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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Críticas de Vigotski com relação a Freud: contra o ecletismo no estudo das emoções


 
por Achilles Delari Junior
ensaio em PDF

A psicanálise mostra suas tendências
profundamente estáticas e não dinâmicas,
conservadoras, antidialéticas e anti-históricas.
(Vygotski, 1927/1991, p. 299)

Sobre a natureza desse trabalho

Este texto é uma versão ampliada de postagem que fiz no dia 2 de dezembro de 2009, na lista XMCA[1] do LCHC “Laboratory of Comparative Human Cognition”. Tal postagem referia-se a que, em tópico nomeado “sobre emoções” (about emotions), fora feita menção a Vigotski ser simpático a Freud, por sua abordagem “histórica” ao ser humano. O que talvez se pautasse em uma noção de “história” como percurso cíclico da vida mental individual, no qual o ser humano passa por diferentes fases psicossexuais e/ou as repete — na visão do psicanalista. Contudo, como disse naquele fórum, tenho algumas contestações iniciais quanto ao papel que Freud poderia ocupar numa “teoria das emoções” que atendesse aos rigorosos critérios críticos de Vigotski para a temática. Contestações que desejo partilhar com o leitor, solicitando sua réplica crítica para aprofundarmos a discussão.

Tais contestações são reflexo e refração da minha própria trajetória de estudo dos dois autores, um deles (Freud) bastante lido e ensinado no curso de graduação em psicologia, em várias disciplinas obrigatórias, e outro (Vigotski) apropriado sempre parcialmente num percurso autodidata à revelia das instituições de ensino. O que, certamente, evidencia meus limites pessoais e históricos na formulação do problema e dá espaço às correções necessárias por parte do leitor com maior domínio do projeto de Vigotski para a psicologia. Sendo assim, exporei primeiro os motivos de minha “desconfiança”, levantando indícios de profunda oposição teórica e metodológica de Vigotski frente a Freud (parte I). Num segundo momento, retomarei algumas áreas de contato entre os dois autores, as quais não mostram haver, mesmo assim, qualquer acordo metodológico central entre eles (parte II). Por último, retomarei posições de dois diferentes momentos históricos do próprio Vigotski quanto ao que ele mesmo pensava sobre ser ou não “histórica” a abordagem psicanalítica (parte III).

Não é impossível um diálogo póstumo entre estes autores que eles não tenham sugerido ou almejado em vida. Ligações inusitadas são possíveis e desejáveis, já que os significados sociais para o que disseram não podem estar todos sob seu próprio domínio. A réplica social para suas palavras repercute no “grande tempo” e em diálogo elas nunca morrem. Mas vale lembrar, em primeiro lugar, que diálogo não é algo que façamos apenas quando desejamos concordar ou receber aprovação. Vigotski, por exemplo, mostra-se sempre atento aos seus oponentes intelectuais, bem mais do que estes à sua obra, mas nisso, via de regra, procede por antítese e com ironia — seja “socrática”[2] ou não. Em segundo lugar, já vêm sendo propostos vários “diálogos dos mortos”[3], críticos ou ingênuos, entre Vigotski e outros autores, desde os mais “questionados” (como entre Vigotski e Piaget) aos mais “consensuais” (como entre Vigotski e Bakhtin) — não havendo o que opor a tal prática.

Seja como for, a questão aqui não é determinar, a qualquer custo, se a metafísica de Freud tem, objetivamente, algo a acrescentar à dialética de Vigotski ou não. Partamos do princípio de que se o desejo do pesquisador for criar convergências, nas condições históricas das ciências humanas hoje, sempre poderá realizá-lo, num quadro teórico “autossuficiente”. Todavia, não me proponho a dar contraprova da possibilidade ou legitimidade de fusões ecléticas, mas apenas a explorar algo do que o psicólogo bielorrusso pensava sobre elas. Desta maneira, sendo o próprio pensamento vigotskiano o objeto de nossa curiosidade, o leitor não encontrará aqui uma revisão às obras de Freud, a qual pode obter em abundantes fontes de autoria de seus seguidores e/ou admiradores — em sua grande maioria, totalmente alheios às contribuições de Vigotski e do materialismo dialético.

Como nos disse a psicóloga social Lucília Reboredo: “para haver diálogo é preciso que haja diferença”. Acentuar diferenças é o modo que encontro aqui para evitar certa tendência a omitirmos nosso posicionamento ético e político no debate entre posturas epistemológicas distintas, para não dizer antagônicas, já comum no eclético e conservador cenário dito pós-moderno — noite política e cultural, na qual todos os discursos são pardos.

I. Posições antagônicas centrais de Vigotski frente a Freud

1. Em 1931-33: “Teoria das emoções: um estudo histórico-psicológico”

A obra “Teoria das emoções” foi escrita e reescrita por Vigotski ao longo de vários anos, entre 1931 e 1933, contemplando a crítica de algumas das principais concepções sobre este tema em sua época. Entretanto, é interessante lembrar que em todo o texto, cuja edição hoje conhecida[4] contém vinte capítulos, Freud é citado em apenas duas ocasiões: (1.1) no capítulo 18, como um “discípulo involuntário de Descartes”; e (1.2) no capítulo 19, numa alusão alegórica a um chiste relatado pelo primeiro.

1.1. Freud como discípulo involuntário de Descartes

No capítulo 18, Vigotski lembra que para Descartes as “paixões da alma” são exclusivamente humanas, ausentes nos animais, desprovidos de alma. Em seguida, critica diferentes tendências que continuam vendo as emoções propriamente humanas como algo dissociado do corpo, dos processos fisiológicos[5]. Dentre elas estão o organicismo de James/Lange e as proposições metafísicas de Freud e Scheler/Lotze, todos considerados, cada qual ao seu modo, “discípulos involuntários de Descartes”[6] (Vygotski, 1931-33/ 2004, p. 211). Algo do dualismo de Freud residiria em seu entendimento de que não é necessário conhecer as vias nervosas para compreender, por exemplo, o que é o medo.

Encontra-se neste autor o reconhecimento de características orgânicas que proporcionam o tônus fundamental do afeto, mas não se deduz que sejam a “substância” do afeto. Portanto, deduz-se que a “psicologia profunda dos afetos”, representada por Freud, os definiria como da ordem de outra substância que não a matéria. Segundo Vigotski,
 
o intuito de preservar um exame puramente causal dos fatos psicológicos e, ao mesmo tempo, de não levar à ruína a psicologia considerada como uma ciência autônoma e de não por seus problemas nas mãos da fisiologia, obriga a psicologia profunda a reconhecer a absoluta independência substancial dos processos psíquicos e a autonomia da causalidade psíquica (Vygotski, 1931-33/2004, p. 215).

Em dado momento, a busca inicial de Freud por um determinismo orgânico teria sido substituída pela postulação de um determinismo psíquico, prescindindo de explicações neurofisiológicas, tornando-se para ele inclusive desnecessário debater com James e Lange (ver Vygotski, idem). Em suma, Freud é visto por Vigotski como tão metafísico quanto Scheler e Lotze. Contudo, se estes representam uma metafísica “teísta”, a do psicanalista seria “pandemoníaca”, valendo-se de “imagens do reino subterrâneo, do inferno e das profundidades extremas” (Vygotski, 1931-33/2004, p. 217). Sua psicologia buscaria “elucidar o enigma (...) nas profundidades metafísicas do espírito humano — na vontade[7] de Schopenhauer” (idem, p. 216). Temos a impressão de que aqui a teoria das emoções de Freud não está sendo elogiada, tampouco aceita. Muito mais crédito é dado, neste capítulo, ao anônimo Chabrier[8], por exemplo, com suas pistas sobre relações entre emoções e consciência, ideologia, cultura, história e personalidade (ver Vygotski, 1931-33/2004, p. 212, 213 e 218).

1.2 Freud como fonte de alegoria para criticar Dilthey

No capítulo 19, Freud é citado de modo puramente alegórico por Vigotski, quando este se refere ao caso de um chiste relatado pelo primeiro para dar seguimento a um argumento mais geral, criticando Dilthey por este autor misturar teses de conteúdo distinto.
 
Assim, a mescla de três afirmações distintas quanto ao seu conteúdo recorda de maneira surpreendente a lógica da história a que se refere Freud em seu estudo sobre o chiste. Uma mulher que a sua vizinha acusa de haver quebrado uma panela que lhe havia emprestado, expõe, para justificar-se e para ser mais convincente, três argumentos de uma vez: “em primeiro lugar — diz — não te pedi emprestado nenhuma panela; em segundo lugar, quando a levei já estava quebrada; em terceiro lugar, a devolvi perfeitamente intacta” (Vygotski, 1931-33/ 2004, p. 226-227 – trad. minha).

Nenhuma explicação e/ou contribuição teórica freudianas são assumidas, nesta passagem, para a compreensão do funcionamento psíquico do chiste, como tal. E as contribuições de Freud sobre as emoções sequer são postas em pauta, nesse momento. A menção é feita apenas de passagem, como recurso retórico, uma figura de analogia entre a inconsistência da lógica de pensamento da mulher acusada pela vizinha e a lógica do pensamento teórico de Dilthey, ao tratar da psicologia dos sentimentos.

Constata-se que em um trabalho de vinte capítulos sobre a teoria das emoções, Vigotski só menciona o pensamento do próprio Freud quando o coloca entre “discípulos involuntários de Descartes”. Ou seja, só o traz à baila como um dentre outros importantes exemplos da postura metodológica dualista que está criticando, ao longo de toda a obra, a partir de outras referências, sobretudo a do monismo de Espinosa. Não sabemos dizer exatamente quando, entre 1931 e 1933, os capítulos 18 e 19 foram escritos. Podemos apenas constatar que este seja um momento histórico já avançado no desenvolvimento do pensamento de Vigotski. Entretanto, desde antes ele já vinha definindo algumas bases epistemológicas para tal posicionamento crítico, como veremos a seguir.

