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quarta-feira, 8 de maio de 2024

O elitismo de Adorno contra o jazz


por István Mészáros

Analisado superficialmente, o alinhamento da “teoria crítica” com a perspectiva weberiana foi muito mais surpreendente. No entanto, havia importantes pontos de contato entre essa perspectiva e o pensamento geral da Escola de Frankfurt, apesar das diferenças entre seus membros individuais.

É fato que esta escola corresponde a um conjunto muito heterogêneo de pensadores. Sua diversidade incluía desde as esperanças de Walter Benjamin de participação direta na práxis política de esquerda[1] até o ativismo político “voltado para os excluídos” de Marcuse; desde o não-envolvimento sociopolítico de Adorno até o extraordinário ecletismo teórico[2] e, apesar de seus protestos verbais, o oportunismo político tecnocrático de Jürgen Habermas. Há uma certa ironia na elevação desses intelectuais ao status de uma instituição cultural venerável, porque a constituição de uma “escola” sobre a grande diversidade de indivíduos que foram finalmente classificados sob o rótulo de “teoria crítica” tinha tanto a ver com as necessidades da “indústria cultural” e da “comunicação de massas manipuladora" — dois dos alvos mais frequentes das denúncias mordazes de Adorno — quanto com a coerência intelectual de suas ideias.

Entretanto, para além das diferenças significativas, a origem weberiana da crítica da “burocracia” e da “razão instrumental” — compartilhada por praticamente todos os membros da Escola de Frankfurt — é bastante óbvia. E, mais importante ainda, encontramos uma forte tendência elitista nos escritos teóricos de todos os “teóricos críticos”, qualquer que seja o ponto particular do espectro político em que estejam situados.

Em relação a Adorno, isto foi enfatizado em muitas ocasiões. Citando uma análise favorável:
O discurso de Adorno sobre a mediação entre a práxis intelectual e a práxis política permaneceu abstrato e vago, sem explicação do agente social que poderia servir como condutor desta mediação, uma vez que o papel do partido foi rejeitado. O agente da “mediação” de Adorno permaneceu tão misterioso quanto o mediador entre os espíritos e a matéria do mundo, e a crítica de Hanns Eisler possui um inegável ponto de validade: “Esta crença metafísica e cega no 'desenvolvimento da música'. Se Adorno compreendesse pelo menos uma vez  que a música é feita por pessoas e para pessoas —  e se ela também se desenvolve, este desenvolvimento não é abstrato, mas de alguma forma pode ser ligado aos relacionamentos sociais! —, ele não diria este absurdo abstrato”.[3] Havia realmente algo de metafísico na ênfase que Adorno confere à verdade, e também em sua visão da elite intelectual como formuladora daquela verdade.[4]
O problema era, na verdade, até mais complicado do que está indicado nesta passagem, uma vez que não faltava apenas o “agente ou veículo social” da “mediação” programática de Adorno, mas também seu terminus ad quem emancipatoriamente efetivo. Isso trazia a necessidade de uma auto-orientação e de um retraimente intelectual, articulando-se na perspectiva pessimista de uma “dialética negativa” deliberadamente oposta à adoção de um ponto de vista social, sem deixar de buscar uma solução misteriosa dos problemas identificados, como resultado da ação a partir do campo problemático desta autocontenção desesperada.

Talvez por causa do forte sentimento de desesperança prática decorrente desta negação sem afirmação, nascida de uma autocontenção intelectual imposta a Adorno pela lógica interior do “veículo” e do terminus ad quem ausentes, ele assumiu algumas posturas que pareciam estranhas até em seus próprios termos de referência. Assim, embora postulasse o papel de “mediação” abstrata de sua elite, Adorno também idealizava o ato de ficar imerso, em total silêncio, na leitura da partitura musical — obviamente limitada a poucos escolhidos — como a única maneira realmente adequada, “imediata” e “não-adulterada”, de usufruir a música.[5] Lamentavelmente, comparada a tal concepção da comunicação musical, a aristocrática afirmação de seu ídolo, Schönberg — segundo o qual o público só é necessário para melhorar a acústica da sala de concertos —, poderia soar como a manifestação do humanismo democrático orientado para as massas.
 
Também os ataques românticos de Adorno contra o jazz traíam seu extremo elitismo. Ele via e abominava no jazz “a atitude perene da cultura de massa”[6], ridicularizando seus “apaixonados devotos” por “mal serem capazes de descrever, em conceitos musicais precisos, técnicos, o que é que tanto os comove”.[7] Ao mesmo tempo que condenava a incapacidade de tais “primitivos” para articular as ideias sobre seu objeto de admiração, Adorno dava sua opinião sobre o que estava realmente envolvido na execução e na experiência do jazz, opinião que parecia terrivelmente profunda: “O objetivo do jazz é a reprodução mecânica de um momento regressivo, um simbolismo da castração”.[8] E isso não era tudo. Ele acrescentava outra visão profunda, relacionada ao “sujeito” do jazz, definido por ele nos seguintes termos:
 
O sujeito que se expressa, expressa precisamente isto: não sou nada, sou sujo, e mereço qualquer coisa que façam comigo. Potencialmente, este sujeito já se tornou um daqueles russos acusados de um crime e que, embora, inocente, desde o início colabora com seu perseguidor e é incapaz de encontrar um castigo severo o bastante.[9]

Como é tão frequente nos escritos de Adorno, suas afirmações arbitrárias só eram “substanciadas” por analogias igualmente arbitrárias. Evidentemente, os sujeitos privilegiados capazes de relatar suas experiências musicais (não corrompidas pela “indústria cultural”) em “conceitos musicais precisos, técnicos”, e que já estivessem perfeitamente sintonizados no comprimento da onda da “teoria crítica” e da negação universal abstrata (mas concretamente bem acomodados), não teriam dificuldade em aceitar as duas afirmações — sobre o “sujeito sujo do jazz” e sobre “aqueles russos” — sem questionamento, juntamente com sua esclarecedora contribuição à compreensão da natureza do jazz, que teria escapado aos simples mortais. Este procedimento é muito semelhante ao que se usa quando dois nomes são ligados com um “e” nos títulos de livros para estabelecer um elo “orgânico” entre dois campos que de outro modo nada teriam em comum. Mas, por mais problemático que seja tal procedimento, aqueles que compartilham do ponto de vista de Adorno não teriam qualquer objeção a fazer. Sem dúvida, teriam afirmado imediatamente que uma das acusações mais óbvias que se poderia levantar contra o jazz “primitivamente improvisado” e “monotonamente sincopado” era a de fazer muito pouco uso, se é que fazia algum, das partituras musicais.

Tudo isso, no entanto, não altera o fato de que, em todo o ataque ressentido e arrogante de Adorno ao jazz, não se encontra uma única linha de análise musical; nem em “conceitos musicais precisos, técnicos”, nem sob qualquer forma. Em vez disso, o verdadeiro significado do jazz era descrito por Adorno da seguinte forma:
 
“Desista da sua masculinidade, deixe-se castrar”, é o que proclama o som assexuado da banda de jazz, “e se você será recompensado, aceito em uma fraternidade que partilha com você o mistério da impotência, mistério revelado no momento do rito de iniciação”. Se esta interpretação do jazz — cujas implicações sexuais são mais bem compreendidas por seus oponentes chocados do que por seus apologistas parece arbitrária e rebuscada, permanece o fato de que ela pode ser constatada em incontáveis detalhes tanto da música como das letras.[10]

Apesar da promessa de constatar em “incontáveis detalhes” aquilo que ele mesmo reconhecia estar sujeito à acusação de arbitrariedade e rebuscamento, nem uma obra de jazz foi sequer mencionada, e muito menos adequadamente analisada, nesse ensaio tão parcial. Nem mesmo os nomes de alguns músicos de jazz foram apresentados como exemplos ilustrativos, exceto dois — Mike Riley e Louis Armstrong. Mas mesmo estes foram tomados de segunda mão de duas obras críticas norte-americanas citadas por Adorno.

A referência de segunda mão a Louis Armstrong o comparava aos “grandes castrati do século XVIII”,[11] sem querer mencionar a contradição óbvia entre as afirmações genéricas da própria teoria de Adorno sobre a natureza do jazz, em uma “sociedade de massa totalmente integrada e reificada”, e o século XVIII; este último, nem um pouco perturbado pela “produção planejada”, a “cultura de massas”, a “reificação total” e a ubíqua “indústria cultural”, mas possuindo seus “grandes castrati” — que o eram não apenas simbolicamente — que, não obstante, são tomados como exemplos que esclarecem a desconcertante realidade do jazz e o suposto complexo de castração de todos aqueles que dele participam. Na estrutura aforística de declarações e declamações de Adorno, é suficiente apenas afirmar os preconceitos ideológicos do autor e suas negações genéricas da “sociedade em si”, sem qualquer esforço real para demonstrá-los, enquanto ao mesmo tempo desfia acusações igualmente genéricas contra a ideologia.

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Notas:
[1] Benjamin era muito amigo de Bertolt Brecht e Karl Korsch.
[2]
Alles was gut und teuer” (“tudo o que há de bom e valioso”, isto é, muito elogiado), como dizem em alemão, Ver uma excelente resenha crítica de Legitimation crisis, de Habermas, de autoria de James Miller, Telos, n. 25, outono de 1975, p. 210-20. O mesmo número da Telos contém um debate muito interessante entre Wolfgang Müller, Christel Neusüss, Jürgen Habermas e Claus Offe que é importante para se compreender a posição política de Habermas. Os artigos em questão são: W. Müller e C. Neusüss, The illusion of state socialism and the contradiction between wage labour and capital”, p. 13-91; J. Habermas, A reply to Mülller and Neusüss, p. 91-8; Claus Offe, Further comments on Müller and Neusüss, p. 99-111.
[3] Hans Bunge, Fragen sie mehr über Brecht: Hanns Eisler in Gerspräch, Munique, Rogner and Bernhand, 1970, p. 30.
[4] Susan Buck-Morss, The origin of negative dialetics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin and the Frankfurt Institute, Hassocks, Haverster Press, 1977, p. 42. Uma análise séria de Adorno e Marcuse é a de Joseph McCarney,
What makes critical theory 'critical'?, Radical Philosophy, n. 42, inverno/primavera de 1986.
[5] Ele tentou persuadir Arnold Hauser — que era muito menos competente do que Adorno na leitura de partituras musicais, e por isso permaneceu completamente cético — da correção deste julgamento.
[6] Theodor W. Adorno, Prisms, Londres, Nevile Spearman, 1967 (ensaio
Perennial fashion — jazz, p. 119-32).
[7] Ibid., p. 127.
[8] Ibid., p. 129.
[9] Ibid., p. 132.
[10] Ibid., p. 129-30.
[11] Ibid., p. 130.
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MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 154-156.
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terça-feira, 23 de março de 2021

Anarquismo individualista e reação

 
por Murray Bookchin
 
Com certeza, o individualismo ideológico não desapareceu completamente durante este período de grande agitação social. Um considerável reservatório de anarquistas individualistas, especialmente no mundo anglo-americano, foi nutrido pelas ideias de John Locke e John Stuart Mill, bem como o próprio Stirner. Individualistas caseiros com variados graus de comprometimento com as visões libertárias esparramadas pelo horizonte anarquista. Na prática, o anarcoindividualismo atraiu precisamente indivíduos, de Benjamin Tucker nos Estados Unidos, um adepto de uma curiosa versão de livre concorrência, até Federica Montseny na Espanha, que muitas vezes honrou suas crenças stirneristas na transgressão. Apesar de suas confissões de uma ideologia anarcocomunista, nietzscheanos como Emma Goldman permaneceram face a face [cheek to jowl] em espírito com os individualistas.

Dificilmente os anarcoindividualistas exerceram uma influência sobre a nascente classe trabalhadora. Eles expressavam sua oposição de forma unicamente pessoal, especialmente em panfletos inflamados, comportamentos ultrajantes, e estilos de vida aberrantes nos guetos culturais do fin de siècle de Nova York, Paris e Londres. Como um credo, o anarquismo individualista permaneceu, em grande medida, um estilo de vida boêmio, mais destacado em suas demandas de liberdade sexual (“amor livre”) e apaixonado pelas inovações na arte, no comportamento e no vestuário.

Eram tempos de severa repressão social e quietude social amortecida em que anarquistas individualistas vieram para o primeiro plano da atividade libertária — e então principalmente como terroristas. Na França, Espanha e Estados Unidos, anarquistas individualistas cometeram atos de terrorismo que deram ao anarquismo sua reputação de uma conspiração violentamente sinistra. Aqueles que se tornaram terroristas foram menos frequentemente socialistas libertários ou comunistas do que homens e mulheres desesperados que usaram armas e explosivos para protestar contra injustiças e filistinismo de seu tempo, supostamente em nome da “propaganda pelo ato”. Mais frequentemente, no entanto, o anarquismo individualista se expressou em um comportamento culturalmente desafiador. Ele veio para a notoriedade no anarquismo precisamente na medida em que os anarquistas perderam a conexão com uma esfera pública viável.
 
O contexto reacionário de hoje explica muito a emergência de um fenômeno no anarquismo euro-americano que não pode ser ignorado: a propagação do anarquismo individualista. Em um tempo quando até mesmo as formas respeitáveis de socialismo estão em um recuo desordenado de princípios que podem de alguma forma ser interpretados como radicais, questões de estilo de vida estão outra vez suplantando a ação social e a política revolucionária no anarquismo. Nos tradicionalmente liberal-individualistas Estados Unidos e Grã Bretanha, os anos 1990 estão transbordando de autointitulados anarquistas que — sua retórica radical exibicionista à parte — estão cultivando um anarcoindividualismo moderno que chamarei de anarquismo de estilo de vida [lifestyle anarchism]. Suas preocupações com o ego e sua singularidade e seus conceitos polimórficos de resistência estão constantemente erodindo o caráter socialista da tradição libertária. Não menos do que o marxismo e outros socialismos, o anarquismo pode ser profundamente influenciado pelo ambiente burguês ao qual professa se opor, com o resultado de que a crescente “interioridade" e narcisismo da geração yuppie deixaram sua marca em muitos declarados radicais. Aventurismo ad hoc, bravura pessoal, uma aversão à teoria estranhamente similar às tendências antirracionais do pós-modernismo, celebrações da incoerência teórica (pluralismo), um compromisso basicamente apolítico e anti-organizacional com a imaginação, o desejo, o êxtase e um encantamento da vida cotidiana intensamente voltado para si mesmo refletem o preço que a reação social tem assumido do anarquismo euro-americano nas últimas duas décadas.[1]

Durante a década de 1970, escreve Katinka Matson, a compiladora de um compêndio de técnicas para o desenvolvimento psicológico pessoal, ocorreu “uma mudança notável no modo como nos percebemos no mundo. A década de 1960”, ela continua, “viu uma preocupação com ativismo político, Vietnã, ecologia, seres, comunas, drogas, etc. Hoje estamos nos voltando para dentro: estamos procurando por definição pessoal, aperfeiçoamento pessoal, pessoal realização e iluminação pessoal”.[2] O pequeno bestiário nocivo de Matson, compilado para a revista Psychology Today, cobre todas as técnicas da acupuntura até o I Ching, desde est à terapia de zona. Em retrospecto, ela poderia muito bem ter incluído anarquismo de estilo de vida em seu compêndio de soporíferos introspectivos, a maioria dos quais promove ideias de autonomia individual, em vez da liberdade social. A psicoterapia em todas as suas mutações cultiva um “eu” interiormente direcionado que busca autonomia em uma condição psicológica repousada de autossuficiência emocional — não o self socialmente envolvido denotado pela liberdade. No anarquismo de estilo de vida, como na psicoterapia, o ego é contraposto ao coletivo; o self, à sociedade; o pessoal, ao comunitário.
 
