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sábado, 15 de outubro de 2022

Como o bolsonarismo manipula o senso comum?

 
por Golbery Lessa
O Poder Popular
O senso comum torna viável a vida cotidiana, mas suas dimensões irracionais são estimuladas e usadas pelo fascismo. Como entender e dar combate a essas estratégias?
O pensamento cotidiano, conhecido como senso comum, é parte insuperável da subjetividade das pessoas e se relaciona intimamente com as outras formas de compreender o mundo: a religião, a ciência, a filosofia e a arte. O fascismo, por ser necessariamente irracionalista, faz a apologia do senso comum como tipo superior de representação da realidade social. Essa característica determina a hostilidade fascista contra o meio artístico erudito ou popular, a Universidade, as igrejas progressistas e outros polos de produção cultural. Portanto, para fazermos uma crítica teórica e prática da estratégia de propaganda bolsonarismo em geral e, em particular, na campanha do segundo turno da eleições de 2022, é fértil refletirmos mais detidamente sobre o papel do pensamento comum na disputa por hegemonia e direção política.

Senso comum

O senso comum teria as seguintes características, segundo G. Lukács (Estética, Barcelona: Grijalbo, 1966): 1) materialismo espontâneo e pragmatismo diante dos fatos imediatos 2) foco exagerado nas relações de causa e efeito aparentes, as únicas que a pessoa leiga tem condições de perceber; 3) renúncia deliberada de compreender as mediações mais densas e explicativas dos fenômenos, o que abre flanco para a aceitação de teorias incoerentes, místicas ou mitológicas; 4) abertura para a absorver os resultados da religião, da ciência, da arte e da filosofia, mas sem poder adotar os métodos próprios destas formas mais complexas de conhecimento – esta característica implica na aceitação, via reconhecimento da autoridade, de referências intelectuais fora do senso comum; 5) tendência a generalizações exageradas a partir de poucos casos particulares; e 6) instabilidade na retenção do conteúdo adquirido das outras formas de conhecimento.

O fascismo/neofascismo/bolsonarismo busca estimular pela propaganda e a ação as propriedades irracionais do senso comum com o objetivo de hegemonizá-lo. Procura expulsar os resultados científicos/artísticos/filosóficos/religiosos progressistas presentes na mente dos indivíduos e provocar mudanças nas referências de autoridade intelectual em benefício de personalidades e grupos de extrema direita (“filósofos” alternativos, perfis fascistas nas redes sociais, igrejas conservadoras etc.). Divulga a “teoria” terraplanista, faz críticas infundadas às vacinas, tenta estigmatizar as lutas contra as opressões de gênero, defende o uso de medicamentos inúteis, entre outras “explicações” disparatadas, oferecidas como substitutos das explicações racionais sobre os mesmos fatos. Sem ter como vencer a disputa por hegemonia na Universidade, por exemplo, o fascismo instiga o irracionalismo no senso comum para desconectá-lo desta instituição.

O assédio fascista ao senso comum é combatido por socialdemocratas, comunistas, alguns segmentos liberais e outras correntes políticas comprometidas com valores racionalistas e humanistas, apesar de entre elas, claro, existirem disputas e interpretações diferentes de “razão” e “humanidade”. O resultado do embate dependerá de duas variáveis: 1) a experiência da população com políticas públicas e formas de mobilização propostas por cada tendência; 2) o conteúdo das mensagens e a estratégia de comunicação dos partidos. Como já tratamos da primeira variável em artigo anterior, e desejamos focar na estratégia discursiva antifascista para o segundo turno das eleições 2022, vejamos a segunda variável.
 
Combate ao uso fascista do senso comum

As tendências políticas racionalistas e humanistas não devem estimular as dimensões irracionais do senso comum. Por princípio, mas também por uma questão prática: quanto mais se instigar as dimensões obscuras do pensamento cotidiano (por exemplo, a partir de uma campanha de “fake news de esquerda”), mais ele será suscetível ao fascismo, na medida em que o materialismo espontâneo estará mais submetido a “teorias” absurdas.

No segundo turno das Eleições de 2022 e na luta contínua contra o fascismo/neofascismo/bolsonarismo, além de continuar a fazer discurso racional, focado na transmissão em linguagem popular da produção da ciência, da arte, da filosofia e da religião progressista, a esquerda precisa promover, por meio de mensagens e ações políticas, a autoridade intelectual das instituições produtoras de discursos racionais, no campo da erudição, como as Universidades públicas, bibliotecas e laboratórios estatais (Fiocruz, Butantã etc), e no campo da cultura popular, como as escolas de samba, os movimentos sociais e os grupos de esquerda da periferia. Sem deixar, evidentemente, de disputar hegemonia nestas instituições.

Não é razoável defendermos uma batalha da ciência/filosofia/arte contra o pensamento cotidiano, como se ele fosse um hóspede indesejado e o vilão da história da mente. Sem o senso comum, a humanidade não teria sobrevivido nos milhares de anos da chamada Pré-história e nem se diferenciado da natureza. Mesmo contemporaneamente, a inexistência deste tipo de pensamento tornaria inviável a vida cotidiana, pois não temos tempo para considerações científicas diante das centenas de decisões que somos obrigados a tomar durante um dia.

O melhor caminho é entendê-lo, respeitá-lo e lhe transferir os melhores resultados das formas racionais de entendimento (entre os quais está o pensamento religioso progressista, pois ele junta a fé com resultados da ciência/filosofia/arte). Em síntese: para combater o fascismo no campo das ideias, precisamos agir para reconectar o senso comum com as referências racionais de autoridade intelectual.
 
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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Como o misticismo e a pseudociência se tornaram centrais para o nazismo


Uma entrevista com Eric Kurlander
Jacobin Brasil
Ideias sobrenaturais estavam se generalizando na virada do século XX, em especial na Alemanha. Porém, na crise social após a Primeira Guerra Mundial, as ideias esotéricas e pseudocientíficas viraram uma ferramenta poderosa de mobilização nazista, direcionadas para demonizar os judeus e a esquerda.
No fim do século XIX, a Europa industrializada era o epicentro daquilo que Max Weber denominou de “desencantamento do mundo”. Práticas religiosas tradicionais vinham sendo desafiadas pelas forças da modernidade, com a Igreja incomodada com o avanço do Iluminismo, ciência e secularismo.

Entretanto, geralmente a famosa citação Weber omite a segunda parte de sua tese – que o mundo estava se encantando também por algo novo. Novos tipos de doutrinas esotéricas, religiosas e fronteiras emergiam como alternativas aparentemente modernas à religião e à ciência tradicional.

Isso incluía a antroposofia (uma variação austro-alemã sobre a doutrina esotérica da teosofia, que combinavam elementos da espiritualidade oriental com cristianismo, filosofia ocidental e ciência natural); ariosofia (uma versão mais explicitamente racialista e eugenista da teosofia), a Teoria do Gelo Mundial (uma teoria “acientífica” que insiste que o gelo é a substância básica por trás de todos os processos tanto cósmicos como geológicos e evolutivos da terra), astrologia e parapsicologia (o estudo dos fenômenos psíquicos e paranormais). Essa tendência incluiu também religiões alternativas, New Age, homeopatia, folclore e um interesse renovado pelo hinduísmo e budismo.

Em seu livro Hitler’s Monsters, Eric Kurlander analisa a específica influência de ideias sobrenaturais que tiveram ascensão e as consequências da ideologia nazista. Ele argumenta que a invocação e apropriação de crenças populares esotéricas, pseudocientíficas e religiosas ajudaram o partido de Adolf Hitler a atrair apoiadores, desumanizar seus inimigos e perseguir suas ambições imperiais e raciais. Porém – como diz o historiador a Ondřej Bělíček –, essas ideias também se enraizaram em um contexto sociopolítico particular – que se reproduz, se não na mesma escala, também em nosso próprio presente.

Ondřej Bělíček: No fim do século XIX, desenvolveu-se um forte movimento dedicado a ideias sobrenaturais, doutrinas esotéricas, espiritualismo e ocultismo. O que esse movimento na Alemanha e na Áustria teve de diferente, em comparação a outros lugares onde essas tendências também floresceram?

EK: A singularidade é dupla. Por um lado, o investimento naquilo que eu chamo de “imaginário sobrenatural” na Alemanha e na Áustria tinha uma influência maior. Não se tratava só de um aspecto discreto do dia a dia, tal qual quando você vai à igreja ou uma sessão espírita no domingo. Foi algo integrado à política e às teorias sociais de forma muito mais direta e onipresente. Muitas dessas figuras esotéricas passaram a delinear conclusões políticas baseadas nessas crenças.

Isso, por exemplo, ocorreu também na França e no Reino Unido, ainda que não na mesma medida. Por outro lado, o teor do imaginário sobrenatural, em que existiam muitos movimentos como teosofia, astrologia e assim por diante, também era bem mais racial-folclórico na Alemanha e na Áustria que na França ou Reino Unido.

Havia muitas pessoas falando sobre diferentes raças no século XIX, não só na Alemanha e na Áustria. Entretanto, quando se olha para a forma como tais doutrinas esotéricas e anti-científicas foram implantadas na esfera pública, a raça e o antissemitismo foram, ao que parece, mais proeminentes em comparação com a França, Reino Unido e até mesmo os Estados Unidos, que tinham seus próprios grupos esotéricos, como os “camisas prateadas” da KKK e William Pelley.

Em suma, a raça faz parte também da língua oficial da ciência e da reforma social no Reino Unido, França e Estados Unidos, mas não estava no centro das práticas científicas e ocultas; e tais práticas, inversamente, não desemprenharam um papel central nas ideologias ou teorias de direita na política ou na sociedade.

OB: Você também menciona que o folclore alemão, a mitologia, a religião indo-ariana e as teorias racistas frequentemente eram parte do sistema escolar alemão. Você menciona especificamente a influência que o professor Leopold Pötsch tinha no jovem Hitler. Isso também foi uma particularidade nacional?

EK: Isso chega ao conceito de ciência alternativa. Todos falavam sobre Charles Darwin e o declínio civilizacional do Ocidente, a ascensão de raças não brancas – tudo o que fazia parte das discussões científicas naturais e sociais da segunda metade do século XIX. Até mesmo progressistas liberais e socialistas utilizavam o conceito de raça naquele momento, que não seria aceito hoje.