2. Em 1927: “O significado histórico da crise da psicologia”

Na obra “O significado[9] histórico da crise da psicologia”, de 1927, Vigotski menciona Freud várias vezes. Contudo, podemos notar que, na maioria delas, ele o faz em função não tanto de criticá-lo diretamente, quanto no de rejeitar metodologicamente várias tentativas de fusão epistemológica entre marxismo e psicanálise — uma delas do próprio Luria, em artigo de 1925, publicado na coletânea “Psicologia e marxismo”, organizada por Konstantin Kornílov (ver LURIA, 1925/2002). A rejeição categórica a tais tentativas ocorre com base nos seguintes argumentos, dentre outros: (2.1) a inconsistência de se tratar a obra de Freud como “monista” e/ou “materialista”; (2.2) a presença de uma forte adesão de Freud a concepções metafísicas; e (2.3) a presença de um destacado reducionismo da psicanálise também no campo prático.

2.1 Sobre a fragilidade da defesa de um monismo em Freud

Para mostrar o caráter frágil dos argumentos a favor de um suposto “monismo” em Freud, Vigotski destaca que seu “materialismo médico” é bem distinto do “materialismo dialético” próprio da psicologia marxista. O primeiro pode conviver com concepções metafísicas, enquanto o segundo visa superá-las. Assim, rejeita abertamente a posição de Zalkind:
 
Mas vejamos o suposto monismo da psicanálise, com o qual Freud não haveria estado de acordo. Onde, em que palavras, com que motivo, se passou ao terreno do monismo filosófico a que se refere o artigo [de Zalkind]? Seria que toda a redução de um certo grupo de fatos à unidade empírica é monismo? Ao contrário, Freud reconhece sempre o psíquico, é dizer, o inconsciente como uma força especial, que não pode reduzir-se a nenhuma outra. Ademais, por que este monismo [seria] materialista no sentido filosófico? O materialismo médico (que reconhece a influência de órgãos isolados, etc., nas formações psíquicas) está ainda no terreno da filosofia idealista (Vygotski, 1927/1991, p. 229).

O fato de Freud, como médico, reconhecer o caráter material dos processos orgânicos elementares, não faz dele “materialista” nem “monista” no sentido filosófico, ontológico e epistemológico. Vigotski não cobra de Freud que este seja um pensador monista, já que ele não se propunha a isto, mas está colocando em xeque o argumento freudomarxista de que é possível incorporar Freud com base no preceito equivocado de seu suposto “monismo”. Vê-se que o dualismo de Freud enfatizado em “Teoria das emoções”, já era abertamente constatado aqui, em 1927.

2.2 Sobre as bases metafísicas de Freud

Quanto às bases metafísicas de Freud, no texto sobre a “Crise”, destacam-se principalmente as influências de Lipps[10] e de Schopenhauer[11]. Quando ao primeiro, Vigotski explicita que
 
todos os conceitos principais do sistema psicológico de Freud remontam a T. Lipps. Os conceitos de inconsciente, de energia psíquica ligada a determinadas representações, das pulsões como base da psique, da luta das pulsões e das transferências, da natureza afetiva da consciência, etc. Com outras palavras, as raízes psicológicas de Freud se adentram nas capas espiritualistas da psicologia de Lipps. Como cabe não ter isto em conta para nada falar da metodologia de Freud? (Vygotski, 1927/1991, p. 300).

Com relação a Schopenhauer a advertência epistemológica não é menos severa:
 
É um fato (não só não desmentido, senão que sequer analisado pelos autores da coincidência) que a doutrina de Freud sobre o papel primário das paixões cegas, papel que se reflete de forma inconsciente e desvirtuado na consciência, remonta diretamente à metafísica idealista da vontade e às representações de Schopenhauer. Em suas conclusões mais extremas, o próprio Freud assinala que se acha perto de Schopenhauer. Mas também em suas premissas fundamentais, assim como nas linhas determinantes de seu sistema, está ligado à filosofia do grande pessimista, como pode por de manifesto a análise mais simples. (Vygotski, 1927/1991, p. 299).

Vigotski, deste modo, busca mostrar tanto que várias ideias tomadas como inovações trazidas por Freud não são tão originais assim; quanto que tal autor, não faz questão de se opor à tradição metafísica à qual se filia, embora alguns marxistas russos o quisessem colocar em um lugar que ele mesmo não desejou assumir.

2.3 Questionamento quanto à aplicação prática da psicanálise

Por fim, Vigotski também questiona campos de aplicação “prática” da psicanálise, não tanto quanto às suas técnicas terapêuticas, quanto à aplicação das especulações geradas para tentar dar conta delas, quando transpostas indiscriminadamente aos mais diferentes campos da cultura e da vida social. Dessa maneira:

também em seus trabalhos “práticos”, a psicanálise mostra suas tendências profundamente estáticas e não dinâmicas[12], conservadoras, antidialéticas e anti-históricas. Reduz os processos psíquicos superiores — individuais e coletivos — diretamente a raízes que evoluíram pouco, primitivas, em essência pré-históricas, pré-humanas, sem deixar espaço à história. A obra de F. M. Dostoiévski se analisa do mesmo modo que os totens e tabus das tribos primitivas; a igreja cristã, o comunismo, a horda primitiva, tudo isso procede, em psicanálise, da mesma fonte. Que tais tendências se encontram na psicanálise o testemunham todos os trabalhos desta escola que tratam dos problemas da cultura, da sociologia, da história. Comprovamos, portanto, que não segue, senão nega, a metodologia do marxismo. Mas sobre isto, nem mais uma palavra (Vygotski, 1927/1991, p. 299-300).

Como veremos a seguir, essa profunda rejeição de Vigotski ao reducionismo freudiano já era anunciada, dois anos antes em seu livro “A psicologia da arte”, de 1925.

Concluindo nossas considerações sobre esta obra de 1927, cabe relembrar que ela pode, grosso modo, ser situada num período intermediário no desenvolvimento do pensamento de Vigotski. Entretanto, nota-se que aqui algumas diretrizes epistemológicas importantes já são indicadas. E o lugar dado então para a teoria de Freud na psicologia marxista, na visão de Vigotski, é o de um franco oponente no campo epistemológico. Embora uma ou outra questão levantada por ele possa ser bem recebida por Vigotski, as respostas dadas a elas, dentro do sistema filosófico geral da psicanálise, sua visão de mundo, não são acolhidas com o mesmo entusiasmo. O que será retomado com mais detalhes na “parte II”.

3. Em 1925, na “Psicologia da arte”

Voltando um pouco mais no tempo, notaremos que Freud foi citado bem mais em “Psicologia da arte” do que em “Teoria das emoções”. O primeiro também foi um trabalho de muitos anos, concluído em 1925, num período em que, segundo alguns autores, o referencial principal de Vigotski em psicologia ainda era “reflexológico”[13] (ver Veresov, 1999). Ademais, mesmo que se situe este livro num momento pouco amadurecido da produção teórica de Vigotski, já encontramos nele críticas severas a Freud, em torno de questões teóricas importantes. Vigotski recusa de modo enfático alguns princípios fundamentais para o quadro referencial freudiano, como, por exemplo: (3.1) o pansexualismo; (3.2) o infantilismo; e (3.3) a interpretação energética.

3.1 A ideologia “pansexualista” de Freud

“Pansexualismo” é a tendência a conceber qualquer aspecto do funcionamento psíquico como manifestação de uma só “energia” dita “sexual”[14]. Alguns leitores de Freud alegam, em sua defesa, que para tal autor “não é tudo sexual”, no sentido de “genital” — o que é óbvio, pois nem mesmo ele chegaria a tal ponto. Mas é uma saída ingênua, pois a crítica não é a um “pangenitalismo”, mas sim à visão de que mesmo experiências vitais bem diferentes das genitais sejam entendidas como de natureza igualmente “sexual” — pela “energização” de “zonas erógenas” distintas, por exemplo. Desse modo, todo o psiquismo humano poderia ser concebido em termos da dinâmica de uma energia “sexual”, sua repressão e sua canalização, saudável ou patológica, para as mais diferentes ou mesmo opostas atividades. Nesse tipo de generalização teria incorrido Freud também em sua análise de obras de arte. Segundo Vigotski,
 
surge então uma impressionante lacuna na teoria psicológica (...). Como pode ela interpretar a música, a pintura decorativa, a arquitetura, tudo em que é impossível fazer a tradução erótica simples e direta da linguagem da forma para a linguagem da sexualidade? (Vigotski, 1925/1999, p. 96).

Mais tarde, Vigotski dirá que um erro no desenvolvimento dos conceitos psicológicos reside justamente neste processo pelo qual uma explicação válida para situações particulares, como alguns casos clínicos de Freud, generaliza-se para as mais diversas realidades[15] (arte, religião, política, quiçá a pedagogia...) como se fosse lei universal, tornando-se uma “ideologia” (Vygotski, 1927/1991 – 271 e 272).

3.2 O reducionismo do “infantilismo” em Freud

“Infantilismo” é a tendência a reduzir a explicação dos atos humanos a estruturas mentais definidas na infância, sobretudo pela estruturação do dito “complexo de Édipo”[16] — conceito de Freud no qual o mito grego é lido de acordo com sua visão e interesses. Vigotski entende que “no estudo sobre Leonardo da Vinci, Freud tenta deduzir todo o destino e toda a obra deste artista das emoções [perejivaniia] básicas da infância” (Vigotski, 1925/1999, p. 94). Sugerindo que para tal autor
 
cada indivíduo está preso ao seu complexo de Édipo e que, nas formas mais complexas e elevadas de nossa atividade somos forçados a vivenciar mais e mais o nosso infantilismo e, assim, a mais elevada criação fica fixada em passado remoto. É como se o homem fosse escravo da sua infância, como se passasse toda a vida resolvendo aqueles conflitos que se criaram nos seus primeiros meses de vida (idem, p. 94-95).