O ego — mais precisamente, a sua encarnação em vários estilos de vida — tornou-se uma idée fixe para muitos anarquistas pós-1960s, que estão perdendo contato com a necessidade de uma oposição organizada, coletiva e programática à ordem social existente. “Protestos” sem firmeza, escapadas sem direção, auto-afirmações, e uma “recolonização” muito pessoal da vida cotidiana, paralelo aos estilos de vida psicoterápicos, new age, auto-orientados de baby boomers entediados e membros da Geração X. Hoje, o que passa por anarquismo na América e cada vez mais na Europa é pouco mais do que um personalismo introspectivo que denigre o comprometimento social responsável; um grupo de encontro variavelmente renomeado como “coletivo” ou “grupo de afinidade”; um estado de espírito que zomba arrogantemente da estrutura, da organização e do envolvimento público; e um playground para palhaçadas juvenis.

Conscientemente ou não, muitos anarquistas de estilo de vida articulam a abordagem de Michel Foucault de “insurreição pessoal” ao invés de revolução social, baseado numa ambígua e cósmica crítica do poder como tal, em vez de uma demanda pelo empoderamento institucionalizado dos oprimidos em assembleias populares, conselhos e/ou confederações. Na medida em que essa tendência descarta a possibilidade real da revolução social — ou como uma “impossibilidade” ou como um “imaginário” — vicia o anarquismo socialista ou comunista em um sentido fundamental. De fato, Foucault promove uma perspectiva de que “a resistência nunca está numa posição de exterioridade em relação ao poder... Portanto, não há locus único [leia: universal] da grande Recusa, sem alma de revolta, fonte de todas as rebeliões, ou pura lei do revolucionário”. Apanhado como todos nós estamos no abraço onipresente de um poder tão cósmico que, exageros e equívocos de Foucault à parte, a resistência se torna totalmente polimorfa, nós vagamos inutilmente entre o “solitário” e o “desaforado”[3]. Suas ideias sinuosas vêm até a noção de que a resistência deve necessariamente ser uma guerra de guerrilha que está sempre presente — e que é inevitavelmente derrotada. 

Anarquismo de estilo de vida, assim como o individualista, aporta um desdém pela teoria, com filiações místicas e primitivistas geralmente muito vagas, intuitivas, e mesmo antirracionais para analisar diretamente. Eles são mais  propriamente sintomas do que causas da deriva geral em direção a uma santificação de si mesmo como um refúgio para o mal-estar social existente. No entanto, anarquismos amplamente personalistas ainda têm certas premissas teóricas confusas que se prestam a um exame crítico.

Seu pedigree ideológico é basicamente liberal, fundamentado no mito do indivíduo completamente autônomo cujas reivindicações da própria soberania se valem de axiomáticos “direitos naturais”, “valores intrínsecos”, ou, em um nível mais sofisticado, do intuído ego transcendental kantiano que é o gerador de toda a realidade cognoscível. Essas visões tradicionais emergem no “eu” ou ego de Max Stirner, que compartilha com o existencialismo a tendência a absorver toda a realidade em si mesmo, como se o universo girasse em torno das escolhas do indivíduo auto-orientado.[4]

Trabalhos mais recentes no anarquismo de estilo de vida geralmente evitam o “eu” soberano, todo-abrangente de Stirner, embora retendo sua ênfase egocêntrica, e tendem para existencialismo, situacionismo reciclado, budismo, taoismo, antirracionalismo e primitivismo — ou, de maneira bastante ecumênica, todos eles em várias permutações. Suas semelhanças, como veremos, cheiram a um retorno pré-lapsariano a um original, muitas vezes difuso e até mesmo petulante ego infantil, que precede ostensivamente a história, a civilização, e uma tecnologia sofisticada — possivelmente a linguagem em si mesma — e eles têm alimentado mais de uma ideologia política reacionária ao longo do século passado.
 
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Notas:
[0] Tópico do livro de Murray Bookchin, Social Anarchism or Lifestyle Anarchism: The Unbridgeable Chasm, São Francisco, AK Press, 1995, pp. 7-11. Tradução de Paulo Ayres.
[1] Apesar de todas as suas deficiências, a contracultura anárquica durante a parte inicial da agitada década de 1960 foi muitas vezes intensamente política e elencando expressões como desejo e êxtase em termos eminentemente sociais, muitas vezes ridicularizando as tendências personalistas da posterior geração Woodstock. A transformação da “cultura jovem”, como era originalmente chamada, desde o nascimento dos direitos civis e movimentos de paz para Woodstock e Altamont, com sua ênfase numa forma de “prazer” puramente autoindulgente, é refletida no retrocesso de Dylan de “Blowin 'in the Wind” para “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”.
[2] Katinka Matson,
Preface, The Psychology Today Omnibook of Personal Development (Ne"o/ York: William Morrow & Co., 1977), n.p.
[3] Michel Foucault, The History of Sexuality, vol. 1, translated by Robert Hurley (New York: Vintage Books, 1990), pp. 95-96. Celestial será o dia em que se poderá obter formulações diretas de Foucault, as interpretações de cujos pontos de vista são frequentemente contraditórios.
[4] O pedigree filosófico deste ego e sua fortuna podem ser rastreados através de Fichte de volta a Kant. A visão de Stirner sobre o ego era meramente uma mutação grosseira dos egos kantiano e particularmente do fichtiano, marcado por intimidação [hectoring] em vez de introspecção [insight].
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sábado, 7 de setembro de 2019

ARTE REALISTA| A Culpa Não É Minha


Sinopse: Hoje não faltam modos de se proteger por aí. Ser isentão não é um deles. (Porta dos Fundos)
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A Culpa Não É Minha (farsa, BRA, 2019), de Rodrigo Magal.
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sexta-feira, 24 de maio de 2019

Indivíduo e instituições: a oposição entre iluministas e românticos


por Domenico Losurdo

Outro importante motivo teórico remete, em Hegel, à tradição de pensamento revolucionário. Referimo-nos à ênfase sobre a objetividade do ético e das instituições políticas que também, estranhamente, mas não muito, foi, em geral, colocada na conta do conservadorismo ou, pior, foi atribuída ao filósofo. Na realidade, um crítico implacável de Hegel dá prova da maior profundidade no momento em que o contrapõe a Wilhelm von Humboldt: “O individualismo, por natureza, não é revolucionário” (R. Haym). O individualismo tinha salvado Wilhelm von Humboldt do entusiasmo da cultura alemã do tempo da Revolução Francesa, que, não por acaso, pretendia impor uma virada à história, não fazendo apelo à mudança in interiore homine do indivíduo, mas transformando radicalmente as instituições políticas objetivas, intervindo com força na objetiva configuração e organização da vida social.

Sim, Haym tinha razão: à absolutização revolucionária das “instituições políticas” (Einrichtungen der Regierungen) e à reivindicação de uma radical transformação delas, mediante “revoluções políticas” (Staatsrevolutionen), Humboldt contrapõe a centralidade do indivíduo. E esse é o terreno sobre o qual, desde o início, na Alemanha, desenvolve-se a luta ou a tomada de distância com relação à Revolução Francesa, responsabilizada por difundir a ilusão, usando as palavras de Schiller, da “regeneração no campo político”, a partir bem mais da “constituição” e das instituições políticas do que do modo de pensar e sentir do indivíduo. E, ao contrário, “o bem dos povos” — reforça Gentz — “não está ligado exclusivamente a nenhuma forma de governo”, a nenhuma “constituição estatal”. Exatamente oposta é a orientação da filosofia que acompanha a preparação e a eclosão da Revolução Francesa. Para Rousseau, “é certo que os povos são, a longo prazo, o que o governo faz com que se tornem”. E mais claramente Kant: “O importante não é um bom governo, mas uma boa maneira de governar”. A atenção — declara em À paz perpétua, em polêmica com contrarrevolucionário Mallet du Pan — deve ser voltada não para a qualidade dos indivíduos que governam, mas para o “modo de governar”, para a “constituição política”. E, de fato, a história demonstra que até mesmo monarcas excelentes têm como sucessores tiranos sanguinários; por exemplo, Marco Aurélio é sucedido por Cômodo. Não diversamente se exprime Hegel: “Que a um povo seja dado pelo destino um nobre monarca deve ser considerado, certamente, uma grande fortuna. Mas, em um grande Estado até mesmo isso tem pouca importância: o Estado tem a sua força na sua razão”.

Ao contrário do teórico liberal celebrado por Haym pelo seu individualismo, ou seja, Wilhelm von Humboldt, Hegel tinha experimentado entusiasmo, e ainda continuava a senti-lo nos anos da maturidade, pela Revolução Francesa e, não por acaso, a ênfase na objetividade do ético e das instituições políticas caracteriza o filósofo em todo o ciclo da sua evolução: “Se deve haver uma mudança [sublinha em um escrito da juventude] alguma coisa deve de qualquer modo também ser mudada”, e eis que a atenção se volta para o “edifício estatal”, para as “instituições, constituições, leis” (Einrichtungen, Verfassungen, Gesetze). E até o fim Hegel salienta o fato de que a realização de uma real mudança pressupõe a intervenção sobre “leis e situações” (Gesetze und Verhältnisse), um recurso não a “meios morais”, e tampouco à “associação dos indivíduos na sua singularidade”, mas à “modificações das instituições”. A luta ideológica e a subsequente mudança de consciência têm certamente grande importância, mas somente na medida em que levam “a modificar leis e instituições da vida política” (ad corrigendas leges er instituta civilia), na medida em que incidem sobre as “leis” e as “instituições da comunidade política” (instituta civitatis). Mesmo a liberdade do indivíduo não pode ser assegurada sem a intervenção sobre a configuração objetiva das instituições.

São, ao contrário, o publicismo e a filosofia empenhados na luta contra a revolução e contra o movimento constitucional que procuram deslocar a atenção da esfera das relações e das instituições políticas para a da dimensão interior da consciência. No segundo capítulo do presente trabalho, já se falou de Schelling. Não é o único. Pense-se em Baader, que à “liberdade exterior” garantida pelas leis e instituições, e que pode andar simultaneamente com “a iliberdade interior”, contrapõe a “autolibertação” que cada indivíduo é chamado a realizar a partir, em primeiro lugar, de si mesmo. Mas contra Rehberg, que se opõe à supressão da servidão da gleba com o argumento de que “a liberdade do servo da gleba, do escravo, tem a sua sede somente no espírito”, Hegel responde que “o espírito, enquanto apenas espírito, é uma representação vazia; ele deve ter realidade, existência, deve ser objetivo”. Para Schelling, Baader, Rehberg, a única mudança significativa se desenvolve in interiore homine, reside no melhoramento moral do indivíduo; o resto é exterioridade. Ao afirmar a centralidade do “exterior” ou a configuração objetiva das leis e instituições, Hegel recolhe ainda uma vez a herança da filosofia que remete à preparação ou à defesa da Revolução Francesa. Kant, embora tão atento às razões da moral, escreve: não é da “moralidade interna que se pode esperar a boa constituição do Estado; aliás, é sobretudo de uma boa constituição do Estado que se deve esperar a boa educação moral de um povo”. E, antes dele, Rousseau afirma que “os vícios não pertencem tanto ao homem, mas ao homem mal governado”.

Contrapor à mudança das instituições políticas a mudança da consciência e da interioridade do indivíduo, seja o súdito ou o soberano, significa contrapor a conservação à mudança. Disso está ciente Hegel: “alguma coisa [etwas] deve também ser mudada”. Sobretudo Marx está consciente disso: “Essa exigência de modificar a consciência conduz à outra exigência, a de interpretar diversamente o que existe, ou seja, de reconhecê-lo mediante uma diferente interpretação”, e isso configura o maior conservadorismo. Mas também quando à transformação política se contrapõe não tanto a renovação da consciência individual, mas a substituição de indivíduo por outro, não se chega s resultados substancialmente diversos. Em tal modo — nota o jovem hegeliano Karl Marx — “os defeitos objetivos de uma instituição são imputados a indivíduos, para insinuar, sem melhoramento essencial, a aparência de um melhoramento”. O problema perde a sua dimensão objetiva, a atenção é desviada da coisa para se concentrar na pessoa: “Na análise da situação estatal, se é facilmente tentado a negligenciar a natureza objetiva das relações e explicar tudo a partir da vontade das pessoas agentes”. E, ao contrário, uma correta análise política requer que se identifiquem “relações”, Verhältnisse — o termo, nós já vimos, remete imediatamente a Hegel —, “onde à primeira vista parecem agir somente pessoas”.

Por haver comparado o rei a uma coisa insignificante, por ter desvalorizado o indivíduo mesmo no nível mais alto, na pessoa do monarca, Hegel é considerado por Haym como estando irremediável contraposição com a inspiração de fundo do liberalismo moderno. Mas vem à tona ainda uma vez a inconsistência da alternativa liberal/conservador, pois Haym acaba por ver no individualismo a barreira mais eficaz não contra a conservação, mas contra a “revolução”. É verdade que, por outro lado, o autor de Hegel e o seu tempo denuncia, no pensador por ele investigado, um teórico do absolutismo, mas isso entra novamente no topos liberal, já visto, que busca assimilar, sob o signo do absolutismo, tudo o que não faz parte da tradição liberal propriamente dita.

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LOSURDO, D. Hegel, Marx e a tradição liberal: liberdade, igualdade, estado. Trad. C. A. F. Nicola Dastoli. São Paulo: Editora Unesp, 1998, pp. 201-4.
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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

El apoliticismo: una forma de hacer política

 
 por Pablo Guadarrama González

Desde que irrumpieron las ideologías políticas, especialmente las que conformarían la modernidad, se fueron decantando diversas corrientes con posturas muy divergentes entre sí, y por supuesto con fundamentos filosóficos muy heterogéneos, sobre la forma y las vías de cómo debía organizarse la vida social.

