quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

O paraíso perdido do “marxismo ocidental”


por István Mészáros

I
 
A principal razão pela qual Merleau-Ponty idealiza História e consciência de classe [1923] de Lukács em seu As aventuras da dialética [1955] como a corporificação clássica do “marxismo ocidental” (em contraposição ao “marxismo do Pravda”) é o tratamento que o filósofo húngaro confere à problemática hegeliana do sujeito-objeto idêntico.
 
Para seu crédito, Merleau-Ponty está pronto a admitir que sua reconstrução do significado de Lukács é feita “muito livremente ... para avaliar o comunismo de hoje, para perceber ao que ele renunciou e ao que ele se resignou”[1]. Em consonância com esta aspiração, a tendência geral de As aventuras da dialética é a legitimação teórica do extremo relativismo. Esta é a razão de ter superado até mesmo seu ídolo intelectual, Max Weber, dizendo que este “grande intelecto”[2] “não persegue a relativização do relativismo até os seus limites[3]. Consequentemente, Merleau-Ponty procura uma retificação adequada de Weber e anuncia que a encontrou no jovem Lukács. Pois, na visão de Merleau-Ponty, o mérito exemplar da posição assumida pelo filósofo húngaro em História e consciência de classe deve ser reconhecido com base no alegado fato segundo o qual
ele não reprova Weber por ter sido muito relativista, mas antes por não ter sido suficientemente relativista e por não ter ido tão longe quanto “relativizar as noções de sujeito e objeto”. Pois, quando isto é feito, obtém-se um tipo de totalidade.[4]
Merleau-Ponty necessita da “relativização do relativismo até os seus limites” por duas razões fortemente interligadas.
 
Primeira, para ser capaz de relativizar de tal modo o significado do que deveria ser ou não considerado progressista no campo da ação sociopolítica a fim de que pudesse reverter completamente sua rejeição anterior dos “compromissos com a opressão colonial e social”[5]. Assim, o novo relativismo fornece a Merleau-Ponty uma desculpa para condenar o que ele, agora, rotula de “fracasso moralizante” absoluto[6] dos militantes anticolonialistas que disputam e lutam pelo direito de autodeterminação nos territórios coloniais franceses ainda remanescentes. Na sua nova posição, Merleau-Ponty os castiga com base no fato de “eles não aceitarem qualquer compromisso com a política colonial”[7]. Melancolicamente, neste primeiro sentido, a “relativização do relativismo até os seus limites” é empregada por Merleau-Ponty para glorificar a política colonial francesa – e fazê-lo na época da guerra da Argélia e do retorno ao poder de De Gaulle – como um “Plano Marshall para a África”[8]. E ele conclui sua autoidentificação apologética com os exploradores e opressores proclamando que “não mais podemos dizer que o sistema foi feito para a exploração; não há mais, como se usava dizer, qualquer ‘exploração colonial’”[9].
 
A segunda razão pela qual as virtudes do relativismo extremo são cantadas pelo filósofo francês diz respeito à natureza da própria estrutura teórica na qual pode ser realizada a reversão completa da postura política prática antes genuinamente advogada pelo intelectual radical Merleau-Ponty. Apenas alguns anos antes de escrever As aventuras da dialética, o fenomenólogo “marxizante” condenou duramente aqueles antigos marxistas americanos que, em sua visão, aderiram à “liga da esperança abandonada”. Ele os censura por se terem “livrado de todo tipo de crítica marxista, todo o tipo de índole radical. Os fatos da exploração através do mundo representavam para eles apenas problemas isolados que devem ser examinados e solucionados um a um. Eles não possuem mais quaisquer ideias políticas”[10]. E o radical Merleau-Ponty – na época em que escreveu o artigo citado, ainda um camarada de armas de Sartre – resume assim sua posição contra os membros da “liga da esperança abandonada”:
tudo considerado, o reconhecimento do homem pelo homem e da sociedade sem classes é menos vago, como princípios de uma política mundial, do que a prosperidade americana, e a missão histórica do proletariado é em última análise uma ideia mais precisa do que a missão histórica dos Estados Unidos.[11]
Dois anos e meio depois da publicação de As aventuras da dialética, a “filosofia da história marxista” é sumariamente rejeitada por Merleau-Ponty, que agora afirma que “a própria ideia de um poder proletário se tornou problemática”[12].
 