Tal contestação se intensifica quando a relação entre criação artística e trajetória biográfica de Dostoiévski é comentada. Pois para alguns psicanalistas
 
em Dostoiévski viveu e criou um eterno Édipo. Acontece, porém, que se considera como lei fundamental da psicanálise a afirmação de que Édipo vive em exatamente cada indivíduo. Significa isto que, mencionando Édipo, nós resolvemos o enigma de Dostoiévski? Por que devemos admitir que os conflitos da sexualidade infantil, os choques da criança com o pai foram mais influentes na vida de Dostoiévski do que todos os traumas e emoções [perejivaniia] mais tardios? Por que não podemos admitir, por exemplo, que emoções [perejivaniia] como a espera da execução, os trabalhos forçados, etc. não puderam servir de fonte para novas, complexas e angustiantes emoções [perejivaniia]? (Vigotski, 1925/1999, p. 95).

Tanto pansexualismo quanto infantilismo psicanalíticos, impedem-nos de ver e ressaltar que é próprio da criação artística singular de Dostoiévski ou da Vinci, nivelando-as com quaisquer produções comuns.

3.3 O reducionismo da “interpretação energética” em Freud

A “interpretação energética” diz respeito à tendência metateórica freudiana, ligada ao pansexualismo, em tratar questões relativas ao funcionamento do psiquismo humano como redutíveis ao seu aspecto energético inespecífico, universal, mesmo que não sempre se tenha claro de que natureza seria tal “energia”, em sua materialidade[17]. Entretanto, sendo tudo no psiquismo humano questão de “energia”, os processos semânticos dos mais distintos seriam todos diferentes manifestações de uma só realidade. Vigotski, nesse momento histórico não deixa de concordar, por exemplo, com haver uma contribuição de Freud com relação a determinadas vivências [perejivaniia], com a qual atinaria seu próprio entendimento quanto ao papel da catarse na reação estética (o que retomarei na parte II). Entretanto, uma correção fundamental deveria ser feita a Freud: “abandonar sua interpretação energética”.
 
São bem mais interessantes os resultados do chiste, do humor e da comicidade obtidos por Freud. Achamos um tanto arbitrária a sua interpretação energética de todas as três modalidades de emoções [perejivaniia], que acaba por reduzi-las a certa economia, à perda de energia, mas se abandonarmos essa interpretação energética não poderemos deixar de concordar com a grandiosa precisão da análise de Freud (Vigotski, 1925/1999, p. 295).

A despeito da hipérbole da “grandiosa precisão”, nota-se que mesmo que determinado resultado da investigação de Freud aqui seja aceito como útil, seu modo mais geral de compreender tal resultado deve ser “abandonado” para que se possa fazer um bom proveito dele. Resta perguntar: se entender a psicanálise como sistema “monista”, que não pretende ser, constitui-se em erro metodológico, não seria também um equívoco tentar concebê-la sem a “interpretação energética”? Sem isto ela não deixaria de ser “psicanálise”, nos termos em que Freud a concebia?

Cabe destacar que “Psicologia da arte” é o resultado de uma investigação pautada no método “objetivo-analítico” e visa tratar da objetividade das relações contraditórias entre conteúdo-forma organizadas pelo autor na estrutura da própria obra literária (ver Vigotski, 1925/1999), com base numa dada tradição estética, social e historicamente constituída. Portanto, tal método recusa o psicologismo, que veria as explicações para a obra no psiquismo individual do autor ou de quem frui o seu trabalho. Psicologismo que, por sua vez, se constitui no principal modo de interpretação pelo qual a psicanálise vê a arte: uma forma de “sublimação” de tendências individuais reprimidas, que precisam se realizar de algum modo “socialmente aceito”.

Mesmo que, como veremos em seguida, Vigotski se aproxime de algumas ideias de Freud quanto à função da catarse na reação estética, entendo que as raízes desse ponto em comum podem ser buscadas em fontes anteriores, partilhadas por ambos. Pois não constituem, em absoluto, um achado original de Freud, nem precisam ser abordadas de acordo com sua visão de mundo e de homem, radicalmente opostas às de Vigotski.

II. Algumas periféricas posições favoráveis de Vigotski frente a Freud

Chamarei tais posições favoráveis de “periféricas”, não por que não sejam válidas ou aproveitáveis, mas apenas porque não mostram alterar o núcleo teórico e epistemológico da contribuição de Vigotski. São periféricas com relação ao antagonismo nuclear e de princípios entre este autor e a psicanálise, cujas pistas expusemos na parte I. Como os leitores de Vigotski já têm conhecimento, há um elogio feito por ele a Freud com relação à sua intuição quanto à importância da morte na definição da própria vida humana — o que ele responde com a noção, bastante metafísica, de “pulsão de morte”. Já destaquei tal elogio em outros lugares (Delari Jr., 2001; 2009b). Contudo, cabe não vê-lo de modo ingênuo, como uma concessão ao ecletismo típico do freudomarxismo. Aquilo que se coloca como elogio no mesmo momento se constitui como crítica, numa ironia sutil: “a ciência também tem necessidade desses livros: livros que não descubram a verdade, mas que ensinem a buscar a verdade, ainda que não a tenham encontrado” (Vygotski, 1927/1991, p. 303).

Claramente, Vigotski só assume que Freud faz uma boa pergunta, não que apresente resposta satisfatória. Portanto, o interesse não está, de modo algum, na concepção psicanalítica como tal, mas no objeto com relação ao qual ela está tateando cegamente. Tal elogio à pergunta de Freud sobre a importância da morte para a vida aparece tanto no texto da “Crise da psicologia”, quanto em publicação anterior assinada com Luria – um “Prefácio à edição russa de ‘Para além do princípio do prazer’”[18] (Vygotsky & Luria, 1925/1994). Cabe destacar ainda que, em 1927, importância dada à intuição de Freud, está aliada ao resgate da afirmação dialética de Marx e Engels de que “viver é morrer” (apud Vygotski 1927/1991, p. 303). Mas, ao menos nas obras aqui apresentadas, ainda não vimos Vigotski qualificar a abordagem freudiana exatamente como “dialética”.

Outra aparente aproximação entre estes autores também ocorre na “Psicologia da arte”. Trata-se da menção à noção assumida por Vigotski, também aceita parcialmente por Freud, de que as emoções são processos conscientes para o ser humano. Contudo, duas considerações talvez devessem ser feitas frente a isso. A primeira é a de que o próprio modo pelo qual Vigotski concebe as emoções, sejam todos os seus aspectos conscientes ou não, é bastante diferente do de Freud, como vemos em seu capítulo 18 de “Teoria das emoções” (comentado na parte I).

A segunda é a de que as relações entre consciência e afetos, no que diz respeito, por exemplo, ao “caráter afetivo da consciência”, não é algo originalmente proposto por Freud, senão antes também por Lipps (ver Vygotski, 1927/1991). Portanto, mais uma vez, isto não viria a ser uma semelhança profunda, nem critério de aproximação efetiva entre as abordagens específicas dos dois autores. Algo assim também ocorre no que diz respeito ao tema da “catarse”, tratado por Vigotski no capítulo nove de sua “Psicologia da Arte” (Vigotski, 1925/1999). Contudo, antes de se dizer algo de categórico sobre tal assunto, caberia lembrar que esse conceito remete também à tradição ancestral da dramaturgia grega, sobretudo sistematizada por Aristóteles. Nesta tradição, a catarse já é vista como processo de purificação promovido pela fruição da obra de arte, notadamente a tragédia[19], cujas estruturas formais são descritas no livro “Arte poética”, escrito há mais de 300 anos antes da nossa era (Aristóteles, 1979).

Cabe lembrar ainda que no capítulo 9 de “Psicologia da arte” dedicado à “Arte como catarse”, Vigotski também dialoga com vários outros autores além de Freud[20], muitos deles citados de forma elogiosa, não havendo, a rigor, qualquer destaque especial para o psicanalista. Mas ali há algo de contraditório no próprio argumento de Vigotski ao tentar ver a catarse como “descarga energética”, o que não condiz com o que dirá no capítulo 10, negando a “interpretação energética” de Freud sobre o chiste. Vigotski avança mais quando busca o que há de especificamente humano na arte. A busca pelo “que há de humano no homem”[21] será a vocação de todo seu projeto posterior em psicologia e seu principal legado às gerações futuras.

Mesmo que a “purificação” promovida pela catarse pudesse ser, em parte, uma descarga de energia nervosa (que não diz ser “sexual”), continuaria sendo fundamental compreender a especificidade/singularidade das relações forma-conteúdo que podem conduzir a tal transformação social dos sentimentos do leitor. Seja no entendimento do que diferencia a fábula, o conto e a tragédia; seja na distinção entre uma tragédia de Sófocles e uma de Shakespeare. De modo que, novamente, a suposta semelhança entre Freud e Vigotski demonstra apresentar-se por via secundária, não por identidade epistemológica radical. Há um tema, um objeto de estudo, em comum, mas não exatamente o mesmo modo geral de situá-lo e tratá-lo teoricamente.

