por Sergio Lessa
Se chegarmos ao comunismo, nos museus nossas crianças ficarão abismadas de os humanos terem se matado aos milhões pela posse de curiosos pedaços coloridos de papel. Será tão difícil acreditar que nos curvamos aos poderes “para além do sensível” (
sinnlich übersinnliches)
[1] do dinheiro como nos é difícil crer que os totens comandavam os destinos dos índios da América do Norte. De modo análogo, depois de tantos milhares de anos sob a família monogâmica, tornou-se senso comum que os homens e mulheres apenas podem se amar sob a monogamia, que o amor entre os indivíduos deve passar por uma sagração social qualquer e que as crianças precisam de uma “mãe” e de um “pai” tais como os que hoje conhecemos. Parece-nos impossível que possam ser qualitativamente distintos os processos de individuação, a criação e educação das crianças, a preparação da alimentação, do lugar para se dormir, etc. Amar se tornou sinônimo de constituir família – e, constituir família, se tornou sinônimo de monogamia.
É conhecido como os processos alienantes que brotam do capital são refletidos pela consciência em uma concepção de mundo na qual a nossa presente essência burguesa perde o seu caráter histórico e se eleva à determinação eterna, inescapável, do ser humano. De modo análogo, a família monogâmica é convertida em determinação ineliminável da vida civilizada.
Verdade que a elevação do particular burguês ao humano universal é um artifício presente não apenas no debate acerca da família monogâmica. Neste debate, todavia, este padrão ideológico se repete com particular frequência desde os tempos de Marx e Engels. Mesmo entre autoras ditas de esquerda, como Simone de Beauvoir em
O segundo sexo, cujo gigantesco ecletismo consegue justapor Heidegger e Marx e falsificar ao extremo as teses de Engels, esta tese é reafirmada sob a aparência de uma nova roupagem. Em tempos em que o pós-modernismo é tido como uma hipótese teórica a ser levada a sério, esta tese conheceu certa renovação. No contexto da onda conservadora que sucedeu ao “vendaval de mudanças” dos anos de 1960, com a derrocada do bloco soviético e os anos marcados pelo, para ser breve, neoliberalismo, assistimos aos deslocamentos para direita de vários movimentos sociais antes contestadores do
status quo. Entre estes, importante para o nosso tema, é o fato de que o movimento feminista perdeu quase todo o seu caráter anticapitalista e, ainda, os movimentos homossexuais em geral passaram a reivindicar o direito ao casamento monogâmico oficial.
Um texto que impressiona pela rudeza de seus argumentos é
La famillie en désordre, de Elisabeth Roudinesco (2002). A ignorância a leva a postular que a única forma de organização familiar na história teria sido a monogamia (ROUDINESCO, 2002, 16, 17-8, 21-2). Não leva em conta, sequer, o fato de que a monogamia sempre foi apenas para as mulheres – aos homens, o casamento monogâmico sempre foi complementado pela prostituição (ou pela poligamia masculina). Do fato de os movimentos homossexuais – até eles! – estarem reivindicando a legalização de seus casamentos monogâmicos, deduz a autora que este seria o reconhecimento final de que não há vida civilizada sem a organização monogâmica da família. Neste rebaixado horizonte ideológico, não cabe a possibilidade de que esta virada dos movimentos homossexuais possa ser revertida em um novo período de intensificação das lutas de classes.
Outras vezes, por uma via aparentemente pela esquerda, chega-se a um resultado semelhante, como em
O sexo invisível (ADOVASIO, PAGE E SOFFER, 2008). Uma terceira forma muito comum deste mesmo argumento conservador é a “constatação" de que monogamia seria uma categoria antropológica-sociológica contraposta e superior à poligamia. De um lado teríamos os haréns orientais ou os mórmons em Salt Lake City; de outro lado as relações um homem-uma mulher da monogamia. Esta é uma tipologia das famílias que, não sendo inteiramente falsa, é fundamentalmente falsa. A porção de verdade está em que há, de fato, diferentes organizações familiares no que diz respeito ao número de mulheres para um homem. Entre a família “mórmon” e a “cristã”, entre o harém saudita e a família francesa, há diferenças evidentes.
Mas o fundamental, que é velado, é que tanto a “monogamia” como e a “poligamia” expressam o mesmo patriarcalismo. Se, no harém e entre os mórmons, a monogamia é expressamente apenas feminina, ao homem sendo legítimo várias esposas, na família tradicional cristã, ocidental, o casamento é complementado pela prostituição. A regra monogâmica aplica-se apenas às mulheres: a monogamia é a expressão, por todos os lugares, do patriarcalismo.
Como é próprio das ideologias conservadoras, também a concepção antropológica-sociológica, fenomênica e superficial, vela a gênese da família monogâmica na passagem da sociedade primitiva à sociedade de classes; vela que a monogamia se contrapõe, não à poligamia, mas à família primitiva, na qual o caráter social e coletivo das tarefas possibilitava e requeria outra qualidade de relação entre homens e mulheres.
Monogamia e propriedade privada
A comunidade primitiva, que se reproduzia pelo trabalho cooperativo, pela divisão igualitária do produto comunitário, era incompatível com a exploração do homem pelo homem. Era imprescindível destruir a velha sociedade e, também por isso, a sociedade de classes teve que se afirmar pela violência.
Rompidas as relações sociais comunitárias, a família se destaca da sociedade na medida em que se desenvolve a concorrência inerente à propriedade privada. As tarefas de cuidar das crianças, do preparo da alimentação, do local de moradia, etc., são convertidas em atividades privadas, realizadas para cada proprietário. É a gênese da família monogâmica, patriarcal. À mulher, despossuída de propriedades, são impostas tarefas que não geram riqueza e, contudo, são imprescindíveis para a reprodução biológica. Seu horizonte deixa de ser a totalidade da vida social, como no passado, para se reduzir aos estreitos limites da “cama” e da “mesa”
[2]. Os homens das classes dominantes cuidam da propriedade privada; suas vidas se conectam com o comércio, com as guerras, com a direção do Estado, ou seja, com a totalidade da sociedade. O feminino se converte em uma existência privada, centrada nela própria, localista
[3]: “do lar”. Sua vida se resume à ordem e à produção doméstica. Esta a razão fundamental de as realizações mais elevadas do gênero humano nas sociedades de classe tenderem a encontrar nos indivíduos do sexo masculino as mediações mais adequadas às suas objetivações. Desnecessário, aqui, repetir a tão conhecida citação de Engels acerca do lugar das mulheres no apogeu de Atenas: já então eram designadas por um vocábulo neutro,
oikurema, um instrumento para procriação e para os serviços domésticos. Tal como os escravos, também não faziam parte do gênero humano.