Esta mudança é preparada teoricamente pela interpretação “muito livre” que relativiza não apenas o sujeito e o objeto – nos termos os mais gerais, com o propósito confesso de “obter algum tipo de totalidade” –, mas especificamente a relação da filosofia com a base material da vida social. Assim, Merleau-Ponty esvazia a estrutura teórica marxiana de seu conteúdo estabelecendo – não por uma análise construída por evidências históricas e textuais, mas por meio de um decreto completamente arbitrário – uma oposição, que depois virou moda, entre o jovem Marx “filosófico” e o criador do socialismo científico. Como resultado dessa linha de abordagem, o assim denominado “marxismo ocidental” – a “relativização do relativismo até seus limites” na filosofia – é inventado por Merleau-Ponty para, com sua ajuda, minar radicalmente não apenas o marxismo dos seguidores de Marx, mas a própria estrutura conceitual de Marx. Caracterizado como uma espécie de marxismo “antes da queda”, o idealizado marxismo ocidental postula-se como representante do antídoto – algo mítico – não apenas aos “dogmáticos Pravda-marxistas” mas, muito mais significativamente, ao próprio Marx historicamente conhecido.
 
É para o estabelecimento desse objetivo teórico dúbio que se faz necessária a reconstrução “muito livre” da linha de argumentação de Lukács em História e consciência de classe. Ao final – totalmente relativizado –, o marxismo aprovado por Merleau-Ponty não é outro senão
o do pré-1850. Depois disso vem o socialismo “científico”, e o que é dado à ciência é retirado da filosofia. ... Nesse período posterior, portanto, quando Marx reafirma sua lealdade a Hegel, isto não deveria ser mal compreendido, porque o que ele procura em Hegel não é mais uma inspiração filosófica; antes, é o racionalismo, para ser empregado para o benefício da “matéria” e “taxas ou estimativas de produção”, que são consideradas uma ordem em si mesmas, um poder externo e completamente positivo. Não é mais uma questão de salvar Hegel da abstração, de criar a dialética dando-a em confiança ao próprio movimento do seu conteúdo, sem qualquer postulado idealista: é muito mais uma questão de anexar a lógica de Hegel à economia .... O conflito entre o “marxismo ocidental” e o leninismo já está fundado em Marx como um conflito entre o pensamento dialético e o naturalismo, e a ortodoxia leninista eliminou a tentativa de Lukács assim como o próprio Marx eliminou seu próprio primeiro período “filosófico”.[13]
Naturalmente, a periodização arbitrária de Merleau-Ponty enfrenta dificuldades desde o primeiro momento da sua formulação. Pois o filósofo francês, depois de declarar que o comentado Marx “filosófico” é “aquele pré-1850”, é imediatamente forçado a recuar o relógio por pelo menos cinco anos até o “jovem filosófico” Marx. Nesse sentido, Merleau-Ponty afirma na próxima linha de suas As aventuras da dialética, sem se preocupar em solucionar a contradição nessa periodização, que “A ideologia alemã já falava em destruir a filosofia ao invés de realizá-la”[14]. Desse modo, nem sequer ao Marx pré-1850 é permitido juntar-se às exaltadas fileiras do “marxismo ocidental”. Tal status é atribuído apenas a um Marx que nunca existiu.
 