Por fim, cabe destacar que existe, é verdade, uma série de alusões elogiosas a Freud na “Psicologia pedagógica” (Vigotski, 1924/2003; 1924/2004). Valsiner e Van der Veer (1991/1996) já levantaram um questionamento sobre isso dever-se ou não ao fato de o livro ser apenas um manual didático para estudantes de ensino médio, devendo, portanto, mais apresentar a lógica interna de cada teoria do que discuti-las criticamente. Apesar de esta não ser a única hipótese, soa como a mais plausível, já que no mesmo livro também Pavlov é bastante citado e de modo tão elogioso quanto Freud. Nem por isso se toma hoje a adesão de Vigotski a Pavlov como tão importante a ponto de necessitarmos resgatá-lo para melhor desenvolver a perspectiva histórico-cultural em geral, ou sua teoria das emoções em particular.

Não assumirei a mesma postura que Kozulin (1990) quanto a este livro, uma vez que tal autor demonstra “desconfiar” com mais desdém da necessidade de Vigotski aderir às ideias de Trotski, naquele momento, do que da ausência de crítica com relação a Pavlov e Freud. De todo modo, concordo com aquele estudioso na avaliação de que seja uma obra sui generis na trajetória intelectual de Vigotski. É um livro que tem insights interessantes para a prática pedagógica ainda hoje, como no tema do “desenvolvimento moral” e da “educação estética”, e um valor histórico para a compreensão do pensamento reflexológico de Vigotski na época. Mas não é bem uma obra na qual se encontre profunda aliança teórica entre ele e Freud em psicologia geral, tampouco em teoria das emoções.

III. Posição explícita de Vigotski quanto ao pensamento a-histórico de Freud

O que expus nas duas partes anteriores constitui o corpo das principais referências de Vigotski a Freud com as quais pude me deparar ao longo dos últimos anos. Citar outros textos importantes de Vigotski em que Freud sequer é mencionado, não é o meu objetivo aqui. Para avaliar a abrangência da bibliografia citada o leitor deverá pesar a dificuldade de adquirirmos várias obras essenciais de Vigotski no Brasil — o que nunca ocorreu com as de Freud, amplamente traduzidas, publicadas e, sobretudo, vendidas, em todo país, mesmo em tempos de ditadura. Além de tais referências, apenas duas outras menções eu poderia fazer, a título de lembrança. Uma quanto à referência eventual de Vigotski à ideia de que o inconsciente pode ser visto não só como processo “apartado da consciência”, mas também como uma “grandeza derivada do desenvolvimento e da diferenciação da consciência” (Vigotski, 1934/2001, p. 288).

Também nada que se diga estar em profunda aliança com a psicanálise. E, por último, a discussão epistemológica feita por Vigotski sobre o problema do inconsciente relativo à definição do objeto da própria psicologia. Algo que aparece no texto “A psique, a consciência e o inconsciente” (Vygotski, 1930/1991), mas não está também em função de uma adesão direta às contribuições de Freud, senão de uma análise do problema em diferentes autores, inclusive no próprio Lipps, cuja posição metafísica é destacada em “A crise da psicologia”. Ademais, como se sabe, o objeto da psicologia por excelência, para Vigotski, até o final de sua vida, permanecerá sendo a “consciência” — o que há de especificamente humano em nosso psiquismo, o macrocosmo da palavra significativa.

Deste modo, até constatar o contrário, mantenho minhas dúvidas quanto a haver qualquer papel especial para Freud na teoria das emoções de Vigotski, quanto a isso ser de fato relevante ou necessário para a formulação do seu projeto de investigação neste campo. Pelo contrário, o próprio Vigotski é quem contesta a possibilidade de ter a psicanálise uma visão compatível com o projeto geral da psicologia marxista, indicando que a noção ventilada de que a simpatia vigotskiana pela psicanálise residiria no caráter histórico da mesma, carece de fundamento documental, quando não de fundamento lógico. Mesmo que saibamos que o modo de pensar de Vigotski se transforma ao longo dos anos, e isso é fato, não constatamos mudança radical quanto ao cerne da posição deste autor sobre a psicanálise no período de 1927 a 1934. Em 1927, no livro já citado sobre a crise da psicologia, ele já afirmava que “a psicanálise mostra suas tendências profundamente estáticas e não dinâmicas, conservadoras, antidialéticas e anti-históricas” (Vygotski, 1927/1991, p. 299). Em dezembro de 1932, por ocasião de seminários internos e avaliação de trabalhos de seu grupo, Vigotski volta a dizer, de modo abreviado:

a psicologia profunda[22] afirma que as coisas são o que eram. O inconsciente não evolui — esta é uma descoberta extraordinária. Os sonhos resplandecem com luz reflexa, à semelhança da Lua. Isto se desprende de como interpretamos a evolução. Como transformação do que há sido desde um princípio?[23] Como nova formação? Então o mais importante será o último (Vygotski, 1932/1991, p. 130).

Difícil entender que “descoberta extraordinária” não seja uma ironia, nem tão “socrática”, aliás. Já que toda a base metodológica de Vigotski consiste em estudar os processos em sua gênese, seu desenvolvimento, sua transformação, sua história. Como seria “descoberta extraordinária” uma visão de que algo em nós continua sempre sendo o que já era antes, em sua natureza mais profunda e universal? Naquelas discussões de seu grupo, Vigotski falava da “psicologia dos cumes (não determina a “profundidade”, mas o “cume” da personalidade)” (1932/1991, p. 130). Nesse sentido criticava tanto a “psicologia superficial” (fenomenológica) quanto a “psicologia profunda” (psicanalítica), que quer explicar o homem por suas profundezas, sua natureza subterrânea.

Já a psicologia dos “cumes”, “elevações”, visa a compreender o ser humano a partir dele mesmo. Como em Marx: “ser radical é tomar as coisas pela raiz, mas a raiz para o homem é o próprio homem” (apud Chasin, 1999,  p. 9). Define-se o “próprio homem” como ser social, simbólico e histórico, por excelência — o que a psicologia profunda não demonstra priorizar. Como disse Jerome Bruner (2005), confrontando Freud e Vigotski, temos naquele uma hermenêutica focada no passado, e neste uma concepção de desenvolvimento voltada ao futuro, às formações mais avançadas que emergem/constituem-se mediante a linguagem nas relações sociais. Apenas resta perguntar: retroceder ao paradigma freudiano contribuirá para desenvolver uma teoria que deseja situar as emoções em suas relações constitutivas com a consciência, a história, a ideologia, a cultura e toda a gênese social da personalidade humana?

