma-partido e prejudicando a construção do nosso organismo revolucionário, de acordo com nossas resoluções tiradas em Congresso. A tese da forma-partido do PCB-RR foi derrotada no IX CONUJC, assim como no XVI Congresso do PCB. Portanto, as tentativas de aproximar a militância da UJC das teses dessa fração são baseadas em atropelos das nossas deliberações coletivas. Convocamos todos que acreditam nos princípios do PCB e aceitam sua disciplina partidária e permanecer nas fileiras da UJC, contudo, não podemos aceitar que o desrespeito ao nosso Estatuto às nossas Resoluções tiradas no IX CONUJC.
 
O IX CONUJC

Vale avaliar o processo do último congresso para colocar em questão as diversas evidências de fração organizada dentro da UJC, com seu epicentro no estado de São Paulo, assim como destrinchar a vitória da linha do giro operário-popular e da construção nacional da organização.

A tese da formação de tendência interna apareceu no IX CONUJC a partir da proposta de nacionalização do jornal O Futuro de São Paulo via a construção de um jornal nacional da UJC, em detrimento da construção do jornal do PCB, o Poder Popular. Essa iniciativa nasceu na antiga Coordenação Regional de São Paulo e extrapola suas incumbências para incluir também o direito a polêmica pública e aberta, que serviria então para organizar abertamente os campos de opinião dentro da UJC, dando um salto qualitativo na organização de tendências. Durante toda a etapa nacional do Congresso ficou mais do que evidente, inclusive por via de denúncias, que a grande maioria da delegação de São Paulo, principalmente a proveniente do movimento estudantil universitário, defendia esta tese de forma orquestrada e organizada, tentando levar uma maioria nos Grupos de Discussão a partir do grande número de delegados que possuía o estado devido ao inchaço da organização em São Paulo. Mesmo assim, a maioria dos GDs e da plenária final votou contra a tese, a derrubando, e incluindo em seu rechaço a crítica de fracionismo e oportunismo por reapresentar um debate derrotado no XVI Congresso do PCB, a partir do que diversos dirigentes ligados ao jornal O Futuro de SP foram a tribuna “justificar sua abstenção” para se defender e tentar virar a acusação de fracionismo.

A vitória do giro operário-popular já se deu de forma mais sutil. Não houve no congresso uma contraposição aberta contra as prioridades da UJC no próximo período: o movimento estudantil secundarista e os jovens trabalhadores. Contudo houve sim um processo de secundarização da pauta em detrimento do já consolidado na juventude (o movimento estudantil universitário) e também do debate acerca do estatuto e da forma organizativa da UJC. Esse debate, que em grande parte levou de nada a lugar nenhum, uma vez que o PCB já tinha rechaçado a polêmica pública e a UJC não poderia ir contra o seu Partido, restringiu o tempo de discussão e elaboração política sobre a maior tarefa da UJC no próximo período: o giro operário-popular das suas fileiras. Assim nossa organização saiu do congresso com teses curtas e sem a devida atenção a estas pautas. Embora tenha havido uma vitória formal desta linha, houve também o seu enfraquecimento tático e ideológico, uma vez que as teses do IX CONUJC relegam boa parte do trabalho de formulação sobre a inserção nestes segmentos para a CN eleita, abdicando de criar uma linha consequente para todo o território nacional com base nos debates em todo o país.

Da mesma forma se dá a intervenção contra a concentração regional, em prol da construção da juventude nacional. Não há ou houve nenhuma tese congressual que defenda explicitamente a centralidade do trabalho no eixo Sul/Sudeste, reconhecendo que há a necessidade de enfrentar a burguesia brasileira de Norte a Sul no país. Contudo, a própria falta de teses e formulações políticas que saiam da compreensão política da complexidade regional do país, com especial atenção ao Norte (mas sem descartar o Nordeste e o Centro-oeste), acaba relegando a UJC a construir uma política nacional a partir da experiência no eixo Sul/Sudeste, com todas as particularidades que o desenvolvimento capitalista do Brasil incutiu a região, e no fim atrelando grandemente a atuação da UJC a uma certa concepção de movimento estudantil universitário, muito ligada a tradição política do estado de São Paulo.
 
A CN durante seu primeiro ano

Findado o IX Congresso e eleita a nova CN, a UJC embarcaria num novo momento da sua história. Pela primeira vez em décadas a juventude estava organizada em todos os estados da federação, com diferentes níveis de consolidação, e agora tínhamos um compromisso político, se não uma linha tática, de organizar o giro operário-popular em nossas fileiras e em nossa linha política, vinculando fundamentalmente a UJC ao processo de reconstrução histórica do movimento comunista brasileiro junto ao PCB. Contudo, já nos seus primeiros meses a CN passou por um processo de difícil consolidação, em grande parte causado pelos equívocos políticos na condução da sua organização interna e nas prioridades elencadas para o seu trabalho.

O mais grave desvio organizativo que prejudicou a consolidação da CN enquanto uma instância orgânica foi a centralização excessiva na Comissão Executiva Nacional e na Comissão Nacional de Organização, sendo esta última composta integralmente por dirigentes que aderiram ao racha. Essas instâncias não davam espaço e oportunidade para que a CN se reunisse e discutisse qualitativamente a nossa linha política. Nem mesmo nossa participação no CONUNE, com toda a sua importância, foi debatido em reunião do pleno da CN, tendo ficado a cargo da CEN e da CNME organizar a nossa atuação. Às demais comissões da CN, couberam a tarefa operativa de resolver as demandas que chegavam. Essa centralização, em unidade com a fragmentação do trabalho, onde os dirigentes de diferentes comissões foram, inclusive, várias vezes impedidos de dialogar entre si, levou a uma instância sem a menor capacidade de trabalho positivo, levando quase tudo a toque de caixa, tendo quase um ano de gestão e não tendo conseguido aplicar boa parte das suas atribuições de congresso e do seu próprio planejamento.

Mais uma evidência dessa desarticulação é a própria ausência de reuniões. Em quase um ano de gestão, o pleno da CN se reuniu apenas uma vez, para fazer seu planejamento. E a maior parte das comissões nacionais também encontravam dificuldades para se reunir regularmente, causando ineficiência e desarticulação da UJC a nível nacional. Contudo, essa letargia da CEN para organizar reuniões seria rapidamente sanada ao eclodir a crise, quando a Secretaria de Organização rapidamente se mobilizou para adiantar um pleno, violando uma decisão da própria CEN, a partir de uma votação na lista de e-mails no dia 08/08, alegando que caso houvesse maioria, uma nova reunião seria convocada com pauta específica para o dia 12/08, uma semana antes do previsto, dia 19/08. Curiosamente, esse adiantamento viria por uma “urgente necessidade de debate”, sendo que a CN não procurou se reunir nenhuma vez desde o início da crise, até o desligamento dos então dirigentes de Pernambuco e São Paulo pelos respectivos CRs.