Se você fosse à escola na França ou nos Estados Unidos nas décadas de 1880 e 1890, ouviria teorias sobre a superioridade racial de alguns grupos sobre outros, e teorias da história que tendiam a idealizar os homens brancos ou de seu país de uma forma muito nacionalista. A diferença é que, na Alemanha e na Áustria, a mitologia nórdica e o folclore se misturaram com esse chamado pensamento “científico” sobre raça, politizado e, então, integrado à pedagogia. Isso ocorreu não apenas nas escolas, mas na literatura popular e científica.

OB: Muitas das principais personalidades de movimentos sobrenaturais na República de Weimar, na Alemanha, depois se tornaram proeminentes nazistas. De alguma maneira, os partidos no entreguerras trabalharam politicamente com a crença do sobrenatural ou isso foi específico dos nazistas?

EK: Sem dúvida, existam alguns indivíduos nos partidos de centro esquerda interessados ​​em astrologia e mitologia alemã, mas, de modo geral, eles não os integraram em suas ideias políticas e sua propaganda. Se você fosse membro dos dois partidos liberais, dos social-democratas ou dos comunistas, seria improvável que você invocasse as imagens de vampiros e o diabo, lobisomens ou bruxas, para descrever seus oponentes políticos ou a si próprio. Nem você falaria frequentemente sobre suásticas ou antigos sóis negros ou runas como símbolo da raça ariana ou nórdica.

Só que não apenas os nazistas invocavam essa iconografia. Existiam grupos paramilitares famosos de toda sorte que recorriam a esses tipos de símbolos, que organizavam festivais de solstício e falavam em restaurar o Império Alemão e reassentar os europeus ocidentais com “camponeses guerreiros”.

Os partidos de centro esquerda alemães, como na maior parte dos países, almejavam certamente argumentar a respeito do que fazer com finanças, tributos e educação, mas os partidos de centro direita eram tão propensos a invocar propaganda emocional ligada a teorias baseadas em raça sobre a superioridade germânica e o perigo quase sobre-humano dos monstruosos judeus e bolcheviques, de uma forma difícil de se engajar racional ou empiricamente. Como argumentaria com alguém que apela ao caráter loiro e de olhos azuis quase míticos do povo alemão e diz que seu país foi colonizado por uma cabala de bolchevistas judaicos, maçons e raças inferiores?

Nem todos os alemães acreditavam nessas coisas: muitos – talvez até mesmo a maioria – não acreditava. E se recorde que apenas um terço deles votou em Hitler. Os nazistas nunca tiveram mais de 37% dos votos, apesar da crise vinda da Grande Depressão e outros fatores. Porém, as pessoas que votavam nazistas parecem ter sido desproporcionalmente inseridas no imaginário sobrenatural.

OB: Suponho que, depois da guerra perdida em 1918 e da Grande Depressão, essas ideias sobrenaturais devem ter se espalhado entre toda a população alemã. É possível afirmar qual tipo de pessoa tendia a apoiar essas ideias?

EK: A história, a sociologia e a ciência política nos mostraram que, enquanto os nazistas apelaram ao número substancial de alemães de todas as demografias, católicos e trabalhadores tendiam a não votar tanto nos nazistas. Por outro lado, os protestantes de classe média baixa ou de origem sociológica no meio rural votavam desproporcionalmente no partido de Hitler. Ao observar o modo como funciona o imaginário sobrenatural, é aquilo não aparece de forma proeminente nos socialistas urbanos e no meio social dos trabalhadores.

Não é que as classes trabalhadoras alemãs fossem imunes às ideias sobrenaturais – se a ciência oculta, a pseudociência ou a religião alternativa. De certo, alguns membros da classe trabalhadora liam seus horóscopos ou acreditavam em aspectos do paranormal. Só que, por variadas razões, as classes trabalhadoras eram, em geral, mais isoladas das consequências políticas dessas ideias graças ao caráter do meio urbano e proletário – poderosamente à esquerda e, de fato, muitas vezes suavemente marxista.

Além da força dessa cultura proletária, o próprio interesse socioeconômico dos trabalhadores e sua típica filiação partidária com os social-democratas ou os comunistas, temos uma ênfase intelectual da teoria marxista em explicações materialistas sobre a realidade sociopolítica. Por tais razões, era bastante difícil para os partidos não marxistas e ideologias não materialistas penetrarem nas classes trabalhadoras alemãs, sobretudo entre os habilidosos trabalhadores em áreas urbanas, que se mostraram nitidamente resistentes à política conservadora, clerical e, em menor grau, fascista no período entreguerras.

Mesmo entre o eleitorado com uma maior propensão ao pensamento não materialista, baseado na fé, como os católicos rurais e de cidades pequenas, a força do meio social e religioso católico – reforçado por décadas de perseguição protestante – isolou os católicos devotos de formas alternativas de pensamento sobrenatural, assim como os radicais-nacionalistas, partidos desproporcionalmente protestantes, como o Partido Nacionalista do Povo Alemão e os nazistas.

Essas ideias parecem ter sido mais populares entre os alemães de classe média que talvez não fossem mais devotos católicos ou protestantes, mas que ainda se interessaram em religiões alternativas, esoterismo meio cristão meio pagão e outras ideias sobrenaturais. Essas tendências esotéricas também parecem nitidamente ter se originado na Alemanha, especialmente onde a política é objeto de preocupação – o que parece ser outra diferença entre o jeito como essas doutrinas se espalham e como o “imaginário sobrenatural” funcionava na França, Reino Unido, Estados Unidos, por exemplo, em comparação com a Alemanha e a Áustria.

Nos países anteriores, parece que as mulheres participavam desses movimentos tanto quanto os homens, certamente como seguidoras, mas também, muitas vezes, como lideranças. Na Alemanha e na Áustria, propagando o esoterismo, a pseudociência e o paganismo folclórico pareciam ser um empreendimento quase exclusivamente masculino.

Você nota isso no movimento nazista, que era também muito masculino. Eram principalmente homens brancos que não foram particularmente educados em termos de conhecimento científico, mas tinham certa educação universitária. Trabalhadores de colarinho branco, pequenos empresários, engenheiros, esses são os tipos de pessoas que tornaram essas ideias mais interessantes. Um perfil demográfico similar ao daqueles que gostam de assistir shows sobre “alienígenas” ou relíquias perdidas ou soldados mortos-vivos do Himmler no History Channel hoje em dia. São as pessoas que têm algum tipo de educação, alguns conhecimentos sobre história, mas estão abertos a argumentos pseudocientíficos e baseados na fé.

OB: De várias maneiras, isso se assemelha aos grupos de pessoas de hoje que creem em teorias de conspiração, como QAnon, movimento antivacina e etc.. Como os intelectuais, cientistas e autoridades reagiram a essa tendência pseudocientífica naquela época?

EK: Muitas figuras líderes de centro esquerda ou liberais observaram esse investimento nada saudável no pensamento sobrenatural, baseado na fé, e afirmaram: “aqui está um fenômeno que é anticiência, irracional e preocupado com o pensamento mágico, a história alternativa e a religião mágica, e parece estar ajudando as forças antidemocráticas de extrema direita. Precisamos ter cuidado com isso”.

Na imprensa, Bertolt Brecht e alguns socialistas zombaram dos nazistas por flertarem com essas ideias. Eles acharam chocante que os alemães acreditassem nos apelos emocionais de Hitler e Goebbels – em alguns casos escritos por Hanns Heinz Ewers, um escritor de terror famoso por romances sobre vampiros, cientistas loucos e adoradores de diabo e, depois, um propagandista nazista. Não compreendiam como algum partido poderia chegar ao poder sendo algo equivalente contemporâneo de Stephen King ou Clive Barker na promoção de sua causa. Alguns apoiadores dos partidos liberais, que perderam muitos mais de seus eleitores para os partidos conservadores e de extrema direita que os social-democratas ou os comunistas, estavam realmente prontos para botar a culpa de seu fracasso político no comportamento irracional dos alemães.

Alfred Rosenberg, o ideólogo nazista, assumiu que muitas pessoas votaram nos nazistas porque estavam interessadas no oculto. O influente filósofo político conservador Carl Schmitt notou um investimento generalizado no que ele chamou de “romantismo político”. Então, com o declínio do centro liberal, os únicos partidos políticos que poderiam se opor aos nazistas eram os partidos de esquerda, mas eles falavam uma linguagem totalmente diferente e eram incapazes de competir com os nazistas nos termos do apelo emocional ao nacionalismo e ao renascimento folclórico, fundamentados no “desejo de mito dos alemães” e desejo de transcender as crises políticas e econômicas e as divisões sociais do período entreguerras.

OB: E quanto ao próprio Hitler? Você poderia descrever qual era sua relação com ideias sobrenaturais, ocultismo ou pseudociência?


EK: Hitler foi perfeitamente emblemático como um típico membro do Partido Nazista – ou, de certo, líder nazista – a esse respeito. Ele não era tão envolvido em ideias sobrenaturais, por exemplo, tal qual Himmler, Hess ou Alfred Rosenberg. Sempre foi mais cético quanto às teorias sobrenaturais mais amplas sendo usadas de forma muito proeminente como parte da propaganda nazista. Ele, todavia, ainda as elaborou, e sua retórica foi misturada com argumentos pseudocientíficos, a invocação da mitologia e o apelo às emoções. Ainda que não comprasse todas as doutrinas de raça esotérica que alguns de seus colegas fizeram, ele entendeu sua importância para o Partido Nazista e empregou essa linguagem.

No meu livro Hitler’s Monsters, menciono a famosa citação de Hitler em Mein Kampf alertando o Partido Nazista a não se tornar lar de “acadêmicos errantes envolvidos em bearskins”. Lembrando do xamã do QAnon com pele de animal que invadiu o prédio do Capitólio norte-americano em janeiro de 2021, esse comentário obscuro de Hitler parece bem mais relevante. Como Donald Trump ou Marine Le Pen, que se afastaram publicamente dos “xamãs do QAnon” em suas fileiras, Hitler estava preocupado se o Partido Nazista pudesse perder apoio entre os eleitores da classe média tradicional.

Mesmo se Hitler publicamente tentasse divulgar nazistas de grupos religiosos esotéricos e pagãos, como a Sociedade Thule e o folclore “errante dos estudiosos em bearskins”, ele, porém, reconheceu que seus apoiadores estavam atraídos por ideias sobrenaturais e teorias de conspiração para dar sentido a um mundo cada vez mais complexo e ameaçador.

OB: Qual foi a relação dos nazistas com ideias sobrenaturais depois que Hitler chegou ao poder? Você menciona que era perigoso para o Partido Nazista deixar crescerem o movimento sobrenatural e o ocultismo, pois temiam que pudesse sair de seu controle.