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Notas:
[0] Este é um material de 2009 que passou por revisão textual e de diagramação. Seu título anterior “Freud na teoria das emoções de Vigotski? Algumas dúvidas quanto a tal possibilidade” foi aprimorado para retratar melhor o caráter incisivo de seu conteúdo e facilitar buscas de quem demanda tal atitude. O teor teórico do texto e seu caráter ensaístico, problematizador, foram preservados. Versão atual concluída em Umuarama-PR, em 12 de janeiro de 2020. Última revisão em 28 de março de 2020. Disponível em: www.estmir.net/delari_2009_crt-lsv-frd.pdf
[1] Sigla para “eXtended Mind, Culture and Activity”. Trata-se de lista de discussão por e-mail, da qual participam pesquisadores de diferentes países, sobretudo alguns ligados à assim chamada CHAT (Cultural Historical Activity Theory), entre outros participantes. O site para acesso à lista está disponível em: http://lchc.ucsd.edu/MCA/index.html
[2] Wertsch (1985) relata que Vigotski teve por tutor Solomon Markovitch Ashpiz, versado na dialética (arte do diálogo) socrática. Esta, por sua vez, é composta de “maiêutica” e “ironia”. Na “maiêutica”, Sócrates trabalha como “parteiro”, auxilia o interlocutor a chegar a novas conclusões “por si mesmo”. Na “ironia” apresenta erros lógicos em sua própria fala, levando o interlocutor a perceber que, pensando assim, incorrerá em erro. Nem sempre as ironias de Vigotski são tão generosas. Às vezes, são recurso retórico ácido, ao estilo de Marx, Engels ou Lênin. Por exemplo: “Essa falha revelada com clareza no estudo de Dostoiévski, desenvolvido por Neufeld: ‘Tanto a vida quanto a obra de Dostoiévski são enigmas... Mas a chave mágica da psicanálise elucida todas as contradições e enigmas: o eterno complexo de Édipo viveu nesse homem e criou essas obras.’ (76, p. 12) Efetivamente genial! Não é chave mágica, mas certa chave falsa da psicanálise com que se pode descobrir decididamente mistérios e enigmas da obra” (Vigotski, 1925/1999, p. 95). Claro que “genial” não pode ser elogio, se a “chave mágica” é “chave falsa”. Noutros lugares a ironia é mais sutil
— ver p. 19 deste texto.
[3] “Diálogos dos mortos” são obras de gênero literário próprio da cosmovisão carnavalesca, cuja gênese histórica é estudada por Bakhtin em “Problemas da poética de Dostoiévski” (Bakhtin, 1929/1997). Nestas obras, os autores põem para conversar: pessoas que não o fizeram em vida; que viveram em épocas bem diferentes; e mesmo figuras históricas com personagens mítico-literários. Um clássico desse gênero é “Diálogo dos mortos” de Luciano (1998), uma sátira menipéia, do século II da nossa era.
[4] Quando este material foi redigido em 2009, havia notícias na comunidade acadêmica internacional de que uma primeira publicação da versão completa de tal obra estava prevista para o “volume 12” da nova edição russa das Obras de Vigotski em 15 volumes. Contudo, o volume 1 só foi publicado em 2015, dedicado exclusivamente a textos sobre questões estéticas. E até a finalização desta revisão, há apenas rumores quanto à publicação do segundo volume, nenhuma confirmação. Para visualizar o anúncio das obras em 15 volumes ou mais, favor acessar: http://www.estmir.net/plano-para-as-obras-completas-de-vigotski-em-15-tomos.html
[5] Como diz Rubinstein “o princípio da unidade psicofísica é o princípio mais importante da psicologia soviética” (1940/1967, p. 34). O que também se pode deduzir da posição monista de Vigotski ao afirmar que “a psique não aparece isolada do mundo ou dos processos do organismo nem por um milésimo de segundo” (1926/1991, p. 150). Dediquei uma seção a este princípio, ao discutir alguns “princípios de psicologia geral numa abordagem histórico-cultural” (Delari Jr. 2009b, p. 12-13).
[6] Detalhei essa discussão de Vigotski em um trabalho à parte, produzido como material didático para o nosso grupo de estudos em Umuarama (ver Delari Jr., 2009a).
[7] Segundo Rubens Rodrigues Torres Filho, tradutor brasileiro de obras de Schopenhauer, no sistema deste pensador: “a vontade é a raiz metafísica do mundo e da conduta humana; ao mesmo tempo, é a fonte de todos os sofrimentos. Sua filosofia é, assim, profundamente pessimista, pois a vontade é concebida em seu sistema como algo sem qualquer meta ou finalidade, um querer irracional e inconsciente. Sendo um mal inerente à existência do homem, ela gera a dor, necessária e inevitavelmente, aquilo que se conhece como felicidade seria apenas a interrupção temporária de um processo de infelicidade e somente a lembrança de um sofrimento passado criaria a ilusão de um bem presente. Para Schopenhauer, o prazer é momento fugaz de ausência de dor e não existe satisfação durável” (Torres Filho, 1980 – p. XII). Para quem já leu Freud, não haverá dificuldade em reconhecer semelhanças quanto a este modo trágico de retratar existência humana, em seu perpétuo “mal estar”
— ver também a nota “11”, na p. 10 deste trabalho.
[8] Provavelmente, Joseph François Chabrier (? – ?), autor de “Les émotions et les états organiques”, obra publicada em Paris, pela Alcan em 1911. Não sei dizer o que aconteceu a este estudioso, por qual motivo é tão pouco conhecido. Não se encontram registros biográficos sobre ele, nem mesmo títulos de outras obras suas. Este livro de 1911 encontra registro no site “Google books”, indicando que se trata de um volume de 157 páginas
— contudo não está disponível para venda ou consulta. As principais apreciações positivas de Vigotski com relação a este autor no capítulo 18 de “Teoria das emoções” foram compiladas num texto meu de cunho didático (Delari Jr., 2009a). Em alguns momentos não se sabe até que ponto as palavras são de Vigotski ou paráfrases de Chabrier.
[9] Em russo a palavra é “смысл” [smisl] que é mais comumente traduzida como “sentido”, entre os conceitos vigotskianos. Como no capítulo 7 de “Pensamento e linguagem”, em que Vigotski (1934/2001) diferencia “sentido” de “significado”
— respectivamente “смысл” [smisl] e “значение” [znatchenie].
[10] Isto não só é apontado por Vigotski, como tem sido reconhecido e até mesmo elogiado por estudiosos contemporâneos de Freud, como o professor Zeljko Loparic (ver Loparic, 2001).
[11] Nas palavras do próprio Freud, em “História do movimento psicanalítico”: “Otto Rank (1911a) nos mostrou um trecho da obra de Schopenhauer World as Will and Idea na qual o filósofo procura dar uma explicação da loucura. O que ele diz sobre a luta contra a aceitação da parte dolorosa da realidade coincide tão exatamente com o meu conceito de repressão que, mais uma vez, devo a chance de fazer uma descoberta ao fato de não ser uma pessoa muito lida” (FREUD, 1914/1978 – p. 45). De modo jocoso, o autor sugere que por ignorar o caráter social de suas próprias ideias, pode imaginar tê-las “descoberto”.
[12] Quanto ao caráter “não dinâmico” da psicanálise, Vigotski recua em “As emoções e seu desenvolvimento na idade infantil”, com a hipérbole de que “Freud mostra a extraordinária dinâmica da vida emocional” (Vigotski, 1932/1998, p. 96). Diz que ele a “mostra”, mas em seguida já acrescenta que “uma conclusão puramente formal de suas pesquisas é, a meu ver, correta, apesar da falsidade, em essência, da afirmação fundamental de Freud”. A ambivalência das emoções nas primeiras etapas de desenvolvimento é a constatação que Vigotski aceita “apesar do caráter equivocado da explicação que [Freud] fornece sobre a emoção ambivalente” (idem). Como no tema da relação “vida e morte” (ver página 19, deste trabalho), acolhe o problema concreto, mas rejeita a explicação metafísica
— falsa “em essência”. Já quanto ao “anti-histórico”, manterá sua posição — ver página 15, deste trabalho.
[13] Como dissemos noutro lugar (Delari Jr. e Bobrova Passos, 2009)
— não aderimos totalmente às periodizações correntes da obra de Vigotski. Cabe notar distinções qualitativas entre obras como “Psicologia da arte” (Vigotski, 1925/1999) e “Psicologia pedagógica” (Vigotski, 1924/2003; 1924/2004), ambas de um “mesmo período”. Mas é importante admitir que em 1925 Vigotski ainda não concebia a psicologia mediante a “teoria histórico-cultural”, cujos contornos mais nítidos teriam sido definidos só em 1928 (ver Valsiner e van der Veer, 1991/1996; Veresov, 1999). Pode-se até ver algo de reflexológico na “Psicologia da arte”, quando sentimentos proporcionados pela obra são vistos como “reações estéticas” e sua culminância catártica como “descarga de energia nervosa”. Contudo, Vigotski também busca o que diferencia as relações forma/conteúdo de cada obra e não apenas um mecanismo genérico que iguale a todas — o que critica no pansexualismo, infantilismo e interpretação energética dos psicanalistas.
[14] No final de sua vida, Freud sugerirá que a “pulsão de morte” não é da mesma natureza que a libido
— em algum momento, concebida como “sexual”. Neste período o próprio conceito de energia psíquica se torna mais abstrato e misterioso: “Presumimos (...) que na vida mental esteja em ação alguma espécie de energia, mas não temos nada em que nos basear que nos capacite a aproximarmo-nos de um conhecimento dela através de analogias com outras formas de energia” (Freud, 1938/1978, p. 212). Esta declaração é de 1938. Freud morreu em 1939. Não se pode dizer que fosse um “desvio metafísico da juventude”.
[15] Vários exemplos desse reducionismo poderiam ser dados, um dos mais notórios está em “O futuro de uma ilusão”, de 1927, no qual a religião é tratada não como realidade antropológica com suas especificidades simbólicas para cada sociedade em diferentes realidades geográficas e tempos históricos, mas tão somente como uma “neurose obsessiva universal da humanidade”. Nas palavras do próprio autor: “Assim, a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade; tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai” (FREUD, 1927/1978, p. 117). Freud já tinha 71 anos quando escreveu isso
— o que sugere não ser também nenhum “descuido juvenil”, embora o erro seja aqui mais grave que o da nota anterior.
[16] Mitólogos como Junito Brandão (1992) mostram que a leitura que Freud faz do Édipo é contestável. Pois Édipo, na lógica da tragédia, não mata o pai por desejo de estar (tampouco “permanecer”) com a mãe, mas para se tornar rei. A rainha é só um prêmio secundário que vem com o trono, posto que a cultura grega antiga dava muito pouco valor à mulher. Freud, por sua vez, tenta fazer do seu Édipo um princípio arcaico e válido para qualquer tempo histórico, sem considerar características culturais e políticas do povo que criou a obra literária. Tomou sua própria ideologia e a “projetou”, para usar seus próprios termos, sobre o passado distorcendo o caráter original do mito, lendo-o como convinha a seus interesses teóricos. Sua versão particular tornou-se tão difundida e de senso comum a ponto de posar hoje como algo “universal”, estruturante da personalidade de todo ser humano, em qualquer tempo e espaço.
[17] Ver nota “14”
— na página 14, deste trabalho.
[18] Um texto de 1925, bastante curioso, no qual os autores relatam que “uma nova e original tendência de psicanalistas está começando a se formar na Rússia, a qual, com ajuda da teoria dos reflexos condicionados, tenta sintetizar a psicologia freudiana e o marxismo e desenvolver um sistema de psicologia reflexológica freudiana no espírito do materialismo dialético.” (Vygotsky e Luria, 1925/1994, p. 11). Contudo, estas mesmas tentativas de fusão entre psicanálise e marxismo serão criticadas em 1927, como vimos, inclusive a do próprio Luria. Assim também a ideia vaga de que “Para além do princípio do prazer” tinha “enorme potencial para uma compreensão monista do mundo” (idem, p. 17), não foi suficiente para evitar que Vigotski em 1927 viesse a argumentar contra tal suposto “monismo”. Possivelmente, o prefácio de um livro por publicar-se na URSS bolchevique, que almejasse sucesso editorial, não poderia taxá-lo abertamente de “metafísico” ou “dualista”. Contudo, além da dúvida sobre as condições editoriais da produção do texto, fica também difícil saber de que modo interveio cada autor em sua redação, o que coube a cada um deles.
[19] Augusto Boal, em sua análise crítica da dramaturgia clássica grega, aponta para o caráter ideológico doutrinário desse processo de “purificação”... Pois as emoções a serem transformadas em uma “mais pura”, “superior”, eram justamente aquelas que contradiziam os padrões morais dominantes, próprios das castas aristocráticas da polis grega (ver BOAL, 1975/1988). O que não destoaria da avaliação de Bakhtin quanto aos chamados “gêneros sérios” como a lírica e a tragédia, porta-vozes de uma cosmovisão aristocrática, sisuda, que tende mais ao monológico que ao polifônico, cuja raiz está mais nos gêneros sério-cômicos próprios da cosmovisão carnavalesca de origem popular (Bakhtin 1929/1997). Algo para o que Vigotski não atenta. Outra distinção quanto às preferências literárias de Vigotski e Bakhtin, sobretudo quanto ao papel do cômico e da caricatura, pode ser ventilada, mas não é o momento.
[20] Pude contar 40 nomes, além de Freud, cujas contribuições são citadas: Aristóteles; Avenarius; Christiansen; Darwin; Dessoir; Diderot; Fischer; Goethe; Gross; Hamann; Hennequin; Herder; Iakubinski; James; Kornílov; Kulikóvski; Leman; Lessing; Lipps; Maier; Meinong; Meumann; Müller; Müller-Freienfels; Münstenberg; Orchanski; Ovsiániko-Kulikovski; Pietrajitski; Platão; Potiebniá; Ribot; Shiller; Sócrates; Spencer; Titchener; Viessielovski; Witasek; Wundt; Zeller; e Zienkovski. Num capítulo de 24 páginas, o nome de Freud aparece apenas nas páginas 251, 252 e 256. Caberia estudar a especificidade destas “outras vozes”, resgatando a pluralidade de contribuições sobre “catarse” neste capítulo, que se apaga pelo destaque desproporcional a Freud.
[21] Para Andrei Puzirei, esta busca diz respeito às “finalidades e os valores fundamentais presentes em todo o pensamento de Vigotski” (PUZIREI, 1989, p. 16 – grifos na fonte). Entende-se que há na sua obra uma forte “orientação ao ‘supremo’ no homem ou, para dizê-lo com palavras de Dostoiévski, ao ‘homem no homem’, à sua organização psíquica e espiritual, desde o ponto de vista do que pode ser, em geral, o homem e dos caminhos que existem para este estado possível, dos caminhos que abre, em particular, a arte e a psicologia da arte.” (idem). Evidentemente, Vigotski jamais poderia definir tudo que compõe o sentimento de ler Shakespeare, Dostoiévski, Bunin, num genérico e mudo conceito de “descarga de energia nervosa”, nem teria sido esse o objetivo principal de sua “Psicologia da arte”.
[22] Como se pode ver no capítulo 18 de “Teoria das emoções”, “psicologia profunda” é um termo usado por Vigotski para se referir à psicanálise freudiana (ver Vygotski, 1931-33/2004, p. 215).
[23] Veja-se a questão do infantilismo, já discutida na parte II
— na página 9 deste trabalho. E também a nota 15, na página 8, sobre o tratamento dado por esse autor ao tema da religião.
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Referências
 