III pleno extraordinário

Sob troca de e-mails acalorada entre os membros da Coordenação Nacional, a reunião já convocada foi aprovada pelo método irregular e unilateral levado a cabo pelo então Secretário de Organização. Dada a conformação da solicitação, a Comissão Nacional de Juventude solicitou que a reunião ocorresse em sala virtual sob sua coordenação, o que foi veementemente negado pela antiga secretaria de organização sob a acusação de que o Comitê Central não seria confiável e que a UJC teria total autonomia frente ao Partido para se reunir, debater e encaminhar o que bem entendesse por si própria, mesmo quando orientado que o acompanhamento da assistência partidária seria fundamental e que a moderação deveria ser da assistência partidária à juventude ao compreender os problemas de se convocar uma reunião desse calibre às pressas, com pouco debate prévio e com desqualificação patente das instâncias do PCB, assim, questionando postulado central da razão de ser de uma juventude partidária: a autonomia relativa.

O que se sucedeu não foi de estranhar. A então CNO criou sala virtual própria e o pleno da Coordenação Nacional da UJC se reuniu às 9 h do dia 12 de agosto de 2023 para debater sua posição pública frente a crise partidária. O fundamental da discussão foi colocado nos primeiros minutos da reunião: a ideia era chancelar nacionalmente as notas públicas das Coordenações Regionais que haviam rachado com a organização, pedido congresso extraordinário à revelia das instâncias partidárias e declarado não reconhecer a direção do PCB. Uma questão fundamental desta reunião é que mais da metade dos presentes haviam sido desligados do complexo partidário na véspera pelas respectivas direções estaduais por adesão ao PCB-RR, que já naquele momento contava com sua direção e canais de comunicação próprios e realizavam o movimento de colocar em prática a polêmica pública derrotada no XVI Congresso do PCB.

Compreendendo a necessidade de reunião da UJC, já muito tardia, e a inevitabilidade da reunião já posta em execução, à revelia da reunião anteriormente convocada para o dia 19 de agosto, a Secretaria Nacional de Juventude do PCB teve a postura de esclarecer dúvidas referentes às atitudes tomadas pelo Partido e permitir o livre debate. A permissão do livre debate é ponto fundamental, posto que, com mais da metade dos militantes compondo outro partido, a reunião não se expressava adequadamente como reunião de instância, senão como bilateral na qual é possível debater, mas não chegar a encaminhamentos conjuntos. Esta tônica se provou fundamental. Ao logo da discussão o que se viu foi a violação da unidade recém-construída no IX Congresso da UJC sendo defendida com palavras de uma suposta “unidade”. Para que houvesse maior possibilidade de se utilizar dos mecanismos da UJC para a realização da disputa interna por partidos outros, diversos ex-militantes se colocaram favoráveis a uma mediação para a proposta de adesão ao “XVII congresso extraordinário” (convocado pelo PCB-RR) seja ela a solicitação da realização de um XVII congresso, mas nos termos daquele proposto por partido alheio. Junto a esse encaminhamento proposto, somaram-se outros cujo caráter político era de não reconhecimento da legitimidade do Comitê Central e das instâncias partidárias; frente aos quais a Secretaria Nacional de Juventude manifestou que não reconheceria os encaminhamentos daquela reunião por se tratar de um debate realizado majoritariamente por militantes que já não compunham a instância, de modo que a CN devidamente eleita pelo IX CONUJC e chancelada pelo Comitê Central do PCB, dada a autonomia relativa da UJC, e que ainda se encontrava regular e ligada ao complexo partidário, encaminharia em reunião posteriormente realizada, retirando-se do espaço, por compreendê-lo como um espaço que, por mais que pudesse discutir, não era um espaço legítimo da União da Juventude Comunista.

De imediato se aprovou por maioria simples a retirada dos membros da Comissão Nacional de Juventude de todos os meios de comunicação da UJC, rompendo os canais de comunicação com o PCB e, portanto, quebrando com sua autonomia relativa e negando o centralismo democrático do Partido Comunista Brasileiro, bem como se aprovou os demais encaminhamentos já mencionados, além do posicionamento público da suposta instância, consolidando, portanto o racha na UJC. Nesse racha, no entanto, as redes sociais @ujcbrasil no Instagram e @ujcbr no Twitter ficaram com os fracionistas, que em poucos instantes após o encerramento da reunião postaram extensa nota política em defesa própria, comprovando que a mesma já se encontrava pronta e que já havia organização paralela para este momento de fracionamento.

Neste sentido, a CN UJC eleita democraticamente no IX Congresso da UJC, e reconhecida pela Comitê Central do PCB, orienta o conjunto da militância os seguintes pontos:

1) Nossa organização surgiu como juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a ele é preservada uma relativa autonomia como consta no 1º art. de nosso Estatuto. Logo, todo e qualquer militante da UJC deve defender e reforçar as nossas resoluções eleitas em congresso, bem como aprofundar as críticas e gozar do pleno direito a crítica nas devidas instância, como determina nossas resoluções. A saber:

Art. 1° A União da Juventude Comunista (UJC), é a Juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e sua escola de quadros, submetida a ele histórica, orgânica, política e ideologicamente, possuindo autonomia relativa em relação ao PCB, ou seja, mantendo seus próprios congressos, organismos, direção, finanças, etc, na medida em que sua existência, suas direções e ações são referendadas pelo PCB, em seus respectivos organismos. (IX CONGRESSO UJC, 2022)

2) As discussões relativas a democracia interna partidária, bem como todas as outras discussões que dizem respeito a nossa organização, devem ser realizadas nas devidas instâncias. Como sempre ocorreu, exercendo o direito de se expressar nos debates internos sem riscos ou ameaças de algum tipo de “perseguição” ou “expurgo”. O exercício pela busca incessante do consenso é referência de uma organização que pratica o centralismo democrático, devemos abraçar a forma mais fraterna e empática de lidar com temas polêmicos. Não podemos abrir mão do respeito e da camaradagem quando lutamos pela nossa organização.

Coordenação Nacional da UJC

11 de setembro de 2023
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quinta-feira, 27 de julho de 2023

Baudrillard compreendeu a vida simbólica do capital, mas se esqueceu do mundo material

por Miri Davidson
Jacobin

O pensador francês Jean Baudrillard desenvolveu uma análise pioneira do simbolismo e do consumo no capitalismo moderno com algumas opiniões valiosas. Mas perdeu de vista as estruturas materiais das quais depende o poder do capital e mergulhou num beco político sem saída.
O que devemos pensar de Jean Baudrillard hoje em dia? Embora ele tenha sido uma referência importante para qualquer estudante da hiperrealidade do capitalismo tardio, parece que ninguém tem falado sobre ele há anos.

Por um lado, essa negligência é intrigante. As afirmações de Baudrillard sobre o colapso da linha entre realidade e simulação são mais prementes do que nunca, com generais russos transmitindo ao vivo seus ataques a cidades ucranianas e “pesquisadores” do QAnon transformando enigmáticos poemas do 8chan em insurreições no mundo real.

Por outro lado, parece perfeitamente razoável: com a revitalização da política socialista, o radicalismo performativo de grande parte do trabalho posterior de Baudrillard – acompanhado de rejeições ao marxismo e a qualquer projeto político emancipatório – parece ainda mais vazio. Perry Anderson descreveu Baudrillard como “um pensador cujo temperamento, para melhor ou pior, é incapaz de concordar com qualquer noção de aceitação coletiva”. Em um momento em que “pensar de forma diferente” por si só é prerrogativa da extrema-direita, é duvidoso que esse tipo de atitude nos ajude.