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Nada na sociedade primitiva se aproximava da propriedade privada. O poder do homem sobre o homem que advém “do ter" (MARX, 1993) não existe nem em germe nas sociedades sem classe. A submissão da esposa e da prostituta implica, agora, em um inédito complexo de relações sociais que sequer de modo germinal é encontrado no passado. (LEACOCK,1981,135-6). O Estado organiza a sociedade e, pelo casamento monogâmico, organiza a família.
O processo de alienação da mulher traz inevitavelmente a alienação dos homens – ainda que não seja idêntica nos dois polos. A alienação do homem (e, no caso da sociedade de classes, dos senhores) é expressão de sua potência social; a alienação das mulheres (e,
mutatis mutandis, dos trabalhadores) é expressão de uma sua derrota história. Por milênios, o feminino vai sendo convertido na personalidade dócil, obediente, submissa, burra, que tem na beleza física (definida pela sua capacidade de atrair sexualmente o masculino) suas principais qualidades. Com o tempo, será “cientificamente provada” até sua incapacidade para o orgasmo. Aos homens, cabem as deformações simétricas; ser homem é o exercício do poder. É requerido dele novos atributos e qualidades: valentia, bravura, ambição, iniciativa, inteligência, astúcia, violência, volúpia e, a vida tem lá sua ironia, uma pretensa infinita capacidade de orgasmos! A pretensa superioridade inerente ao homem nada mais é que a generalização à eternidade da superioridade dos homens nas sociedades de classe, patriarcais por rigorosa necessidade ontológica.
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Com a passagem à sociedade de classes, uma nova esfera de mediações se interpôs entre o fato biológico de se ser homem ou mulher: o feminino e o masculino passaram a ser crescentemente marcados pela propriedade privada. Se, no início, essa tendência apenas se anunciava, hoje colhemos todas as consequências do seu amadurecimento. Tornamo-nos monogamicamente femininos e masculinos – analogamente a como o fetichismo da mercadoria faz com que sejamos “guardiãos de mercadorias”. (MARX,1983,79)
O caráter alienado da monogamia, sua ontológica articulação com a propriedade privada, não deve, contudo, velar outro aspecto, não menos fundamental quando se trata de sua superação. Entre a Revolução Neolítica (há 12 mil anos) e a Revolução Industrial (1776-1830), a coexistência da carência com o trabalho excedente tornou as classes sociais a mediação mais adequada para o desenvolvimento das forças produtivas. Enquanto esta situação não foi superada pela abundância trazida pelo capitalismo industrial, a família monogâmica foi também a mediação mais adequada para o desenvolvimento dos indivíduos – ainda que dos indivíduos das classes dominantes, já que o avanço das forças produtivas nas sociedades de classe requer o rebaixamento da humanidade (do patamar humano-genérico) da maior parte de seus membros.
A conversão do ser homem em masculino e, do ser mulher, em feminino, foi, ao mesmo tempo, um processo de alienação e de avanço da humanidade. É um caso particular de uma situação mais geral: a necessidade por mediações de complexos alienantes é um índice dos limites das sociedades de classe, dos limites da “pré-história” da humanidade. Este contraditório conteúdo da monogamia (ser uma base para o desenvolvimento humano, porém uma base alienada) se expressa em toda a extensão na evolução da família monogâmica burguesa.
O individualismo burguês e o amor sexuado individual
A dualidade razão/sentimento, tão cara ao senso comum contemporâneo, é apenas a constatação superficial de que a sociabilidade burguesa, ao subsumir o humano ao capital, contrapõe a racionalidade deste último às autênticas, humanas, necessidades dos indivíduos. Querendo ou não, desejando ou não, devemos seguir a razão burguesa cuja pedra de toque é a reprodução do capital. Somos reduzidos a “guardiões de mercadorias”, padecemos todo o peso das alienações que brotam do capital e, com frequência, com um elevado nível de sofrimento subjetivo. Isso produz a ilusão de um abismo entre razão e emoção. De fato, esse abismo não existe. A mesma individualidade que pensa é a individualidade que sente. Raciocínio e emoção, razão e sentimento (Jane Austen), são atos do mesmo ente social unitário que somos. O que nos parece indubitável, muitas vezes o é apenas porque está tão próximo da racionalidade imperante que se torna tão assegurado quanto a gravidade. A dualidade razão/emoção é um destes casos. Nossos raciocínios são fontes de emoção e os sentimentos provocam raciocínios. Processamos nossas emoções também ao nomeá-las e ao as elaborarmos racionalmente. Entre razão e emoção há muito mais conexões, racionais e afetivas, do que o mito da dicotomia pensamento/emoção possibilita perceber.