EK: Não é que eles rejeitaram o raciocínio sobrenatural. Eles estavam com medo especificamente de grupos ocultos que representassem um obstáculo sectário a uma “comunidade racial” unificada liderada pelo o Partido Nazista. Essas doutrinas e associações ocultas, como a teosofia, a ariosofia, o movimento da antroposofia de Rudolf Steiner, e outros grupos folclóricos e messiânicos – que tiveram seus próprios rituais, tradições secretas e, acima de tudo, seus próprios “Führer” – foram vistas pelos nazistas como sectárias. Isso significava que eles detinham sua própria identidade sociocultural e, potencialmente, uma ideologia em competição com o nazismo.

Portanto, muitos estudiosos apontam a repressão ao ocultismo durante o Terceiro Reich – equivocadamente, em minha visão, dizendo “olha, os nazistas odiavam o ocultismo”. Só que eles não odiavam. Eles tentaram controlar certos tipos de ocultismo e outros grupos “sectários” por várias razões, da mesma maneira que tentaram controlar a religião, os programas sociais, mulheres, trabalhadores, camponeses ou industriais. A propensão natural deles como um regime fascista era tentar controlar as coisas e fazer com que todo mundo “trabalhasse para o Führer”, mas isso não significa que eles rejeitassem o völkisch esotérico ou religioso ou o pensamento pseudocientífico.

Então, sua hostilidade aos ocultistas não era do mesmo tipo que aquela que envolvia atitudes nazistas em relação aos socialistas ou comunistas ou, de certo, aos judeus. Eles reiteradamente aceitaram no partido ex-líderes ocultistas, desde que parassem de tentar manter organizações esotéricas-folclóricas separadas, como a Sociedade Thule ou a Werewolf Bund ou a Tannenburg Bund.

Os nazistas estiveram também divididos sobre o que era “ocultismo científico” e o que era o ocultismo popular para ganhar dinheiro. O vice de Hitler, Rudolf Hess, os membros do Ministério da Educação do Reich, Himmler, a SS e até o Ministério de Propaganda de Goebbels trabalharam para diferenciar as doutrinas ocultistas e as ideias e indivíduos “científicos” alternativos ou, ao menos, pragmaticamente úteis daquilo que chamavam de ocultismo de Boulevard popular ou “judaico”, como Erik Hannusen – que, eles diziam, apenas roubava o dinheiro das pessoas.

Assim, os nazistas vigiavam e periodicamente prendiam ou interrogam os ocultistas que supostamente faziam dinheiro minando o “esclarecimento público”. Contudo, para Himmler, Hess, Walther Darré, e outros líderes nazistas, os ocultistas científicos “reais” e cientistas alternativos ainda podiam averiguar se o raio de Thor era mágico ou se a posição das estrelas e da lua promovia a agricultura orgânica.

Esses “cientistas” foram patrocinados por vários ministérios nazistas e especialmente pela SS de Himmler. Então, eles seletivamente rejeitavam algumas ideias e indivíduos ocultistas como não sérios e anticientíficos, mas também estavam dispostos a legitimá-los e até mesmo empregá-los quando eram simpáticos à doutrina esotérica e alternativa particular ou à crença völkisch religiosa. O conceito duvidoso da Teoria do Gelo do Mundo parecia reforçar a ideia de uma raça ariana antiga e sugerir o questionamento da “física judaica” da mesma maneira a lei relatividade e a mecânica quântica. Daí o porquê de tanto Himmler como Hitler tê-la patrocinado.

OB: Você menciona que a imaginação sobrenatural “propiciou um espaço ideológico e discursivo em que era possível desumanizar, marginalizar os inimigos dos nazistas e transformá-los em monstros”. Você poderia elaborar como funcionou isso?

EK: Quando você sai do reino da ciência moderna, como a biologia e a física, começa a operar no reino do “imaginário sobrenatural”, onde tudo é possível ou justificável, visto que passa a misturar a biologia com esoterismo, história e arqueologia com folclore e mitologia, pode transformar os judeus asquenazes de um povo parcialmente europeu que compartilharam com alemães uma ancestralidade da Europa Central e Oriental, em monstros biológicos totalmente alienígenas, com tendências cruéis e sobre-humanas, por trás de tudo de malévolo ocorrido na história.

O imaginário sobrenatural, que mistura a ciência e o ocultismo, a história e a mitologia, permitiu também que os nazistas escolhessem as características que gostariam de atribuir ao inimigo deles, comparando-os a vampiros, zumbis, diabos e demônios. Também permitiu a eles que atribuísse certas características superiores aos alemães, delineadas, muitas vezes, de forma idêntica da mitologia ou da ciência alternativa.

Em seu último esforço para criar uma divisão partidária na elite no fim de 1944, eles invocaram os nomes de lobisomens, do folclore germânico. Apesar de os lobisomens serem considerados heróis trágicos ou nobres possivelmente ligados à horda de Odin ou aos berserkers nórdicos, eles eram na França seres amaldiçoados ligados ao satanismo e à feitiçaria. No folclore alemão, os lobisomens eram, portanto, heróis trágicos, ligados enfim ao sangue e ao solo; criaturas que defenderiam suas florestas e terra contra os intrusos eslavos. Por outro lado, os vampiros não eram figuras românticas trágicas nem mesmo heróis, como foram retratados na França ou no Reino Unido, mas parasitas orientais degenerados ligados aos judeus e aos povos eslavos, que estavam tentando minar a pureza do sangue alemão.

Folclore, mitologia, teorias sobre alienígenas, Teoria do Gelo Mundial, gigantes de gelo, deuses e monstros foram usados para justificar por que os alemães teriam o direito de invadir o Leste Europeu e subjugar ou destruir raças inferiores e o chamado “judaico-bolchevismo”.

O pensamento sobrenatural tinha um efeito multiplicador sobre as políticas violentas já existentes na eugenia dessa época, abusadas em tantos outros países, incluindo o Reino Unido, a Suécia ou os Estados Unidos, mas nunca em uma extensão desenfreada. O ingrediente “secreto” aqui, argumento eu, era o pensamento “sobrenatural”.

OB: Que influência o imaginário sobrenatural teve sobre o esforço de guerra dos nazistas?

EK: Em primeiro lugar, o imaginário sobrenatural influenciou as visões geopolíticas dos nazistas, que manipularam a arqueologia, o folclore e a mitologia para fins de política externa. Himmler e Rosenberg desenvolveram os argumentos – com base, em larga medida, em folclore, mitologia e ciência alternativa – de que, há milhares de anos, as pessoas nórdicas eram a civilização dominante na Europa e que eles tinham o direito de reivindicar esse status. Arqueologia ruim, o uso seletivo de biologia e da antropologia e a mitologia alimentou várias ideias a respeito da Europa Oriental e por que os alemães teriam direito, tais quais cavaleiros teutônicos medievais, de (re)conquistar o Leste.

O pensamento sobrenatural não era o único fator na determinação da política nazista, mas certamente reforçou as relações racistas e imperialistas dos nazistas em relação aos europeus orientais. Sim, em algum momento durante a guerra, os nazistas negociaram acordos com os ucranianos e os Estados bálticos por razões pragmáticas, mas, em última instância, eles tinham esse gigantesco complexo de pensamento sobrenatural subjacente às suas concepções de raça e espaço. Isso ajudou a justificar, por exemplo, a deslocar os poloneses para fora de suas casas e botar alemães em seu lugar ou enviar os judeus para os campos de concentração.

O imaginário sobrenatural estava também diretamente ligado a experimentos de eugenia durante o Holocausto. Um dos piores médicos nazistas, Sigmund Rascher, era filho de um dos mais célebres antroposofistas, Hanns Rascher. Você tem esse importante médico muito aberto a essa ideia de raça e espaço – que acompanha Ernst Schaefer na expedição ao Tibet de Himmler para descobrir as antigas origens da raça ariana – e mais tarde está disposto a fazer experiências em seres humanos para testar suas teorias pseudocientíficas e de Himmler.

Quando você toma o nível de ingenuidade científica e de confiança que os alemães tinham nos anos 1930 e o mistura com um regime imerso no pensamento sobrenatural, liderado por Hitler e Himmler, que não tinham experiência em ciência natural, que eram autodidatas, que liam folclore e mitologia e sonhavam com espaçonaves, e propicia a plataforma de uma guerra terrível onde a violência massiva já se tornava aceitável, isso é bastante perigoso. Junto à eugenia, isso tudo compôs o combustível desses experimentos horríveis e até mesmo do Holocausto.

OB: Parece que os alemães que acreditavam no imaginário sobrenatural realmente achavam que os eslavos eram vampiros, os judeus vermes e os soviéticos basicamente monstros.

EK: Eu não posso dizer a você que milhões de soldados em campo de batalha realmente viam judeus como monstros sobre-humanos; muitos alemães tinham amigos e cônjuges judeus antes e depois do Terceiro Reich. Entretanto, os nazistas certamente usaram o imaginário sobrenatural para desumanizar judeus, eslavos e bolcheviques e transformá-los em um inimigo desumano. Alguns alemães étnicos relataram terem sido atacados, confessamente durante o trauma da guerra, por “bebedores de sangue” eslavos.

A questão é: como isso aconteceu? Meu argumento é que não era somente a ciência da biologia ou imperialismo ou capitalismo industrial ou a violência em massa e o trauma da “guerra total” – todos esses fatores eram importantes –, mas também o imaginário sobrenatural nazista. O quanto alguém acredita de fato nas várias doutrinas, contos e ideias que constituíam esse imaginário dependia da pessoa. Às vezes, todavia, parece que alguns nazistas realmente acreditavam que havia outras espécies e raças – em particular, os judeus, que eram simplesmente monstros desumanos, literal ou figurativamente, e que tinham que ser eliminados para que a civilização “ariana” sobrevivesse.