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segunda-feira, 29 de abril de 2019

Horkheimer leitor de Schopenhauer: uma tradução e um breve comentário


por Flamarion Caldeira Ramos
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O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião, de 1971, foi o último de cinco textos que Horkheimer publicou em vida sobre a filosofia de Schopenhauer. Além dele, Horkheimer pronunciou outras quatro conferências na sede da Schopenhauer Gesellschaft em Frankfurt: Schopenhauer e a sociedade (1955), A atualidade de Schopenhauer (1961), Religião e filosofia (1967) e Pessimismo hoje (1969). Do primeiro ao último texto é possível notar algumas diferenças fundamentais na abordagem de Horkheimer, pois, se fica clara a vinculação entre os primeiros textos e as reflexões críticas sobre a “razão instrumental” e a “sociedade administrada”, marcantes no pensamento do Horkheimer do pós-guerra, nos últimos é evidente o parentesco com os temas da assim chamada filosofia tardia de Horkheimer, que flerta comum a recuperação da teologia por meio da temática do “anseio pelo inteiramente outro”. Para compreender o que está em jogo nesses textos, portanto, temos de ver como o motivo do pessimismo se desenvolve ao longo da obra de Horkheimer.

Seguindo a indicação de F. Werner Veauthier, podemos esboçar ao menos cinco posições ao longo do desenvolvimento intelectual de Horkheimer nas quais o “motivo do pessimismo” se faz presente.[1] Em primeiro lugar, posições fundamentalmente pessimistas formam desde o início um elemento constante no pensamento de Horkheimer, por mais que se queira ver o pessimismo da fase tardia como uma radical mudança em relação às posturas críticas da década de 30. Esse elemento se refere ao caráter infundado da busca da felicidade, do sofrimento da natureza, das dores do passado e da transitoriedade do presente. Por isso, apesar de todo otimismo que possa ter o materialismo com relação à mudança das condições, 

apesar de toda a valorização da felicidade que brota do esforço por mudança e da solidariedade, ele carrega consigo um traço pessimista. A injustiça passada é irremediável. Os sofrimentos das gerações passadas não encontram nenhuma compensação.[2]

O pessimismo aqui não se refere a uma teoria catastrófica, apocalíptica em relação ao presente e ao futuro, mas a fatos do passado, algo que não pode ser mais resgatado. Essa experiência do pessimismo não contradiz a convicção no caráter socialmente condicionado do bem estar humano, pois também o sofrimento é causado por relações sociais e como tal deve ser combatido. Nesse sentido, o pessimismo também se compreende como socialmente condicionado, pois diz respeito a uma sociedade em que a solidariedade com aqueles que ela exclui, com os pobres e injustiçados, é negada: o pessimismo é, portanto, negação da solidariedade negada. Se é assim, então o pessimismo de Horkheimer se distancia, pelo menos em sua fase inicial, de um pessimismo autocomplacente referido ao próprio sujeito, constantemente qualificado de “romântico”, pois tenta unir a convicção de que “o núcleo mesmo da vida é o sofrimento e a morte” com a solidariedade presente na crítica social que visa a emancipação. Seria então essa convicção que justificaria a seguinte afirmação posterior de Horkheimer?

O pessimismo metafísico, momento implícito em todo pensamento genuinamente materialista, me foi familiar desde sempre. À obra de Schopenhauer devo meu primeiro contato com a filosofia: a relação com a doutrina de Hegel e de Marx, o desejo de compreender e de mudar a realidade social não resgataram, apesar do contraste político, minha experiência com a sua filosofia.[3]

Um segundo momento seria aquele caracterizado pelos textos do pós-guerra que se dirigem especialmente a uma crítica da razão: a Dialética do esclarecimento (em parceria com Adorno) e o Eclipse da razão. A ideia do esclarecimento, essencial para o processo emancipatório, é considerada um fracasso, e Horkheimer afirma a posição pessimista de um declínio latente da razão. Trata-se agora do tema da perversão da razão que, em vez de levar à emancipação do homem, conduziu a uma dominação da natureza e a um mundo totalmente administrado que tem como consequências o declínio do indivíduo e a revolta da natureza. Esse novo diagnóstico potencializa o motivo pessimista, pois agora justamente aquela instância que poderia levar o homem à compreensão das injustiças, e assim dar o primeiro passo para a transformação das relações sociais injustas, é posta em cheque. Embora não chegue a afirmar um pessimismo metafísico, que estabeleceria causas a-históricas e intemporais para o mal no mundo – pelo contrário, Horkheimer recusa terminantemente o recurso a tal argumentação –, o autor não deixa de refletir sobre os fundamentos que levaram a uma tal situação. O que toma forma no pensamento de Horkheimer agora não é somente um pessimismo com relação à técnica, uma tecnofobia, mas a ideia segundo a qual a razão subjetiva, que transforma a razão num mero instrumento, corrói de maneira fatal a razão objetiva. Disso é consequência a falência dos sistemas objetivos da razão, que ainda tentavam dar voz às necessidades mais essenciais do homem e da natureza, e em seu lugar entra o mero cálculo e a transformação dos meios em fins. Esse talvez seja o momento mais importante da leitura horkheimiana de Schopenhauer, pois sem dúvida este último serviu de inspiração ao primeiro na medida em que Schopenhauer já considerava a razão, desvinculada de qualquer preocupação com o conhecimento objetivo, como um mero instrumento para servir à vontade de viver.[4]

Como consequência dessa situação e em contraste com o crescimento econômico e o Estado de bem-estar social, é possível notar nos apontamentos tardios (Notizen: 1949-1973) uma expansão do sentimento de desilusão com as promessas emancipadoras da atividade de crítica e transformação da sociedade. Este seria o terceiro momento do pessimismo em Horkheimer. O retrocesso da autonomia do sujeito individual, o desvanecimento da fantasia e da criatividade expressam uma situação social indigna e niveladora. Neste cenário é que se dá uma volta aos textos de Schopenhauer e uma desconfiança com relação ao pensamento dialético de Hegel e Marx. É o que se pode notar nas conferências Schopenhauer e a sociedade (1955) e A atualidade de Schopenhauer (1961). Inicialmente, o autor de Teoria tradicional e teoria crítica prefere ressaltar os aspectos inconformistas da moral schopenhaueriana e seu caráter crítico em relação ao idealismo de Hegel. A atualidade e o valor do radicalismo moral de Schopenhauer, segundo Horkheimer, consistem em sua insistente recusa de qualquer conciliação idealista em que o sofrimento encontre sua justificação.Dessa atitude é sintomática sua concepção nada divina do Estado que, antes de ser uma instituição moral, repousa no “egoísmo esclarecido” dos indivíduos, não sendo mais que uma instituição protetora em relação aos ataques externos e internos. Assim, Schopenhauer não teria

endeusado nada, nem o Estado nem a técnica; o desenvolvimento do intelecto se apoia no desenvolvimento das necessidades; e os promotores máximos das ciências foram a fome, o instinto de poder e a guerra: a fábula idealista acerca da astúcia da razão, mediante a qual o horror do passado se vê tanto embelezado como mitigado graças ao bom final, deixa que se filtre a verdade sobre o sangue e a miséria que acompanham os triunfos da sociedade, e o resto é ideologia.[5]