No entanto, Baudrillard nem sempre estava convencido da ineficácia da política de esquerda ou da redundância do marxismo como referencial teórico. De fato, seus três primeiros livros — O Sistema de Objetos (1968), A Sociedade do Consumo (1970) e Por uma Crítica da Economia Política do Signo (1972) — demonstram um esforço sustentado de atualização do marxismo para que ele pudesse abordar as questões prementes de seu tempo.

Como explicar a decomposição da classe trabalhadora na era do pós-guerra? O que a produção em massa tinha a ver com o declínio das lutas dos trabalhadores? Embora as respostas de Baudrillard a essas questões se desdobrem ao longo dos anos em proclamações cada vez mais não sérias sobre uma “nova fase” do capitalismo semiótico, suas orientações em mudança podem nos dizer muito sobre a trajetória da teoria francesa e a crítica parcial ao capitalismo que ela deixou em seu rastro.

Os pronunciamentos de Jean Baudrillard sobre o colapso da linha entre realidade e simulação são certamente mais prescientes do que nunca hoje.

Um levantamento zoológico dos signos

Iniciando sua carreira intelectual como germanista, Baudrillard cotraduziu A Ideologia Alemã de Marx e Engels para o francês, leu a obra de Theodor Adorno e Max Horkheimer antes de ser traduzida, e conheceu Georg Lukács desde cedo. Mas parece que ele tomou “literalmente”, como escreve Charles Levin, a afirmação de Lukács de que “o problema das mercadorias” era “o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todos os seus aspectos”.

Em outras palavras, para Baudrillard, a mercadoria não era um portador fetichizado das relações sociais capitalistas, fazendo com que essas relações parecessem coisas externas a nós. Era literalmente um objeto, e a análise desse objeto era para ele a tarefa principal da crítica teórica.

Assim, O Sistema de Objetos, primeiro livro e tese de doutorado de Baudrillard, buscou realizar uma espécie de levantamento zoológico de objetos cotidianos, começando com a seguinte pergunta:

Poderíamos classificar o crescimento luxuriante de objetos como fazemos com a flora ou a fauna, com espécies tropicais e glaciais, mutações repentinas e variedades ameaçadas de extinção?

Esse crescimento luxuriante de objetos atestou o que Kristin Ross descreve como o “sacode” da modernização francesa nos anos do pós-guerra: uma transição da pobreza da guerra para a domesticidade consumista que aconteceu com uma velocidade notável, tornando os anos 1960 irreconhecíveis em comparação com a década anterior. Como Ross escreve:

“Em apenas dez anos, uma mulher rural poderia adquirir eletricidade, água corrente, fogão, geladeira, máquina de lavar, uma noção de espaço interior distinto do espaço exterior, um carro, uma televisão e várias liberações e opressões associadas a cada um.”

Essas mudanças, que foram sentidas igualmente nas cidades em rápida expansão, explicam por que muitos intelectuais franceses da época – Roland Barthes, Maurice Blanchot, Henri Lefebvre, Edgar Morin, os Situacionistas – adotaram a categoria de “vida cotidiana” como chave para a compreensão da ordem social.

Para Baudrillard, o que esses objetos nos diziam era, acima de tudo, algo sobre a mudança na composição da classe. Para ele, os objetos não eram principalmente coisas funcionais. Eles eram signos: sinais através dos quais as relações de classe eram comunicadas e reproduzidas, através dos quais as necessidades eram fabricadas e o valor extraído, e através dos quais os antagonismos de classe eram sufocados.

Qualquer objeto, portanto, precisava ser compreendido a partir da perspectiva de seu “valor de sinal”. Esta era uma categoria duvidosa que Baudrillard inventou para complementar (e eventualmente substituir) as categorias de valor de uso e valor de troca de Marx em sua análise da mercadoria.

Para Baudrillard, o valor de sinal estava no cerne de como o capitalismo do pós-guerra funcionava. A capacidade de produção em massa superou a demanda e, portanto, novas necessidades tiveram que ser fabricadas e novos desejos criados para existirem. Os objetos se desvincularam de seus valores de uso, e uma matriz de significados simbólicos impulsionou tanto a produção quanto o consumo.

Baudrillard acabaria por entender que o capitalismo em si havia se transformado em um sistema semiótico — um jogo de significados desvinculado de qualquer base material. Essa concentração míope no nível semiótico logo foi espelhada na virada cultural ou linguística na teoria social a partir dos anos 1980. Essa virada envolveu dispensar qualquer análise séria das grandes mudanças que estavam ocorrendo na reconfiguração do trabalho, da exploração e das relações de classe em todo o mundo e rejeitar qualquer forma de crítica materialista como economicista ou reducionista de classe.
 
O compromisso das “classes médias”

No entanto, quando escreveu Para uma crítica da economia política do signo, Baudrillard ainda estava trabalhando dentro de uma estrutura amplamente marxista e intrigado com a mecânica da reprodução de classes. Sua própria formação estava localizada em algum lugar na complicada matriz das “classes médias” — seus avós eram camponeses enquanto seus pais eram funcionários públicos (“pequeno-burgueses muito humildes”, como ele dizia) — e as classes médias eram uma preocupação central deste livro.

Baudrillard ficou fascinado com a maneira singular como essas classes médias se relacionavam com os objetos domésticos. O que estava por trás da fixação por cortinas, cortinas duplas, carpetes, capas, porta-copos, lambris, abajures, plintos, bugigangas e tela de arame? E a mesa que está “coberta por uma toalha que, por sua vez, é protegida por uma toalha de plástico”, o cerco de cada artefato por um tapete rendado, ou a elevação moral de revestimentos — “o triunfo do verniz, polimento, folheado, banho, cera, encáustica, laca, vidro, plástico”?

Para Baudrillard, esse revestimento e cercamento barroco de posses falava de uma compulsão “não apenas para possuir, mas para enfatizar o que ele possui duas ou três vezes”. Essa compulsão, por sua vez, revelava a posição tensa da classe média em crescimento: simultaneamente ansiosa e triunfante, era “uma classe que avançou o suficiente para interiorizar os modelos de sucesso social, mas não o suficiente para evitar interiorizar simultaneamente a derrota”.

Ou seja, as classes médias viam tanto seu sucesso (a posse de objetos domésticos) quanto sua derrota (os limites rígidos de seu poder social) como sendo de sua própria criação. Elas aceitavam o aura reconfortante dos objetos como uma compensação por sua agência sacrificada. Era essa “legitimidade frustrada (com relação à vida cultural, política e profissional) que leva as classes médias a investirem no universo privado, na propriedade privada e na acumulação de objetos”, de acordo com Baudrillard. O tapete rendado falava de um compromisso de classe.

Política selvagem

Oproblema que Baudrillard procurou investigar — o que já foi chamado de “aburguesamento” da classe trabalhadora e sua relação com sua decomposição em curso — era, e é, um problema real. A mistificação atual sobre por que muitos eleitores aparentemente da classe trabalhadora parecem ter abandonado seus interesses de classe para votar em partidos de extrema-direita talvez pudesse ser superada com uma melhor compreensão de quem são as classes médias (por exemplo, se deveríamos vê-las como uma pequena burguesia muito ampliada, como sugere Dan Evans).