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Deste complexo de questões, para a análise da família monogâmica é importante o fato de que a evolução das capacidades humanas como resultado do desenvolvimento das forças produtivas é o desenvolvimento, também, da sensibilidade, da capacidade sensível dos humanos
[7]. O afastamento das barreiras naturais
[8], o desenvolvimento da humanidade,
(...) não é, como dizem a maioria das religiões e quase todas as filosofias idealistas, um simples desenvolvimento das assim ditas faculdades ‘superiores’ dos homens (o pensamento, etc.) em prejuízo da ‘inferior’ sensibilidade, mas ao contrário deve se expressar no conjunto do complexo do ser do homem e, portanto, também (...) na sensibilidade. (LUKÁCS, 1981,573)
O fundamento ontológico último na articulação entre as novas forças produtivas postas em ação pela “acumulação primitiva” e o desenvolvimento dos indivíduos é uma alteração decisiva na propriedade privada. No escravismo e no feudalismo, a propriedade privada ainda não havia se emancipado do Estado, isto é, da sua conexão direta e imediata com a comunidade. No capitalismo, essa relação será desfeita. (MARX, 2010; LESSA, 2007d) Em uma situação inteiramente diversa da do passado, o burguês tem por sua pátria o mercado mundial e se converte em cidadão do mundo. Este é o fundamento da ilusão de que sua identidade reside em si próprio –, e, por extensão, de que o indivíduo é fundante da sociabilidade. As necessidades de cada indivíduo passam a ser mais legítimas, verdadeiras e autênticas do que as necessidades coletivas: a individualidade está se libertando dos constrangimentos que a limitaram durante milênios. Explicita-se, com toda sua potência, o individualismo burguês (de Descartes a Kant, de Locke a Rousseau, de Adam Smith a Hegel – ainda que neste último tenhamos avanços significativos[9]). A sociabilidade burguesa abriu horizontes inéditos para o desenvolvimento humano. A generalização da produção de mercadorias, o mercado mundial, os Estados Nacionais, etc. romperam vários limites típicos das formações pré- capitalistas e abriram espaço para uma nova relação do indivíduo com o gênero humano.
Para a evolução dos processos de individuação, a nova “racionalidade” trazida pelo capital é rica de repercussões afetivas já no período do Renascimento. Na arte, a presença das novas emoções explodem: a perspectiva na pintura, de um Da Vinci a um Rafael e Rembrandt – e, séculos depois, um Van Gogh e um Monet; as novas notações musicais de Bach, que, com Vivaldi, impulsionam um movimento ascendente que explode com Mozart e Beethoven na passagem ao capitalismo desenvolvido; a forma romance, apropriada para cantar a “epopeia burguesa” (Lukács), evolui de Cervantes a Tolstoy, Dolstoievsky e Thomas Mann. A humanidade passa a ser capaz de ouvir o que antes não escutava, de enxergar o que não via antes, etc., adquire a capacidade de sentir o que não podia sentir no passado pelo mesmo processo pelo qual pode pensar e raciocinar o até então impossível. Passamos do “Mundo fechado ao universo infinito”, no belo título do livro de Koyré (1979).
As necessidades afetivas humanas em crescimento estimularam a expansão das artes. O teatro se tornou uma atividade econômica lucrativa – o Teatro Globe de Shakespeare é inaugurado em 1599. A música ganhou uma nova dimensão com o violino, o primeiro instrumento a rivalizar em beleza com a voz humana. Paralelamente, temos o avanço das ciências e da filosofia, principalmente da filosofia política. O seu público aumentou na medida em que as novas alternativas históricas – as revoluções burguesas – iam se fazendo mais concretas nos impasses e contradições da vida cotidiana. A imprensa se desenvolveu com o crescente mercado literário. A dita “opinião pública” fez sua entrada na vida social. A economia política desvelou os segredos do capital para os próprios burgueses, as leis de mercado vão deixando de ser misteriosas, – apesar de não perderem sua apregoada inevitabilidade.
Essa evolução, para o nosso tema, é decisiva. Até o século 16-17, todos os grandes amores não eram “grandes amores”. O amor de Paris e Helena era um evento tão pouco pessoal e tão social que Atenas e Tróia foram à guerra. Seria hoje sequer imaginável a guerra entre nações pelo amor de dois de seus cidadãos? Agostinho não titubeia em abandonar pelo emprego de funcionário público em Hipo aquela que foi sua amante por 15 anos, de quem sequer o nome resistiu ao tempo (BROWN,1969). Abelardo e Heloísa, bem como Quixote e Dulcineia del Toboso, não passam do amor que sequer pode ser reconhecido enquanto tal. Os primeiros, porque não se “ama” na Idade Média[10]; o segundo, porque Dulcineia e o amor que por ela dedica Quixote são tão impossíveis quanto a grandeza do cavaleiro andante na Espanha dominada pela mediocridade dos Torquemada.
Em todos esses casos, o desenrolar “natural” da necessidade afetiva foi a impossibilidade de sua realização pela sua subordinação às outras demandas da vida. Os vínculos comunitários pré-capitalistas atuavam ainda com tal intensidade que as necessidades afetivas individuais não podiam predominar na vida das pessoas. Se e quando elas compareceram, o fizeram de modo germinal e não puderam se desenvolver porque não contaram com as imprescindíveis mediações sociais. Nem possuíam legitimidade, nem eram vividas pelos indivíduos como elementos fundamentais de suas vidas – e, como no caso de Heloísa, se são vividas como demandas fundamentais, apenas podem se expressar por relações sociais que são a negação cabal das mesmas (após Abelardo se tornar abade, Heloísa entrou no convento em Argenteuil e o elegeu para seu diretor espiritual, a única relação pessoal de algum modo íntima que lhes restara).
Romeu e Julieta traz a marca da virada. Não porque nesta peça tenhamos o happy ending; ainda demorará quase 500 anos – e dependerá de mais de um século da “decadência ideológica da burguesia” (LUKÁCS, 1981a) – para que a humanamente autêntica substância da tragédia venha a ser substituída pela banalidade irrisória do final feliz hollywoodiano. Mas, porque, pela primeira vez é afirmada e reconhecida em escala social a necessidade afetiva dos indivíduos como algo tão existencialmente fundamental que melhor morrer que não realizar o amor: é legitimado o agir dos indivíduos contra a sociedade. Romeu e Julieta – importante detalhe: não sozinhos, mas com a “benção” representada pela ajuda de Frei Lourenço –, conspiram contra a opressão das relações familiares, contra a tradição e os costumes. E são os heróis da trama![11]
O amor individual sexuado de que fala Engels faz sua entrada majestosa na história pelo palco do The Theatre. Descobrimos uma relação afetiva com uma dimensão, uma riqueza, uma intensidade, um prazer, uma densidade, uma capacidade de abarcar toda a existência que a faz, de modo inédito, um dos elementos imprescindíveis da vida individual. A “epopeia burguesa” (Lukács), cantada na forma romance que então está surgindo, terá na necessidade individual, afetiva, pelo “amor sexuado” (para continuarmos com Engels), um dos seus elementos fundamentais. A dimensão amorosa fará, a partir de agora, indelével parte da vida humana; quase – esse quase é importante – como que se uma existência carente de amor não fosse digna de ser vivida. Goethe, Balzac, Flaubert, Zola, Jane Austen, Ibsen – e em um contexto um pouco diferente, mas ainda assim: Tchekhov, Dostoiévsky, Tolstoy, – no Ocidende, Thomas Mann; e ainda, mutatis mutandis, Edith Wharton, Henry James e Virginia Woolf – seriam possíveis sem os séculos 16 a 18, preparatórios da individualidade burguesa?