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[0] Tradução: Gercyane Oliveira.
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quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Meteoro, ciência e senso comum


por Golbery Lessa
PCB

Em 2021, ampliou-se a perplexidade na opinião pública mundial diante da significativa força de movimentos contra a vacinação na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, região e país presumivelmente menos suscetíveis ao negacionismo por terem alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e sólidas instituições científicas. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), no dia 29/12/2021, o Reino Unido, a França e a Alemanha ainda têm 30% da população sem as duas doses de vacina contra a Covid-19, número suficiente para sobrecarregar o sistema de saúde diante do espalhamento da variante Ômicron. Os Estados Unidos, produtores de algumas das principais vacinas, estão em uma situação ainda pior, com uma taxa de apenas 60,36% de plenamente vacinados, atrás do Brasil (66,11%), país governado por um presidente negacionista, e de Cuba (84,05%), que conseguiu a façanha de ir para a vanguarda da cobertura vacinal criando o próprio imunizante no interior do infame bloqueio econômico norte-americano. A resposta para o aparente paradoxo de presenciarmos uma epidemia de estupidez quando a ciência se mostra cada vez mais avançada passa pelo entendimento da relação intrínseca entre ciência, senso comum e direção política, e impõe mediações históricas e epistemológicas incontornáveis que parecem nos levar muito para longe do assunto, mas são imprescindíveis.

O senso comum não é uma etapa provisória da mente dos indivíduos antes deles aprenderem o método científico na universidade, consiste em uma das estruturas permanentes do pensamento humano, que as pessoas utilizam para lidar com todas as áreas nas quais não são especialistas. Na moderna sociedade de classes, esta forma cotidiana de pensar não recua necessariamente diante dos avanços da ciência e do sistema de ensino. Por quê? O mais competente médico, dado o alto grau de especialização da ciência contemporânea e o caráter multifacetado da realidade, tenderá a restringir seu conhecimento científico à medicina e a usar o senso comum para pensar sobre áreas que lhe são desconhecidas, como a política, a física e a arte. Mesmo que o conhecimento do método científico diminua a dependência do especialista em relação ao senso comum, pois aumenta a rejeição a afirmações absurdas, este indivíduo não domina as teorias das outras áreas e, portanto, não consegue se posicionar nelas de modo essencialmente distinto das pessoas sem formação científica.

Portanto, a sociedade contemporânea formada por especialistas e fundada na divisão do trabalho é também uma sociedade de não especialistas, pois os indivíduos conhecem cientificamente apenas a própria área. Para percebermos bem as decorrências epistemológicas e políticas deste fato, precisamos observar a relação geral entre ciência e senso comum e analisar como ela se configura com singularidades em cada formação social, dependendo de algumas variáveis estruturais e políticas. De modo bastante breve, quase grosseiro, podemos dizer que o senso comum é marcado principalmente por um materialismo espontâneo e mecanicista, pela generalização exagerada dos nexos causais de situações particulares, pelo uso abusivo da intuição como ferramenta de entendimento das experiências e pela superficialidade das suas “teorias” explicativas. Por outro lado, é capaz de incorporar da maneira que lhe é própria, ou seja, sem mudar a sua estrutura, os resultados da ciência e possui grande capacidade de pressionar as instituições científicas por resultados práticos, sendo esta sua principal positividade.

A sociedade baseada na divisão do trabalho acrescenta singulares assimetrias na relação geral já complexa entre os pensamentos comum e científico. Em uma sociedade de classes e de disputas partidárias, as instituições de produção e difusão científica e cultural (incluindo a imprensa, as TVs e as redes sociais), públicas e privadas, tendem a ser hegemonizadas pelos grupos sociais dominantes, que buscam ter a adesão do senso comum aos resultados da ciência em geral, mas envolvem estes resultados com os valores específicos da própria visão de mundo. Assim, por exemplo, teorias científicas sobre economia ou psicologia tendem a ser misturadas com noções não científicas favoráveis ao status quo; de maneira mais acentuada nas ciências sociais, mas relacionadas aos valores, do que nas ciências da natureza ou na matemática, focadas em objetos mais “neutros”. Cria-se, então, um link bastante forte entre difusão científica/cultural, hegemonia ideológica, direção política e senso comum.

Em cada momento histórico, as disputas econômicas, ideológicas e pelo poder estatal afetam necessariamente os aspectos conjunturais da relação entre ciência e senso comum. Se a classe social mais poderosa e seus representantes políticos estiverem em momento progressista, como a burguesia e os liberais durante a Revolução Francesa, a atitude da ciência em relação ao senso comum será menos ideológica e muito mais baseada no “esclarecimento”, como ocorreu com a publicação da Enciclopédia iluminista. Entretanto, em outros momentos, especificidades das classes dominantes, por exemplo, quando procuram destruir os direitos sociais dos trabalhadores e legitimar essa atitude “cientificamente” enviando batalhões de economistas para afirmarem na TV que o bolo precisa primeiro crescer, podem gerar, principalmente se surgirem forças políticas alternativas obscurantistas, como o neofascismo, e a esquerda estiver fragilizada, um alheamento quase total entre discurso científico e pensamento cotidiano em amplos setores da população, gerando descrença na ciência e nas instituições de pesquisa.

Assim, quando forças políticas e universidades de origem conceitual racionalista usam o discurso científico e o prestígio acadêmico para mistificar aspectos decisivos da realidade social em benefício de programas econômicos e políticos excludentes da maioria da população (como a desmontagem dos sistemas públicos de saúde, previdência social e educação), ou seja, quando inoculam para beneficiar as classes proprietárias o vírus do obscurantismo na própria ciência, abrem a possibilidade de que o senso comum popular as rejeite movido por seu materialismo espontâneo, elemento positivo, contudo limitado, pois é capaz de se amalgamar com as teorias mais plausíveis, mas também com as superstições mais absurdas, e comece a buscar outras referências de autoridade discursiva, criando um momento de crise epistemológica e de hegemonia. Nesta conjuntura de instabilidade, pode ter a sorte de encontrar a esquerda defensora da ciência ou o azar de ser convencido pelo irracionalismo neofascista.

Uma trabalhadora norte-americana da região do metal pode, então, conceber as grandes universidades como inacessíveis aos seus filhos e, ao mesmo tempo, perceber que destas instituições partem várias justificativas sistemáticas de cortes de seus benefícios sociais. Então, para enfrentar o negacionismo existente no mundo, claramente fomentado pela extrema direita e presente em parte significativa das classes trabalhadoras e dos setores médios, o que se expressa, por exemplo, nos altos índices de rejeição às vacinas, nas vitórias de candidaturas neofascistas e na ascensão de “teorias” conspiratórias, é necessário defender os valores e padrões da ciência ao mesmo tempo em que se rejeita qualquer possibilidade do seu uso na legitimação de infames medidas neoliberais evidentemente contrárias à inclusão política e ao bem-estar da população. A miserável razão neoliberal preparou as condições objetivas e subjetivas para o espalhamento do irracionalismo neofascista. Para evitarmos o choque com o meteoro precisamos varrer do planeta a deformação da ciência nutrida pelo grande capital e o irracionalismo neofascista.
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quinta-feira, 20 de maio de 2021

ARTE REALISTA| Pfizer

 
Sinopse: Olha a vacinaaaa, vacina fresquinha, vacina novinha, vacina 100% natural, o puro suco do imunizante. (Porta dos Fundos)
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Pfizer (farsa, BRA, 2021), de Rodrigo Van Der Put.
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quarta-feira, 8 de abril de 2020

A intervenção palaciana e o bobo sem côrte: a dialética da cena política


por Milton Pinheiro

A atual conjuntura brasileira é como aquele pássaro que quando mais nos aproximamos ele cria uma nova rota de fuga. A individualização das posições do militar-presidente, na sua lógica bonapartista, bem como o surto de autonomização de setores do governo, tem impactado uma parte do laboratório da pequena política que governa o país nesse momento de grave crise institucional. A letalidade do quadro político passa pela crescente presença da pandemia entre nós; pela forma ultraconservadora, do ponto de vista econômico, do ministro da economia; pelos comentados embates palacianos; pela presença de hordas neofascistas em presença pública do presidente; e por uma resistência virtual importante de segmentos das classes trabalhadoras e da esquerda socialista e uma importante articulação de ampla unidade de ação entre partidos de esquerda, partidos de centro, social-democracia e entidades de trabalhadorxs. Esse amálgama diverso estabeleceu uma imprevisibilidade importante que tende a desvelar a cena política e se apresentar com fortes posições no chão da luta de classes.

O projeto inicial de caos controlado do militar-presidente deu lugar ao previsto movimento da incapacidade política e a ampla divulgação do obscurantismo científico (diante do coronavírus), este último, lançado de forma jactante para animar as hordas neofascistas que transitam nas suas aparições, mas também, nas redes de contágio e na tentativa, cada vez menos bem sucedida, de organizar manifestações públicas.

É perceptível na conjuntura célere que, cada vez mais, Bolsonaro alimenta politicamente a lógica do isolamento político do seu governo como uma aposta/opção para falar diretamente com as hordas neofascistas. Esse movimento arriscado, até para o militar-presidente, comprova fissuras ainda importantes entre as frações da burguesia interna, desinteresse em manter a lógica da democracia formal nos patamares da institucionalidade e uma tentativa imprevisível de se conectar – de forma particular – com o alargamento das balizas da autocracia burguesa como projeto de dominação.

Esse movimento de aposta nas hordas sem limites é um cálculo racional que o bolsonarismo está trabalhando para diminuir as perdas políticas que a crise atual infligiu ao seu projeto. Mas até que ponto as hordas neofascistas encasteladas no aparato de Estado (polícia, forças armadas, segurança privada…) teriam capacidade de agir em articulação com os “soldados da fé” – com os radicais neopentecostais – com a parte racista da pequena burguesia (classe média) que se encontram difusa na sociedade brasileira? Por essa possibilidade de articulação da extrema direita e pela capacidade da esquerda brasileira, juntamente com as organizações da classe trabalhadora de intervir na cena política passa a disputa central do atual estágio da luta de classes no Brasil.

Cresce a informação de uma provável intervenção, dos militares palacianos, na forma política até aqui utilizada por Bolsonaro para exercer o papel de chefe de governo. Informações difusas dão conta que esse grupo, também de extrema direita, não estaria satisfeito com a visão do presidente sobre o vírus, a China, o papel do ministério da saúde, a interlocução com o Congresso Nacional, a falta de controle sobre o que falam seus filhos e o varejo da conduta presidencial. Abriu-se, então, algumas sinalizações: em sendo confirmado esse movimento da tropa palaciana como se comportaria Bolsonaro diante das hordas neofascistas? As tropas do palácio cuidam dos negócios do governo e o presidente continuaria fazendo animação cultural para sua base social? Bolsonaro arriscaria passos radicais diante desse impasse? Ou a Casa Grande da República agiria em articulação com a tropa palaciana para dar racionalidade política, nos termos da democracia formal, ao seu projeto de dominação e avançar sobre o fundo público com maior tranquilidade?