No entanto, a abordagem de Baudrillard para esse problema sempre foi unilateral. Sua atenção microscópica à disposição de objetos domésticos colocava fora da linha de visão as imensas mudanças no trabalho e na produção que estavam ocorrendo na época. Essa ênfase permeia sua visão de mundo: o consumo em massa parece não ser mais apenas um local de reprodução de classe, nem uma importante condição para a auto-acumulação do capital, mas a força motriz de todo o sistema. Com base nisso, só podemos entender a resistência como a rejeição do consumo e da ordem simbólica que o sustenta.

Trabalhando no Departamento de Sociologia de Nanterre, em março de 1968, Baudrillard se encontrava no marco zero do movimento estudantil.

Isso parecia confirmar para Baudrillard que sua experiência de luta política. Trabalhando como assistente de Lefebvre no Departamento de Sociologia em Nanterre em março de 1968, ele se viu no epicentro do movimento estudantil. Mas após a vitória esmagadora de Charles de Gaulle nas eleições de junho daquele ano, ele lembrou que “o movimento se desvaneceu a uma velocidade fantástica – realmente fantástica”.

Muitos dos envolvidos nesse movimento argumentaram que seu fracasso estava enraizado nas contradições entre sua base operária e estudantil. As principais organizações trabalhistas, como a Confederação Geral do Trabalho (CGT), buscaram desarmar a greve geral, enquanto os líderes do Partido Comunista Francês (PCF) denunciavam os líderes estudantis como “falsos revolucionários”. No entanto, se as instituições trabalhistas haviam se vendido, parecia que elas o fizeram, pelo menos em parte, em resposta à sua base. Como disse um palestrante em uma discussão do corpo docente de Nanterre, a classe trabalhadora havia se “apegado ao consumo”.

Aqueles menos apegados ao consumo pareciam ter o maior potencial revolucionário. Estudantes, mulheres, gays e lésbicas, imigrantes: todas essas figuras privadas, por várias razões, de um salário familiar estável ou do sonho da domesticidade consumista, irromperam na esfera pública com o que Baudrillard chamou de comportamento político “selvagem”. Desde greves selvagens de trabalhadores imigrantes até revoltas estudantis, essas figuras “marginais” pareciam ser as únicas capazes de desafiar o que ele chamava de “domesticação” da humanidade.

As greves “selvagens”, para Baudrillard, pareciam expressar uma lógica fundamentalmente não instrumental: “Abertamente, coletivamente, espontaneamente, os trabalhadores pararam de trabalhar, assim, de repente, em uma segunda-feira, sem pedir nada, negociando nada.” Eles pareciam não se importar nem com o valor intrínseco do trabalho, nem com o incentivo salarial, nem com a racionalização capitalista do tempo.

Em última análise, a política selvagem da paisagem pós-68 refletia a mente selvagem, com sua recusa de todas as velhas categorias marxistas que agora pareciam nos oprimir: produção, trabalho, valor de uso, história universal, revolução, dialética, mediação, representação. Para Baudrillard, todas essas categorias revelavam “um etnocentrismo incurável do código”. Elas estavam presas na lógica do próprio sistema que procuravam contestar.

Anti-capitalismo sem emancipação?

Os primeiros escritos de Baudrillard refletem, portanto, as mesmas tendências — e os mesmos problemas — que os de muitos pensadores da Nova Esquerda que procuraram revigorar o marxismo para a era do pós-guerra. Este foi um período de prosperidade tão grande que a tese de Marx de crescente empobrecimento proletário parecia ter sido desmentida: as crises cessaram, a produtividade aumentou, os salários aumentaram e as classes médias cresceram.

Essas condições deram origem a uma forma de teoria social que se concentrou na alienação em vez da exploração, já que o problema central das democracias ocidentais parecia não ser a precariedade, a pobreza e a crise, mas a mercadorização da vida cotidiana. As pessoas não eram livres porque enfrentavam insegurança material crônica – ou assim parecia – mas por causa da submissão da vida e da atividade humanas pelas injunções racionalistas de comprar, vender e consumir.

Como Baudrillard escreveu em O Sistema de Objetos:
 
Assim como as necessidades, sentimentos, cultura, conhecimento — em suma, todas as faculdades propriamente humanas — são integrados como mercadorias na ordem da produção… assim também todos os desejos, projetos e demandas, todas as paixões e todos os relacionamentos, são agora abstraídos (ou materializados) como sinais e como objetos a serem comprados e consumidos.

Em outras palavras, o capitalismo era um problema por causa da reificação: ele convertia a vida humana em coisas e aplanava sua variedade irredutível em quantidades padronizadas necessárias para a troca.

Do nosso ponto de vista hoje, parece claro que essa crítica é parcial; ela confunde o sintoma com a doença. Observar a reificação, o consumo e a mercadorização como os problemas principais levaram a respostas políticas que buscavam simplesmente negar essas coisas: coisificação, anti-consumismo, desmercadorização.

Baudrillard queria desreificar o mundo introduzindo novas categorias — a troca simbólica, que tirou de Georges Bataille uma fascinação por desperdício, excesso e despesas, era a mais importante delas. Era como se esse vocabulário pudesse, em si mesmo, superar a dominação das relações capitalistas. Outros pensadores, menos cínicos do que ele, construiriam várias gerações de radicalismo político com base no anti-consumismo e na desmercadorização.

O anti-consumismo em si não é de forma alguma uma posição emancipatória. Claro, o anti-consumismo em si não é de forma alguma uma posição emancipatória. E a desmercadorização sempre foi tanto um momento de acumulação capitalista quanto a invasão das relações de mercadoria em cada vez mais cantos da vida social. A desmercadorização também poderia ser facilmente um projeto para levar as mulheres de volta ao ambiente de trabalho, para o seu lugar “natural”, o lar, como é o objetivo de muitos movimentos de extrema-direita hoje em dia.

De fato, pensadores de extrema-direita, como Alain de Benoist e Aleksandr Dugin, conhecem bem a crítica da Nova Esquerda à mercantilização e ao consumo. Para a extrema-direita, o “capitalismo desperto” apaga nossas identidades – que ela fantasia como fixadas em uma essência biológica ou racial – ao nos fazer consumir e para que consumamos melhor. Como afirmou a primeira-ministra de extrema-direita da Itália, Giorgia Meloni, em um discurso de 2019:
 
Não posso me definir como italiana, cristã, mulher, mãe. Não. Devo ser cidadã x, gênero x, pai 1, pai 2. Devo ser um número. Porque quando sou apenas um número, quando não tenho mais uma identidade ou raízes, então serei o escravo perfeito à mercê de especuladores financeiros. O consumidor perfeito.

Baudrillard ele mesmo não era um pensador de extrema-direita. No entanto, suas obras posteriores, como A Guerra do Golfo não Aconteceu, são fundamentadas exatamente no tipo de narrativas de choque de civilizações em que a extrema-direita prospera hoje. Como escreveu Peter Osborne, por trás de todo o seu aparente radicalismo estava “o conservadorismo civilizacional mais triste” — esse era “um discurso filosófico da modernidade no pior sentido”.

Baudrillard não começou assim, e suas primeiras escritas refletiram um esforço genuíno para repensar o marxismo economicista do Partido Comunista Francês e entender a decomposição da classe trabalhadora. No entanto, seu tipo de anti-capitalismo mostra ser uma base instável para uma política emancipatória.