Como podemos ver, então, a reconstrução relativista de História e consciência de classe, em As aventuras da dialética, serve a um propósito ideológico muito preciso e extremamente problemático. Em termos pessoais, melancolicamente, marca um estágio importante no curso do desenvolvimento político e intelectual de Merleau-Ponty desde a sua sarcástica condenação da “liga da esperança abandonada” até a sua identificação sem reservas com as opiniões ideológicas conservadoras dela própria[15].
 
II
 
Com certeza a celebrada obra de Lukács absolutamente nada tem a ver com as intenções ideológicas antimarxistas de Merleau-Ponty. Nem ninguém poderia identificar no autor de História e consciência de classe o ancestral intelectual daqueles que contrapuseram o jovem Marx “filosófico” ao pensador “economista científico” que veio a seguir[16].Pelo contrário, é completamente justificável que Lukács sublinhe no seu Prefácio à edição de 1967 de História e consciência de classe que
eu incluí os primeiros trabalhos de Marx no quadro global de sua visão de mundo. Eu o fiz em uma época em que a maioria dos marxistas estava propensa a ver neles nada mais que documentos históricos importantes apenas para seu desenvolvimento pessoal. Além disso, História e consciência de classe não pode ser acusada se, décadas depois, a relação foi revertida de tal modo que as primeiras obras fossem vistas como produtos da verdadeira filosofia marxista, enquanto os trabalhos mais recentes eram negligenciados. Certo ou errado, eu sempre tratei as obras de Marx como tendo uma unidade essencial (p. xxvi; ed. port., p. 366).
Em História e consciência de classe as dificuldades reais são abundantes. Como o próprio Lukács assinalou em 1967, ele tenta “hegelianamente superar Hegel” em seu “constructo puramente metafísico” que retrata o proletariado como o “sujeito-objeto idêntico da história real da espécie humana” (p. xxiii; ed. port., p. 363).
 
Como resultado da abordagem dos problemas do desenvolvimento sócio-histórico nesse espírito, Lukács termina com “um edifício audaciosamente erigido acima de qualquer realidade possível” (p. xxiii; ed. port., p. 363), reproduzindo ao mesmo tempo também a fusão hegeliana dos conceitos de “alienação” e “objetivação”: um procedimento que deve ser considerado duplamente desconcertante em uma concepção histórica materialista que explicitamente visa identificar a alavanca objetiva materialmente eficaz da emancipação social. Pois, uma vez que a objetivação é descartada como “reificação” e “alienação”, não resta nenhum solo concebível no qual até mesmo a estratégia emancipatória teoricamente mais sofisticada poderia ser implementada com sucesso no mundo real.
 
Contudo, se Lukács tenta “hegelianamente superar Hegel” em História e consciência de classe, Merleau-Ponty vai muito além disso em As aventuras da dialética, pois ele tenta “weberianamente superar Weber” com a ajuda de Lukács para “relativizar o relativismo até seus limites”. Além disso, o filósofo francês muito simplesmente se recusa a examinar qualquer outra coisa que possa ser encontrada em a História e consciência de classe além da problemática hegeliana do sujeito-objeto idêntico. E mesmo este aspecto é abordado em As aventuras da dialética apenas de uma forma “para-além-de-weberiana”, extremamente relativizada e subjetivada. De uma forma, na qual, em todas as referências às condições reais de existência do proletariado e às exigências estratégicas de sua transformação – presentes, ao menos em alguma extensão, em História e consciência de classe, mesmo se em uma forma muito problemática –, as formas objetivas desaparecem completamente em Merleau-Ponty. Desse modo, este aspecto, de longe o mais questionável de História e consciência de classe, é transformado em uma mitologia neoweberiana, enquanto todas as realizações reais dessa importante obra de transição são intencionalmente ignoradas.
 