A história da humanidade já comprovou que a burguesia nunca ficou estática na janela da luta de classes. Mesmo no Brasil, quando os militares conformados na lógica do inimigo interno e da conduta entreguista no campo da soberania nacional operaram contra a democracia formal, foi para alargar as balizas da autocracia burguesa. Agindo como burocracia de Estado ou não. A contradição elementar dessa lógica é como se portará o militar-bonapartista na construção do seu projeto. Terá Bolsonaro a necessária base social para efetivar esse domínio? Muitas outras questões estão incidindo sobre essa particularidade da condensação de crises.

O que está em debate, no campo real e concreto, é o confronto pela vida e pelo futuro. A mudança célere na relação de força tem alterado as movimentações no campo da esquerda e das organizações dos trabalhadores. Cresce a constituição de uma ampla articulação em torno da unidade de ação que pode aglutinar as forças de oposição ao projeto bonapartista. Reagir à tentativa de golpe e avançar na campanha do Fora Bolsonaro/Mourão! é a concretização de uma palavra de ordem que pode vencer entre as massas pobres e os trabalhadores. Em um momento de pandemia mundial, quando o Estado capitalista está se mostrando vulnerável, é importante tencionar pela afirmação do que é público e comunal.

Ainda se encontra no campo das possibilidades, nesse momento de fratura da democracia formal, movimentos de fechamento da democracia formal. Os golpistas espreitam a cena política; uma névoa turva ainda impede o desvelamento completo desse cenário. No entanto, é importante também reafirmar que a correlação de forças tem alterado de forma muito positiva, para o campo oposicionista e de esquerda, a contenda política. Está se abrindo um amplo espectro para o cenário da luta de classes, qual será o movimento da classe trabalhadora e das vanguardas socialistas?

A lógica da história, até o presente, nos avisa que nenhuma pandemia possibilitou e/ou realizou a revolução proletária. Pode-se até, a depender das saídas vitoriosas, a ordem do capital entrar em um novo surto de acumulação. Contudo, para aqueles que lutam de frente para a história caberá um papel determinante na luta de classes: superar qualquer possibilidade de conciliação e marchar para confrontar o inimigo. O tempo presente afirma que ele é forte, poderoso, mas, a classe trabalhadora com seus instrumentos de operação política poderá construir um novo patamar da ruptura necessária: o poder popular e a revolução brasileira.
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segunda-feira, 6 de abril de 2020

ARTE REALISTA| Profecia


Sinopse: Sonhei que meu Uno 97 ia quebrar e ele quebrou. Sonhei que o camarão que eu comi na praia ia me dar piriri, acordei já correndo pra privada. Realmente, Deus me deu um dom. (Porta dos Fundos)
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Profecia (farsa, BRA, 2020), de Rodrigo Van Der Put.
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segunda-feira, 30 de março de 2020

A irracionalidade das carreatas da morte e a necessidade de defender uma nova sociabilidade



 Célula de Maringá do PCB-PR

Diante dos primeiros casos confirmados do novo coronavírus no Brasil e das graves consequências que a pandemia está apresentando ao redor do mundo, diversos prefeitos e governadores, seguindo as recomendações das comunidades científicas nacional e internacional, emitiram decretos impondo o isolamento social e a quarentena, restringindo atividades de indústrias, comércios e prestadores de serviço.

Em Maringá, o governo municipal se alinha aos procedimentos dos demais, confrontando os discursos do presidente Jair Bolsonaro. O presidente, com argumentos genocidas, minimiza as características e efeitos já verificados desse vírus e sugere que “o Brasil não pode parar”.

Consideramos corretas as atitudes da administração municipal. Contraposta às trapalhadas do governo federal, ela ganha contornos heroicos, mas não nos deixemos levar: ela apenas institui medidas de isolamento que visam evitar um alastramento catastrófico da epidemia. Apesar das aparências generosas, a administração mantém uma gestão neoliberal e de favorecimentos das elites, ampliando a terceirização dos serviços públicos, precarizando o trabalho dos servidores municipais, fazendo vistas grossas à especulação imobiliária, etc.

De qualquer maneira, está posto que a manutenção da vida dos maringaenses não será a mesma. Comércio fechado e produção reduzida agravam o cenário de uma crise econômica que vem se desenvolvendo mundialmente há uma década, acentuando-se no Brasil nos últimos 5 anos. Políticas públicas de caráter imediato, como a renda mínima, se mostram necessárias, mas não suficientes. Objetivamente, o cenário que se esboça para muitos é a perda de seus empregos ou de seus negócios. Pouquíssimos sairão ilesos economicamente dessa prática de mercado liberal.

Empresários e profissionais autônomos, cada vez mais pressionados pela crise econômica e encorajados pelas declarações do presidente da República, saíram em carreata pelas ruas de Maringá, e em várias outras no Brasil, pedindo o fim dos decretos de isolamento. É preciso conter essa insanidade, mas também compreendê-la. Formados dentro da perspectiva capitalista e neoliberal, que defende a mínima intervenção estatal, naturaliza a exploração dos trabalhadores e entende a prosperidade como conquista individual, esses sujeitos enxergam no retorno das atividades a única saída para a situação econômica calamitosa. A recusa em aceitar as evidências científicas que apontam a validade do isolamento social e da quarentena é um dos reflexos do pensamento neoliberal, pois não querem conceber uma solução para a crise a partir da organização da economia em favor da vida, com políticas direcionadas principalmente aos trabalhadores e pequenos comerciantes, cujas perdas serão muito maiores do que a dos grandes empresários.

Com base nas evidências, não é possível defender racionalmente a saída do isolamento social neste cenário pandêmico. Mas também não é possível ignorar que nossa forma de organização social, se mantida nos moldes atuais, poderá gerar respostas cada vez mais irracionais às contradições e aos limites colocados à nossa existência.

Assim, acreditamos que o debate sobre a planificação da produção e a organização dos trabalhadores para definir esses rumos deve voltar à ordem do dia. Não só para discutirmos sobre o que produzir, em qual quantidade e de que forma, mas também para conhecermos o circuito do dinheiro: Por onde ele circula? Por quais mãos ele passa? A quem ele favorece no mercado de trocas? Conhecendo mais dessa dinâmica, evitamos as respostas intuitivas, marcadas desde cedo em nossa formação pela ideologia liberal.

Se o poder estabelecido se recusa a pautar essa bandeira, é hora do conjunto da população se organizar para tal!

Lutar, criar, poder popular!
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quinta-feira, 26 de março de 2020

Há método na loucura: Bolsonaro e o coronavírus



por Pedro Marin

A frase vem de Hamlet. Na obra, Polônio diz, depois de Hamlet o informar sobre as loucuras indecentes que lê: “Apesar de loucura, revela método. Não quereis sair do vento, príncipe?”. Ao que Hamlet contesta: “Entrar na sepultura?” e Polônio responde: “Realmente, desse modo saíreis do vento”.

Há método na loucura homicida do pronunciamento realizado pelo presidente nesta semana. Não loucura escrita – mas loucura dita. Não pelo príncipe da Dinamarca, mas pelo bobo da corte.

Sustentando em cadeia nacional de rádio e televisão a posição de que a pandemia era uma “gripezinha” ou, no máximo, “um resfriadinho”, o presidente Jair Bolsonaro buscava algumas coisas. Primeiro, emular as posições de seu mestre, Donald Trump.

Segundo, o presidente pretendia – e isto conseguiu – tirar suas bases virtuais do isolamento nas redes sociais ao qual estavam submetidas. Foram vários os relatórios que apontavam que, em meio à crise de pandemia, as milícias virtuais ficaram acuadas. Foi depois do insano pronunciamento que as tropas de sedados quebraram as portas tecnológicas do hospício.

Terceiro, Bolsonaro imaginava que por meio de um grande ato de propaganda, no qual denunciava a irresponsabilidade de governadores que “não se preocupam com a economia”, conseguiria se livrar, daqui alguns meses, quando a economia de fato estará derretida, de suas próprias responsabilidades.

Por fim, o mandatário buscava apoio. Especificamente, de abutres da bolsa – que pretendem continuar negociando os espólios da recentes perdas de seus home-offices – e da pequeno-burguesia, que em seu desespero quanto à semana que vem, é capaz, de uma hora para a outra, de se convencer da loucura presidencial, ainda que saiba que a sua verdadeira demanda – à qual não tem condição de reivindicar por sua natureza vacilante – é a de que o governo os apoie enquanto estiverem fechados. Aos pequenos-burgueses soma-se também uma cadeia de proletários seduzidos no canto de sereia do “empreendedorismo”.

Mas, a despeito do método, a loucura não terá efeito.

Não que as bolsas de ações tenham respondido mal ao pronunciamento. Muito pelo contrário.

Tampouco é o caso de pequenos-comerciantes e “empreendedores” não estarem dispostos a, depois de se convencerem os primeiros de que são burgueses e os segundos de que são pequenos-burgueses, se convencerem também do discurso presidencial quanto ao Covid-19.

Bolsonaro também não é de todo inábil quando pretende se fantasiar de Trump – mas, sem 2 trilhões de dólares disponíveis para injetar na economia, falta a ele os recursos com os quais seu colega faz de seu showzinho particular um espetáculo da Broadway.

Quanto à sua capacidade propagandística e às suas milícias, de fato o presidente tem algum provento. Mas no primeiro caso não se sustentarão quando o povo se enfrentar com a morte, e, no segundo caso, como tudo o que desmancha no ar neste momento, trata-se de um provento puramente virtual, abstrato e anímico.

O caso é que os grandes jogadores da vida sob o capital, ao contrário da pequeno-burguesia, têm consciência de si como classe e, diferentemente dos especuladores médios, sabem que o mundo não é feito de pequenos papéis especulativos. Acima de tudo: sabem que aos pequenos papéis, em meio à crise, têm condições de dar uma grandeza maior de valor – como já revelamos que fazem.

No primeiro aspecto, ao ter consciência de si, descobrem que tudo o que é vivo pode morrer. Quando falam em “defender a vida”, portanto, querem dizer na verdade as suas próprias. Não porque os ricos também se infectam – mas porque os pobres podem se infectar com um vírus muito mais perigoso para seus negócios à medida que seus familiares e amigos morrem com água nos pulmões. Se é certo que a morte de favelados não os atinge na alma – um certo “mestre de aprendizes” deixou perfeitamente claro nessa semana -, também é certo que os pobres, em revolta, podem atingi-los não só em suas casas, mas também em seus bolsos. E o que são esses senhores senão mais bolsos que alma?