La mayoría de ellas definieron con claridad sus ideas respecto a la cuestión del poder político, como instrumento para perpetuar algunas élites o clases dominantes, o para dar paso al predominio de otros sectores sociales.

No hay que olvidar que por ideología se pueden considerar un conjunto de ideas que se constituyen en creencias, valoraciones y opiniones comúnmente aceptadas, las cuales, articuladas integralmente, pretenden fundamentar las concepciones teóricas de algún sujeto social (clase, grupo, etnia, partido, Estado, Iglesia, etc.), con el objetivo de validar algún proyecto bien de permanencia, reforma o subversión de un orden socioeconómico y político, lo cual siempre presupone de algún modo una determinada actitud ética ante la relación hombre-hombre y hombre-naturaleza.
 
Para lograr ese objetivo, las ideologías pueden o no apoyarse en pilares científicos o filosóficos, en tanto estos contribuyan a los fines perseguidos; de lo contrario pueden ser desatendidos e incluso ocultados conscientemente.

El componente ideológico en las reflexiones filosóficas por sí mismo no es dado a estimular concepciones científicas, pero no excluye la posibilidad de la confluencia con ellas, en tanto estas propicien la validación de sus propuestas.

La diferencia fundamental entre las ideologías y las filosofías radica en que estas últimas apoyan sus argumentos en el poder de la razón, en tanto las primeras pretenden fundamentar sus razones en el poder, ya sea político, económico, militar, mediático, etc.

Las principales ideologías que se conformarían en la modernidad fueron: el conservadurismo − que pretendía perpetuar la sociedad feudal con las monarquías, y en el caso de Latinoamérica el poder colonial − ; el liberalismo, que se planteaba reformar la sociedad hacia transformaciones capitalistas y republicanas; el socialismo, que aspiraría a cambiar radicalmente la organización política y social capitalista − completando así las propuestas democráticas al no reducirlas a derechos jurídicos y políticos, sino al logro de justicia social −, y el anarquismo, que en parte coincidía con esta última, pero se diferenciaba sustancialmente de ella por su presunto apoliticismo, así como por sus métodos terroristas y magnicidas.

En verdad el anarquismo no es apolítico, sencillamente porque nadie puede serlo, pues una forma de hacer política es pretender ser indiferente ante los acontecimientos sociales, sus necesidades y transformaciones. De manera que pretender ser indiferente ante la política es una forma hipócrita de hacer política.

José Martí se enfrentó al presunto apoliticismo de los anarquistas que no querían pronunciarse ante la lucha por la independencia. Afortunadamente el sentido común se impuso y estos se unieron a esa honrosa labor, de la misma forma que lo hicieron los anarquistas españoles aliándose a demócratas y comunistas para tratar de salvar la República durante la Guerra Civil.

Otras ideologías se conformaron en el siglo xx como el fascismo, que ha tratado de revertir las conquistas democráticas con prácticas políticas totalitarias, mesiánicas y racistas, o el neoliberalismo, que aparentemente pretende presentarse como una continuidad del liberalismo, pero en realidad ha logrado revertir muchas de las conquistas democráticas de este último.

Apoliticismo, conformismo, abstencionismo

La mayoría de las ideologías políticas han promovido la participación política, pero en los últimos tiempos, cuando el neoliberalismo ha triunfado, más ideológicamente que en cuanto a logros sociales para la mayoría de la población, algunos de sus “tanques pensantes” han estimulado el apoliticismo como medio para inculcar la indiferencia y la resignación entre algunos sectores populares, especialmente los jóvenes, a través de la consigna de que nada se puede hacer para lograr sociedades más justas y más amigables con el medio ambiente.

El conformismo es uno de los componentes aliados del apoliticismo. Ambos pretenden opacar el protagonismo de aquellos que se pueden convertir en potenciales peligros para la añorada, pero no lograda, estabilidad de la sociedad capitalista.

El incremento del abstencionismo observado en la mayoría de los procesos electorales de numerosos países puede tener diferentes lecturas. Una de ellas puede ser entenderlo como síntoma de impotencia de un considerable porcentaje de la población que se siente frustrada al no apreciar cambios favorables en sus condiciones de vida una vez instalados nuevos gobiernos que mantienen políticas neoliberales.

Otra es expresión del acomodamiento de una indecisa clase media que es fácilmente manipulada por los medios de comunicación, ya que le interesa más la renovación de su automóvil o de los electrodomésticos, que lo que pueda transformarse de la puerta de su casa hacia afuera. No faltan los que piensan que su voto no será decisivo para cualquier tipo de cambio a través de la elección, pues ya todo está arreglado de forma inamovible en la «democracia representativa» aunque cambien los nombres de los gobernantes, y en algunos casos ni siquiera eso, pero no cambian las políticas socioeconómicas en los gobiernos que se alternan y suceden.

Apoliticismo en el socialismo

En el caso de países socialistas la intención que subyace en el apoliticismo tiene otras lecturas, como puede extraerse de las experiencias de su derrumbe en la Unión Soviética y los países de Europa Oriental.

Esta situación es algo distinta, pues no esconde la pretensión de sembrar entre determinados grupos de la población, fundamentalmente jóvenes, la indiferencia ante las conquistas sociales alcanzadas. Dado que estos no han conocido el capitalismo, por lo general consideran que disfrutar de la salud, la educación, el deporte, la cultura, etc., de forma gratuita, es algo natural y no constituye nada extraordinario, por lo que añoran, sin renunciar a ellas, el disfrute de las extraordinarias “ofertas” de la sociedad de consumo.

Algunos presuntos “apolíticos” se abstienen de ejercer el voto en procesos electorales o votan en blanco, y creen que con esta actitud expresan su valentía política, lo cual confirma que esto es un acto político. Otros aducen que la única democracia es la multipartidista, e ignoran así que en la historia de la humanidad han existido y existirán múltiples formas de democracia y no solo la representativa.

Al hiperbolizarla, algunos gobernantes creen poseer el “democratómetro” perfecto para medir su existencia en otros países y por lo que les envían observadores para fiscalizar sus procesos electorales, pero no permiten que a su vez observadores de otros países los visiten.

Siempre recuerdo cuando le pregunté a mi madre por qué militando en el Partido Liberal había apoyado al Movimiento 26 de Julio –por ello cayó presa, fue amenazada de ser envenenada y tuve que llevarle la comida hecha en casa cada día a la estación de policía de Santa Clara–, me respondió que porque no había nada más parecido a un liberal que un conservador y un conservador a un liberal. Ambos eran la misma basura y por eso tomó esa decisión. En Colombia dicen que la diferencia entre un conservador y un liberal es que unos van a misa en la mañana y otros en la tarde.

Nunca olvidaré el agobiado rostro, por las torturas y vejaciones recibidas, de Mercedes Vázquez, su compañera de celda, ni los gemidos de los torturados, que aún algunos vecinos del parque del Carmen recuerdan. Los instrumentos de tortura fueron exhibidos el primer día del triunfo de la Revolución. Es bueno recordarles esto a los amnésicos apolíticos o a los que no conocen que esto sucedió donde hoy sonríen estudiantes de la escuela secundaria básica Capitán Roberto Rodríguez (El Vaquerito).

De manera que el presunto apoliticismo − que debe reiterarse no es tal, sino en realidad otra forma sutil de hacer política contestataria − en el caso de Cuba debe ser considerado en aquellos que lo practican una expresión de inconformidad con el sistema social elegido, mantenido y defendido por la mayoría de su pueblo. De otro modo no se explica que el derrumbe del muro de Berlín y del “socialismo real”, o tal vez “real de socialismo”, no haya llegado a alcanzar en su onda expansiva a la isla del Caribe.

El apoliticismo, que tal vez para algunos ingenuos pueda ser considerado como otra manifestación de la pregonada “muerte de las ideologías”, en realidad es todo lo contrario: una evidencia de que la lucha ideológica revitaliza algunas viejas formas y formula otras nuevas.

Al igual que en el anarquismo subyacían posturas individualistas, voluntaristas y nihilistas, al negar muchos valores de la sociedad moderna − que incluso Marx y Engels, no obstante sus críticas a la misma, reconocieron, como puede apreciarse en el Manifiesto comunista − , el apoliticismo contemporáneo está permeado por fundamentos filosóficos, conscientes o inconscientes, de corte pragmatista, utilitarista y existencialista, en los que el éxito individual se sobrepone a todo compromiso social.

Apoliticismo en Cuba

No es la primera vez que el apoliticismo ha pretendido ganar adeptos en la historia de la sociedad cubana y no solo entre los anarquistas. También al inicio de la República mediatizada hubo expresiones de conformismo por parte de algunos antiguos sectores anexionistas que tratarían de inculcar la nefasta idea de que la intervención norteamericana en la guerra independentista y la ocupación militar por parte de los Estados Unidos de América había sido una bendición que había que agradecer, por lo que no se debía manifestar ningún tipo de inconformidad política ante aquel hecho.

Afortunadamente, en los años 20 una nueva generación juvenil, intelectual y política expresada en la Protesta de los Trece, el Grupo Minorista, la creación de la Federación de Estudiantes Universitarios −liderada por Julio Antonio Mella−, la fundación del Partido Comunista de Cuba, y las luchas contra la dictadura de Gerardo Machado y la injerencia yanqui, así como un fortalecimiento de las luchas obreras, revitalizaron la conciencia política nacional cubana y el espíritu independentista que se pretendía apagar.

Del mismo modo la Generación del Centenario, inspirada nuevamente en el ejemplo de José Martí, reiniciaría la lucha por la dignidad del pueblo cubano frente a la sangrienta dictadura de Batista y obligó a los indecisos a definirse políticamente.

El triunfo de la Revolución cubana sería crucial en ese enfrentamiento al apoliticismo, especialmente cuando ante la agresión de Playa Girón se declara su carácter socialista y no podrá justificarse más ningún tipo de indiferencia ante las enormes transformaciones sociales emprendidas, como la nacionalización de las empresas extranjeras, la Reforma Urbana, la Reforma Agraria, la Campaña de Alfabetización, la Reforma Universitaria, la amplia socialización de la educación y la salud, el nacimiento de nuevas organizaciones como los Comités de Defensa de la Revolución, la Federación de Mujeres Cubanas y la gestación de un nuevo Partido Comunista de Cuba.

Cuando el pueblo cubano se vio amenazado por una nueva intervención militar norteamericana y el mundo estuvo muy próximo a que se desatara una guerra nuclear, a partir la crisis de los misiles soviéticos en este país, a nadie se le ocurría justificar una actitud apoliticista. El pueblo cubano demandaría a cada ciudadano definirse de cara a una situación en la que no había una tercera opción ante la consigna de Patria o Muerte.

¿Triunfará el apoliticismo?

Vivimos una nueva época en la que pareciera que tales confrontaciones son cosas del pasado y no faltan quienes inculcan la idea de que se deben olvidar. Por supuesto, quienes promueven tales consignas para borrar la memoria de las nuevas generaciones saben muy bien que el pueblo que no conoce su historia está obligado a repetirla.

Otros ilusos piensan que al ir desapareciendo por ley natural la generación que encendió la llama revolucionaria, esta debe apagarse. Tal vez olvidan la historia del pueblo cubano, por no decir la historia universal, que evidencia que las grandes transformaciones no han sido emprendidas por líderes solitarios. Estas solo se han hecho posibles si han sido asumidas por los sectores populares.

Cuando se conoció la noticia de que José Martí se encontraba en los campos de batalla, su amigo el escritor colombiano José María Vargas Vila publicó un artículo calificando ese hecho como una locura.

Al día siguiente, Enrique José Varona – a quien el Héroe Nacional tras su ausencia le confió la dirección el periódico Patria – le respondió con otro artículo en el que sostenía que Martí no estaba loco, porque sabía que había un pueblo entero esperando por él para la lucha independentista. Agregó que su actitud revolucionaria era tan alta como el Pico Turquino, pero los picos no nacen de sabanas, sino acompañados de otros tan altos como él: Máximo Gómez, Antonio Maceo, Calixto García, etc.

La clara concepción del protagónico papel del pueblo en las transformaciones sociales Martí la expresó al plantear:

Nada es un hombre en sí, y lo que es, lo pone en él su pueblo. En vano concede la Naturaleza a algunos de sus hijos cualidades privilegiadas; porque serán polvo y azote si no se hacen carne de su pueblo, mientras que si van con él, y le sirven de brazo y de voz, por él se verán encumbrados, como las flores que lleva en su cima una montaña.[1]
 
La mejor forma de enfrentar el apoliticismo es contribuir al estudio de la historia del pueblo cubano, sus luchas emancipadoras, el optimismo revolucionario que ha inspirado a sus líderes desde Céspedes hasta Fidel y Raúl, así como a todos los que le han acompañado y otros que aún le acompañan.

Cuando alguien pierde la confianza en la pujanza y la vehemencia de un pueblo como el cubano en la lucha por su dignidad, pasa a formar parte de lo que Martí denominó sietemesinos. Por suerte, la mayoría de los cubanos han nacido de parto natural.