A entrada do amor sexuado na história não foi apenas triunfal, também foi definitiva: sua presença será irrevogável. Enquanto complexo social, constitui, desde então, um dos polos mais importantes na estruturação da afetividade dos indivíduos, com tudo o que isso implica para as escolhas cotidianas que os indivíduos têm de fazer e com todo o correspondente impacto sobre os processos de objetivação[12].
Dizíamos acima que o individualismo burguês cumpriu dois papéis. O primeiro, acabamos de ver, foi revolucionariamente romper a submissão dos indivíduos às relações sociais pré-capitalistas, possibilitando o desenvolvimento da individualidade burguesa. O segundo papel, intimamente articulado ao anterior, é seu caráter alienado.[13]
Individualismo burguês e a tragédia do amor sexual individual
Como tudo que a burguesia trouxe de revolucionário – e, lembremos, não foi pouco: o mercado mundial, as revoluções, a abundância fruto da Revolução Industrial, o individualismo burguês, a nova forma de riqueza que é o capital – também “o amor sexuado individual” padece do drama típico das suas mais legítimas criações: ao, revolucionariamente, impulsionarem a humanidade, concomitantemente e quase sempre pelas mesmas mediações, também teciam os liames que, no futuro, conteriam o desenvolvimento do gênero humano aos limites do capital. As relações mercantis, fundantes dos novos horizontes, terminariam, em seguida, por converter a todos em “guardiãos de mercadorias". As condições que presidem à gênese do amor sexuado individual (a Acumulação Primitiva) são, também, as que lhe fornecem a base social para a sua gênese e desenvolvimento: a família monogâmica na sua forma burguesa. O complexo social do “amor sexuado individual” apenas pôde vir a ser pela modalidade burguesa do patriarcalismo.
Podemos invocar o trágico testemunho de Emma (Flaubert), da Condessa Olenska (Edith Wharton), de Ana Karêninia (Tolstoy), de Nora (Ibsen), entre muitas outras heroínas: se eleva a uma dolorosa contradição o desajuste real, prático, ativo, cotidiano, de individualidades portadoras, por um lado, de necessidades qualitativamente distintas das que a sociedade lhes possibilita atender e, por outro, de possibilidades que não cabem nas fronteiras das suas vidas. A impotência do indivíduo diante de seu destino – ser “guardião de mercadoria” – se eleva à tragédia do indivíduo que não pode amar em sua plenitude. Uma vez mais, "A tradição de todas as gerações mortas oprime feito um pesadelo o cérebro dos vivos" (MARX,1979,203).
Nenhum maniqueísmo é capaz de refletir a riqueza desse processo. A Acumulação Primitiva, ao romper as amarras entre indivíduo e comunidade (MARX, 2009; TONET, 1999; LESSA, 2007d), foi a condição indispensável para o surgimento do amor individual sexuado e, concomitantemente, o amor encontrou, desde a sua gênese, nas alienações burguesas seu grande obstáculo. Do mesmo modo, nenhum relativismo-ecletismo é capaz de dar conta da riqueza da situação contemporânea (Tonet, 1997). O fato de as classes sociais – e o que agora nos interessa, a conversão de homens e mulheres no masculino e feminino que conhecemos – terem sido mediações imprescindíveis ao desenvolvimento humano no passado não significa que exerçam, hoje, a mesma função. Ao contrário, na era da abundância, as classes sociais e a família monogâmica converteram-se predominantemente em alienações, em desumanidades socialmente postas; os seus papéis progressistas ficaram no passado.
Tal como a conversão da humanidade, parafraseando Marx e Engels, no idiota animal típico das classes dominantes e no estúpido animal típico das classes dominadas foi uma necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas mas, nem por isso, cancelou as revoltas e reações dos trabalhadores, a necessária submissão da mulher no casamento monogâmico também gerou revoltas. Lendas (a do Rei Artur, a das Amazonas, por exemplo), costumes antigos (como as Heteras na Grécia Clássica), peças como Oréstia de Ésquilo, etc. são ecos distantes das resistências à exclusão da mulher da vida social. Assim como a transição para a sociedade de classes não se fez sem lutas e resistências, assim como as primeiras lutas de classe traziam ainda a herança dessas resistências e dos antigos costumes e tradições, também a degradação da mulher à esposa e prostituta não se deu sem conflitos. Tais revoltas, contudo, não puderam nem podem ter a dimensão de uma luta de classes porque esposas e prostitutas são serviçais privadas que não constituem classe social. A família burguesa, mesmo no período em que a burguesia era a classe revolucionária, tem sido o palco de conflitos cada vez mais socialmente visíveis, uma arena de luta entre a esposa e o marido e, por extensão, entre a prostituta e o comprador do seu serviço.