A revalorização que Horkheimer oferece do pensamento de Schopenhauer se deve ao reconhecimento de que nenhuma construção teórica pode estar acima do sofrimento de cada criatura num mundo que prossegue dominado pela contradição e pela dor. É assim que ele julga Schopenhauer como um “pessimista clarividente” que acabou sendo confirmado pela história no século XX; sua negação do curso do mundo é o reconhecimento da experiência de que nenhuma astúcia da razão pode justificar um mundo absurdo. A violência da história faz o homem recuar diante de qualquer esperança de emancipação, e o que tem lugar então é a experiência do horror histórico:

a doutrina de Schopenhauer põe ante a vista do que se trata: os interesses materiais, a luta pela existência, o bem-estar e o poder formam o motor; a história o resultado. Schopenhauer não racionalizou filosoficamente a experiência do horror e da injustiça que se dá até nos países que são governados do modo mais humano; teve medo da história; lhe repugnavam as mudanças políticas violentas que tentaram levar a cabo na época contemporânea com ajuda de uma exaltação nacionalista.[6]

É assim que Horkheimer, em especial a partir dos anos 60, insiste, contra Hegel e contra qualquer espécie de idealismo, na inadequação essencial entre o conceito e seu objeto. O espírito deve cobrar consciência de que o mundo vive dominado pela contradição e pela dor, mas, ao chegar a esse ponto, deve sucumbir, e não erigir-se em sistema de pensamento capaz de salvar a positividade do absoluto, nele incluindo a tortura e a morte[7]. Estabelece- se então a tarefa da filosofia, de dar voz ao sofrimento, e a recusa de conciliar a dor com qualquer falsa totalidade. A filosofia deve expressar, portanto, uma experiência, e essa experiência é a do sofrimento, pois somente a contemplação do mal pode fundar a solidariedade e o impulso de pôr-lhe fim. Maurício Chiarello mostra como a obra de Schopenhauer passa a ter um papel fundamental no pensamento de Horkheimer, quando este se desencanta com as promessas emancipadoras da dialética. O materialismo dialético teria falhado ao representar o Bem supremo sobre a face da terra como realização não somente possível no decorrer do processo histórico, mas mesmo logicamente necessária. Chiarello resume a aproximação de Horkheimer a Schopenhauer:

Atual é Schopenhauer, assinala Horkheimer, porque hoje, mais ainda do que em seu tempo, o progresso da civilização demonstrou ser aquilo que, em sua obra, já se desmascarava em sentenças tão inconformadas quanto amargas. Saltava-lhe aos olhos que a marcha triunfal do progresso não passava da manifestação da Vontade inconsciente de si mesma em sua crueza irracional e autodevoradora. Repetirá, incansável, que o processo histórico é uma eterna repetição do mesmo com outros nomes e sob outras roupagens. E contudo, nessa clarividência esteve sozinho. Contra toda sua época, que em uníssono idolatrou a história como contínua e necessária progressão rumo ao melhor, Schopenhauer escreveu como um profeta a maldizer seu tempo, enquanto seus contemporâneos deixavam seu vaticínio cair no vazio. Seu grande valor: o de não ter sucumbido a nenhuma tentativa de racionalizar o horror e a injustiça reinantes na história. Foi lúcido e honesto o bastante para discernir, por trás da apologia do progresso a qualquer preço, mais um ardil da razão a disfarçar o interesse material, o afã da existência, bem-estar e poder que governam a história. Compreendeu melhor do que ninguém em seu tempo que todo progresso pagava-se com novas penas, para cuja realização impunha-se a representação de algo melhor.[8]

Já no final dos anos 60 a leitura de Horkheimer inicia um novo movimento. Se temos agora, por um lado, uma confirmação do processo contínuo de reificação que acarreta a decadência da cultura burguesa e que se expressa na perda de sentido da autoridade, da família e de valores como o amor e o respeito, temos, por outro, uma abertura a temas que escapam da crítica social e se aproximam da filosofia da religião e da teologia. As três últimas conferências de Horkheimer sobre Schopenhauer desenvolverão esses dois temas. E essas são as duas últimas figuras do pessimismo em Horkheimer, embora a última delas pareça flertar com uma simbólica esperança numa ordem diferente de coisas. Essa esperança, entretanto, não se baseia em nenhuma crença sobrenatural, mas no anseio, que permanece mero anseio, de que a injustiça não seja a única a triunfar. Trata-se de uma esperança que surge da experiência do mal, como possibilidade última de sua superação. Em Schopenhauer há realmente algo próximo disso, em sua teoria da negação da vontade de viver. Por isso, para Horkheimer, no quadro do capitalismo tardio e da dissolução da razão substancial, a filosofia de Schopenhauer permanecerá um consolo: “em contraste com a mentalidade atual, sua metafísica oferece a mais profunda fundamentação da moral, sem entrar em contradição com o conhecimento científico”[9]. Segundo Horkheimer, os argumentos da filosofia pessimista de Schopenhauer que apoiam o cristianismo são mais plausíveis que os argumentos da ontoteologia racionalista de autores como Descartes ou Leibniz, ou do criticismo kantiano, que retoma as crenças cristãs na existência de um Deus bondoso e na imortalidade da alma por meio da doutrina dos postulados da razão prática[10]. Aqui Horkheimer parece concordar inteiramente com a tese de Schopenhauer segundo a qual sua filosofia deve ser considerada a autêntica filosofia cristã.[11] Mas qual a interpretação que Schopenhauer tem do cristianismo que o permite julgar que sua filosofia, mesmo ateia e imanente, é a filosofia propriamente cristã?

Os dois pontos principais que fazem Schopenhauer aproximar sua filosofia da religião cristã são: a ideia do pecado original, da queda do homem que permite interpretar o mundo como um “vale de lágrimas”, e a ideia da redenção do mundo pelo sofrimento, como apresentado na paixão de Cristo. Em sua metafísica, Schopenhauer oferece uma visão da existência carregada de negatividade, o que se fundamenta em sua concepção da vontade como a essência íntima das coisas, o substrato de todos os fenômenos, a coisa em si de Kant. O mundo dos fenômenos, que se apresenta na experiência, é regido pelo princípio de razão que sempre relaciona um efeito a uma causa em todo evento espaço-temporal, e é o que torna esse mundo da representação uma série necessária de acontecimentos determinados. Assim como em Kant, o entendimento, que unifica a multiplicidade sensível, aparece como o princípio que torna a experiência do mundo relativa à nossa capacidade de conhecer. Para além desse mundo dado na intuição empírica deve haver algo mais substancial, pois, se toda a realidade se esgotasse nos fenômenos, o mundo inteiro não se distinguiria dos sonhos e o idealismo absoluto seria justificado. Para além dos fenômenos, porém, Schopenhauer compreende a vontade como a essência permanente das coisas, constituinte da realidade substancial do mundo dado na intuição empírica.

Estabelecida a Vontade como a coisa em si, resta indicar quais as consequências éticas com as quais essa filosofia se de- para. Se este mundo é a objetivação da vontade de viver, ele é então o palco da afirmação de si mesma dessa vontade, e tudo o que acontece neste mundo não pode ser senão a realização desse querer. Quando é afirmada essa vontade de vida, o que se afirma é esta vida que temos diante dos olhos no mundo, e, para saber o que quer essa vontade infinita, basta-nos ver o que o próprio mundo é. Como não existe causa fora do domínio do princípio de razão, apenas se pode dar a razão dos fenômenos, não da própria vontade. “De fato, a ausência de toda finalidade e de todo limite pertence à essência da Vontade em si, que é um sem fim”.[12] Um eterno devir, um escoamento perpétuo é o que caracteriza a vontade de viver. As características perturbadoras que a vida em geral assume são todas decorrentes da essência da vontade. Segundo Schopenhauer, a Vontade, em todos os seus graus de manifestação, tem falta total de uma finalidade última, deseja sempre, sendo o desejo todo o seu ser. É por isso que só podemos conceber os seres do mundo num estado de perpétua dor, sem felicidade durável. Isso porque todo desejo é sofrimento enquanto não é satisfeito, pois nasce duma falta. Como não existe fim último para o esforço, não existe termo para o sofrimento. No reino animal vemos a infinita diversidade de formas, as modificações incessantes às quais elas se submetem para apropriar-se do meio, também a arte inimitável e igualmente perfeita em todos os indivíduos que preside a sua estrutura e seu mecanismo, a inesgotável quantidade de força que eles empregam, tudo isso em favor da conservação de suas respectivas espécies. Mas não vemos como resultado mais que a satisfação da fome e do instinto sexual, e talvez alguns curtos momentos de bem-estar.