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[1] José Martí. Obras completas, Editorial Ciencias Sociales, La Habana, 1976, t. XIII, p. 34.
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sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Tendências do marxismo: “ontologia do ser social” e anti-engelsismo


por Romeu Adriano da Silva
ensaio em PDF

Em memorável texto publicado em 1980, que reflete importante posicionamento em defesa de Friedrich Engels, mas também e fundamentalmente do próprio materialismo, Caio Navarro de Toledo (1980) questiona:

Que ilustre pensador marxista do Ocidente não formulou restrições e objeções à obra filosófica de Engels? Embora cada um fundamente de forma diversa suas críticas ao pensamento filosófico de Engels, pode-se, contudo, afirmar que G. Lukács, K. Korsch, A. Gramsci, J.P. Sartre, T. Adorno, H. Marcuse, L. Goldmann, L. Colletti e outros coincidem na proposta teórica de distinguir e postular a autonomia da obra teórica de Marx em relação à de Engels. Em outras palavras, todos esses autores defenderam a tese de que é tarefa essencial e inadiável, para a reabilitação e revigoramento do marxismo, “salvar” a obra de Marx da contaminação — “metafísica”, “positivista”, “naturalista”, “dogmática”, “mecanicista”, “determinista”, “fatalista” etc. — a que ela esteve sujeita em virtude da malsinada atividade filosófica perpetrada por Engels. (TOLEDO, 1980, p. 94)

Praticamente à mesma época em que o autor citado propôs-se a rebater as críticas endereçadas a Engels, Florestan Fernandes (1983) afirmava que

Está em voga a depreciação de F. Engels. Não compartilho dessa voga. Com freqüência, falo em K. Marx e F. Engels. Com isso, não pretendo confundi-los, metamorfoseando-os em irmãos siameses espirituais. Um homem como Marx sabia muito bem o seu valor e não se confundia com ninguém, nem mesmo com o amigo mais íntimo e com o companheiro de quase 40 anos de lutas em comum. Por sua vez, Engels também tinha a sua grandeza e uma esfera de autonomia pessoal como pensador inventivo e como ativista político. Basta lembrar uma coisa: A situação da classe operária na Inglaterra em 1844 é um clássico nas ciências sociais e foi causa (e não produto) da simpatia de Marx por ele e da descoberta de ambos por seus fortes interesses comuns. (FERNANDES, 1983, p. 16-17)

As preocupações de José Claudinei Lombardi (2010), publicadas três décadas após o texto de Toledo (1980), também são explícitas quanto à questão em tela que, em última análise, reflete o permanente repositório de uma postura de secundarização da obra de Engels sustentada, muitas vezes, por leituras até mesmo conflitantes entre si, além do que, como postulara Toledo (1980), a postura anti-Engels é um “compromisso contra o próprio materialismo”:

Entre as várias “faíscas” que, de quando em quando, reacendem o embate marxista, e sobre as quais é impossível ficar sem posicionamento, está em se considerar com peso qualitativo diferenciado a contribuição de Marx e de Engels na construção da concepção materialista dialética da história. Tenho defendido a busca por um tratamento sistematizado das premissas teórico-metodológicas da concepção materialista dialética da história, a partir, principalmente, das elaborações de seus fundadores e de autores clássicos, na perspectiva de analisar as obras em seu próprio processo de produção e tratando Marx e Engels em conjunto e não como produtores de concepções particularizadas: marxismo e engelsianismo. Com essa proposta de sistematização, portanto, estou defendendo que Marx e Engels devem ser tomados em conjunto, como faces de uma mesma e única moeda, e que graças à contribuição de ambos é que foram construídas as novas bases teórico-metodológicas para o entendimento dos homens sobre o mundo e sobre si próprios. Do trabalho conjunto dos dois amigos, simultaneamente ocorreu a construção das bases metodológicas e teóricas da concepção materialista dialética da história. Partilho, portanto, do entendimento de que foi a partir da crítica à filosofia clássica alemã, do socialismo anglo-francês e da economia política clássica inglesa, que se deu a construção dos fundamentos ontológicos, gnosiológicos e axiológicos de uma nova concepção que fazia uma contundente análise crítica do modo capitalista de produção, ao mesmo tempo em que colocava em relevo o revolucionar da sociedade em direção a novos padrões societários. Com relação à questão de se tratar Marx e Engels em conjunto, de forma a que se recupere a profunda relação entre ambos, e o fato de que desta relação surgiu a concepção materialista dialética da história, penso que é preciso também retomar a polêmica questão da diferenciação do "marxismo" em relação ao "engelsianismo" e de que Engels foi um pensador de menor importância ou menor competência que Marx. De modo geral, argumenta-se que Engels entendeu mal as premissas básicas da dialética materialista; que produziu uma visão mecânica deste, aplicada de forma a produzir a ridícula argumentação de existência de uma dialética da natureza; que esta postura produziu danos políticos irrecuperáveis por sua simplificação da dialética etc. (LOMBARDI, 2010, p. 48-49, grifos meus)

Acerca das comparações que se costuma estabelecer entre as obras de Marx e a de Engels (ou entre a estatura intelectual e científica de um e de outro), Florestan Fernandes assim se posiciona:

As comparações estreitas e falsas produzem consequências fantasiosas. É óbvio que K. Marx é uma figura ímpar na história da filosofia, das ciências sociais e do comunismo. Engels foi o primeiro a proclamar isso e o fez com uma devoção ardente, considerando-o como um gênio do qual ele teve a sorte de compartilhar o destino. Contudo, a modéstia de F. Engels não deve ser um fator de confusão. Ser o segundo, o companheiro por decisão mútua e o seguidor mais acreditado não só na vida cotidiana, mas na produção científica e na atividade política de Marx, quer dizer alguma coisa. Além disso, F. Engels não era só um “segundo” ou um “seguidor”: por várias vezes foi ele quem abriu os caminhos originais das investigações mais promissoras de K. Marx; a ele cabia, na divisão de trabalho comum, certos assuntos e tarefas; e Marx confiava em seu critério histórico, científico e político, a ponto de convertê-lo em uma espécie de sparring intelectual (como o demonstra a sua correspondência de longos anos). Tudo isso quer dizer que ele não era um reflexo da sombra de Marx; ele projetava a sua própria sombra. Não se pode separá-los, principalmente se o assunto for a constituição do materialismo dialético e seu desenvolvimento. (FERNANDES, 1983, p. 17)

Florestan Fernandes é claro ao enfatizar a confiança de Marx no trabalho intelectual de Engels, em seu “critério histórico, científico e político, a ponto de convertê-lo em uma espécie de sparring intelectual (algo demonstrado em correspondência de longos anos)” (Idem), de modo que se tornam insustentáveis quaisquer argumentos em favor da desqualificação da obra de Engels. Fazê-lo é colocar também a obra de Marx em questão, justamente naquilo que ela tem de fundamental, o próprio postulado materialista.

Numa obra conjunta não é possível haver desconhecimento, por parte de um ou outro de seus produtores, dos fundamentos, dos pressupostos implícitos ao método de investigação. O trabalho filosófico de Engels apenas nos permite entender que, também para ele, a matéria é básica para a explicação de tudo o que existe, de modo que a “[...] investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e perquirir a conexão íntima que há entre elas” (MARX, 2008, p. 28). De acordo com Caio Navarro de Toledo

Embora ninguém ouse afirmar que Marx foi complacente para com a obra de seu velho amigo, insinua-se, assim, que os árduos e urgentes combates do presente foram responsáveis pelo fato de Marx ter sido um mal leitor de Engels... Marx teria, por exemplo, denunciado e ridicularizado o positivismo de Comte, mas teria sido incapaz de ver – a um palmo de seu nariz – o vulgar materialismo positivisante de seu companheiro de armas! Negando o argumento que vê ambiguidades ou erros nas avaliações feitas por Marx sobre a obra filosófica de Engels, sustentamos que a colaboração intelectual entre os dois pensadores foi de tal natureza que havia um profundo e íntimo conhecimento de tudo o que cada um realizava individualmente. A discussão e a troca constante de informações — tal como revela a copiosa correspondência entre ambos — é uma prova da qualidade e do rigor daquela colaboração teórica. Deve-se ainda assinalar que nenhum intérprete do marxismo oferece qualquer prova (livro, ensaio, carta, etc), escrita por Marx, onde se façam quaisquer reparos ou observações ao projeto teórico e aos trabalhos filosóficos de Engels. Pelo contrário, nos textos escritos por Marx só encontramos referências favoráveis às iniciativas de Engels no campo da Filosofia. (TOLEDO, 1980, p. 98-99, grifos meus)

Konder (1988) também manifesta-se sobre a postura de Marx em relação ao trabalho de Engels, nos seguintes termos:

Nos últimos anos de vida de Marx, enquanto ele se esforçava para tentar acabar O capital, seu amigo Engels redigiu diversas anotações sobre questões que nos interessam, relativas à dialética. Marx apoiou Engels nas observações que este desenvolvia (e que continuou a desenvolver após a morte do autor d‟O capital). A grande preocupação de Engels era defender o caráter materialista da dialética, tal como Marx e ele a concebiam. Era preciso evitar que a dialética da história humana fosse analisada como se não tivesse absolutamente nada a ver com a natureza, como se o homem não tivesse uma dimensão irredutivelmente natural e não tivesse começado sua trajetória na natureza. Uma certa dialética na natureza (ou pelo menos uma pré-dialética) era, para Marx e para Engels, uma condição prévia para que pudesse existir a dialética humana. (KONDER, 1988, p. 57, grifos meus)

Entendo que a postura de secundarização da obra engelsiana contribui para o sustento de determinadas tendências existentes no interior do marxismo que implicam, em algumas situações, enfatizar determinados aspectos da realidade sem a profundidade da perspectiva materialista e dialética inerentes à obra conjunta de Marx e Engels.

Uma dessas tendências caracteriza-se pela ênfase colocada na chamada “ontologia do ser social”, bastante forte em determinados intelectuais identificados como herdeiros do pensamento de György Lukács e que comunga com a postura acima caracterizada como anti-engelsismo, nem sempre, como se verá, de modo explicitamente negativo ou agressivo, mas que a tem alimentado e, principalmente, tem contribuído para a abertura de algumas veredas para tratamentos essencialistas da realidade histórica.

Se, neste texto, a pretensão da análise visa a tratar desta determinada tendência do marxismo, cuja centralidade é colocada na noção de “ontologia do ser social”. Importa esclarecer que esta tendência é aqui entendida como algo que extrapola o núcleo teórico da concepção lukacsiana, uma vez que estas postulações, parece-me, tendem a acentuar determinados aspectos das formulações de György Lukács em detrimento de sua perspectiva fundamental, que é a da totalidade.

Lukács, que inicialmente “[...] nutria desconfianças e suspeitas em relação à própria palavra (ontologia), resistindo em utilizá-la”[1], propõe uma “ontologia hoje tornada possível”[2] que, apoiando-se em Marx, pudesse distinguir-se por completo da metafísica. Assim, para o autor,

[...] a ontologia do ser social pressupõe uma ontologia geral. Porém, essa ontologia não pode ser de novo distorcida em teoria do conhecimento.[...] Se na realidade surgem formas de ser mais complexas, mais compostas (vida, sociedade), então as categorias da ontologia geral devem ser conservadas nelas como momentos superados; o superar teve em Hegel, corretamente, também o significado de conservação. Por conseguinte, a ontologia geral ou, em termos mais concretos, a ontologia da natureza inorgânica como fundamento de todo existente é geral pela seguinte razão: porque não pode haver qualquer existente que não esteja de algum modo ontologicamente fundado na natureza inorgânica. (LUKÁCS, 2012, p. 27, grifos meus)

A referência ao autor é importante para que, ao longo do texto, possamos bem precisar a crítica ao que extrapola o núcleo teórico da “ontologia do ser social” por ele formulada, aqui considerada como uma tendência do marxismo cuja ressonância se faz ver com clareza em muitos estudos sobre o trabalho e a educação, por exemplo.

Como expressão disso, podemos apresentar a leitura de um estudioso da obra de Lukács, que é Sérgio Lessa, para quem há um equívoco do filósofo húngaro quando este define a política como uma práxis política caracterizada pela universalidade. É frequente, em Sérgio Lessa (2002), a postulação de que a obra de Lukács caracteriza-se pela centralidade categorial do trabalho, da sociabilidade e da linguagem, entendendo ser a política uma instância da prática social diretamente associada à manutenção da dominação do homem pelo homem.[3]

Toledo (2002) apresenta as formulações de Lessa sobre a questão, para depois tecer-lhes considerações críticas:

[...] a política e o Estado — como expressões da alienação social e da pré- história da humanidade — se transformarão em peças de museu na futura sociedade comunista. Adotando os termos da linguagem humanista que se nutrem das belas metáforas formuladas nos Manuscritos de 1844 , Lessa acreditaria na extinção da política a partir do momento em que as alienações humanas seriam abolidas; nas suas palavras, “no caso do comunismo, as disputas pelo sentido da construção do futuro são expressões da sociabilidade emancipada que assume conscientemente o fazer a história”. (TOLEDO, 2002)

Acompanho o autor citado quando apresenta sua discordância da leitura que Sérgio Lessa faz de Lukács, pois entendo que essa leitura sustenta-se em falsas antinomias entre o econômico e o político, pois uma “concepção histórica e dialética da totalidade social” presente em Lukács “deveria dar conta das virtualidades contidas no terreno da luta de classes” (idem), o que nos permite uma movimentação, no nível da teoria e das concepções, em real correspondência com o nível da prática, prática essa que é “critério de verdade”:

Discordamos de tais formulações. Ironicamente, para nós, o alegado equívoco cometido por Lukács permitiu a ele evitar as armadilhas da orientação humanista e abstrata defendida neste ensaio. De forma sintética, e forçosamente esquemática, ressaltemos dois pontos. Uma concepção histórica e dialética da totalidade social deveria superar as falsas antinomias que se expressam pelo economicismo ou pelo politicismo ao mesmo tempo que deveria dar conta das virtualidades contidas no terreno da luta de classes. Sem magnificar ou mistificar as possibilidades da atividade política defeito típico do idealismo de orientação politicista não se pode, contudo, num erro simétrico – típico de diferentes modalidades do neoanarquismo e do apoliticismo contemporâneo – diabolizar conceitual e praticamente a ação política. A ênfase em definir a “essência da política” como um conjunto de “atividades sociais voltadas à reprodução da dominação do homem pelo homem” pouco contribui para uma visão crítica da vida social. Deixando de compreender que a formação social — como um espaço contraditório — é permeada pela luta de classes, tal concepção implica, entre outras coisas, reduzir a política (e a ideologia) às práticas de dominação das classes dominantes; além disso, tem como sua conseqüência lógica, subestimar a eficácia da atividade política dos trabalhadores e dos setores populares na luta contra a ordem burguesa. Se pretendem construir uma sociedade “para além do capital”, as classes populares e os trabalhadores devem agir politicamente, antes e durante a edificação do socialismo. As armas e os recursos da política não são exclusivos das classes dominantes; sob o controle dos trabalhadores, não implicam, pois, a “reprodução da dominação do homem pelo homem”, mas, sim, podem ser instrumentos de libertação e superação das distintas opressões de classe. Por outro lado, não acreditamos que a desejada “sociedade emancipada” venha abolir a atividade política numa ordem “para além do capital”. Para nós, a esfera política seria ultrapassada apenas na hipótese (mítica) do comunismo implicar: a transparência de suas complexas e diversificadas estruturas sociais e econômicas, a comunicação plena das subjetividades e a harmonização absoluta das vontades (e dos interesses) em todos os planos da vida social. (TOLEDO, 2002)

Assim, reafirmo, não se pretende criticar a própria contribuição de Lukács e de muitos marxistas seus seguidores, cuja produção científica foi e continua sendo fundamental para o marxismo, de modo que não há aqui uma crítica “em bloco” do pensamento e da obra de György Lukács e de seus mais eminentes continuadores ou tributários, como István Mészáros e — para o caso do debate proposto é importante registrar os brasileiros - José Paulo Netto, José Chasin, Ricardo Antunes, Leandro Konder, só para citar alguns deles. Existem tensões no interior dessa tendência, de modo que o foco da crítica são os encaminhamentos essencialistas que se fizeram desdobrar da “ontologia do ser social”, notadamente nos autores aqui tomados como expressões desses encaminhamentos.