Uma das consequências imediatas foi o modo pelo qual a esposa se transformou na monarca absolutista da vida doméstica e, correspondentemente, como a personalidade tipicamente feminina incorporou as determinações desta situação. O marido é aquele que não pode ser desobedecido. Contudo, para ser melhor servido, deve conceder um território exclusivo para o reinado da mulher nos afazeres domésticos e na criação dos filhos. A opressão do marido sobre a esposa é, deste modo, reafirmado pela opressão dos filhos e serviçais pela esposa. Além disso, a mãe passa a ser mediação afetiva entre os rebentos e o todo poderoso. O marido, um estranho a ser recebido com as devidas cerimônias na vida doméstica organizada sob o tacão da esposa, é também agora incapaz de uma relação afetiva imediata, rica, com seus filhos. Ser pai implica no exercício de um poder que o coloca distante dos filhos, em uma sua entronização que implica que a esposa assuma a mediação entre as duas partes. A esposa se converte no repositório afetivo da relação filial, ao pátrio poder cabe a reprodução da propriedade privada e, nas questões domésticas, detém a “última palavra” –, mas apenas nas raras ocasiões em que ela é requerida. As teses mais conservadoras que, hoje, justificam a família patriarcal pela necessidade da figura da mãe-monogâmica retiram desse fato sua aparência de verdade: na família burguesa, o desenvolvimento das personalidades das crianças requer a presença da figura da mãe esposa[14]. Mas, isto, apenas devido às alienações que caracterizam a família monogâmica; não correspondem a uma necessidade inata, natural, etc. do ser humano em geral. Como bem descreve Leacock:
A desumanização das relações conjugais, aprisionados como estão homens e mulheres numa malha de medo e confusão; a brutalização e o poder mesquinho do homem; a raiva e a amargura da mulher; a natureza do casamento, quase sempre uma batalha constante, – tudo isso é infelizmente muito bem conhecido. Apesar do fato de as sociedades anteriores às classes que foram estudadas já terem sido minadas pela colonização europeia e estadunidense, uma usual qualidade de respeito, calor humano e segurança nas relações interpessoais, incluindo aquela entre marido e mulher, frequentemente persiste como evidência de que as tensões associadas com a relação conjugal em nossa sociedade são fundadas em nossa estrutura social, não nas natureza de homens e mulheres. (LEACOCK,1971, 42-3)
A revolução proletária e a família monogâmica
Tal como as revoluções burguesas, a revolução proletária também será a passagem de um modo de produção a outro. Pelas revoluções burguesas foi abolido o trabalho servil e generalizou-se o trabalho proletário. Nas revoluções proletárias, se viermos um dia a conhecê-las, teremos o desaparecimento do trabalho abstrato e sua substituição pelo trabalho associado, pela “livre organização dos produtores associados”.
A passagem da sociedade feudal à burguesa alterou todos os complexos sociais e de forma tão profunda que uma nova essência humana (lembremos das Teses ad Feuerbach: a essência humana é "o conjunto das relações sociais”) se fez presente na reprodução social[15]. Algo semelhante ocorrerá se conhecermos a transição do capitalismo para o comunismo. Os complexos sociais se alterarão, muitos desaparecerão, novos surgirão, porque o fundamento da sociabilidade se alterará essencialmente. No sentido ontológico mais preciso, o ser humano que conhecemos será superado por algo essencialmente novo: a essência comunista superará nos homens a essência burguesa. De egoístas e mesquinhos, cuja essência é o conjunto das relações sociais concorrenciais típicas do mundo burguês, os homens se converterão em indivíduos solidários cuja essência é o conjunto das relações de cooperação indispensáveis ao trabalho associado.
Não por uma questão moral ou ética, mas por uma rigorosa necessidade de ordem material. Tal como o capital não pode se reproduzir sem os atos concorrenciais cotidianos dos indivíduos reduzidos a “guardiães de mercadoria”, o comunismo também não poderá se reproduzir sem a predominância da cooperação na vida cotidiana. (LESSA, 2007b) O trabalho associado requer uma totalidade social mediada pela solidariedade com a mesma radical universalidade com que o trabalho proletário necessita do individualismo burguês. Tal como o fetichismo da mercadoria é a qualidade essencial da vida cotidiana burguesa, a cooperação será a mediação decisiva do cotidiano comunista. E isto, repetimos, não por uma decisão individual, ou por uma escolha moral-valorativa como em Kant, mas porque o trabalho assalariado funda o individualismo burguês com a mesma necessidade pela qual o trabalho associado funda o ser humano solidário do comunismo.[16]
Dizíamos, acima, que “algo semelhante” à transição do feudalismo ao capitalismo ocorrerá se conhecermos a passagem ao comunismo. Semelhante, e não idêntico, porque a passagem da sociedade feudal à burguesa inclui um forte e importante traço de continuidade: é a transição para uma outra sociedade de classes, para uma nova fase da mesma “pré-história” da humanidade. Se a transição ao comunismo ocorrer, teremos a passagem a um período inteiramente distinto, o da sociedade sem classes.
A transformação da essência humana será muito mais intensa e profunda do que quando das revoluções burguesas. A alteração da vida cotidiana será ainda mais rica e ampla. Diferente do passado, quando as relações capitalistas puderam se desenvolver sob o feudalismo (pois, repetimos, eram distintas modalidades da propriedade privada, do Estado e do casamento monogâmico), não é possível o desenvolvimento das relações comunistas nos interstícios do capital[17]. Para que as relações sociais comunistas possam se explicitar é imprescindível a superação da propriedade privada – em sua presença, a nova essência da sociabilidade emancipada do capital não pode se anunciar sequer de forma germinal. Por isso, as transformações na transição ao comunismo serão mais intensas, profundas e radicais do que as que assistimos com a passagem à sociedade burguesa madura. Sendo a essência humana o conjunto das relações sociais, a passagem ao comunismo implica na alteração essencial do ser humano. Trata-se da transição de uma essência humana à outra: o humano superará sua “pré-história”.
E isto faz imprescindível a superação da família monogâmica.