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[0] Tradução de Sofia Schurig.
[1] Miri Davidson é professora de teoria política na Universidade de Warwick. Atualmente, ela está trabalhando em seu primeiro livro, provisoriamente intitulado Primitivismo Contra o Marxismo: Antropologia Francesa e Pensamento Político Radical, 1945-1975.

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sábado, 15 de outubro de 2022

Como o bolsonarismo manipula o senso comum?

 
por Golbery Lessa
O Poder Popular
O senso comum torna viável a vida cotidiana, mas suas dimensões irracionais são estimuladas e usadas pelo fascismo. Como entender e dar combate a essas estratégias?
O pensamento cotidiano, conhecido como senso comum, é parte insuperável da subjetividade das pessoas e se relaciona intimamente com as outras formas de compreender o mundo: a religião, a ciência, a filosofia e a arte. O fascismo, por ser necessariamente irracionalista, faz a apologia do senso comum como tipo superior de representação da realidade social. Essa característica determina a hostilidade fascista contra o meio artístico erudito ou popular, a Universidade, as igrejas progressistas e outros polos de produção cultural. Portanto, para fazermos uma crítica teórica e prática da estratégia de propaganda bolsonarismo em geral e, em particular, na campanha do segundo turno da eleições de 2022, é fértil refletirmos mais detidamente sobre o papel do pensamento comum na disputa por hegemonia e direção política.

Senso comum

O senso comum teria as seguintes características, segundo G. Lukács (Estética, Barcelona: Grijalbo, 1966): 1) materialismo espontâneo e pragmatismo diante dos fatos imediatos 2) foco exagerado nas relações de causa e efeito aparentes, as únicas que a pessoa leiga tem condições de perceber; 3) renúncia deliberada de compreender as mediações mais densas e explicativas dos fenômenos, o que abre flanco para a aceitação de teorias incoerentes, místicas ou mitológicas; 4) abertura para a absorver os resultados da religião, da ciência, da arte e da filosofia, mas sem poder adotar os métodos próprios destas formas mais complexas de conhecimento – esta característica implica na aceitação, via reconhecimento da autoridade, de referências intelectuais fora do senso comum; 5) tendência a generalizações exageradas a partir de poucos casos particulares; e 6) instabilidade na retenção do conteúdo adquirido das outras formas de conhecimento.

O fascismo/neofascismo/bolsonarismo busca estimular pela propaganda e a ação as propriedades irracionais do senso comum com o objetivo de hegemonizá-lo. Procura expulsar os resultados científicos/artísticos/filosóficos/religiosos progressistas presentes na mente dos indivíduos e provocar mudanças nas referências de autoridade intelectual em benefício de personalidades e grupos de extrema direita (“filósofos” alternativos, perfis fascistas nas redes sociais, igrejas conservadoras etc.). Divulga a “teoria” terraplanista, faz críticas infundadas às vacinas, tenta estigmatizar as lutas contra as opressões de gênero, defende o uso de medicamentos inúteis, entre outras “explicações” disparatadas, oferecidas como substitutos das explicações racionais sobre os mesmos fatos. Sem ter como vencer a disputa por hegemonia na Universidade, por exemplo, o fascismo instiga o irracionalismo no senso comum para desconectá-lo desta instituição.

O assédio fascista ao senso comum é combatido por socialdemocratas, comunistas, alguns segmentos liberais e outras correntes políticas comprometidas com valores racionalistas e humanistas, apesar de entre elas, claro, existirem disputas e interpretações diferentes de “razão” e “humanidade”. O resultado do embate dependerá de duas variáveis: 1) a experiência da população com políticas públicas e formas de mobilização propostas por cada tendência; 2) o conteúdo das mensagens e a estratégia de comunicação dos partidos. Como já tratamos da primeira variável em artigo anterior, e desejamos focar na estratégia discursiva antifascista para o segundo turno das eleições 2022, vejamos a segunda variável.
 
Combate ao uso fascista do senso comum

As tendências políticas racionalistas e humanistas não devem estimular as dimensões irracionais do senso comum. Por princípio, mas também por uma questão prática: quanto mais se instigar as dimensões obscuras do pensamento cotidiano (por exemplo, a partir de uma campanha de “fake news de esquerda”), mais ele será suscetível ao fascismo, na medida em que o materialismo espontâneo estará mais submetido a “teorias” absurdas.

No segundo turno das Eleições de 2022 e na luta contínua contra o fascismo/neofascismo/bolsonarismo, além de continuar a fazer discurso racional, focado na transmissão em linguagem popular da produção da ciência, da arte, da filosofia e da religião progressista, a esquerda precisa promover, por meio de mensagens e ações políticas, a autoridade intelectual das instituições produtoras de discursos racionais, no campo da erudição, como as Universidades públicas, bibliotecas e laboratórios estatais (Fiocruz, Butantã etc), e no campo da cultura popular, como as escolas de samba, os movimentos sociais e os grupos de esquerda da periferia. Sem deixar, evidentemente, de disputar hegemonia nestas instituições.

Não é razoável defendermos uma batalha da ciência/filosofia/arte contra o pensamento cotidiano, como se ele fosse um hóspede indesejado e o vilão da história da mente. Sem o senso comum, a humanidade não teria sobrevivido nos milhares de anos da chamada Pré-história e nem se diferenciado da natureza. Mesmo contemporaneamente, a inexistência deste tipo de pensamento tornaria inviável a vida cotidiana, pois não temos tempo para considerações científicas diante das centenas de decisões que somos obrigados a tomar durante um dia.

O melhor caminho é entendê-lo, respeitá-lo e lhe transferir os melhores resultados das formas racionais de entendimento (entre os quais está o pensamento religioso progressista, pois ele junta a fé com resultados da ciência/filosofia/arte). Em síntese: para combater o fascismo no campo das ideias, precisamos agir para reconectar o senso comum com as referências racionais de autoridade intelectual.
 
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domingo, 10 de julho de 2022

O rei está nu: vanguardice e vigarice



por Gustavo Ramos de Souza 

O termo vanguardice, sem dúvida, é uma forma pejorativa de referir-se às tendências de vanguarda. À primeira vista, pode parecer ressentimento daqueles que foram preteridos pelas novidades ou, até mesmo, assumir uma postura reacionária. Com efeito, essa aversão às novidades é ancestral e pode estar ligada à crença ou superstição do homem de que o novo traz consigo o inesperado, a incerteza e o acaso — como diz Nietzsche ao caracterizar o Mal. Por outro lado, o filósofo e crítico literário húngaro Georg Lukács afirma a tese de que a concepção de mundo subjacente à vanguarda contrapõe-se à do realismo crítico, pois, enquanto a vanguarda concebe o homem como um ser simplesmente dado, um ser-aí-no-mundo (Heidegger), em uma existência contingente, o realismo compreende o homem como um “animal social” (Aristóteles), como um ator histórico comprometido com os problemas de seu tempo. Entusiastas da avant-garde, como Theodor Adorno, enxergam na arte de vanguarda a única saída possível do impasse do desencantamento da arte, isto é, da arte “não-aurática”, enquanto Lukács, por exemplo, vê a vanguarda como uma solução escapista, tal como “a arte pela arte”, de indivíduos incapazes de oferecer quaisquer respostas para resolver essa questão; enfim, trata-se apenas de visões de mundo opostas.