No segundo aspecto, trata-se de recordar que nem sempre a burguesia mantém a postura fiscalista e austera quanto ao Estado. Ao contrário; ela o impõe precisamente depois do endividamento do Estado, que a permite também comprá-lo. Não é isso o que o já denunciado Plano Mansueto fará? Por que estariam dispostos a possivelmente ajudar a cavar sua própria cova por pequenos lucros especulativos agora, feitos por espólios da bolsa, se podem comprar a propriedade das empresas em alguns meses? Por que enriquecer um pouco mais com a variação das ações das companhias estaduais se podem, muito em breve, terem as companhias estaduais?! Por que oferecer o corpo à infecção pelos lucros pequenos, se podem lucrar generosamente da ruína dos pequenos e do Estado?

O caos não deve ser subestimado. Ao menos, é certo que os grandes capitalistas não o subestimam. Numa situação caótica, de exceção – até o alucinado presidente a reconhece – procuram tomar o quanto podem as rédeas do destino. O que os diferenciam do presidente é que, enquanto este vê o caos no “desemprego” (por excelência controlável pelos donos de propriedades), os segundos o vê na morte em massa do povo, capaz de catalizar aqueles sentimentos profundamente humanos que eles há muito já perderam.

Há método na loucura. Por isso o presidente desfila confiante. Mas há loucura no método. Por isso não desfilará por muito mais tempo. “Não quereis sair do vento, príncipe?” perguntam. “Entrar na sepultura?”
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quinta-feira, 7 de novembro de 2019

ARTE REALISTA| O Real Resiste


O Real Resiste
Arnaldo Antunes

Autoritarismo não existe
Sectarismo não existe
Xenofobia não existe
Fanatismo não existe
Bruxa, fantasma, bicho papão

O real resiste
É só pesadelo, depois passa
Na fumaça de um rojão
É só ilusão, não, não
Deve ser ilusão, não não
É só ilusão, não, não
Só pode ser ilusão
 
Miliciano não existe
Torturador não existe
Fundamentalista não existe
Terraplanista não existe
Monstro, vampiro, assombração
 
O real resiste
É só pesadelo, depois passa
Múmia zumbi medo depressão
não, não, não, não
não, não, não, não
não, não, não, não
não, não, não, não
 
Trabalho escravo não existe
Desmatamento não existe
Homofobia não existe
Extermínio não existe
Mula sem cabeça, demônio, dragão
 
O real resiste
É só pesadelo, depois passa
Como o estrondo de um trovão
É só ilusão, não, não
Deve ser ilusão, não não
É só ilusão, não, não
Só pode ser ilusão
 
Esquadrão da morte não existe
Ku Klux Klan não existe
Neonazismo não existe
O inferno não existe
Tirania eleita pela multidão
 
O real resiste
É só pesadelo, depois passa
Lobisomem horror opressão
não, não, não, não
não, não, não, não
não, não, não, não
não, não, não, não
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quinta-feira, 5 de setembro de 2019

E Sócrates foi novamente morto…

 
por Lenina Vernucci da Silva

Quando conheci o mito da musa Clio fiquei encantada com a estória. A filha da memória e de Zeus tem o poder de conceder imortalidade aos mortais. Narrar as ações humanas e suas obras, seus feitos e desfeitos. Para o bem e para o mal, a escrita deixa as marcas do tempo, mesmo no não tempo que é o tempo dos mitos. Registrar é conceder o dom dos deuses aos meros mortais. A morte, algo desconhecido pelos mitos e muito conhecido por nós, seres de vida curta, é menos assustadora quando se sabe que há algo além dela. A História é a vida eterna e por isso é a ciência por excelência.

A ciência. Essa criação tão humana e tão fundamental, nem sempre aceita por sua capacidade desmistificadora do real. Aprender é um ato difícil. São as contradições entre nossas crenças e supostas verdades ditas, ouvidas e vivenciadas em anos de vida, mas que não foram sistematizadas por nenhum conhecimento científico. E quando o senso comum e a ciência se encontram, o choque é inevitável. Aprender não é diversão, é suor, é sofrimento, é sair do conforto. É, também, um universo novo de possibilidades, de saberes, sabores e formulações. Um mundo se descobre, se recobre, se encontra e desencontra, assustador e inovador. Diferente da finitude da vida e a certeza da morte, o conhecimento é eterno.

Quem passa por isso? Todos aqueles dispostos a duvidar, perguntar, se aventurar. É para todos, ao mesmo tempo que é para poucos. Oportunidade e vontade são necessários. Conhecer e aprender é exercício de alteridade e empatia. Estranhamento, desnaturalização. Não há aprendizado na certeza. O aprendiz não é livre, não tem escolhas, como poderia? Só se escolhe o que se conhece. Se não há conhecimento, não há liberdade possível, não há como escolher sem saber o que se tem para ser escolhido, sem informações necessárias para entender o que se quer. “Quem não sabe o que procura, não reconhece o que acha”, já dizia alguém…

O papel da escola é esse: a transmissão do saber acumulado ao longo da existência da humanidade. Esse exercício é sofrido. Questionar nossas certezas, nos colocar em uma situação de distanciamento da realidade que se mostra para a gente como algo óbvio, ou ainda, tirar os óculos do dia a dia para, em troca, colocar as lentes do saber, da ciência, é uma tarefa ingrata. A realidade parecia tão simples. Agora é complexa.

“Se a realidade das coisas correspondesse a sua essência qualquer ciência seria supérflua”. Já dizia Marx, cujo conhecimento de uma vida intelectual é jogada ao vento como ideológico – conceito, aliás, estudado pelo filósofo – por pessoas que sequer leram seus textos. É a violência da ignorância posta como redenção.

Marx não foi o único, nem será o último filósofo e pensador crítico a ser perseguido. Muito antes dele, um grande mestre foi morto por suas ideias. Sócrates tinha um único compromisso: dizer a verdade e somente a verdade. Ele não estava preocupado com a beleza das palavras usadas descompromissadamente por sofistas para manipular e usadas para dominar. Essa é sua crítica aos que diziam muito saber. Falar bonito, falar bem não implica em falar a verdade. Como filósofo, atuando em uma das mais antigas e fundamentais áreas de saber, seu compromisso absoluto com seu interlocutor é ser entendido para provocar reflexões e “sair da caverna”. Ora, qual seria a função do professor se não justamente essa? O professor, diferentemente do sofista, não busca manipular o saber falando bonito, mas usa inúmeras didáticas para levar a verdade, ou o mais próximo dela. Ou, no mínimo, provocar por sua busca. A alegoria da caverna nos mostra o sofrimento causado pelo saber. A metáfora da luz é clara. O impacto, o incômodo, a dificuldade em abrir os olhos. Para depois ver um mundo livre, colorido, real.

Os defensores do tragicômico projeto “Escola sem partido” e movimentos conservadores supostamente defensores da “família, moral e bons costumes” alegam que o problema é não “trazer os dois lados” dos problemas apresentados. A verdade é que nem sempre há lados: a terra é redonda. Não há outro lado para mostrar! A teoria da evolução é consenso, e criacionismo não é ciência. Simples assim. A violência contra a mulher, a desigualdade racial, a desigualdade de classe, as injustiças sociais, são fatos. Desigualdade de gênero é fato. Não há ideologia de gênero, há o estudo científico das relações entre homens e mulheres, cujos papeis sociais culminam na dominação do segundo pelo primeiro. Os estudos de gênero são reconhecidos por todo o meio acadêmico e suas pesquisas têm auxiliado em políticas públicas de combate à violência de gênero, visando diminuir ou inibir os abismos sociais impostos pelo sexo. O governador retirar material das escolas alegando que eles estão errados por fazer “apologia à ideologia de gênero” da qual ele diz não concordar. É tão absurdo que fica difícil comentar seriamente!

A ciência trabalha com fatos, com critérios rigorosos de pesquisa, de anos observação, levantamento, fontes, debates. O consenso científico é o que deve ser transmitido. Se ele deve ser questionado? Óbvio. Afinal a ciência é a dúvida! Mas uma verdade que possa ser desvendada em outras possibilidades não é menos verdade.

Impedir o pensamento crítico, transformar o contraditório em inimigo e os pensadores contra-hegemônicos em ideólogos é assassinar nossa consciência. Retira-se a autoridade do pensador e do pensamento.

A escola é a caverna questionada. Assim como mataram o único que saiu da caverna, agora querem matar o professor. Platão não fez a metáfora à toa, ele denunciou o que virou a democracia ateniense, que, afogada na corrupção e nas vaidades dos “homens bons”, matou aquele que teve a audácia de questionar. Milênios depois, nossa democracia, também corrupta, mata novamente Sócrates. Dessa vez, não sei se ele retornará naqueles que buscam a verdade…
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segunda-feira, 8 de julho de 2019

ARTE REALISTA| Baubúrdia


Sinopse: O Ministro da Educação nem imagina que aquela farinha jogada nos calouros das federais é a famosa Cocaína 99 da boca do Fallet, que transforma qualquer aluno em travesti. (Porta dos Fundos)
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Balbúrdia (farsa,
BRA, 2019), de Rodrigo van der Put.
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quinta-feira, 13 de junho de 2019

Olavo, o pós-estruturalismo e o Pequeno Príncipe


 
por Mauro Iasi
Blog da Boitempo

Tu deviens responsable pour toujours
de ce que tu as apprivoisé.
(Saint-Exupéry)

Quando nos vemos diante da catástrofe que nos assola, começamos a perceber alguns personagens de forma oportunista tentando abandonar o barco e se desvencilhar de declarações e laços que os ligam à nau desgovernada. É compreensível e esperado. No entanto, nossa responsabilidade é militar pelo não esquecimento.

Trata-se, de fato, de atribuir a quem de direito cabe a responsabilidade por um desclassificado, tosco e desequilibrado miliciano e sua família mafiosa ter chegado ao posto máximo da República. Em um conhecido poema, Verhoer des Guten, cuja declamação me custou um processo, Brecht fala de um personagem que, diante da catástrofe do nazismo, tenta se isentar de culpa afirmando ser um homem bom, que apenas emitiu sua opinião, que é bom amigo. A pergunta central do poema pode ser encontrada no momento em que o homem bom afirma que não age movido por seus próprios interesses, ao que o poeta pergunta: que interesses te movem, então?