A entrada triunfal do amor sexuado individual na vida humana é, como mencionamos, necessariamente trágica. Desde Romeu e Julieta até nossos dias, ainda que muito haja mudado, o amor é, tipicamente, também um drama ao conduzir o indivíduo a um confronto com o predominante do mundo burguês. O pleno desenvolvimento das pessoas é obstaculizado – mesmo afetivamente – pelas relações sociais no interior das quais (e apenas assim) o amor sexuado moderno pôde surgir e, hoje, pode se reproduzir. A contradição antagônica, entre o pleno desenvolvimento das forças produtivas e o capital,[18] se expressa nos processos de individuação também pela vivência generalizada, ainda que nem sempre socialmente reconhecida, da contradição antagônica entre as formas familiares burguesas e a plena vivência do amor sexuado. Por isso, nos grandes romances, nas peças teatrais, nas óperas, na música, etc., comparece o amor quase sempre com a dimensão trágica pela qual os processos alienantes destroem o amor dos indivíduos, quando não os próprios indivíduos. A reprodução da sociedade atual, nesta medida e sentido, tem na tragédia afetiva uma sua dimensão constituinte.
Também nessa esfera – afetiva – o capital termina por salientar sua brutal desumanidade. Abriu a possibilidade de os indivíduos descobrirem o amor e, ao mesmo tempo, nega aos mesmos indivíduos as possibilidades para vivenciarem plenamente o impacto desta descoberta na humanização de nossas individualidades. A miséria humana adquire, então, – para além das determinações materiais – um conteúdo afetivo inédito e que se expressa na distância entre o que os indivíduos podem e necessitam, e o que a totalidade social deles requer e a eles possibilita. O que, para autores como Roudinesco, parece como La famillie em désordre é, na verdade, a expressão dessa contradição em tempos de “produção destrutiva" (MÉSZÁROS,2002) a dissolução da contemporânea modalidade burguesa da família monogâmica.
Estamos hoje em uma etapa de transição[19] marcada pelo esgotamento das potencialidades históricas das classes sociais, do Estado, da família monogâmica e da propriedade privada. Tal como a anatomia humana é a chave para a compreensão da anatomia do macaco, hoje podemos contemplar de modo privilegiado a gênese e o desenvolvimento de cada um desses complexos sociais. O Estado, a propriedade privada, as classes sociais e a família monogâmica explicitaram-se com plenitude – e suas determinações essenciais estão à vista em escala social. Assim como o Estado e a propriedade privada, também a família monogâmica é expressão da alienada necessidade de sacrificar uma parte importante da humanidade no altar do desenvolvimento das forças produtivas. Tal como o Estado, também a propriedade privada e a família monogâmica, mesmo quando imprescindíveis no passado, jamais deixaram de ter uma dimensão bárbara, alienada.
Quando se trata do Estado, das classes sociais e da propriedade privada, a necessidade de sua superação é mais fácil de ser assimilada. Todavia, porque é um elo importantíssimo dos processos de individuação de todos nós, é bem mais complicado constatar que o mesmo se dá com a família monogâmica. Ela é um complexo social tão alienante e alienado quanto o Estado; ela é, tal como a propriedade privada, reproduzida pela aplicação cotidiana da violência; ela é o exercício cotidiano do mesmo poder que faz de uns a classe dominante e de outros os explorados e produtores do “conteúdo material da riqueza social” (MARX, 1983,46).
A miséria contemporânea da propriedade privada é a mesma da família monogâmica; os seus momentos fundantes são os mesmos, as suas causas – idênticas. Por isso, a Revolução Proletária requer a superação da família monogâmica do mesmo modo pelo qual requer o fim da propriedade privada, da exploração do homem pelo homem e do Estado.[20]
Conclusão
Com a crise do movimento revolucionário no século 20, a plataforma comunista clássica foi formal ou implicitamente abandonada. Os exemplos são tantos que desnecessários: temos um amplo leque de “atualizações”, “desenvolvimentos”, “explicitações”, “aprofundamentos”, etc. que, quase sempre, foram sua revogação pura e simples sob os disfarces mais eficientes para a política “do dia”. Chegamos a um patamar de degradação em que, hoje, consideram-se “de esquerda” posições que seriam no passado não muito distante tomadas como contrarrevolucionárias pura e simplesmente. Lembremo-nos da declaração da candidata do PSOL na TV Globo nas eleições de 2004 de que o socialismo, a “mais bela declaração de amor já feita”, seria “algo que se pensa em implantar em 30, 40 anos”[21]. Ou, então, a proposta de que deveríamos lutar pela “supremacia do valor de uso sobre o valor de troca” (LÖWY, 2009,36). Se é preciso superar não a mercadoria, mas apenas sua “supremacia”, seria interessante saber – para podermos separar o joio do pretenso trigo – qual quantum do fetichismo da mercadoria seria compatível com o socialismo. E, então, sejamos coerentes: qual porção da propriedade privada, do mercado, do patriarcalismo e do Estado deveríamos manter para vivenciarmos a “supremacia do valor de uso”? Melhor ainda, qual porção do capital deveríamos manter para superarmos “supremacia” do valor de troca? Hoje, infelizmente, faz sentido se perguntar: se isso é “esquerda”, o que então deveria ser tomado por “direita”?
Quando se trata da família monogâmica, essa degradação é assustadora: mesmo entre os setores mais à esquerda a questão não recebe a devida atenção. A superação da família monogâmica quase sempre se reduz à “questão de gênero” que, nas suas mais diferentes vertentes, não parece conseguir ir para além do tratamento da “questão feminina” nos limites do individualismo burguês – porque nos limites da propriedade privada. Aqui, também, a rendição à concepção de mundo burguesa pela conversão de necessidade em virtude resulta em um universo capitalisticamente mesquinho e pobre. Nele, o feminino é concebido como alienado e necessário de correção, enquanto o masculino comparece como aquilo que aliena e oprime o feminino. Ainda que possa ter uma aparência de verdade – e mesmo que possa ter o sex appeal de oferecer “saídas” pretensamente aplicáveis antes da superação da propriedade privada, do Estado e das classes sociais – tais concepções mantêm os indivíduos, como dizia Marx se referindo ao cretinismo parlamentar, “firmemente presos a um mundo imaginário, privando-os de todo senso comum, de qualquer recordação, de toda compreensão do grosseiro mundo exterior” (MARX, 1979,255). Tais concepções velam que feminino e masculino são lados diferentes de uma mesma moeda – e que por isso, para resolver o problema, não basta liberar a mulher para ser explorada pelo capital no mercado de trabalho ou, então, remunerar com salário ou pensão estatal o trabalho doméstico (DALLA COSTA; JAMES, 1975). No mercado de trabalho, pelas mesmas mediações que no lar, as alienações que brotam da propriedade privada continuam a operar na relação entre homens e mulheres para muito além da diferença salarial ou das oportunidades profissionais.