Quanto à importância e o cabedal da grande obra do filósofo húngaro, concordo com as considerações de Minto (2008):

Em seus últimos anos de vida, Lukács reivindicaria o “redescobrimento” de Marx, de sua verdadeira filosofia e, sobretudo, de seu método. Sua inspiração fundava-se, em grande medida, nas deformações promovidas pelo stalinismo, não só na União Soviética, mas em todo o âmbito do chamado “marxismo oficial” (LUKÁCS, 1997, p. 85-6). Interpretava a obra de Marx como um processo de desenvolvimento que caminhou para a superação dos resquícios de sua formação hegeliana, não admitindo a ideia de uma “ruptura”, o que considerava uma “estupidez historiográfica”. Já na chamada “obra de juventude” estariam contidos os fundamentos da ontologia marxiana, isto é, a indicação dos “lineamentos de uma ontologia histórico-materialista”, superando com isso as “tentativas ontológicas” anteriores (sobretudo as do velho materialismo e a de Hegel, que, ao seu modo, entenderam a relação entre o ser e a consciência como antinômicos). Isso motiva Lukács a propor a tarefa de “iluminar o edifício conceitual de uma nova ontologia”, na qual a consciência teria de ser entendida como “produto tardio” do desenvolvimento do ser material, já que, em Marx “o ponto de partida não é dado nem pelo átomo (como nos velhos materialistas), nem pelo ser abstrato (como em Hegel)” (LUKÁCS, 1978, p. 02). Nessa ontologia histórico-materialista pressupõe-se que há certas leis, certos nexos causais da natureza aos quais o homem (e toda a atividade humana) deve, necessariamente, submeter-se. O homem pode conhecer e utilizar tais nexos causais por intermédio de posições teleológicas (ação consciente que, conhecendo uma finalidade, antecede certa atividade humana), mas não pode mudá-los. Isso tem implicações para a questão do conhecimento, já que se supõe que o real existe independentemente de nossa capacidade em apreendê-lo. Portanto, não haveria em Marx uma preocupação direta e exclusiva quanto a uma sistemática epistêmica (da consciência). Tratar-se-ia, por outro lado, de entender a totalidade do real: “a realidade é unitária no sentido de que todos os fenômenos da realidade (sejam eles inorgânicos ou sociais) desenvolvem-se segundo certos nexos causais em certos complexos, com ações recíprocas em seu interior e ações recíprocas de um complexo com relação ao outro” (LUKÁCS, s/d., p. 71). Assim, elimina-se a possibilidade de se cair numa mera teoria do conhecimento. Na dialética marxiana há uma “regência objetiva” sobre o processo de apreensão do real, mesmo que o sujeito em questão – o ser social – seja necessariamente um ser “ativo” (que conhece a realidade e posiciona-se perante ela). Não se limita à “representação caótica do todo”, mas busca-se a rica totalidade de determinações e relações diversas ocultadas no plano do imediato, reafirmando a tese de Marx de que o processo do conhecimento é a forma de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, como “concreto pensado”, não sendo, de modo algum, idêntico à própria realidade.[4] (MINTO, 2008)
O maduro Lukács, ao apresentar sistematicamente sua “ontologia do ser social” em bases materialistas, afirma que

[...] as categorias e as leis da natureza, tanto orgânica quanto inorgânica, constituem uma base em última instância (no sentido da modificação fundamental da sua essência) irrevogável das categorias sociais. [...] Assim, até existem categorias sociais puras, ou melhor, é o conjunto delas que constitui a especificidade do ser social, mas esse ser não só se desenvolve no processo concreto-material de sua gênese a partir do ser da natureza, como também se reproduz constantemente nesse quadro e jamais pode se separar por completo — precisamente em sentido ontológico — dessa base. É preciso sublinhar, em particular, a expressão “jamais por completo”, uma vez que a orientação de fundo no aperfeiçoamento do ser social consiste precisamente em substituir determinações naturais puras por formas ontológicas mistas, pertencentes à naturalidade e à socialidade (basta pensar nos animais domésticos), e continuar a explicitar, a partir dessa base, as determinações puramente sociais. [...] a virada materialista na ontologia do ser social, provocada pela descoberta da prioridade ontológica da economia e seu âmbito, pressupõe uma ontologia materialista da natureza. Essa indissolúvel unidade do materialismo na ontologia de Marx não depende de em que medida os estudiosos marxistas tenham conseguido esclarecer, de modo concreto e persuasivo, essas conexões nos diversos setores da ciência da natureza. O próprio Marx falou de uma ciência unitária da história muito antes que esta desenvolvesse efetivamente tais tendências. [...] a fundação de uma ontologia materialista da natureza, que compreenda em si a historicidade e a processualidade, a contraditoriedade dialética, etc, já está implicitamente contida no fundamento metodológico da ontologia marxiana. (LUKÁCS, 2012, p. 288-289 – grifos meus)

Pelo exposto, o autor, em sua fase “madura” alude, numa postura de deferência, a um pressuposto ontológico materialista para a natureza que compreenda inclusive a “contraditoriedade dialética” — e importa lembrar aqui que a contraditoriedade dialética na natureza é algo defendido por Engels), como pressuposto de uma virada materialista na ontologia do ser social.

No presente texto, portanto, Lukács é tido mais como um pensador cujos escritos tiveram importância para que se provocasse a abertura de uma “fenda” através da qual foram elaboradas as posteriores críticas à obra de Engels, como o indica Jones (1987):

No período revolucionário que se seguiu à Revolução Russa, Lukács e — em medida menor — Korsch introduziram a primeira fenda entre as ideias de Marx e as de Engels. Numa crítica deferente mas venenosa ao Anti-Düring, Lukács reprovou Engels — de um ponto de vista radicalmente hegeliano por sua busca de uma dialética uniforme que ligasse a história humana e a história natural e, particularmente, por sua distinção entre ciência “metafísica” ciência “dialética”, sustentando que desse modo se obnubilava a dialética autenticamente revolucionária de Marx: a do sujeito e do objeto no âmbito da história do homem. Essa crítica não partia de um terreno puramente epistemológico. Com efeito, aos olhos de Lukács, o prestígio de que desfrutaram Darwin e a ciência evolucionista junto à II Internacional ligava-se intimamente a uma distinção adialética entre teoria e prática, e daí se derivavam o imobilismo e o reformismo da sua política. Embora a crítica de Lukács não tenha tido efeito imediato — ele próprio mais tarde se retratou — tratava-se de uma prefiguração da forma que assumiriam muitas outras críticas posteriores. (JONES, 1987, p. 378-379 – grifos meus)

Também Sochor (1987) aponta existir a crítica que Lukács dirigiu a Engels e sua dialética da natureza, crítica essa que teria inaugurado um debate duradouro. Segundo o autor,

Com essa crítica, Lukács inaugurou praticamente um debate que dura até hoje. Trata-se de um problema que pode ser formulado do seguinte modo: a dialética materialista de Marx é uma teoria geral que se refere às leis mais gerais da natureza, ou vale apenas para a realidade histórica (cultural) e ao pensamento humano? Para Lukács, a dialética materialista se identifica com o materialismo histórico; e ele limita explicitamente o método da dialética materialista à realidade social. Ele pensa que Engels, no Anti-Dühring (o manuscrito da Dialética da natureza ainda não fora publicado naquela época), conservara-se preso ao mau exemplo hegeliano, ou seja, esforçava-se por obter um sistema completo e fechado e, desse modo, estendera o método dialético também ao conhecimento da natureza [...] (SOCHOR, 1987, p. 33 – grifos meus)

De fato, as observações de Jones (1987) e Sochor (1987) são procedentes, pois os elementos mais fundamentais das críticas dirigidas a Engels parecem, mesmo, já estarem presentes nas considerações feitas por Lukács.

Tal pode ser verificado, por exemplo, em importante obra do autor, História e consciência de classe, na qual tece as seguintes considerações sobre Engels:

Com efeito, Engels descreve a conceptualização do método dialéctico contrapondo-o à conceptualização “metafísica”: sublinha que, no método dialéctico, a rigidez dos conceitos (e dos objectos que lhes correspondem) se dissolveu, que a dialéctica é um processo de constante passagem fluida de uma determinação a outra; que, consequentemente, se deve substituir a causalidade unilateral e rígida pela acção recíproca. Mas o aspecto mais essencial desta acção recíproca, a relação dialéctica do sujeito e do objecto no processo da história, não chega a ser mencionado, e muito menos colocado (como deveria) no âmago das considerações metodológicas. Ora, privado desta determinação, o método dialéctico (apesar, é certo, de manter, de forma puramente aparente, a “fluidez” dos conceitos) deixa de ser método revolucionário. A diferenciação em relação à “metafísica” deixa então de ser procurada, porquanto em qualquer estudo se mantém intocável e imutável; por conseguinte, o estudo conserva uma perspectiva puramente “contemplativa” e não se torna prático, ao passo que, para o método dialéctico, a transformação da realidade constitui o problema central. Se se desprezar esta função central da teoria, a vantagem da conceptualização “fluida” torna-se bastante problemática. Tudo isso se transforma numa questão puramente “científica”. O método pode ser rejeitado ou aceite, segundo o estado da ciência, sem que a atitude fundamental perante a realidade e o seu caráter mutável ou imutável sofra a mínima alteração. [...] Os mal-entendidos que a maneira engelsiana de expor a dialética suscitou vêm essencialmente de que Engels – seguindo o mau exemplo de Hegel – estendeu o método dialético ao conhecimento da natureza. (LUKÁCS, 1974, p. 17-18; 19 – grifos meus)

Embora Lukács reconheça que Engels, ao descrever o método dialético, o faz de maneira contraposta à forma de a perspectiva metafísica conceber este método, ele não deixa de colocar um acento num aspecto que, na forma de descrição do método dialético empreendida por Engels, acabaria por estabelecer um “esvaziamento” na própria dialética, que ficaria alijada de seu conteúdo revolucionário. Este aspecto “fundamental” seria “a relação dialética do sujeito e do objecto no processo da história” (Idem), cuja falta permitiria naturalizar a história. Mesmo que a preocupação de Lukács possa girar em torno de indicar o poder da teoria para um conhecimento que se queira revolucionário, proponho uma indagação: não estaria o autor, neste momento de sua obra, explicitando uma objeção fundamental do entendimento de Engels (caro ao próprio materialismo) de que há uma dialética da natureza, ou seja, de que o movimento dialético do real existe mesmo quando não se faz presente relação dialética do sujeito e do objeto? Seria um limite do realismo de Lukács neste momento de sua obra — momento de transição para o marxismo —, na medida em que a dialética não poderia existir sem a consciência capaz de “colocar teleologias”?

Como a “ontologia do ser social” não é precisamente elaborada na juventude de Lukács, e sim uma concepção de momento mais maduro — “ponto de chegada de uma trajetória extremamente longa” — de sua vida intelectual, vejamos o que diz Nicolas Tertulian a respeito:

Ponto de chegada de uma trajetória extremamente longa [...], a Ontologia traz algumas novidades relevantes para o panorama da obra lukacsiana. O filósofo apresenta aí, pela primeira vez num contexto sistemático, a crítica ao neopositivismo, voltada, por exemplo, para alguns dos escritos de Carnap ou ao Tractatus logicophilosophicus de Wittgenstein. O neopositivismo lhe aparece como o avalista filosófico do reino da manipulação. Pode-se até afirmar que o fato de voltar-se para a ontologia constitui, para ele, uma enérgica reação contra certa hegemonia do neopositivismo no cenário filosófico: diante das tentativas de homogeneização cada vez mais explícita da vida social, submetida aos imperativos do cálculo e da quantificação, a ontologia do ser social pretende dar destaque à heterogeneidade e à diferenciação extremas do tecido social, opondo uma negação clara ao confisco do indivíduo e à manipulação. (TERTULIAN, 1996, p. 57 – grifos meus)

Entendo serem bastante precisas as observações que o autor faz a respeito da obra madura de Lukács que, ao elaborar sua “ontologia”, formula de maneira sistemática uma crítica ao neopositivismo. Entretanto, importa registrar que, ao dirigir a crítica ao neopositivismo, num “rastreamento” de formas as mais variadas de reificação do pensamento e do real, esta se fez acompanhar de críticas ao modo como Engels concebia a dialética, a meu ver compartilhadas pelo próprio Tertulian:

A precisão com que Nicolai Hartmann tinha traçado as linhas de demarcação entre a ontologia, por um lado, e a lógica e a gnosiologia, por outro, objetivando um fundamento rigorosamente crítico das categorias (aqui está integralmente o sentido da "ontologia crítica"), tiveram um efeito benéfico também sobre o pensamento de Lukács. É em nome de uma tal ontologia crítica (e de modo algum "pré-crítica" e muito menos "prédialética") que, na Ontologia do ser social e, de modo especial, nos Prolegômenos, Lukács rastreia as tantas formas de reificação do pensamento e do real, desde a teoria platônica das ideias até o criticismo kantiano ou o logicismo nas suas diversas variantes, desde a ontologia logicizante e criptoteleológica de Hegel (que Lukács distingue cuidadosamente da "verdadeira ontologia" hegeliana, concretizada na lógica da essência) até os escritos dos neopositivistas modernos, que sacrificam a autonomia ontológica do real à sua manipulação pragmática. Deste modo, ele pode demonstrar, por exemplo, a inconsistência de uma famosa "lei da dialética": a negação da negação. Submetendo-a à prova de um rigoroso controle ontológico, ele consegue evidenciar os efeitos negativos produzidos pela sua transubstanciação no marxismo realizada por F. Engels. Julgamos os Prolegômenos uma introdução indispensável para compreender o pensamento ontológico do último Lukács. (TERTULIAN, 1996, p. 69,  grifos meus)

Moraes (2007) considera o autor citado um “exemplo particularmente agressivo” de crítica a Engels:

Exemplo particularmente agressivo é o oferecido por Nicolas Tertulian num artigo consagrado à apresentação da pleonástica “ontologia do ser social” (literalmente: teoria do ser social) de Lukács. Parte considerável do artigo está consagrada à influência de Nicolai Hartmann na elaboração daquela ontologia. (A obra de Hartmann, inteiramente enraizada no idealismo alemão do início do século XX, está na origem da inflação ontológica que, graças sobretudo a Martin Heidegger, mas também a Lukács, propagou-se pela Europa, Estados Unidos e adjacências). Não nos arriscaríamos a enveredar pelo terreno da hermenêutica lukacsiana, mas não temos porque duvidar de Tertulian quando afirma ser “quase perfeita” a “coincidência” entre Lukács e Hartmann “quanto à análise das relações entre teleologia e causalidade”. O padrinho desse conúbio teria sido nada menos do que Marx, renegando “post mortem” sua exemplar amizade e colaboração com Engels (em vida nunca desmentida). Na base desta bizarra hipótese, Tertulian assume “o objetivo de distinguir o pensamento autenticamente ontológico de Marx da interpretação dada por Engels”, “considerado responsável, de certa forma, pela deformação stalinista do marxismo”, reproduzindo uma passagem de Lukács, que não deixa dúvidas a esse respeito: “Eu acredito [...] no fato de que Engels e depois dele alguns social-democratas interpretaram o desenvolvimento da sociedade em termos de necessidade em contraste com aquelas conexões sociais de que fala Marx”. Terão os dois ontólogos cometido um lapso de memória, ou ter-lhes-á faltado coragem intelectual para responsabilizar pelas alegadas deformações do marxismo, também o mais veemente intusiasta russo de Engels, um certo Vladimir Ullanov, dito Lênin? Ou, do ponto de vista da revolução proletária, ficaria muito constrangedora a comparação entre o engelsismo de Lênin e o lukacsiano Tertulian?[5] (MORAES, in FERREIRA et al (orgs), 2007, p. 155-156, grifos meus)

Ao posicionar-se criticamente em relação à tendência do marxismo que coloca acento na “ontologia do ser social”, Moraes (2007) considera positivamente a contribuição de Engels à elaboração do marxismo clássico (e reforça o pressuposto materialista de que este parte), como por exemplo, nos estudos sobre a linguagem, a consciência e a técnica. Vai ao texto engelsiano sobre o papel do trabalho no processo de “hominização” do homem, e reflete sobre a imagem do “salto” das formas “pré-humanas à forma humana do trabalho”, o que, para ele,

[...] constitui o elo decisivo da hominização: o homo se tornou sapiens ao se tornar faber. Do ponto de vista da filogênese, as duas transformações são coetâneas e complementares: o esquema mental da forma útil é inseparável da destreza manual, que o toma por paradigma para moldar o objeto de trabalho. Mão e cérebro são igualmente decisivos, a tal ponto que, parodiando um preceito célebre do aristotelismo, podemos afirmar que o cérebro abstrai aquilo que as mãos separam. Todas as demais formas que o homem veio a produzir (para o “bem” ou para o “mal”), notadamente a linguagem articulada, têm sua matriz nesta conexão originária. (MORAES, in FERREIRA et al (orgs), 2007, p. 149-150)

Moraes (2007) adverte , no entanto, que a imagem do “salto” a que recorre é empregada em sentido adverso por outros marxistas (em particular de uma tendência entre estes cujas balizas de análise dão-se em torno da “ontologia do ser social”), que dirigem as mais duras críticas a Engels, aqui combatidas por Moraes:

A imagem do “salto”, que, para nós, simboliza estritamente o momento em que a alteração quantitativa se torna mudança de qualidade, é frequentemente empregada para confortar a sofreguidão racionalista de afastar o homo sapiens da mera natureza, conferindo-lhe desde logo os atributos essenciais de sua humanidade. Com efeito, é próprio ao humanismo marxológico, em suas visões leiga ou religiosa, conservadora ou “de esquerda”, inscrever a humanidade, ou o homem em sua universalidade, numa esfera irredutível, “ontologicamente” distinta e superior às demais espécies biológicas. Não surpreende que os adeptos destas doutrinas se empenham, com zelo ritual, na desqualificação teórica e mesmo política de Engels. (MORAES, in FERREIRA et al (orgs), 2007, p. 155, grifos meus)

Deste modo, fica mantida a “unidade do real”, unidade na diversidade. Moraes ainda observa que,

[...] bem antes dos ontólogos modernos, Marx havia apontado na capacidade de antecipar no cérebro a forma útil que iria imprimir no objeto natural, o traço próprio do trabalho propriamente humano. Sintomaticamente preocupado, como toda a escola marxolontóloga, em salvar o homem de sua animalidade, Tertulian garante que com seu “pôr”, “Lukács torna impossível a confusão entre a vida da natureza e a vida da sociedade: a primeira é dominada pela causalidade espontânea, não teleológica por definição, enquanto a segunda é constituída através dos atos finalísticos dos indivíduos”. O materialismo consequente não hesita, ao contrário, em assumir a fundo a tese de que o homem é um produto da história natural. Ontologicamente, é matéria. Sublimar a matéria do “social” é enveredar pelo logicismo transcendental das “ontologias regionais” do idealismo pós-kantiano e fenomenológico. A interpretação lukacsiana da filosofia marxista merece, porém, o benefício da dúvida. Melhor, pois do que atacar Engels, os epígonos do pensador húngaro deveriam mostrar que ela não se esgota num humanismo trivial: o homem não se reduz à natureza, não é um animal irracional, nem mero agente econômico etc.[6] (MORAES, in FERREIRA et al (orgs.), 2007, p.156)

Deve-se registrar, no entanto, que a leitura apresentada por N. Tertulian — e criticada por João Quartim de Moraes — não é de todo compartilhada pelo conjunto dos pensadores “lukacsianos”, o que nos possibilita falar da existência de uma certa leitura da obra de Lukács que penso poder ser caracterizada como uma tendência do marxismo, atualmente bastante prestigiada e em destaque nos estudos sobre educação e trabalho no Brasil, bem expressa por autores como Ivo Tonet e Sérgio Lessa, por exemplo.

Para ilustrar a discussão a respeito da “inconsistência da famosa lei da dialética” a que Nicolas Tertulian se refere, que é a “negação da negação”, cabe aqui recorrer a um pensador da envergadura de István Mészáros, tributário da obra de Lukács e um de seus seguidores mais qualificados, para que se veja quão perigosas por vezes podem tornar-se as veredas da filosofia, se considerarmos, é claro, que a obra de Marx e Engels foi construída, em seu fundamento materialista e dialético, no sentido de superar as perspectivas essencialistas, abrigadas pelas concepções metafísicas, o que, penso, equivale a aceitar como válidas as considerações de Engels sobre a existência de uma dialética operando também na natureza:

Caracteristicamente, uma das maneiras pelas quais se procurou alijar do marxismo a objetividade das determinações dialéticas consistia em declarar que eram uma criação de Engels, que falava sobre dialética não apenas na história mas, horrible dictu, também na natureza. Isto, insistiam, devia ser rejeitado como incompatível com os próprios escritos de Marx. No entanto, os próprios fatos, mais uma vez, dizem outra coisa. Se alguém é culpado‟ nesse aspecto certamente é o próprio Marx, que escreveu a Engels, quase dez anos antes de este último começar a escrever sua Dialética da natureza: Você também perceberá, pela conclusão do meu capítulo III [d‟O capital], (...) que no texto eu afirmo que a Lei que Hegel descobriu, de mudanças puramente quantitativas se transformando em mudanças qualitativas, vale tanto na história como nas ciências naturais. (MÉSZÁROS, 1996, p. 330-331)

Indo ao encontro do entendimento de Mészáros, Álvaro Vieira Pinto é contundente em relação a esta questão:

A controvérsia sobre se existe ou não a “dialética da natureza” já representa uma formulação tendenciosa, que dificulta a inteligibilidade do problema. A realidade não pode ser dividida em planos, separada em setores ou compartimentos radicalmente distintos, sujeitos a leis intransponíveis e inintegráveis, pois se um de tais planos ou esfera é considerado “real”, que nome se daria então aos demais? Se são diferentes daquilo que é real só podem ser o irreal, mas este só tem significado enquanto obra da imaginação. Admitindo, portanto, a unidade da realidade, que consiste na materialidade do processo do mundo objetivo, torna-se imperioso aceitar igualmente que uma só lógica exprime veridicamente todos os processos que nela se desenrolam. (PINTO, 1979, p. 162, grifos meus)

Se mantida essa controvérsia, sustenta-se a secundarização da obra de Engels. Secundarizando-se a obra de Engels, mantém-se a controvérsia, com o risco de se fragilizar o próprio materialismo nos seus pilares, no que este tem de mais nuclear, de modo que só restaria a existência de uma ontologia de corte metafísico. Como diz Ronald Rocha:

[...] a crítica à elaboração de Engels está ligada à recusa em admitir a presença imanente da dialética na ontologia dos seres naturais. Assim, teria havido uma retroflexão societária e antropomórfica, projetando sobre a natureza categorias exclusivamente lógicas, como são por alguns consideradas, por exemplo, a contradição e a negação. Em nome das óbvias diferenças entre as várias esferas do ser, optaram por eliminar as identidades genéricas. Deixaram de distinguir conceptualmente a dialética objetiva da subjetiva, isto é, o real do pensamento, da consciência e da inteligibilidade dialéticos, que realmente são, esses sim, embora sobredeterminados, atributos exclusivamente humanos. A consequência é que, para além do ser social, só poderia haver uma ontologia de corte metafísico, já que a matéria é historicamente anterior à práxis e à razão sapiens, que só depois iriam servir de veículos à formulação da lógica dialética. (ROCHA, 2000, p. 72, grifos meus)

Importa, neste momento, lembrar a admissão de Lukács quanto à unidade da realidade, unidade processual. Nos Prolegômenos a uma ontologia do ser social, o autor afirma que

O ser humano pertence ao mesmo tempo (e de maneira difícil de separar, mesmo no pensamento) à natureza e à sociedade. Esse ser simultâneo foi mais claramente reconhecido por Marx como processo, na medida em que diz, repetidas vezes, que o processo do devir humano traz consigo um recuo das barreiras naturais, jamais sua supressão total. De outro lado, porém, jamais se trata de uma constituição dualista do ser humano. O homem nunca é, de um lado, essência humana, social, e, de outro, pertencente à natureza; sua humanização, sua sociabilização, não significa uma clivagem de seu ser em espírito (alma) e corpo. (LUKÁCS, 2010, p. 41-42, grifos meus)

Insistindo ainda na referida controvérsia, um outro seguidor de Lukács, Guido Oldrini, ao discutir a relação Marx-Engels, arrola minuciosamente um amplo conjunto de fatores que atestam a profunda e fundamental contribuição de Engels, seja como teórico, como ativista político ou como intelectual polemista, sempre disposto a rebater os ataques dirigidos ao movimento e organização dos trabalhadores quanto aos direcionados à teoria, particularmente, ao núcleo fundamental da concepção materialista. O autor afirma que

[...] enquanto complexo doutrinário, o marxismo é uma teoria que se apresenta sob duplo aspecto: ele é, a um só tempo, teoria da história (materialismo histórico) e concepção geral de mundo (materialismo dialético). Gyögy Lukács insistiu contínua e vigorosamente, em especial na Estética e na Ontologia, a respeito da íntima conexão existente no interior do marxismo entre determinações teóricas e determinações históricas daqueles problemas que dizem respeito à inseparabilidade que origina a linha fundamental do pensamento marxiano. Observou que os problemas do materialismo histórico se vinculam com aqueles do materialismo dialético; e também insistiu sobre a cooperação, recíproca e constante, que essas duas ramificações da ciência haviam de manifestar em toda a investigação. (OLDRINI, 2011, p. 102)

Entretanto, a contrapelo das assertivas de István Mészáros aqui referidas, Guido Oldrini argumenta que, se examinarmos com Lukács, “o marxismo sob o aspecto de sua dimensão ontológica”, o “marxismo de Engels” torna-se problemático:

Aqui o marxismo de Engels nem sempre está à altura das intuições geniais e das descobertas de Marx: no âmbito das leis do real (wirklichen), ele alcança a profundidade própria destas, mas não suas fundações, manifestando-se nele um inegável erro de simplificação. Inegável, porém, não no sentido de que seus ensinamentos já anunciem os limites de toda degeneração positivista do marxismo que veio à luz com o marxismo da Segunda Internacional (conforme a compreensão que sempre se repete em grande parte da moderna marxologia burguesa, de Iring Fetscher a Habermas), mas, no limite, pelo motivo inverso: seu marxismo ainda flerta em demasia com a dialética hegeliana, a qual ele não diferencia logicamente o bastante da ontologia. (OLDRINI, 2011, p. 105, grifos meus)

Oldrini (2011) apresenta três exemplos, “todos retirados de Lukács” (idem, p. 105), a fim de demonstrar a problemática em torno desse “flerte” de Engels com a dialética hegeliana, exemplos “que dizem respeito, na ordem, à categoria da negação, à relação categorial entre liberdade e necessidade e à relação — vinculada aos pontos precedentes — entre práxis e 'verdade objetiva'”. A citação do autor, apesar de extensa, é imprescindível para uma melhor e clara compreensão dessa discussão:

No plano lógico ou gnosiológico, a negação tem o significado primário de realização dinâmica da dialética. Mas, já o havia destacado o antidialético Feuerbach, crítico da filosofia de Hegel — de maneira alguma ela representa (darstellt) uma categoria ontológica autônoma. Ontologicamente considerado, o “nada” jamais se põe; põe-se apenas a negação de algo outro, a negação de uma outra efetividade (Wirklichkeit): por exemplo, sob a morte, a realidade da vida. “Um ente não objetivo é um não-ente”, segundo a significativa observação de Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, no qual ele quis dizer: ser e objetividade exprimem a mesma coisa: não há nenhum “nada” que a forma do ser contenha. Por isso, quando Engels dá o exemplo do grão de cevada que se transforma em planta e esta se define enquanto a “negação do grão” (exemplo denominado como “a negação da negação”, mas que em Marx — comenta Lukács — “esta não aparece de modo algum”), ele intercala de modo ilegítimo uma categoria lógica na ontologia e viola a lei da objetividade do objeto — procedimento que Marx já observara contra Hegel —, isto é, transforma de maneira forçosa (zwängt) objetos ontológicos e realidades em formas que, à medida que são lógicas, deformam aqueles mesmos objetos ontológicos e realidades. Primazia análoga e injustificada do modelo hegeliano da lógica se mantém no tratamento que Engels dispensa à relação entre liberdade e necessidade. Sem dúvida, ele coloca sobre os pés, no sentido materialista, a fórmula idealista de Hegel de cuja concepção a liberdade é, como se diz, a “verdade da necessidade”, a necessidade “conceituada” [...] Mesmo com essa “virada materialista”, Engels não se livra completamente, porém, da arquitetônica lógica do sistema hegeliano. Escapa-lhe a importância logicista excessivamente entorpecida que Hegel precisamente atribui, em virtude das pressões do sistema, à categoria necessidade. Marx, ao contrário, procede muito mais livremente em comparação a Hegel. No ponto de partida da ontologia marxiana, assim como Lukács a interpreta, encontra-se uma hierarquização bastante sofisticada das associações entre as categorias aqui apontadas, uma concepção de liberdade melhor articulada que é posta, no interior da relação, no circuito completo das categorias inteiramente modais. Da maneira como Engels procede, essa ontologia esgota-se inteiramente na necessidade “conceituada”, quando, ao contrário, ela deve significar o campo das possibilidades, das decisões que se circunscrevem entre alternativas que a realidade humana mesma não perde de vista na execução do processo de trabalho. Isso tem consequências imediatas também para o terceiro e último ponto que aqui está em questão, ou seja, o exame do papel da práxis na ontologia e no esclarecimento do processo gradual na qual está compreendida a estrutura constitutiva do real (wirklichen). Para o marxismo, vigora o princípio de que a práxis representa o critério absoluto da teoria, e isto é demonstrado pela “verdade objetiva”. Engels apresenta os casos típicos dessa verificação mediante a práxis, notoriamente no âmbito da experimentação e da indústria, que são o oposto do caráter meramente contemplativo do pensamento burguês... [...] Nos moldes das objeções agnósticas como as levantadas pelos neokantianos, segundo as quais as propriedades de uma coisa não são ainda “a coisa em si”, e enquanto coisa em si jamais poderiam ser conhecidas, já que estão para além de toda capacidade de conhecimento possível, Engels responde, a respeito destas mesmas objeções, com as palavras da polêmica hegeliana contra Kant: se conhecem-se as propriedades totais de uma coisa, conhece-se também a “coisa em si”, e esta aparece, pois, como nada além do que aquilo dado pela realidade positiva, realidade esta que é o lugar no qual a coisa exterior a nós tem existência. Decisiva e definitivamente, esse é o mais elevado grau de refutação do agnosticismo que a práxis da indústria moderna oferece. Essa experimentação tem, no entanto, um alcance limitado. Se, para além da verificação, um fato, um dado ou um nexo causal isolado diz repeito a um processo cujo resultado tem na observação o mais puro e elevado grau das esferas complexas do real como finalidade [humana], ou ainda a ampliação da consciência da estrutura ontológica, então a experimentação já não basta. [...] De fato, isso tem a ver com a realidade (Wirklichkeit) exclusivamente sob o aspecto da aparência, aquele do fenômeno (Oberfläche) separado da esfera de sua manipulabilidade tecnológica (tecnologischen manipuierbarkeit) e que, enquanto tal, pode muito bem conviver com uma falsa teoria na qual o “em si” da coisa (Sache) — no sentido engelsiano — não toca de modo algum. A práxis imediata necessitou, por essa razão, reinaugurar e afirmar a mediação em consonância com uma completa ontologia do trabalho. De outra maneira, a observação crítica de Lukács a respeito da práxis não conservaria o seu significado pleno: “A orientação no sentido de uma praticidade lógico-imediata, ainda que solidamente fundada, conduz, do ponto de vista ontológico, a um beco sem saída”. (OLDRINI, 2011, p. 106-109)

Como se pode ver, a crítica de Oldrini (2011) é, de fato, mais substancial, o que justifica a transcrição extensa de seu texto literal. Chega ao ponto de procurar demonstrar a permanência da lógica hegeliana no pensamento de Engels e também ao ponto de procurar a insuficiência da forma como Engels teria recorrido à práxis como critério de verdade, ou seja, a forma como para Engels a experimentação e a indústria aparecem como componentes fundamentais da práxis. Ora, teria Engels imaginado ou suposto que a experimentação ou a indústria faziam-se por si e não se constituíam em atividade marcadamente humana, em trabalho? Não existe aí um pressuposto ontológico? Ainda, a grande validade da reflexão de Engels não estaria em indicar que, quando se remete à experimentação e à indústria, está demonstrando que não toma o trabalho como uma entidade, mas sim que esta atividade está sendo tomada em consideração no interior de uma sociedade de classes, do modo de produção capitalista, ou seja, que não está preocupado em discutir abstratamente uma categoria?

Vale aqui a observação de Álvaro Vieira Pinto:

A questão fundamental que nos deve orientar na compreensão da teoria da ciência e da pesquisa científica consiste na admissão da logicidade do processo natural enquanto qualidade deste em si mesmo, e não como qualidade pertencente originariamente ao plano da consciência, ao espírito, vindo a ser projetada na realidade exterior pela exigência de conhecê-la racionalmente. A diferença entre os dois modos de ver é radical, e decide de todas interpretações a que se volta o cientista, ainda quando disso não tenha clara percepção. [...] parece-nos indispensável admitir que a dialética não é um produto do espírito mas a legalidade interna do processamento da realidade no seu curso natural, refletindo-se no pensamento em caráter de lógica dialética; e ademais, julgamos indispensável suprimir a dualidade ingênua, que os negadores da dialética objetiva estabelecem, ao tomar a atitude, em si antidialética (mesmo do ponto de vista que defendem), de criar dois planos lógicos incomunicáveis, um entregue ao formalismo da concatenação causal linear, por simples relações externas entre os fenômenos; e outro que os interpretaria segundo diferente conceituação, a que proclama a predominância das relações internas entre as ideias. [...] A rígida postura de recusa da inerência da dialética no plano natural, mesmo reconhecendo-a válida no plano das ações humanas, da história e das ciências sociais, não abre a possibilidade de compreensão integral do problema do conhecimento. (PINTO, 1979, p. 159; 161, grifos meus)

Fazer com que compareçam ao debate autores que receberam influência do pensamento de Lukács, e que não rejeitaram insistentemente os apontamentos de Engels em relação à dialética nos processos naturais, ajuda a elucidar alguns pontos que são realmente importantes para o problema aqui proposto. O que está colocada é a questão da já apontada existência de uma tendência do marxismo que se irradia em torno de uma “ontologia do ser social” e que se afasta da perspectiva (marxiana e engelsiana) de sustentação de um mesmo e único pressuposto ontológico materialista tanto da natureza quanto da sociedade.

É possível observar um claro contraste, quanto a esta questão, entre o Lukács maduro e alguns pensadores tributários de seu pensamento. O próprio Lukács sustenta que

A recusa gnosiológica de uma ontologia materialista da natureza e da sociedade levada às últimas consequências tem aqui uma de suas mais importantes bases ideológicas: a burguesia, que passou a dominar economicamente, busca não apenas a paz com as forças religiosas, mas também a manutenção da própria “respeitabilidade” sociomoral diante dos materialistas, em que podem com frequência se revelar, aberta e criticamente, as últimas consequências morais dessa ordem social. (LUKÁCS, 2010, p. 67)

Ainda no interior da questão das críticas dirigidas ao pensamento de Engels, é interessante verificar que intelectuais do campo das ciências naturais, como da física ou das geociências, esboçam preocupações semelhantes às dos que não secundarizam a obra de Engels, e muito menos a responsabiliza por “desvios” os mais variados. É o caso de Alex Peloggia e Olival Freire Jr., que aceitam a discussão a respeito da dialética da natureza proposta por Engels, rechaçada por pensadores reconhecidamente pertencentes à tradição marxista e tributários do pensamento de Lukács.

Alex Peloggia, por exemplo, em texto intitulado Sobre a dialética e as particularidades das ciências da natureza e da sociedade, apresenta a crítica que Sérgio Lessa (citado por Peloggia em trecho a seguir) endereça a Engels para, mais à frente, discuti-la de forma arguta:

[...] conforme Lessa (1989; 336), Lukács, ao abordar a questão da categoria da negação, em sua obra sobre “A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel” (...) teria uma posição inequívoca. Para Lessa “(...) neste tema em particular, a crítica que [Lukács] faz a Hegel é tão radical quanto à que faz a Engels: ambos perderam, cada um a seu modo, a especificidade do ser social ao homogeneizar toda processualidade do ser sob a categoria da negação. Tanto na vertente idealista quanto na materialista, o resultado dessa homogeneização é o mesmo: identificar logicisticamente sociedade e natureza” (grifos de Peloggia). A partir de sua interpretação de Lukács, conclui o autor citado que: “Devemos lembrar, em primeiro lugar, que de identificações deste gênero decorrem interpretações que deformam a integridade do ser social ao igualar a legalidade vigente na natureza àquela que impera na sociedade. Não apenas o stalinismo, mas também as tentativas de identificar luta de classes com a seleção natural na esfera biológica, ou o positivismo, com sua tentativa de reduzir a causalidade social ao tipo de causalidade do mundo físico-químico, têm uma de suas raízes em tal equívoco ontológico” (Lessa; 1989, 336-337 – Grifos de Peloggia) (...) Pretende o autor assim, em conclusão, que Engels, ao desconhecer a distinção ontológica entre a categoria social da negação e a processualidade natural, teria efetuado uma inversão ontológica, com a qual perdeu a especificidade do ser social. (PELOGGIA, 2004, p. 3-4 - grifos meus)

Alex Peloggia continua recorrendo aos escritos do próprio Lessa — por ele citado — para que se amplie o quadro da refutação da dialética da natureza por este efetuada:

[...] a mesma legalidade ontológica que rege o processo de transformação de uma montanha em vale está presente na formação de uma montanha. As leis geológicas presentes nos dois processos são as mesmas; não há, entre a processualidade da evolução de um vale e a de uma montanha, qualquer ruptura ontológica. Além disso, é obviamente insustentável que o vale (ou a montanha) seja uma negação do ser orgânico. Portanto, não há qualquer traço de negação. (LESSA, 1989 apud PELOGGIA, 2004, p. 6)

Criticando esse posicionamento de Sérgio Lessa, Alex Peloggia afirma que se pode considerar, nessa discussão, “ruptura ontológica” como “transformação do modo de ser”, em suas formas objetivas ou em sua processualidade, ou, em outros termos, “mudanças de categorias”. E continua:

[...] é provável que o próprio exemplo escolhido por Lessa para fundamentar sua análise tenha contribuído para seu mau entendimento da questão. De qualquer forma, ficam evidentes a imprecisão dos conceitos e a falta de aprofundamento da análise levada a cabo pelo autor citado, em contraste evidente (...) com a cuidadosa síntese de Engels, válida em termos gerais até hoje. (PELOGGIA, 2004, p. 7 – grifos meus)

Os argumentos do autor sustentam-se na seguinte passagem do Anti-Dühring, de Engels:

[...] toda geologia é uma série de negações negadas, uma série de destruições sucessivas de formações minerais antigas e de sedimentação de formações novas. Como é sabido, a crosta terrestre primitiva resultante do arrefecimento da massa falida fluida fragmenta-se sob a ação dos oceanos, da meteorologia e da química atmosférica, e essas massas trituradas depositam-se em camadas no fundo do mar. Transformações geológicas locais do fundo oceânico trazem à superfície e expõem de novo partes dessa primeira estratificação aos efeitos da chuva, da temperatura — e que varia consoante as estações —, do oxigênio e do ácido carbônico da atmosfera. As mesmas influências atuam sobre as massas rochosas, primeiro em fusão e depois arrefecidas, que saídas do interior da Terra atravessaram as sucessivas camadas. Assim, durante milhões de séculos, não cessam de se formar camadas novas, de serem destruídas na sua maior parte e de servirem mais uma vez para a formação de novas camadas. (ENGELS, 1975 apud PELOGGIA, 2004, p. 7)

A criteriosa interpretação que Alex Peloggia efetua dos escritos engelsianos fica claramente demonstrada e completa-se nos seguintes termos:

Deve ser ressaltado que Engels trata nesta passagem, que caracteriza o conceito geológico de ciclo das rochas, da transformação de categorias ontológicas (como formas de existência, de ser e ir-sendo, dos entes naturais), conforme lhes determina a Geologia, e não de processos lógico-formais; ou seja, não se perde a referência de partida no real. E que é às custas da destruição de formações antigas que se dá a deposição de novas camadas geológicas (estas que, por sua vez, poderão também ser destruídas e assim por diante; esta é a série de negações negadas). Vê-se, portanto, que as categorias colocadas por Lessa, de “montanha” e “vale”, no encadeamento elencado, são produtos, talvez “construções lógicas”, da interpretação desse autor ou, melhor dizendo, talvez de sua pouca familiaridade com os processos de funcionamento da natureza geológica. Não constam do texto engelsiano e não foram discutidas por Lukács. (PELOGGIA, 2004, p. 8, grifos meus)

Receio que Sérgio Lessa tenha levado às últimas consequências “a recusa gnosiológica de uma ontologia materialista da natureza e da sociedade”. Lukács, por sua vez, desaconselhou essa recusa.

A respeito do Anti-Duhring, texto ao qual Alex Peloggia recorre para defender a reflexão engelsiana, Osvaldo Coggiola afirma que este

[...] marca uma nova etapa no desenvolvimento do marxismo, entendido como unidade de teoria e prática, ou como “teoria que deita suas raízes nas massas”. Segundo o historiador da social-democracia alemã, Gary P. Steenson: “A publicação do Anti-Dühring sinaliza o começo de uma escola de pensamento marxista no país de nascimento do mestre. No contexto da história do marxismo, a significação do Anti-Dühring vincula-se à extensão com que Engels ligou a obra de Marx a uma concepção de mundo abrangente e alicerçada no desenvolvimento das ciências naturais da sua época”.[7] (COGGIOLA, 1995, p. 33,  grifos meus)

Criteriosa, também, é a leitura que Olival Freire Jr., físico e historiador da ciência, faz da obra de Engels — e sem dissociá-la da obra marxiana. O autor examina com grande perspicácia a preocupação de Marx e Engels com o desenvolvimento das ciências naturais e das matemáticas:

Examino, de início, as motivações que levaram Engels e Marx a dedicarem tanta atenção ao desenvolvimento das matemáticas e das ciências da natureza. A leitura do conjunto dos fragmentos de suas correspondências versando sobre o tema, bem como de suas obras publicadas, nos permite destacar duas motivações, pela sua atualidade. Há, nessa obra, toda uma preocupação com a análise da influência das “visões de mundo” — preocupação expressa nitidamente na Dialética da natureza de Engels. Trata-se claramente de uma preocupação com dimensão filosófica, e também social, das idéias científicas. Note-se que uma preocupação com a dimensão filosófica das inovações científicas atravessou todo o século XX, sendo inclusive uma preocupação academicamente bem definida. Uma preocupação com a dimensão social das idéias científicas esboçou-se nos anos 30 com os trabalhos de marxistas como Hessen e Bernal e de sociólogos não marxistas como Merton e Weber, mas só adquiriu carta de cidadania acadêmica no pós- Segunda Guerra. A outra motivação, de imensa atualidade, diz respeito à influência das inovações científicas na produção material. Marx preocupa-se especialmente com a influência da química na agricultura e com a possibilidade de transmitir energia elétrica com altas tensões a grandes distâncias. Observa-se também que foi exatamente no curso do século XIX, em especial na segunda metade que, pela primeira vez na história, teorias científicas foram aplicadas à produção, configurando o que chamamos de tecnologia para distinguir das técnicas onde não há essa aplicação consciente de princípios científicos. As indústrias química e elétrica estão entre as primeiras beneficiadas por essa interação. Apenas para realçar essa característica inovadora, é bom lembrar que a revolução industrial, tendo a máquina a vapor como carro chefe, não foi antecedida pela ciência; pelo contrário, o surgimento da disciplina termodinâmica pelas mãos do engenheiro francês Sadi Carnot, no início do século XIX, sucedeu ao uso em larga escala da máquina a vapor. Desnecessário frisar, neste final do século XX, a contemporaneidade do papel da ciência na produção dos bens materiais. [...] As reflexões engelsianas sobre as ciências da natureza são, portanto, atuais, e por isso clássicas, por se tratarem de reflexões sobre os problemas atuais, contemporâneos. (FREIRE JR., 1995, grifos meus)[8]