Além disso, mesmo a questão do relativismo é caracteristicamente deturpada na reinterpretação ideologicamente motivada de História e consciência de classe que faz Merleau-Ponty. Pois ele aplaude Lukács por ter pretensamente ido além de Weber ao “perseguir a relativização do relativismo até seus limites”. Ainda mais, o único lugar em História e consciência de classe em que podemos encontrar algo que vagamente se assemelha à alegação de Merleau-Ponty é onde Lukács insiste que
somente a dialética da história tem condições de criar uma situação radicalmente nova. Não apenas porque ela relativiza todos os limites, ou melhor, porque ela os põe em um estado de fluxo contínuo. Nem porque todas aquelas formas de existência que constituem a contrapartida do absoluto são dissolvidas em processos e vistas como manifestações concretas da história de tal forma que o absoluto não é tanto negado quanto dotado de sua forma histórica concreta e tratado como um aspecto do processo em si (p. 188; ed. port., pp. 209-10).
Portanto, enquanto o ideal de Merleau-Ponty de “perseguir a relativização do relativismo até seus limites” (o que quer que signifique esta curiosa expressão) tem por atributo a “superação-weberiana de Weber”, ou seja, do próprio filósofo relativista, Lukács está de fato se referindo a algo completamente diferente. Ele levanta a questão da relativização (ou, melhor, como ele acrescenta, a questão coloca os limites das coisas “em um estado de fluxo”, sublinhando assim seu caráter inerentemente processual) em relação à dialética da história como tal. É esta última que “relativiza todos os limites” no curso do seu desdobramento objetivo no interior da estrutura na qual tudo deve assumir uma “forma histórica concreta”. Tanto é assim que, apenas algumas linhas depois da passagem da página 188 (ed. port., pp. 209-10), Lukács – antecipando e rejeitando o duvidoso cumprimento de Merleau-Ponty – afirma muito categoricamente que “é profundamente enganador descrever o materialismo dialético como ‘relativismo’(p. 189; ed. port., p. 210).

III
 
Para fazer de fato justiça ao autor de História e consciência de classe, contudo, devemos citar uma outra passagem também dessa obra para mostrar até onde vai Lukács em sua insistência no caráter longe de relativista das determinações que, em sua visão, emanam da dialética objetiva da história. Na seção final do ensaio mais importante de História e consciência de classe, “Reificação e a consciência do proletariado” – acerca das dificuldades de encontrar um modo de “romper a estrutura reificada da existência” (p. 197; ed. port., p. 219) sob a forma histórica concreta da sociedade capitalista –, Lukács insistentemente argumenta que
a estrutura pode ser rompida apenas se as contradições imanentes do processo [como uma totalidade histórica em desenvolvimento] forem tornadas conscientes. Apenas quando a consciência do proletariado for capaz de apontar o curso pelo qual a dialética da história é objetivamente impelida, mas que ela não pode percorrer sem ajuda, a consciência do proletariado será despertada para uma consciência do processo, e apenas então o proletariado se torna o sujeito-objeto idêntico da história cuja práxis mudará a realidade. Se o proletariado falhar em dar este passo, as contradições permanecerão irresolutas e serão reproduzidas pela mecânica dialética do desenvolvimento em um patamar superior, em uma forma alterada e com intensidade crescente. É nisto que consiste a necessidade objetiva da história. A obra do proletariado não pode jamais ser mais do que dar o próximo passo no processo[17] (pp. 197-8; ed. port., p. 219).
Como podemos ver, neste esforço para sublinhar a inevitável natureza objetiva do processo histórico em andamento, Lukács não hesita em recorrer a um conceito tão excêntrico – à primeira vista até contraditório – como a “mecânica dialética do desenvolvimento” (die dialektische Mechanik der Entwichlung)[18]. O que ele quer dizer com isso é que a dialética da história (isto é, a dialética do desenvolvimento histórico global, Gesamtentwicklung) é ela própria objetivamente impelida – como um mecanismo dialeticamente produtivo – a revelar, numa intensidade sempre crescente, as contradições subjacentes da sociedade capitalista como uma necessidade objetiva do processo de desenvolvimento (die objektive Notwendigkeit des Entwicklungsprozesses), mesmo se a consciência do proletariado falhar em sua “missão histórica”.