Há um conto de Hans Christian Andersen chamado A nova roupa do rei, que narra a história de um rei muito vaidoso, apaixonado por roupas novas, que é enganado por dois vigaristas que se passam por tecelões e roubam todo o seu ouro. O ludíbrio se dá quando eles dizem ao rei vaidoso que a roupa que lhe fariam, além de ter desenhos magníficos, teria a capacidade de fazer com que o tecido só fosse visível aos olhos de pessoas inteligentes e capazes. Os vigaristas, então, levam dias enredando um tecido que não existe, enquanto roubam o rei. E todos os convidados a olhar o tecido dizem que é belíssimo, sem, na verdade, tê-lo visto. De fato, todos do reino se apercebem da farsa, mas ninguém tem coragem de dizer ao rei que não há roupa nenhuma — pois temem ser considerados tolos e incompetentes. O próprio rei sabe que não há tecido, uma vez que também não consegue enxergá-lo; no entanto, temendo passar por estúpido, deixa a farsa seguir adiante. Finalmente, quando terminada a roupa do tecido imaginário, o rei a apresenta aos seus súditos, sem que ninguém conseguisse enxergá-la, pois “ninguém queria dar a perceber que não podia ver coisa alguma, para não passar por tolo ou por incapaz” — até que um menino diz a famosa frase: O rei está nu! Pois bem, que sentido podemos extrair dessa história para compreendermos os movimentos de vanguarda?

O sentido que emana dessa parábola sobre a estupidez humana corresponde à própria visão de mundo da vanguarda, uma vez que os vanguardistas, sejam eles pintores, compositores, poetas, cineastas ou escultores, criam obras esotéricas e pernósticas, compreensíveis apenas para meia dúzia de iniciados de uma seita “artística” elitista e pretensamente intelectual, sendo considerados verdadeiros gênios, quando, na verdade, a sua “arte cabeça” nada mais é que arte “sem pé nem cabeça”. Mas ninguém tem coragem de dizer que aquilo é vazio, obscuro e sem sentido, pois teme receber a pecha de idiota e incapaz. O próprio Marcel Duchamp, paladino do vanguardismo do início do século XX, afirmou, a propósito de sua famosa Roda de bicicleta: “Essa máquina não tem intenção, a não ser de me livrar da aparência da obra de arte. Era uma fantasia. Eu não a chamava de uma ‘obra de arteʼ. Queria acabar com a vontade de criar obras de arte.” (apud BOURDIEU, In: As regras da arte, 1996) Aqui, temos a prova irrefutável de que a sua “arte” não tinha sequer a presunção de se afirmar como arte. Tratava-se tão somente de uma atitude anárquica contra os valores instituídos (aliás, sintoma típico das épocas de decadência), com o intuito de épater le bourgeois — tal como fazia o gênio louco Antonin Artaud. O problema é que, às vezes, o crítico quer saber mais do que o próprio artista. Buñuel, inclusive, ironizou as interpretações descabidas feitas sobre o seu curta-metragem Un chien andalou, de 1929, dizendo que: “Nada simboliza qualquer coisa”. O artista descobre, ao ler as análises sobre a sua obra, que ele intencionou fazer isto e aquilo, quando não intencionava fazer coisa alguma, como se dissesse: eu não sabia que quis dizer isso! Eu sei que seria ingenuidade considerar uma obra-de-arte como um produto autônomo, fruto da criatividade do seu criador — pois é inegável que arte é, acima de tudo, resultado, ou melhor, expressão, de estruturas sociais, como propõe brilhantemente Lucien Goldmann, em A sociologia do romance. Mas entre a questão social, o grau de abertura de uma obra e as divagações sem nexo do crítico existem fissuras impreenchíveis, pois um significante está ligado a um determinado significado, e não a qualquer significado. É no espaço que se abre entre um e outro que o hermeneuta atuará, mas nunca se esquecendo do gesto semântico proposto pela obra.

É óbvio que, neste momento, os defensores da dita “arte conceitual” levantar-se-ão contra mim (caso haja algum me lendo), dizendo que o artista tentou exprimir tal ideia, simbolizando isto e aquilo. Ora, se o artista foi incompetente em sua intenção de expressar algo, ele não tem nada que querer impor a sua interpretação sobre a própria obra. Por incrível que possa parecer, tal grau de cabotinismo, em tentar explicar a própria obra aos seus “estúpidos” receptores, é comum: Mário de Andrade, por exemplo, bem como os compositores da tradição da música programática já fizeram isso. Mas o fato é que o esoterismo da vanguarda, paradoxalmente, abre um horizonte de interpretação que os próprios “vanguardeiros” não querem depois admitir. Se a obra quer dizer uma coisa ou outra, expressando um determinado conceito, isso não tem qualquer relevância. A polissemia das obras de vanguarda tem de suportar também uma interpretação que seja capaz de dizer que, na verdade, essas obras não significam nada. Segundo Flávio Kothe, “para salvar a arte ‘auráticaʼ, Adorno defendeu a mímese como não-identidade a ponto de acabar havendo uma identificação às avessas: essa arte é exatamente o contrário do mundo, é igual a ele só que tudo ao contrário.” (In: Literatura e sistemas intersemióticos, 1981) Assim, a arte seria o refúgio do ideal, distorcendo a realidade degradante. Com efeito, o vanguardismo na pintura nasceu como uma reação ao desenvolvimento do daguerreótipo, que captava a realidade com mais precisão do que qualquer pintura realista. Às artes plásticas só coube então escapar da realidade, abstendo-se de tentar representá-la. Nesse sentido, a arte seria o negativo da realidade, o seu avesso. É esta a concepção de mundo da vanguarda: representar a realidade em sua negatividade, ou seja, abolindo-se as noções de causalidade, de dimensão, de percepção ótica, dos modos de ouvir etc., rejeitando-se a sintaxe, a lógica formal, a temporalidade, enfim, representar a realidade em sua negação. Eis que surge o problema da vigarice intelectual: a vanguarda abraça uma visão de mundo e quer torná-la uma verdade eterna, quando, na verdade, não quer admitir a fraqueza e impotência dos próprios homens que fazem. É a diferença, segundo Lukács, em participar e observar a História. O realismo quer forçar a participação, tornar os homens conscientes de seu papel histórico, enquanto a vanguarda concebe o homem dissociado de tudo, ao “Deus dará”, inconformado com o mundo à sua volta, mas incapaz de mover uma palha para mudar alguma coisa. O primeiro tem vontade de mudar o mundo, transformá-lo, reivindicar os seus direitos; já o segundo fica trancado no quarto, sentindo pena de si mesmo. Ora, o pessimismo é apenas uma visão de mundo, não é a verdade última da humanidade. Em relação a isso, a despeito de seu ultraconservadorismo, Monteiro Lobato, em seu notório artigo sobre a Exposição de Anita Malfatti, em 1917, faz uma afirmação que merece nossa atenção:

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos rirmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.