As reflexões de Engels são, além de atuais, como aponta Freire Jr. (1995), também de suma importância para a ruptura com a metafísica e para a estruturação da concepção materialista da história. Osvaldo Coggiola entende que,

Quanto à “dialética da natureza”, responsável pelo suposto “materialismo naturalista” de Engels, trata-se do ponto crucial da ruptura do marxismo com a filosofia especulativa, aí incluída a hegeliana, e sua não menos especulativa “filosofia da natureza”. Sem o estabelecimento das suas grandes linhas, a ruptura com a metafísica especulativa teria ficado incompleta, e a tarefa de expô-la coube inteiramente a Engels. A dialética da natureza não é uma espécie de “hipótese Gaia” primitiva, personificando a natureza e despersonificando a sociedade humana. Engels definiu a dialética em contraste à metafísica, como “ciência das interconexões”. Ele condensa essas formas de interconexão em três leis: a lei da transformação da quantidade em qualidade, a lei da interpenetração dos opostos, e a lei da negação da negação. Mas, como ele enfatiza em Feuerbach, “já não é mais uma questão de inventar interconexões, mas sim de descobri-las nos fatos”. Em Dialética da natureza, Engels diz que o erro de Hegel “reside no fato de estas leis estarem impostas à natureza e à história como leis do pensamento, e não deduzidas das mesmas. Esta é a fonte de todo o seu tratamento forçado e até mesmo forjado... se invertermos a coisa, tudo se torna simples e as leis dialéticas, que aparecem de uma forma tão misteriosa na filosofia idealista, imediatamente ficam claras como a luz do dia.” (COGGIOLA, 1995, p. 98-99, grifos meus)

Pelo exposto, temos que a forma como Engels concebe a dialética e a ciência (e também a sua prática científica de incorporação crítica das conquistas teóricas obtidas), constitui uma fonte ímpar de reflexões complexas acerca da ciência em conexão íntima com a práxis humana, e mesmo como componente desta:

As formulações de Engels sobre a ciência da natureza são, portanto, de grande significado para a história e a filosofia contemporânea das ciências. São reflexões a serem incorporadas ao patrimônio teórico do marxismo, evitando tendências, presentes no nosso século, seja de reduzir as ciências naturais a meros integrantes das forças produtivas, desconsiderando sua dimensão cultural mais ampla, seja de reduzi-las a meros reflexos ideológicos, equívoco presente no fenômeno, de triste lembrança do lyssenkismo. Compreender a relativa autonomia do desenvolvimento científico seria uma aquisição duradoura para o futuro socialismo. Exemplo prático dessa compreensão, a ser incorporada positivamente ao legado do marxismo, foi a atitude de Lênin face à Academia de Ciências, herdada da época czarista, nos primeiros anos do jovem poder soviético. A manutenção da Academia de Ciências, de sua autonomia e de seus quadros científicos, mesmo nas difíceis condições materiais de uma guerra, revela compreensão de que a ciência se apóia no tênue fio da continuidade. A sabedoria de Lênin foi mais avançada que a dos revolucionários franceses de 1789, que fecharam a tradicional Academia de Ciência de Paris. (FREIRE JR., 1995)

A forma de proceder de Engels, portanto, além de anti-metafísica, não autoriza quaisquer perspectivas “positivistas”, ou mesmo naturalizantes e mecanicistas da história, como queriam e ainda querem muitos de seus críticos. Não se trata de ter nas ciências da natureza os parâmetros para se elaborar o conhecimento sobre a sociedade.

É fato que,

No desenvolvimento do marxismo, contudo, cristalizaram-se significativas influências positivistas, indo-se ao ponto de ir buscar nas ciências da natureza (especificamente no materialismo dialético) o fundamento para o estudo da sociedade (materialismo histórico). Não se pode, contudo, encontrar, no próprio pensamento de Marx e Engels, raízes teóricas para essa tendência. No Brasil, no início dos anos 80, essa questão foi levantada por Adelmo Genro Filho, que, pretextando a crítica a tendências naturalistas no seio do marxismo, em especial no Materialismo dialético e materialismo histórico, de Stálin, considerou Engels o responsável teórico pelo que denominou de “dogmatismo naturalista”, propondo-se a tarefa de escrever o que chamou de Anti-Engels. (FREIRE JR., disponível em www.vermelho.org.br)

Importa considerar que o materialismo de Engels é, na sua essência, dialético, daí que sua reflexão filosófica, além de anti-metafísica, é também um contraponto a formas de materialismo simplistas, mecanicistas, “grosseiros”:

Para rebater o materialismo grosseiro, baseado na fisiologia, de Vogt e de Büchner, tão popular nas Arbeiterbildungsvereine dos anos 50, dominados pelos liberais, Engels começou a nutrir um certo interesse pelos progressos das ciências naturais. Após a publicação da Origem das espécies ele não teve mais dúvidas quanto ao fato de que a concepção histórica materialista de um modo de produção distinguia claramente a história do homem da luta darwiniana pela existência. E comentava amargamente o fato de a burguesia primeiro ter projetado sua própria teoria social (de Hobbes a Malthus) no mundo da natureza, para depois reassumi-la, através das investigações de Darwin, como descrição adequada da sociedade humana. (JONES, 1987, p. 382-383)

Sustentando-nos nas reflexões de Caio Navarro de Toledo, pode-se considerar que Engels não visou a empreender meras especulações filosóficas, pois,

[...] no fundamental, sua perspectiva teórica nunca foi — como observaram Gerratana e Glucksmann — a de propor uma “dialética fora do desenvolvimento das ciências e da prática científica dos pesquisadores”. Tal como Lênin, Engels não defendia uma dialética em geral ou plenamente sistematizada que viesse, por exemplo, substituir a análise dos processos determinados e específicos, seja no nível da sociedade, seja no nível da natureza. [...] Uma leitura mais atenta e criteriosa da obra filosófica de Engels — que a situe rigorosamente no seu contexto histórico específico, bem como leve em conta a sua natureza eminentemente polêmica e crítica — inviabilizará todas aquelas interpretações que pretendiam nela ver a fonte dos erros e descaminhos sofridos pelo marxismo (“autêntico”, “revolucionário”) tais como dogmatismo, naturalismo, fatalismo, etc. Quanto à primeira crítica, vale lembrar a justa e aguda observação de Lênin: idealistas e agnósticos sabem muito bem que — para desqualificar teoricamente o materialismo — a melhor arma é (ainda) a acusação de dogmatismo. (TOLEDO, 1980, p. 108, grifos meus)

O historiador inglês Edward Thompson também sai em defesa de Engels e da importância de seu pensamento para a elaboração da concepção materialista dialética da história. Embora defenda Engels não contra os ataques provenientes do círculo de alguns filósofos filiados à noção de “ontologia do ser social”, e sim do marxismo estruturalista de Louis Althusser, é de crucial importância registrar a posição de Thompson, que bem situa-se no marco da não aceitação da cisão que se tentou estabelecer na obra conjunta de Marx e Engels, pois a concepção materialista dialética da história é o que os une no plano intelectual e revolucionário, contra as posições idealistas e metafísicas que insistem em encaixar o real nos conceitos e modelos aprioristicamente construídos. Thompson recorre a uma carta de Engels a Conrad Schmidt:

Correspondeu alguma vez o feudalismo ao seu conceito? Fundado no reino dos francos ocidentais, desenvolvido na Normandia pelos conquistadores noruegueses, tendo sua formação continuado com os normandos franceses na Inglaterra e no Sul da Itália, ele chegou mais perto de seu conceito em Jerusalém, no reino de um dia, que nas Assises de Jerusalém deixou atrás de si a expressão mais clássica da ordem feudal. Terá sido essa ordem, portanto, uma ficção uma vez que teve apenas uma curta existência na sua plena forma clássica, na Palestina, e até mesmo isso se deu muito mais apenas – no papel?[9]

O que temos aqui? A cuidadosa demonstração da necessidade de se entender que as categorias não modelam a realidade histórica; antes, devem expressar as relações reais enquanto essas existirem, e isso não faz dos conceitos “meras ficções”, como bem observa Thompson (1985), mas os coloca no plano da possibilidade de se fazer reproduzir, pelo pensamento, o movimento do real em sua totalidade, como “concreto de pensamento”, para utilizar uma expressão de Marx.

Portanto, a tentativa de atribuir ao pensamento de Engels as mais ambíguas classificações, de reformismo político idealista a mecanicismo naturalista na interpretação da história resulta, em grande medida, da não leitura de seus escritos, que não contribui para a construção de uma avaliação crítica de sua contribuição sem paralelos para a fundamentação do materialismo histórico dialético no que este tem de mais nuclear. Deste modo, acompanho Ronald Rocha quando avalia que

Os juízos e afirmativas peremptórios e simplistas em que se baseia a campanha contra o seu pensamento (de Engels — ras), quase sempre desprovida de argumentos sustentáveis, em vez de ajudarem a compreender suas contribuições e submetê-las a uma avaliação construtiva, têm sucumbido a ondas fugazes e acabaram tornando-se um capítulo especial da disputa ideológica que o conservadorismo de cátedra e o idealismo reciclado empreendem contras as idéias emancipatórias, especialmente a concepção materialista de mundo. Assim, é preciso, primeiramente, reconhecer a distinção entre o joio da depreciação — que não raro assume a forma de um certo fundamentalismo pretensamente referenciado em Marx, de viés academicista e com o objetivo de provocar glamour, tão apropriado ao ritual de passagem a doutrinas sociais carentes de coluna vertebral filosófica e cheias de dedos, “adaptadas” às condições de sobrevivência nos poros da reação cultural contemporânea — e o trigo da crítica revolucionária. (ROCHA, 2000, p. 54)

Colocando em questão as críticas a Engels, Ronald Rocha amplia sua avaliação recorrendo aos argumentos de Atilio Borón, fazendo-os seus:

Algumas de suas críticas podem ter sido justas, mesmo que ainda nesses casos com freqüência tenham sido exageradas; outras foram simplesmente questionamentos escolásticos; algumas, por fim, careciam de profundidade e eram motivadas por estímulos circunstanciais, necessidades políticas e pelo influxo deformante da moda intelectual. Tendo em conta os vaivens político-ideológicos de seus autores, não é descabido colocar dúvidas acerca da consistência e persistência dessas críticas e de sua utilidade em um projeto de reconstrução da teoria marxista. Creio que essa tarefa, todavia, não tem sido levada a efeito e que a mesma constitui um dos muitos “assuntos pendentes” que tem o marxismo no final do século XX. (BORON, apud ROCHA, 2000, p. 54 – grifos meus)

Como Atilio Borón, entendo que este “anti-engelsismo” é, ainda, questão pendente para o marxismo nos dias atuais, tal como procurou-se indicar ao longo deste texto. Tratar- se-á apenas de uma questão escolástica ou tendências do marxismo que ainda sustentam o “anti-engelsismo” podem ter implicações teóricas e práticas para nós?

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Notas
[1] Cf. Ester Vaisman, in: LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo, 2010, p.18.
[2] LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo, 2010.
[3] Cf. LESSA, Sérgio. “Lukács: direito e política”. In. PINASSI, M. O.; LESSA, Sérgio (orgs.) Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 103-122
[4] Cf. MINTO, Lalo Watanabe. “Lukács e o marxismo”. Germinal – Boletim do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxismo, História, Tempo Livre e Educação. Nº 3, 08/2008. Observe-se que referências completas de Lukács estão todas contidas no texto de Minto.
[5] A citação de Lukács é indireta, extraída do artigo de Tertulian “Uma apresentação à ontologia do ser social de Lukács”, publicado na revista Crítica Marxista, nº 3, 1996, p. 59.
[6] A citação de Tertulian é extraída do seu artigo “Uma apresentação à ontologia do ser social de Lukács”, publicado na revista Crítica Marxista, nº 3, 1996, p. 63.
[7] O trecho citado por Osvaldo Coggiola é extraído de STEENSON, Gary P. No tone man! Not on penny! University of Pittisburgh Press, 1981, p. 193-194.
[8] Uma importante reunião de correspondências de Marx e Engels sobre a importância que davam ao tema do desenvolvimento das ciências e das matemáticas e o já citado texto Cartas sobre las ciencias de la naturaleza y las matemáticas, publicado pela Editora Anagrama, de Barcelona, em 1975.
[9] Citada por THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 65.
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Resumo: Este texto objetiva discutir a persistência de uma postura anti-Engels no seio do próprio marxismo, de início apenas procurando indicar essa postura ao longo do tempo para, em seguida, priorizar a análise do que aqui se considera uma tendência do marxismo, a saber, a chamada “ontologia do ser social”. Busca-se não fazer uma crítica em bloco dessa tendência do marxismo e, sim, indicar tensões existentes em seu interior e refletir sobre o modo específico como essa tendência contribui para alimentar uma postura de secundarização da obra de Engels e, por consequência, alimentar também possíveis leituras essencialistas do real a partir do próprio marxismo, de alguma maneira promovendo uma debilitação da concepção materialista dialética da história, cujos fundamentos resultam da obra conjunta de Marx e Engels em seu processo de análise do modo de produção capitalista.

Palavras-chave: Marxismo; Ontologia do ser social; Friedrich Engels.

Abstract: This paper discusses the persistence of an anti-Engels position within Marxism itself, at first just looking at this position over time to then prioritize analysis of what here is considered to be a tendency in Marxism, namely "the ontology of social being." This is not intended as a block criticism of this tendency in Marxism but, rather, an indication of the tensions within it and a reflection on the specific way in which this tendency helps push Engels' work into the background and, so, also fuels possibly essentialist readings of Marxism itself, in some way undermining the dialectical materialist conception of history, the foundations of which are the result of the work done together by Marx and Engels in their analysis of the capitalist mode of production.

Keywords: Marxism; Ontology of social being; Friedrich Engels.
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