Dessa visão seguem-se duas conclusões:
  • Primeira, que não pode haver tal integração permanente do proletariado, mas tão só uma integração que seja estritamente temporária. O “mecanismo dialético” e a “necessidade objetiva do desenvolvimento” tornam impossíveis para o proletariado viver permanentemente integrado à estrutura capitalista exploradora e desumanizadora. Pois o Gesamtprozess continua a reproduzir as contradições imanentemente antagônicas da sociedade capitalista, tanto num patamar superior como com uma intensidade crescente, precisamente porque a dialética da história não “é auxiliada”, na sua propensão objetivamente impelida para a resolução das contradições em questão, pela atualização da consciência de classe potencial (ou “atribuída”) do proletariado. Sendo assim, as contradições devem ser seguidamente enfrentadas pelos trabalhadores, não importando quanto esforço seja investido nos vários esquemas de acomodação por meio dos quais a ordem dominante – com a colaboração ativa do reformismo social-democrata – tenta varrê-las para baixo do tapete.
  • A segunda conclusão se refere às dramáticas alternativas implícitas nas tendências objetivas do desenvolvimento histórico real na era do capitalismo global e do imperialismo. Nesse aspecto o autor de História e consciência de classe está em completo acordo com o dictum de Rosa Luxemburgo: “socialismo ou barbárie[19]. Pois, segundo Lukács, a dialética objetiva da necessidade histórica não pode assegurar, por si só, o resultado positivo das quase inevitáveis confrontações pelas quais as duas classes hegemônicas da ordem produtiva dada – capital e trabalho – devem resolver pela força seus conflitos em uma conclusão historicamente viável, sob a pressão da “mecânica dialética do desenvolvimento”. Afirmou-se que o proletariado é “o sujeito-objeto idêntico do processo histórico, isto é, o primeiro sujeito na história que é (objetivamente) capaz de uma consciência social adequada” (p. 199; ed. port., pp. 218-9). Mas “capaz” permanece o termo operativo chave. Tudo depende, portanto, da atualização vitoriosa da “capacidade objetiva” constantemente reiterada por Lukács.
As categorias que vimos na passagem citada das páginas 197-8 (ed. port., p. 219) de História e consciência de classe são trazidas à nossa atenção por Lukács para articular a estrutura teórica no interior da qual estas duas conclusões podem ser tiradas. Elas são, de fato, descritas por ele com a maior clareza, nas palavras finais do ensaio sobre a “Reificação e a consciência do proletariado” e sem o menor sinal de qualquer “relativização do relativismo até seus limites”. Desse modo:
Conforme os antagonismos se tornam agudos, duas possibilidades se abrem ao proletariado. É dada a oportunidade de substituir a carcaça velha e superada pelo seu próprio conteúdo objetivo. Mas, pelo menos por um tempo, ele também está exposto ao perigo de se adaptar ideologicamente a estas formas mais vazias e mais decadentes da cultura burguesa... A evolução econômica objetiva não pode fazer mais do que criar a posição do proletariado no processo de produção. Foi esta posição que determinou seu ponto de vista. Mas a evolução objetiva poderia apenas dar ao proletariado a oportunidade e a necessidade de mudar a sociedade. Qualquer transformação pode se efetivar apenas como produto da ação – livre – do próprio proletariado (pp. 208-9; ed. port., pp. 231).
Coerente com a linha geral da sua abordagem, Lukács define novamente o obstáculo à resolução positiva das contradições identificadas em termos de ideologia. Um obstáculo que, em sua visão, poderia ser superado pelo trabalho de consciência sobre consciência, e tornado possível instrumental/organizacionalmente na forma da atividade ideológica esclarecedora do partido, desde que o próprio partido se tornasse digno da sua tarefa histórica, como vimos Lukács argumentar em outro contexto. A circunstância, contudo, não retira do diagnóstico de Lukács da situação, e da sua discussão do modo pelo qual se poderia romper a “estrutura reificada da existência” (die verdinglichte Struktur des Daseins), os seus termos de referência objetivos.
 