Obviamente, nem tudo quanto Lobato diz corresponde à verdade dos fatos — tanto que ele considera a arte de vanguarda como “anormal”, fazendo-nos lembrar do nazismo e de seu preconceito contra a “arte degenerada”; todavia, fica claro esse impasse entre visões de mundo totalmente distintas. Para nos atermos somente à literatura do século XX: de um lado, temos Roger Martin Du Gard, Romain Rolland e Thomas Mann; do outro, André Gide, James Joyce, William Faulkner, Samuel Beckett e o nouveau roman. Há, sem dúvida, grandeza dos dois lados. Mas o grande problema da vanguarda é que esse pessimismo transgressor, logo, tornou-se institucionalizado, perdendo toda a sua força de outrora. Quando todos se tornam transgressores, a transgressão torna-se, por conseguinte, convencional, isto é, o gesto subversivo, anárquico e demoníaco cai no lugar-comum, tornando-se unanimidade. Do mesmo modo que diziam, no início do século passado, que não fazia mais sentido ser realista; hoje, não faz mais sentido ser vanguardista. Como bem o disse Ferreira Gullar: “o que é institucional não é revolucionário, ou é uma coisa ou é outra”. A vanguarda reduziu a arte ao absurdo, em sua pura negação, porquanto em um mundo onde o não, a negação é a ordem, o underground torna-se mainstream. A consagração da transgressão é uma hipocrisia ideológica que muitos não querem admitir, pois a vanguarda é considerada o último suspiro da arte sobre a terra. Assim, temos observado o declínio da vanguardice e a ascensão da vigarice, haja vista que o ideal de que “tudo é arte” faz com que seja considerado arte qualquer coisa, desde mictórios e rodas de bicicleta até a completa ausência de tudo. Enfim, a vanguarda promove a mistificação da arte, criando falsos gênios e enredando tecidos que ninguém vê, mas finge que vê, porque pega bem gostar de arte pós-moderna, porque é ser cult, também, para não ser rotulado de estúpido e incapaz. Em virtude disso, o rei continua nu, e a arte deixou de ser arte.
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segunda-feira, 27 de junho de 2022

O aprendiz de feiticeiro: tradição liberal e fascismo


por Guy Lancaster
Marx and Philosophy/2012

No atual discurso político americano, termos como “liberal” e “fascista” — como “comunista” e “socialista” — há muito tempo foram esvaziados de todo significado substantivo, empregados por comentaristas de direita quase de forma intercambiável para significar ideias ou pessoas que eles consideram repreensíveis. De fato, o livro de Jonah Goldberg de 2008, Liberal Fascists: The Secret History of the American Left from Mussolini to the Politics of Meaning, tentou formular uma taxonomia do fascismo para permitir sua ligação com desdobramentos esquerdistas como feminismo, vegetarianismo, direitos dos homossexuais e até neopaganismo. Enquanto isso, o presidente supostamente “liberal” Barack Obama tem sido frequentemente retratado como o fascista Adolf Hitler e o comunista Joseph Stálin, às vezes no mesmo painel raivoso, como se essas figuras representassem anseios ideológicos idênticos. A compreensão popular do fascismo claramente não melhorou desde o momento em que George Orwell, em “Politics and the English Language” (1946), alertou para os efeitos práticos de transformar tais termos em borrões de Rorschach ideológicos: “Desde que você não sabe o que o fascismo é, como você pode lutar contra o fascismo?” (Menos crucial, pode-se colocar a questão: se alguém acredita que o fascismo gerou os movimentos feminista e de casamento gay, como pode alguém entender o apoio do Vaticano a tantos governos fascistas?)

Uma correção muito necessária não só para as concepções populares do fascismo, mas também para um registro acadêmico que há muito tempo deturpou o fascismo como uma “terceira via” política entre o capitalismo e o comunismo, O aprendiz de feiticeiro [The Apprentice’s Sorcerer: Liberal Tradition and Fascism], de Ishay Landa, argumenta convincentemente que o fascismo tem sua origem na tradição liberal ocidental, embora de uma maneira mais de acordo com a observação concisa de Upton Sinclair: “fascismo é capitalismo mais assassinato”. Landa começa identificando como uma precondição histórica para o fascismo “a tensão inerente entre a dimensão política da ordem liberal e sua dimensão econômica” (21). Ou seja, a burguesia europeia do século XVIII exigiu governos representativos para libertar os mercados do protecionismo feudal, mas eles foram seguidos posteriormente pelas classes mais baixas que, por sua vez, exigiram o acesso a franquear eles mesmos na ordem para proteger seus próprios interesses, colocando o liberalismo econômico original contra o liberalismo político emergente. Enquanto John Locke defendia a democracia como escora do capitalismo, Vilfredo Pareto, cujas obras inspiraram Benito Mussolini, atacou a democracia “inteiramente nas premissas do liberalismo econômico”, como “sua restrição do ‘livre movimento de capital’ e sua invasão na propriedade privada por meio de tributação progressiva” (53). Linhas de pensamento similares eram correntes entre os pensadores alemães do período entre guerras, principalmente Oswald Spengler, e a animosidade de Adolf Hitler contra a democracia alemã estava baseada na crença de que “a República [de Weimar] significa[va] a interferência política ilegal e perniciosa no economia” (78).

Para mover melhor o debate para além da visão dominante de “terceira via” do fascismo, Landa conduz uma pesquisa exaustiva do que ele chama de “liberais antiliberais” — Arthur Moeller Van den Bruck, Thomas Carlyle, George Sorel e outros — examinando como tais críticos ostensivos do capitalismo de fato procuram reforçar a ordem liberal. Por exemplo, Landa argumenta categoricamente que a crítica de Carlyle ao laissez faire se baseia precisamente na observação de que ele “conduz, apesar de si mesmo, à democracia e ao domínio da multidão, destruindo o elitismo”, assim como as posteriores injunções fascistas contra o laissez faire foram empregados “não por entusiasmo revolucionário, mas para evitar a revolução; não para desafiar o capitalismo, mas para estabilizar seu navio; não para facilitar a sociedade sem classes, mas para consolidar as divisões de classe” (156, 157). O tema do declínio da civilização ocidental, tão frequentemente expresso pelos pensadores do início do século XX, regularmente se eleva do desespero pelo envolvimento das massas na política, e Landa encontra em Sorel “não tanto um inimigo do capitalismo, como... um inimigo do capitalismo fraco, dado a buscar compromissos com o socialismo parlamentar que foi uma espécie de economia mista e decadente” (197).

Nos dois últimos capítulos do livro, Landa confronta quatro “mitos” sobre o fascismo. Em relação ao primeiro, de que o fascismo constitui a tirania da maioria, Landa ilustra como os supostos defensores liberais da democracia, de Alexis de Tocqueville a Benedetto Croce, se preocupavam principalmente com a supremacia das classes proprietárias, enquanto outros pensadores como Ludwig von Mises propunham que a ditadura pode ser necessária para defender o liberalismo. Em segundo lugar, contra a noção de que o fascismo promoveu o coletivismo enquanto o liberalismo promoveu a individualidade, o autor observa “que tanto o fascismo quanto o liberalismo foram, de fato, atravessados ​​por uma ambivalência insolúvel em sua abordagem do individualismo” (251-2); na verdade, embora o fascismo empregasse regularmente a retórica do coletivismo (elevando ao mais alto a nação, a raça ou a sociedade), também fetichizou o individualismo na forma do “grande homem” e desmantelou a democracia em nome do individualismo. A origem da “grande mentira” vem ao escrutínio em seguida, e Landa a localiza dentro de uma longa tradição liberal de escrita esotérica que visa apoiar as elites enquanto esconde a verdade das massas “vulgares” e “ingênuas”. Finalmente, no que diz respeito às alegações de que o fascismo constituiu um ataque nacionalista ao cosmopolitismo liberal, Landa constata que os fascistas exibiram algumas das mesmas ambivalências sobre a ideia de nação que eles fizeram sobre o individualismo (afinal, é através das nações que as massas têm seus direitos), embora para a Alemanha a nação forneceu “a plataforma necessária, a partir da qual lança uma campanha de expansão capitalista” (319).