É assim que chegamos à ridícula, porque insensata, discussão acerca da relação entre gêneros e classes sociais: se por gêneros entendemos a determinação biológica que faz homem e mulheres distintos, nada têm a ver com as classes. Se entendemos por gênero o feminino e masculino que somos, eles são a determinação reflexiva das classes, da propriedade privada e do Estado. Como diz Leacock “Que existem os papéis sexuais, afinal de contas, é algo universalmente humano”; coisa muito distinta é “assumir” como “bom senso” “que qualquer diferença entre os sexos necessariamente envolve hierarquia” (LEACOCK,1981,135) Não há “terceira via” nesse terreno: ou o patriarcalismo tem fundamento biológico – e, neste caso, a “questão de gênero” não pode ter outro futuro que o próprio patriarcalismo, – ou trata-se de um dos complexos sociais mais permanentes na evolução das sociedades de classe. Tal como não se pode estar “ligeiramente grávida”, não há aqui meio termo: o feminino e o masculino de hoje têm sua gênese e desenvolvimento ontologicamente articulados com a propriedade privada, o Estado e as classes sociais.
Isso não quer dizer, obviamente, que todo o desenvolvimento humano propiciado no passado pela família monogâmica – inclusive o surgimento do amor individual sexuado – deva ser abandonado (tal como o comunismo não significa revogar o desenvolvimento das forças produtivas realizado pelas sociedades de classe). O comunismo continuará sendo uma sociedade humana e, enquanto tal, terá traços de continuidade com todo o nosso passado. Assim como o comunismo significará o mais pleno desenvolvimento das forças produtivas a partir da reorganização do intercâmbio material com a natureza (pela passagem do trabalho abstrato ao trabalho associado), a superação da família monogâmica fará parte da emancipação das individualidades para o mais pleno desenvolvimento de suas potencialidades afetivas. “A superação da propriedade privada" será a “emancipação de todos os sentidos humanos”, como dizia Marx nos Manuscritos de 1844.
Como será a família comunista, não monogâmica? Tão difícil é responder hoje a essa questão como seria difícil a um servo medieval descrever o que viria a ser São Paulo no século 21. De um aspecto, todavia, podemos estar certos. A mais livre capacidade de amar, o mais pleno desenvolvimento do amor sexuado individual de que falava Engels, requer imperativamente a superação da família monogâmica pelas mesmas razões que o pleno desenvolvimento da humanidade requer, hoje, a superação do Estado, da propriedade privada e das classes sociais.
Qualquer concessão nesse terreno é humanamente cruel. Uma das rendições mais brutais ao capital que hoje podemos fazer é elevar o atual estágio de sofrimento afetivo dos indivíduos, de miserável necessidade histórica a virtude.
= = =
Notas
[1] MARX, 1975, 85; MARX, 1983,71.
[2] “A submissão do sexo feminino foi baseada na transformação de seu
trabalho socialmente necessário em serviço privado pela separação da
família do clã. Foi nesse contexto que o trabalho doméstico da mulher e
outros trabalhos terminaram por ser realizados em condições de virtual
escravidão.” (LEACOCK,1971,41)
[3] “Local”, aqui, no sentido que
Marx e Engels empregam em A ideologia alemã (MARX, ENGELS, 2009), a
sociabilidade cuja reprodução não se emancipou ainda dos vínculos mais
locais, particulares.
[4] ENGELS, 2010, 68-9. A origem da família,
do Estado e da propriedade privada, de Engels é, até hoje,
imprescindível. Seus dados antropológicos foram superados pelo
desenvolvimento científico. Sua tese acerca da gênese do homossexualismo
também não é mais defensável. Ainda, talvez, seja preciso reconsiderar o
caráter “exclusivista” que para ele marcaria o amor sexuado individual.
Todavia, mantém a validade para nossos dias a sua tese fundamental,
segundo a qual é no desenvolvimento das forças produtivas advindo da
Revolução Neolítica que temos a gênese da exploração do homem pelo homem
e, portanto, do Estado, da propriedade privada e da família monogâmica.
[5] Eleanor Burke Leacock (1981,
1971) nos oferece uma abrangente crítica das teorias contemporâneas que
fundam o patriarcalismo em uma base biológica em seu livro Miths of male
dominance (1981). Antropóloga, seu combate ao que de mais conservador a
antropologia e a sociologia produziram na defesa do patriarcalismo
incorporou as descobertas científicas desde o século passado.
Infelizmente, tanto quanto sabemos, sua obra continua fundamentalmente
inédita no país. A exceção é sua introdução à edição estadunidense de A
origem da família, da propriedade e do Estado que a Ed. Expressão
Popular publicou como posfácio em sua edição do texto de Engels.
[6] O fundamento ontológico desta situação situa-se, com todas as devidas
mediações, no trabalho. Como precisamos transformar o mundo para
sobrevivermos e. como esse mundo é portador, para sermos brevíssimos, de
uma unitariedade última síntese de suas “múltiplas determinações”,
apenas uma individualidade também por último unitária pode responder com
a eficiência requerida aos traços de continuidade atuantes na
objetividade. Também aqui a existência determina a consciência.
[7]
Lukács, em “A reprodução”, tratou dessas questões em várias passagens
(LUKÁCS, 1976,148,158,168-70,174) E em nosso país há uma pequena, porém
rica bibliografia disponível. Paulo Silveira (1989), Newton Duarte
(1993), Gilmaísa Costa (2007), por exemplo.