Penso que esta a pergunta central seja esta. Afinal, aquilo que aparece na boca e nas ações de significativos segmentos de massa representa interesses bem definidos – mais precisamente, interesses do grande capital monopolista em suas diversas manifestações (financeira, industrial, comercial, agrária, etc.). Muito já falamos disso. Agora, contudo, interessa-me um outro aspecto, aquele ligado à própria manipulação ideológica que leva os assim chamados “homens bons” a se tornarem o suporte da maldade encarnada.

Assim como Gramsci, estou convencido de que existe um núcleo saudável no senso comum. Ninguém aceitaria ser suporte de ações tais como aquelas que estão levando à devastação da política ambiental, à ampliação da violência contra a mulher, à política genocida disfarçada de segurança pública, ao ataque aos direitos trabalhistas ou à destruição da previdência em nome dos interesses do capital financeiro… Ao menos não em seu estado puro, isto é, uma vez esclarecido seu real conteúdo reacionário e anti-humano, assim como as consequências desastrosas que acarretam para as pessoas e o país. Por isso, o conteúdo substantivo dos ataques necessita ser embrulhado por uma grossa camada ideológica que os apresente ocultando suas determinações, justificando sua suposta necessidade inquestionável, invertendo seus atributos, naturalizando suas raízes sociais e históricas, e, por fim, conferindo um verniz universal ao caráter particular dos interesses que os protagonizam.

Esse modus operandi da ideologia transparece com clareza no tratamento dado ao episódio de violência em uma escola do Estado de São Paulo, em que adolescentes atacaram uma professora arremessando livros e carteiras contra ela. Demonstrando sua preocupação, o secretário de educação afirmou que todos devem condenar esse ato injustificável de violência e que o governo já estaria buscando formas de endurecer as punições contra agressores e familiares para responsabilizá-los por atos dessa natureza. Ora, embrulhado dessa forma, com pitadas de evidências do tipo “não se pode esperar que os professores deem conta disto sozinhos”, que “a escola e os pais têm que agir conjuntamente para garantir que isso não aconteça”, fica de fora a clara responsabilidade dos governos do PSDB que comandam o Estado de São Paulo há 25 anos e que têm tratado os professores como lixo – inclusive, sempre que podem, batendo neles com extrema crueldade e violência, sucateando as condições de trabalho, impondo superlotação de salas, diminuído pessoal de segurança escolar e manutenção, desvalorizando na prática o trabalho docente de forma permanente e decisiva em nome da sacrossanta lei de responsabilidade fiscal, dos superávits primários, do saneamento financeiro e da capacidade de pagamento da dívida. Ao final, segundo esse discurso, os responsáveis por essa “injustificada” violência seriam os jovens e suas famílias. Nada ameniza a violência praticada contra a professora, mas, desta forma, acaba por se ocultar nas tramas da ideologia, as determinações mais profundas que se convertem nas margens que oprimem e preparam as novas explosões de violência no rio das escolas.

Creio que podemos pensar a partir deste registro nosso drama atual. Quando pensamos no inepto limitado que comanda a República e seu circo de ministros que parecem retirados de uma peça de Pirandello (que aliás, doou sua medalha do prêmio Nobel de Literatura para a campanha de ajuda ao fascismo na Itália), logo nos vem à mente a malta de pessoas fazendo arminhas com as mãos e digitando o número da besta na urna eletrônica. Pensamos em organizações fartamente financiadas pela extrema direita conservadora mundial, como o MBL, o Vem Pra Rua e outras, ou, ainda, o esquema milionário para espalhar notícias falsas coordenado pelo mercenário Steve Bannon e o astrólogo caçador de patos que vive nos EUA.

É fato que todos eles têm sua responsabilidade, inclusive aqueles que acreditavam que estavam apenas evitando que o petismo bolivariano voltasse ao governo. Há, no entanto, um responsável que pode nem sequer ter votado no esposo da sobrinha do miliciano preso em Brasília.

A chave para encontrá-lo reside em uma constatação. O senso comum não estaria, por seus próprios mecanismos e características, apto a aceitar como válidas essa montanha de bobagens e falsificações grosseiras. Aquilo que se expressa no senso comum, já dizia Gramsci, resulta em larga medida do trabalho intelectual. Ou, dito de outra forma, aquilo que aparece em ideológicas arbitrárias, bizarras e ocasionais, nasceram de ideologias orgânicas e aparecem na consciência imediata das massas “sem benefício do inventário”.

No senso comum aparecem caoticamente mescladas, por um lado, crenças na virgindade de nossa senhora, dúvidas sobre o formato plano ou arredondado da Terra, tramas conspiratórias sobre a suposta imposição perversa de vacinar as crianças contra o sarampo ou sobre as mensagens ocultas nos livros didáticos que podem levar seu filho a virar gay ou, pior, comunista, e por outro, afirmações sobre o nazismo ser de direita, sobre o fracasso das experiências socialistas, sobre o quanto foi salvador o golpe de 1964 e humanistas seus torturadores, as virtudes do mercado e o rombo na previdência.

Tudo isso só pôde habitar assim o senso comum sem maiores problemas depois de um longo e paciente trabalho em desacreditar as ciências, a noção de verdade, a história. Ora, quem militou neste front pode não ser um bolsonarista que acredita que a terra é plana e que Olavo de Carvalho é filósofo, mas não deixa de ter contribuído de forma decisiva para semear o terreno no qual o obscurantismo, e seu plano de batalha, pudessem dar frutos.

Hegel, em seu estudo sobre a História da Filosofia, afirma que há dois antagonistas à filosofia e à busca da verdade. O mais antigo deles é a religiosidade, que ao declarar a incapacidade da razão e do pensamento de atingir a verdade, propõe que o caminho para a revelação é a renúncia da razão, humilhando-se diante da autoridade da fé (Hegel, Introdução à História da Filosofia, São Paulo: Hemus, 1983, p.17). O outro antagonista seria, surpreendentemente, a própria razão, que, combatendo a religiosidade e suas verdades reveladas ao afirmar que só a convicção de suas próprias evidências poderia levar o ser humano a reconhecer algo como verdade, conclui que “de maneira tão prodigiosa se inverteu a afirmação do direito da razão, por ter este como resultado, que a razão não podia conhecer nada como verdadeiro” (idem, p. 18).

Este contraste entre “opinião e verdade” que o filósofo alemão via como característico de tempos de crise e transição, voltou em nossas dias, por exemplo nas brilhantes e provocativas contribuições de vários autores, como Foucault que, seguindo as pistas de Nietzsche (que um dia se perguntou: “Pretendente da Verdade – tu? Trepado sobre pontes mentirosas de palavras, sobre arco-íris de mentiras”), afirmará que se trata de registros de verdade, discursos, que não estando o conhecimento inscrito de nenhuma forma na natureza humana, conclui que o “conhecimento foi, portanto, inventado” (La verdade y las formas jurídicas).

A ofensiva decisiva se deu, no entanto, com o pensamento pós-moderno, sedutoramente apresentado como um bálsamo sagrado e redentor contra as ortodoxias e conhecimentos envelhecidos, contra a razão moderna e suas certezas que conduziram à catástrofe contemporânea e as barbaridades, mas fundamentalmente contra o marxismo e sua pretensão de mudar o mundo.

O centro da pregação pós-moderna está na afirmação de que a ciência não passaria de uma entre outras narrativas ou discursos que não têm legalidade absoluta para se impor sobre outros jogos de palavras (religião, a arte, a economia, etc.). Como fica evidente na obra de Jean-François Lyotard, a pós-modernidade é a mais radical crítica à razão moderna e de suas chamadas “metanarrativas” – isto é, da pretensão de articular, em um todo compreensível, linhas de desenvolvimento seja histórico, econômico ou político, que na realidade não são mais que acontecimentos em si mesmo isolados e aleatórios, inseridos, como diria Foucault, à força no discurso. Como não se trata de compreender os fenômenos por suas determinações e sua história, resta a genial intuição, a particularidade do olhar, a narrativa, a percepção individual, a sensação emocional.

Extremamente sedutora na forma, a pós-modernidade é filha do irracionalismo e mãe da barbárie. Como toda genitora, fica incomodada diante da cria que não sai exatamente como desejada. Esperava um mundo livre das metanarrativas, expressão do poder sobre os corpos e da liberdade, mas se vê diante da produção industrial da mentira, do poder em seu estado puro – em suma: não da intuição genial liberta das amarras das normas acadêmicas, mas da burrice em sua forma exuberante. Deviam ter ouvido as palavras proféticas de Adorno e Horkheimer, alertando que a terra totalmente esclarecida resplandeceria como uma calamidade triunfal.

Os mitos pós-modernos se fizeram acompanhar de noções apresadas como a sociedade pós-industrial, o pós-capitalismo, o fim da centralidade do trabalho, a morte do sujeito, o fim das classes, mas a somatória de toda a criativa crítica-crítica desagua na genial antecipação de Hegel, a peremptória a afirmação da razão irracional: não se pode mais afirmar nada como verdadeiro. Não por acaso, a religiosidade, irmã gêmea da razão antagonista da verdade, cobra seu legado de obscurantismo para se afirmar novamente como caminho em meio às mentiras dos homens para se chegar à revelação do verdadeiro conhecimento.

É somente em um mundo desses que Olavo tem seu espaço, imerso no jogo aleatório de palavras, fatos e mentiras, despautérios e destemperos. Mas, não percamos tempo analisando o personagem menor – o brilhante texto de Christian Dunker aqui no Blog da Boitempo já deu conta disso (e parece de fato ter despertado a covardia do dito cujo com ele).

Em algum departamento de algum curso de alguma universidade, pessoas que se pensam civilizadas, com seus blazers de camurça e reforços de couro nos cotovelos, ou vestidos despojados acompanhados de colares eloquentes que lembram alguma arte tribal, ficarão indignadas com certas ilações.

Entretanto, em um asteroide distante com três baobás, Saint-Exupéry sentencia: tu és eternamente responsável pelo que cativas. Ainda que sejam… raposas ou fascistas.
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segunda-feira, 27 de maio de 2019

O ataque da ignorância contra a razão: a defesa da universidade pública e a conjuntura

 
por Mauro Iasi

No último dia 15 de maio vimos uma Greve Geral da Educação, que mobilizou milhares de estudantes, professores e funcionários das Universidades Públicas, dos Institutos Federais, da educação básica e até de instituições privadas de ensino. Tal mobilização se deu em resposta aos cortes nas verbas de custeio das instituições de ensino, que o ministro (inimigo) da Educação eufemisticamente chama de contingenciamento. Para acrescentar um toque de perversidade o presidente miliciano chama os manifestantes de “idiotas úteis”, manipulados por “militantes”.