A abordagem de Landa garante não apenas uma nova conceituação da tradição liberal, mas também — visto que apresenta uma genealogia do fascismo não utilizada pela maioria dos estudiosos da violência massificada europeia — uma revisitação de análises anteriores do inter-relacionamento entre fascismo e genocídio. Por exemplo, Aristotle Kallis, em Genocide and Fascism: The Eliminationist Drive in Fascist Europe (2009), prontamente emprega a visão da “terceira via” ao explicar como os regimes fascistas desenvolveram visões utópicas de regeneração nacional que buscavam apagar o passado imediato e redimir o estado-nação, mas a tese de Landa oferece um retrato muito mais rico desse desenvolvimento, pois agora o passado a ser expurgado é reconhecido como o avanço democrático do interesse popular, enquanto o estado a renascer é um de ordem hierárquica e contentamento entre as várias classes quanto ao seu lugar nessa ordem. Além disso, a gama de vítimas, que incluía não apenas judeus, mas comunistas e socialistas, bem como não-produtores (os mentalmente e fisicamente inaptos), faz muito mais sentido se o fascismo for entendido como militante do capitalismo em vez de um conceito intelectual genérico ou anti-ideologia.

No entanto, alguns trabalhos recentes no campo dos estudos de genocídio complementam a tese de Landa. Christopher Powell, em Barbaric Civilization: A Critical Sociology of Genocide (2011), argumenta que o próprio discurso da civilização realmente aumenta a capacidade de uma sociedade para a e possibilita o monopólio do estado da — violência, especialmente porque o habitus “civilizado” permite uma fácil “alterização” daquelas populações ou indivíduos que não compartilham tais performances de comportamento civilizado. É claro que um dos marcos da civilização tem sido a economia de livre mercado, e a ausência de tal sistema entre muitos povos do mundo serviu bem para justificar a exploração colonial europeia dos chamados grupos “bárbaros”; muito antes de os líderes europeus do século XIX estarem se preocupando com os feitos dos marxistas, os ingleses na América do Norte condenavam as tendências “comunistas” dos nativos, cuja falta de qualquer conceito de “propriedade privada” os marcava como selvagens. Ainda hoje, entre os herdeiros da tradição liberal ocidental, o capitalismo é equiparado à civilização as forças ocupacionais americanas no Iraque começaram a privatizar grandes setores do governo no momento em que seus pés tocaram o chão em Bagdá, apresentando isso ao mundo como uma “modernização” da sociedade iraquiana.

Em seu epílogo, Landa ilustra brevemente como as elites empresariais e governamentais do Reino Unido e dos Estados Unidos realmente simpatizavam com o fascismo, com Winston Churchill até poupando elogios ocasionais a Hitler: “O verdadeiro Sonderweg, ao que parece, não é um caminho alemão, ou um italiano, ou um espanhol, ou um austríaco, mas o caminho do ocidente” (248). Tal expansão da nossa perspectiva está muito atrasada. Em um trabalho recente, Origins of Political Extremism: Mass Violence in the Twentieth Century and Beyond (2011), o cientista político Manus I. Midlarsky coloca o nacional-socialismo alemão, o imperialismo japonês e o islamismo radical sob o microscópio, mas deixa intocadas tamanhas atrocidades como a brutal ocupação britânica da Índia (o modelo ao qual Hitler aspirava), a colonização belga do Congo ou a guerra genocida dos Estados Unidos contra os nativos americanos; mas então, nenhum desses, apesar do número de mortos que rivalizava com o Holocausto, se encaixa em sua definição de extremismo, pois em vez de serem percebidos como fora do centro político de suas respectivas sociedades, descontínuos com a história anterior, os perpetradores dessas atrocidades incorporavam os ideais de suas respectivas sociedades especialmente a primazia do sistema capitalista. A tese de Landa, portanto, nos permite começar a construir uma estrutura conceitual muito maior de atrocidade massificada e suas origens, revelando a tradição liberal que está não apenas na base do extremismo fascista na Europa, com todas as suas roupagens horríveis, mas também no Destino Manifesto nos Estados Unidos e muito mais. Dentro desse quadro, os ideais e feitos dos fascistas se tornam não tão únicos, nem tão estranhos, mas tudo muito familiar.

Onde Landa ocasionalmente perde o fio de seu argumento é naqueles lugares onde ele traz sua análise para suportar as décadas pós-fascistas (se é que podemos falar de tal). Depois de notar como a retórica fascista sobre o individualismo santificou o sacrifício do indivíduo para o bem maior “‘o indivíduo’ virá primeiro quando confrontado com a sociedade de massa; mas a ‘sociedade’ virá primeiro, quando confrontada com as demandas dos indivíduos de massa” (255) ele salta para a administração de Margaret Thatcher, ilustrando a mesma dinâmica em sua retórica, como sua negação dos sem-tetos como um grupo versus o coletivismo dela em convocar o bem maior da sociedade durante a guerra pelas Ilhas Falkland [Malvinas]. Da mesma forma, ao explicar as origens liberais da “grande mentira” fascista, Landa faz um desvio para a sobreposição de teatro e política, especialmente como manifestada na carreira de Arnold Schwarzenegger, contrastando brevemente tais filmes anti-establishment dele, como The Running Man [1987] e Total Recall [1990], de seu mandato pró-establishment como governador da Califórnia.

Claro, é um subtexto corrente deste livro que se o fascismo se origina não de um impulso antiliberal e irracional confinado no tempo e lugar, mas sim das próprias contradições construídas na tradição liberal, a tradição pela qual nossas vidas continuam a ser governadas, então o fascismo pode emergir outra vez, talvez se reformulando de novo ou pode nunca ter desaparecido inteiramente. Nos Estados Unidos, numerosos políticos, suas carreiras financiadas por capitalistas, trabalham abertamente para limitar o poder de voto dos pobres e não-brancos uma solução clássica para a crise do liberalismo. Na escala global, o Fundo Monetário Internacional demanda que as nações do sul global se satisfaçam com sua parte (o contentamento de classe do passado) à medida que privatiza componentes de suas comunidades e lhes despojam de recursos. Podemos dizer que tais medidas evidenciam elementos de um impulso fascista dentro de nossos sistemas políticos e econômicos? Sim, podemos, pois a obra magistral de Landa responde à reclamação de George Orwell, enchendo a palavra “fascista” de significado e poder mais uma vez, para que ela possa ser empregada não como um insulto genérico, mas como uma descrição adequada de quem destruiria a democracia para o benefício do lucro.

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[0] Tradução original da resenha feita por Roberto Lucena e revisão de Paulo Ayres.
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