Felizmente em História e consciência de classe nem tudo é deixado ao artifício mágico do “sujeito-objeto idêntico da história”, que o autor buscou em Hegel e na tradição filosófica idealista elevada pelo grande dialético alemão ao seu nível mais alto. Há também as categorias “necessidade histórica objetiva”, “mecânica dialética do desenvolvimento”, “necessidade objetiva do processo de desenvolvimento”, “forma histórica concreta”[20] dos objetos, tendências e estruturas, “luta entre capital coletivo e trabalho coletivo” etc., com as quais o discurso quase místico de Merleau-Ponty acerca da “relativização do relativismo até seus limites” é totalmente incompatível.
 
No que diz respeito a Lukács, não há qualquer possibilidade de “recuperar um tipo de totalidade”. Para ele “totalidade” não é algo romanticamente perdido e ainda mais romanticamente reencontrado graças a sua subsunção à categoria idealista da “identidade sujeito-objeto”. Por mais inadequado que seja o tratamento de Lukács do postulado hegeliano adotado, mesmo na época em que escrevia “A reificação e a consciência do proletariado”, a identidade sujeito-objeto historicamente concretizada é apenas parte de toda a história.
 
Totalidade, em História e consciência de classe, é o desdobramento do processo histórico global (Gesamtprozess) que se afirma – para o melhor ou para o pior – em sua necessidade histórica objetiva, e inseparavelmente dialética, tanto se nos tornamos dela conscientes como se falhamos em fazê-lo. Apesar de Lukács considerar, com uma esperança e uma expectativa muito irrealistas, o poder da consciência de transformar o “mundo reificado” na direção almejada, ele não tenta equalizar o processo objetivo do desenvolvimento histórico com a “consciência do processo” (p. 197; ed. port., p. 219).
 
Esta é a razão pela qual a estrutura conceitual de História e consciência de classe, apesar de todos os seus traços problemáticos, não pode se reduzir a um denominador comum com sua reconstrução “muito livre” por Merleau-Ponty em suas As aventuras da dialética. De fato, Lukács explicitamente rejeita não apenas “todo ‘humanismo’ou ponto de vista antropológico” (pp. 186-7; ed. port., p. 208) – que supostamente deveriam ser o traço distintivo do “jovem Marx filosófico” e do próprio primeiro Lukács – como também o relativismo muito admirado pelo filósofo francês. Ele argumenta, com força e de forma clara, que “o relativismo se move num mundo essencialmente estático” (p. 187; ed. port., p. 208), representando uma posição filosófica dogmática devido à sua falha em tratar dialeticamente tanto os seres humanos com a sua situação histórica concreta.