O principal argumento para os cortes encontra-se na afirmação de que a economia não cresceu conforme o previsto, sendo, portanto, necessárias adequações. O ministro Abraham Weintraub, em depoimento no Congresso, acrescentou que tal previsão teria vindo do governo Dilma/Temer, procurando se isentar da responsabilidade, e ocultando propositalmente que o orçamento em vigor é na verdade do usurpador Temer (apoiado histericamente pelas forças políticas que agora governam e que prometeram o Éden do crescimento com o afastamento da presidente eleita em 2014).

O fato é que as universidades públicas vêm sendo “contingenciadas” em seus recursos há muito tempo. O Fórum de Pró-Reitores de Planejamento e Administração das Instituições Federais de Ensino Superior já alertava em 2017 que estávamos vivendo um agravamento da situação orçamentária nas universitárias, pelo crescimento do número de alunos ao mesmo tempo que encolhiam os recursos. Em 2017, o valor em reais por aluno era 42% menor do que o de 2011, passando de R$ 2496,77 para R$1757,13 nesse período. Neste quadro, a ANDIFES cobrava uma correção nas verbas que, além de não vir, agora foram reduzidas.

No entanto, trata-se de algo muito maior que o mero equilíbrio orçamentário. Trata-se de um ataque contra a concepção de universidade e de ensino público. É preciso, na lógica do governo miliciano, desqualificar a universidade apresentando-a como um lugar improdutivo e desnecessário de desperdício de recursos e promotor de “balbúrdias” e orgias. Além do “saneamento” nas contas do Estado promovido pelo guru do ultraliberalismo, o ministro Paulo Guedes, e o claro favorecimento à lógica privatista da educação, defendida por sua irmã, Elizabeth Guedes (vice presidente da Associação Nacional das Universidades Privadas), as universidades estão na mira do rancor governista por motivos políticos e ideológicos.

A tese estapafúrdia propagada pelo astrólogo do apocalipse sobre a existência de um suposto “marxismo cultural” que teria dominado todo o sistema educacional, os meios de comunicação e as forças armadas, encontra nas universidades um ponto central. Essas instituições teriam se tornado o centro da formação de militantes e da lavagem cerebral da juventude para destruir os valores fundamentais da sociedade ocidental e da cristandade. Os verdadeiros e valorosos pensadores conservadores e direitistas teriam sido perseguidos e hostilizados no ambiente acadêmico pela ofensiva deste mítico “marxismo cultural”.

É evidente que há uma relação de determinação entre esses dois aspectos, de maneira que os cortes de gastos públicos para manter os sagrados pagamentos dos juros da dívida e a sangria de recursos para o capital financeiro constituem o essencial, ao passo que o ataque ideológico serve de legitimação para tanto. Entretanto, acreditamos que, nas condições do atual desgoverno, o ataque às universidades e à educação é muito mais que uma mera cortina de fumaça.

As classes dominantes brasileiras precisam operar um ataque brutal aos trabalhadores e a maioria da população para garantir as condições de valorização do capital nas condições atuais. Isto implica a reversão de direitos e garantias que cumpriram um papel na reprodução social em períodos passados e agora precisam ser desmontados. O simples corte, no entanto, provocaria uma reação muito grande, de forma que operasse em dois planos: no sucateamento paulatino que vai inviabilizando as instituições de ensino e sua desmoralização.

O segundo plano, a desmoralização (não só do ensino, mas de tudo que é público) obedece, também, à lógica de blocar a base social de sustentação do desgoverno, mobilizando-a contra inimigos “imaginários” enquanto servem de fato para implementar os verdadeiros interesses dos reais inimigos da maioria da população e da classe trabalhadora.

Antes de tudo, é necessário afirmar que a universidade no Brasil nunca foi hegemonizada por nenhum marxismo (cultural ou qualquer outro). A necessária defesa da universidade pública contra seu desmonte não pode obscurecer o fato de que essas instituições são e sempre foram e eminentemente conservadoras na forma e no conteúdo. Mesmo com a saudável democratização do espaço universitário com a ampliação do acesso de camadas populares e segmentos para os quais este espaço era praticamente vetado (como pobres, negros, indígenas, camponeses, etc.), a vida acadêmica prima pelo elitismo, pela forma meritocrática ou quase aristocrática, pela seleção de currículos e saberes que respondem muito mais às necessidades da ordem burguesa e a reprodução do capital do que às demandas reais da maior da população.

A UFRJ, só para dar um exemplo, fica de frente para uma das maiores favelas do Brasil, o Complexo da Maré, à qual é ligada por uma ponte que foi batizada de “Ponte do Saber”, que é irônica e simbolicamente de mão única (saindo da universidade para a favela). Há muito tempo os interesses das grandes corporações lotearam os espaços universitários pela porta das parcerias, fundações e outros meios, capturando laboratórios, pesquisadores e estruturas para os colocarem a serviço das pautas e dos interesses empresariais.

Evidente que há honrosas exceções nas diferentes dimensões do ensino, da pesquisa e da extensão que buscam reflexões críticas, saberes e práticas voltadas às necessidades da classe trabalhadora e à compreensão de nossa sociedade e do mundo contemporâneo, a formação profissional de qualidade e à produção acadêmica de excelência. Mas todos concordarão que seria absurdo afirmar que essa vertente é determinante no mundo universitário – pelo contrário, sobrevive subordinada, como poucos recursos, preterida na distribuição de verbas e recursos materiais, bolsas, assistência estudantil, etc.

Manifestam-se na instituição universidade as mesmas contradições que marcam a carne da sociedade brasileira: as desigualdades entre homens e mulheres, brancos e negros, cidade e campo, ricos e pobres, assim como outras que poderíamos enumerar à exaustão.

Ao defender a universidade pública, é necessário todo o cuidado para não idealizarmos esta instituição transformando-a em algo que ela não é. Ela é um espaço de conflito e de contradições, mas também é o espaço de onde vem 95% de todas as pesquisas científicas em nosso país, a maioria absoluta das teses e dissertações defendidas, onde se realizam trabalhos de extensão de grande significado e onde se formam profissionais das mais diferentes áreas de atuação. No entanto, sabemos que o campo das pesquisas e da formação profissional está longe de ser neutro do ponto de vista dos interesses de classe que dividem nossa sociedade.

O ataque à universidade é parte da pauta do obscurantismo reinante e serve de coesionador da base retrograda que deu a vitória eleitoral ao presidente miliciano. Fazem parte dessa frente de batalha a desqualificação da filosofia e da sociologia, a crítica aos intelectuais e artistas, entre outras iniciativas obscurantistas como nas pastas que tratam da família, dos povos indígenas, do meio ambiente ou da política internacional. Mas contra quem é necessário coesionar essa base?

Temos que estar atentos para um deslocamento importante. Evidente que é contra a esquerda, os ativistas, o “marxismo cultural”, mas há uma outra disputa em curso – esta entre os segmentos que compõem o governo. Claramente Bolsonaro não era a primeira alternativa da ordem burguesa e do grande capital monopolista. Parece evidente que ele não estava (e ainda não está) preparado para governar. Acrescente a isso o fato de que a personalidade do presidente é fonte de constantes instabilidades. Não creio que se trate de uma disputa, como se tem desenhado, entre duas alas: a “olavista” e a militar. Nos parece mais preciso descrever o governo como composto por três segmentos: o de sustentação do presidente (que inclui os seguidores de Olavo de Carvalho, o fundamentalismo religioso e a estrutura miliciana que envolve sua família), os militares (que não são, como o presidente gostaria, sua base ou seu grupo de pertencimento) e os ultraliberais bancados pelo “mercado”.

A convivência não deve ser fácil. Os militares se incomodam com o fato de que deram aval a algo que de fato não controlam e que é fonte inesgotável de constrangimento e vergonha alheia. A área chamada técnica tem lá seus problemas pois pilota um programa de “reformas” que dificilmente produzirá os efeitos esperados na retomada da economia e do emprego e depende de uma sustentação política que dá claras mostras de incompetência para administrar a base do próprio governo. Moro, que gostaria de se incluir nesta área “técnica” é fonte de mais instabilidade, pois é odiado pelo Congresso que parece estar disposto a derrota-lo em tudo. O presidente não tem liderança e capacidade para unificar tudo isso que ele julgava ser homogêneo, mas que a cada dia se mostra não ser. O antipetismo, tão útil para ganhar as eleições, agora não serve para nada.

Pelo menos até agora, o presidente parece pensar que pode coesionar esses segmentos na medida em que fale diretamente com a base social por cima das mediações políticas que o Estado burguês lhe oferece. Para tanto, precisa manter mais um clima de campanha do que de governo e acaba acirrando a crise ao invés de controlá-la. A ofensiva contra a universidade faz parte deste script que pode incendiar as condições de governabilidade e agregar o tempero das ruas que faltava para fritar seu mandato.

O documento que o próprio presidente divulga, em que se diz obstaculizado pela “classe política” e por interesses que controlam o Estado, é menos uma tática política pensada e mais uma justificativa que tenta encobrir sua própria incapacidade. Isso, no entanto, não impede que produza o resultado esperado em sua base de apoio. A grande dúvida do momento é se a operação em curso para substituir o incomodo mandatário poderá ser feita sem grandes custos políticos e sem abrir brecha para uma oposição de esquerda ou centro esquerda que possa criar problemas para a agenda de reformas do capital. Parece claro que a direita quer se livrar de Bolsonaro para realizar sua agenda, mas como reagirá a estrema direita e sua base fanática?

Poderá o presidente destapar a panela do descontrole e movimentar o fanatismo em sua defesa? Mas, desta forma não romperá definitivamente com os segmentos substantivos de seu governo (militares, representantes do sagrado mercado e base parlamentar) para quem a estabilidade e a garantia das reformas é a prioridade estratégica? Haveria espaço para um governo bonapartista que fosse capaz de se impor contra o Estado sem destruir a si mesmo? Os indícios apontam para mais um blefe. Está se formando um consenso pelo seu afastamento que pode ser selado pela linha da investigação que o associa às irregularidades no mandato de seu filho eleito senador e, por esta via, às supostas vinculações com as milícias e, quem sabe, ao assassinato de Marielle. Ao que parece, ele não articula mais uma maneira de ficar, mas uma justificativa de por que deve sair.
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