[8] O afastamento das
barreiras naturais é o processo pelo qual o desenvolvimento das forças
produtivas reduz o impacto sobre o desenvolvimento humano dos
acontecimentos naturais sem, evidentemente, poder resultar na eliminação
da reprodução biológica e, por extensão, da natureza, como base
imprescindível da reprodução social. (LUKÁCS, 1981,12, 125, 158 entre
muitas passagens).
[9] O texto mais importante é aqui o único capítulo de sua Ontologia que
Lukács deixou pronto para publicação: “A falsa e a verdadeira ontologia
de Hegel” (LUKÁCS, 1978). Contribuições importantes podem também ser
encontradas em MACHPERSON (1967), KOFLER (1997) e em um texto que já
gozou de algum prestígio entre nós mas que não resistiu ao tempo, de
Agnes Heller, O homem do Renascimento (1980).
[10] Abelardo não ama,
entrega-se à “luxúria”; Heloísa se diz tomada pela “paixão”. Pela
mediação da luxúria Abelardo “toma” Heloísa que, envolta pela paixão, se “entrega”. Se a belíssima análise de Etienne Gilson estiver correta,
muito mais que Abelardo, foi Heloísa que manifestou o germe do que
depois de alguns séculos virá a ser socialmente reconhecido como o “amor
individual sexuado”, na definição de Engels: o amor como em Romeu e
Julieta. Cf. GILSON, 2007.
[11] A identidade do indivíduo pela sua
participação na comunidade (como em Sócrates e que o levou a preferir a
morte ao desterro) está definitivamente rompida. O individualismo
burguês está aqui cumprindo sua função revolucionária ao corroer os
grilhões da velha sociedade.
[12] Não temos aqui espaço para
demonstrar essa relação entre as escolhas cotidianas, sempre orientadas –
porém, não determinadas – por processos valorativos, o conteúdo dos
processos de objetivação, exteriorização (Entäusserung) e o “período de
consequências”. Sobre isso conferir LUKÁCS, 1981,89-96 (esta é uma das
passagens mais longas em que o filósofo húngaro trata da questão em sua
Ontologia, mas há inúmeras outras passagens. Uma relação das mesmas pode
ser obtida no site www.sergiolessa.com baixando-se o “Índice Lukács".) Tb. LESSA, 2007b e 2012.
[13] No sentido de Entfremdung.
[14] Há aqui toda uma esfera de problemas que apenas podemos mencionar em
nota: a criação privada das crianças impõem um isolamento das mesmas nos
primeiros anos de vida que não pode deixar de impactar suas
personalidades. A alegria de crianças, desde a mais tenra idade,
brincando em bandos é o exato contraponto ao olhar triste e solitário
das crianças que são apartadas do convívio das outras crianças pelo
solitário convívio com a babá ou com a mãe. Some-se a isto que a
primeira relação afetiva mais duradoura possibilitado às crianças das
classes abastadas já é mediada pela classe: a babá é a sua serviçal
pessoal.
[15] Há aqui pressuposta, como não deve ter passado despercebido
ao leitor, uma longa discussão. A historicidade da essência (a essência é
parte movida e movente da história, segundo uma passagem célebre da
Ontologia de Lukács) é a descoberta ontológica decisiva de Marx e abriu
caminho para a elaboração de sua teoria revolucionária. Cf. LUKÁCS,
1981, 374-6, 507-8; LESSA, 2012 e 2005.
[16] Aqui, a conexão ontológica mais universal é o fato de o trabalho
assalariado ter por finalidade a reprodução do capital, enquanto o
trabalho associado é voltado à satisfação das autênticas necessidades
humanas (“do estômago ou da fantasia” (MARX, 1983,45)). Terá, por isso,
como categoria central de toda atividade produtiva, não mais o tempo de
trabalho socialmente necessário, mas, sim, o “tempo disponível".
(MÉSZÁROS, 2002; LESSA, 2005b)
[17] Muito se têm argumentado da
possibilidade do desenvolvimento de germes do comunismo no interior do
capitalismo. Uma defesa elaborada dessa tese – pois na enorme maioria
das vezes são teorizações incipientes, que não vão além do senso comum –
pode ser encontrada nos teóricos do “trabalho imaterial”, Negri sendo o
mais importante deles. Fizemos uma análise crítica do conjunto de suas
teses em Para além de Marx? Crítica da teoria do trabalho imaterial.
(LESSA, 2005a e, tb. 2002).
[18] Tratamos desta questão em Lessa, 2011 em especial no Capítulo VIII.
[19] No sentido de que transitamos para uma outra forma de sociabilidade,
seja ela o comunismo, a barbárie ou, mesmo, a destruição da humanidade.
[20] Tem Mészáros, por isso, total razão quando argumenta em seu
Para além do capital que o patriarcalismo é uma das mediações que
acionam os “limites absolutos” do sistema do capital contemporâneo. A
exposição desta tese da obra-prima de Mészáros, pela sua densidade e
riqueza, não cabe no espaço deste artigo – fica aqui, por isso, apenas
esta menção. Ao leitor interessado, Paniago, 2012.
[21] O Estado de São Paulo, 9 de agosto de 2006, A14.
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= = =
Resumo:
A superação da família monogâmica, articulada à superação do Estado,
das classes sociais e da propriedade privada, faz parte da plataforma
estratégica comunista clássica. O texto argumenta que, apesar de
praticamente abandonada pelas forças políticas atuais, a superação do
patriarcalismo continua imprescindível para a transição ao comunismo (no
sentido marxiano desta expressão).
Palavras chaves: patriarcalismo, revolução proletária, família monogâmica, comunismo.
Abstract: The
overcome of the monogamic family, along the overcoming of the State,
social classes and of private property, was part of the classic
Communist strategic platform. The text argues that, in spite of
practically abandoned by the current political forces, the overcome of
patriarcalism is still indispensable for the transition to communism (in
the Marxiam sense of the expression).
Keywords: Patriarcalism, proletarian revolution, monogamic family, communism.
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LESSA, S. “A atualidade da abolição da família monogâmica”. In: Crítica Marxista, n. 35, 2012.
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