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Notas
[1] Maurice Merleau-Ponty, Adventures of the Dialectic, Londres, Heinemann, 1974, pp. 57-8. 
[2] Id., ibid., p. 25.
[3] Id., ibid., p. 31.
[4] Id., ibid. Como é característico da interpretação “muito livre” de Merleau-Ponty de História e consciência de classe, nenhuma evidência textual é fornecida por ele para apoiar esta impetuosa asserção.
[5] Merleau-Ponty, “The URSS and the camps”, Signs, Northwestern University Press, 1964, p. 272
[6] “On Madagascar”, Signs, p. 331.
[7] Ibid., p. 329.
[8] Ibid., p. 332.420.
[9] Ibid., p. 333.
[10] “The URSS and the camps”, Signs, p. 269.
[11] Ibid., p. 270.
[12] “On Madagascar”, Signs, p. 329.
[13] Merleau-Ponty, Adventures of Dialectic, pp. 62-4.
[14] Id., ibid., p. 62.
[15] Discuti mais longamente o desenvolvimento político e intelectual de Merleau-Ponty em The Power of Ideology. Ver em particular pp. 153-6 e 161-7 (ed. brasileira, O poder da ideologia, São Paulo, Ensaio, 1996, pp. 207-10 e 218-225).
[16] Podemos encontrar a mesma contradição que vimos em As aventuras da dialética de Merleau-Ponty na periodização do desenvolvimento intelectual de Marx por Louis Althusser, ainda que a intenção ideológica do filósofo comunista seja diametralmente oposta à do seu modelo. Lamentavelmente, contudo, Althusser aceita a classificação autocontraditória de Merleau-Ponty, apenas revertendo o “sinal” da sua falsa equação. Diferente de Merleau-Ponty, em seus dois primeiros volumes de ensaios – For Marx e Reading Capital – Althusser elogia o “Marx científico” contra o “jovem Marx filosófico”, que em sua visão é supostamente culpado de hegelianismo, devido à sua preocupação com o “conceito ideológico” de alienação. Mais tarde, contudo, ele descobre que também o “Marx maduro”, incluindo o autor de O capital, recai pesadamente nos mesmos pecados. Aprisionado pela lógica do esquematismo adotado, Althusser chega à conclusão peculiar de que apenas algumas poucas páginas da Crítica ao Programa de Gotha (1875) e as Marginal Notes on Wagner (1882) devem ser consideradas obras propriamente marxistas, livres das aberrações ideológicas denunciadas (ver acerca disto a Introdução de Althusser à edição da Garnier-Flammarion do volume I de O capital de Marx, publicado em Paris em 1969). Isto demonstra que não é suficiente reverter a intenção ideológica de um adversário político e intelectual sem submeter a um escrutínio crítico a sua substância teórica. Esta omissão traz consigo a infeliz consequência de permanecer cativa de suas lendas.
[17] As palavras “nisto” e “próximo passo” foram italizadas por Lukács. E reafirmando sua rejeição de que a flexibilidade estratégica do materialismo pudesse ser considerada uma forma de relativismo ele acrescenta em uma nota de rodapé que
O feito de Lenin é que ele redescobriu esse lado do marxismo que aponta a vida para uma compreensão de seu nódulo prático. Seus constantes e reiterados alertas para se agarrar o “próximo elo” da cadeia com todo o nosso poder, aquele elo do qual o destino da totalidade depende naquele momento, sua recusa de todas as demandas utópicas, isto é, seu “relativismo”, sua “Realpolitik”: todas essas coisas não são nada mais que a realização prática das Teses sobre Feuerbach do jovem Marx (p. 221; ed. port., pp. 219-20).
A palavra “prático” foi grifada por Lukács.
[18] Lukács, Geschichte und Klassenbewusstsein. Studiem über marxistische Dialektik, Berlim, Malik Verlag, 1923, p. 216. A edição inglesa que corrigimos nessa passagem interpreta “die dialektische Mechanik der Entwicklung” como “dialectical mechanics of history” (dialética mecânica da história).
[19] Como Lukács observa em outro ensaio, “Observações críticas sobre a Crítica da Revolução Russa de Rosa Luxemburgo”: O socialismo jamais aconteceria “por si mesmo”, como resultado de um inevitável desenvolvimento econômico natural. As leis naturais do capitalismo de fato levam inevitavelmente à sua crise última, mas o fim de sua trajetória seria a destruição de toda civilização e um novo barbarismo. História e consciência de classe, p. 282; ed. port., p. 291. Itálicos de Lukács.
[20] “A reificação e a consciência de classe do proletariado”, História e consciência de classe, p. 188 (ed. port., pp. 209-210). E em outra passagem da mesma obra Lukács argumenta que “a totalidade concreta do mundo histórico, o processo histórico concreto e total, é o único ponto de vista a partir do qual a compreensão torna possível” (p. 145; ed. port., p. 164).
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MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Trad. Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 419-426.
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