Se se considera, de uma parte, a engenhosidade inexprimível do empreendimento, a riqueza indizível dos meios e, de outro, a pobreza do resultado perseguido e obtido, então nos impele a admissão de que a vida é um negócio cujos lucros não cobrem, nem de longe, os gastos.[13]

A vida do homem também não se apresenta de forma alguma como uma dádiva, mas sim como uma tarefa, como uma dívida da qual devemos livrar-nos. No todo ou em detalhe, o que vemos não é senão miséria universal, fadiga sem trégua, atividades força- das, lutas sem fim, mas a finalidade de tudo isso consiste apenas em assegurar durante um curto espaço de tempo a existência de indivíduos efêmeros e atormentados.[14]

Diante de tal quadro a afirmação da vida seria a aceitação desse espetáculo – “belo de se ver”, é verdade. “Mas ser é bem outra coisa”[15]. Já a negação da vontade tem o sentido de uma recusa e, por isso, é uma atitude moral. Aquele que nega é aquele que, ao tomar para si todas as dores do mundo, não pode mais afirmar o sofrimento essencial à vida. Dessa forma, não basta negar o fenômeno, mas a própria essência. A negação da vontade, no entanto, não surge a partir do sofrimento com a necessidade do efeito saído de uma causa, mas a vontade permanece livre. Aqui se trata de uma “conversão transcendental”, já que esse é o único ponto em que a liberdade da vontade se expressa no fenômeno[16]. Daqui em diante, o autor se utiliza de expressões emprestadas da mística e da religião, cristã e oriental, para expressar seu pensamento.

Aquilo a que os místicos cristãos chamam efeito da graça e renascimento é para nós a única manifestação imediata da liberdade da vontade. Ela se produz apenas quando a vontade, após alcançar o conhecimento de sua essência em si, obtém um quietivo e é subtraída da ação dos motivos, ação que depende de um outro modo de conhecimento em que os objetos são apenas fenômenos.[17]

Para entender esse processo, entretanto, falta qualquer conceito, resta apenas a linguagem simbólica das religiões. Schopenhauer opõe o homem natural ao santo, o reino da natureza, regido pela necessidade, ao reino da graça, o reino da liberdade[18]. A identidade de todos os seres só pode se dar no domínio da negação da vontade (Nirvana), pois no domínio da afirmação (Samsara) só há multiplicidade[19]. Segundo a teologia cristã interpretada por Schopenhauer, Adão simbolizaria a natureza e a afirmação da vontade, e Cristo a graça, a negação da vontade, a redenção:

Decididamente, a doutrina do pecado original (afirmação da vontade) e da redenção (negação da vontade) é a grande verdade que forma, por assim dizer, o núcleo do cristianismo; todo o resto é, a maior parte das vezes, apenas vestimentas e invólucro, ou algo acessório.[20]

A partir desse ponto podemos destacar o que seria a “filosofia da religião” de Schopenhauer, ressalvando-se o fato de o filósofo indicar sua desconfiança com relação a essa expressão que reme- te a Hegel, notando, entretanto, uma certa semelhança entre os dois filósofos no que diz respeito à fronteira entre a filosofia e a religião. Para Schopenhauer, o conhecimento metafísico expresso nas religiões sempre apresenta um conteúdo profundo de verdade, mas quase sempre envolto numa linguagem alegórica, simbólica. Nesse sentido, ele diferencia a verdade sensu próprio da metafísica racional da verdade sensu allegorico das religiões. A religião apresenta assim a verdade “sob a roupagem da mentira” e,

quando se compreende a dogmática cristã sensu próprio, então tem razão Voltaire, mas tomada em sentido alegórico ela é um mito sagrado, um veículo pelo qual são trazidas ao povo verdades que de outro modo lhe seriam inacessíveis.[21]

Portanto, é por meio de uma certa aproximação do cristianismo com o budismo e o hinduísmo, e da acentuação do caráter ascético do cristianismo como uma rejeição religiosa da existência mundana, que Schopenhauer procura salvar o conteúdo da fé cristã. A justificação da moral cristã ocorre por meio de tal rejeição e a vida dos santos serve como modelo não por causa dos dogmas religiosos, mas pela visão daquilo que há de mais íntimo no universo que estaria na base de suas ações. O mundo dos fenômenos, a realidade da experiência sensível, não é a obra de uma potência divina, a expressão de um ser bom em si mesmo e eterno, mas da vontade que se afirma identicamente em cada ser finito, e é por isso que cada um pode se identificar com cada um não por meio de motivos particulares, mas por sua experiência comum na vivência do sofrimento. Por isso, conclui Horkheimer, “quem reconhece sua obra como verdadeira não afirma de maneira alguma os dogmas, mas certamente o espírito do evangelho”.[22]

A partir dessa recepção de Schopenhauer, Horkheimer irá desenvolver, em seus últimos escritos, uma recuperação da teologia que, em parte, se inspira no pensamento do autor do Mundo como vontade e representação e, por outro lado, dele se afasta. O autor transforma positivamente o anseio pelo inteiramente outro, que em Schopenhauer tinha apenas um caráter negativo, numa esperança efetiva de que o mal do mundo não seja a última palavra da realidade. É verdade, porém, que essa esperança permanece um sentimento com sentido prático e jamais dá lugar a um conhecimento efetivo. Nesse sentido, o pensamento de Schopenhauer, apesar de marcado pelo pessimismo, constitui um consolo positivo, pois ainda representa a tentativa de buscar um significado moral do mundo para além do positivismo e em contraste com a completa socialização levada a cabo pela sociedade totalmente administrada. Sua teoria, apesar de antecipar e justificar o pessimismo dos dias de hoje, “não é, de modo algum, tão pessimista quanto a absolutização da ciência”.[23] Ela pode “fundar uma solidariedade que, de maneira não dogmática, contém em si momentos teológicos”[24], pois o “pessimismo une experiências histórico-filosóficas com a herança da grande teologia. Sua difusão poderia ocasionar muito mais o bem do que a formação cada vez mais, e em toda parte, exclusivamente profissional”.[25]

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Notas:
[1] Cf. Veauthier, F. W. “Zur Transformation der Pessimismus-Motive im Denken Max Horkheimers”. In: Schopenhauer Jahrbuch, nº 73. Frankfurt am Main, 1988, pp. 593-607. Para Veauthier, o “motivo pessimista” ou “motivo schopenhaueriano”, efetivamente presente em todas as fases do pensa- mento de Horkheimer, é “o interesse no sofrimento humano, em sua causa e na possibilidade de sua supressão. ‘Pois, que milhares tenham vivido na felicidade e no bem-estar, isso não suprime a angústia e o martírio de um único’. Essa convicção de Schopenhauer ficou profundamente impregnada na filosofia social de Horkheimer, mesmo se ele não pudesse compartilhar de sua suposição metafísica fundamental de um querer existir que causa o sofrimento”. Idem, p. 593. Deve-se entender aqui por motivo, segundo Veauthier, algo diferente de “argumento”, o que não quer dizer que ele seja irredutível a qualquer verificação racional. Ele é, ao mesmo tempo, ponto de partida (Beweg-Grund) do pensamento, mas também causa real do desenvolvimento social. Cf. Idem, p. 595.
[2] Horkheimer, M.
Materialismo e metafísica. In:______. Teoria Crítica I. Trad. de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 43. Cf. Post, W. Kritische Theorie und metaphysischer Pessimismus. Zum Spätwerk Max Horkheimers. München: 1971, p. 37.
[3] Horkheimer, M. “Prefácio para a reedição de Teoria crítica I” (1968). In:______. Teoria crítica I, p. 4. Este prefácio, escrito em 1968, já indica, porém, algumas diferenças fundamentais sobre a questão da relação entre teoria e prática no pensamento de Horkheimer. Assim, diz o autor na sequência do texto citado: “A sociedade melhor, a sociedade justa, é uma meta que se mistura com a ideia de culpa. Desde o fim da guerra, porém, a meta mu- dou. A sociedade se encontra em nova fase. Característicos da estrutura da camada superior já não são os capitalistas concorrentes, mas o empresaria- do, as associações, os comitês; a situação material dos dependentes suscita tendências políticas e psicológicas diferentes das do antigo proletariado”. (Idem, Ibidem). Essa passagem revela claramente o quanto as mudanças fundamentais entre as abordagens sobre a relação entre a teoria e a prática no pensamento de Horkheimer dependem de sua visão do capitalismo e da democracia no pós-guerra. Evidentemente, esse não será o tema deste breve comentário, que visa apenas esboçar um quadro sobre os pontos principais da leitura de Horkheimer sobre Schopenhauer ao longo de sua obra.
[4] Cf. Chiarello, M. G. Das Lágrimas das coisas. Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer. Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p. 261 e ss.
[5] Horkheimer, M.
Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973. In:______. Gesammelte Schriften. vol. 7. Org. de A. Schmidt. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1985, pp. 124-5. Edição espanhola: Horkheimer, M. “Schopenhauer y la Sociedad”. In: Adorno, T. W.;______. Sociologica. Madrid: Taurus, 1971, p. 168.
[6] Horkheimer, M.
Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973. In:______.Gesammelte Schriften, p. 125. Edição Espanhola: Horkheimer, M. “Schopenhauer y la Sociedad”. In: Adorno, T. W.;______. Sociologica, p. 169.
[7] Cf. Schmidt, A. Drei Studien über Materialismus. Schopenhauer, Horkheimer, Glücksproblem. Munique: Carl Hanser Verlag, 1977, pp. 8-9.
[8] Chiarello, M. G. Das Lágrimas das coisas. Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer, p. 195-6.
[9] Horkheimer, M.
Schopenhauers Denken im Verhältnis zu Wissenschaft und Religion. In:______. Gesammelte Schriften, vol. 7 (Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973), pp. 251-2.
[10] Horkheimer, M.
Religion und Philosophie. In:______. Gesammelte Schriften, vol. 7, p. 193.
[11] Idem, ibidem. Cf. Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, § 163, In: Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 229.
[12] Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação. In:______. Sämtliche Werke. Editadas e comentadas criticamente por Arthur Hübscher. Wiesbaden: F. A. Brockhaus, 1972, vol II. § 28, p. 195. Edição brasileira: Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação. Trad. de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005, p. 230.
[13] Schopenhauer, A.
O mundo como vontade e representação. Complementos, Cap. 28. In:______. Sämtliche Werke, vol. III, p. 403.
[14] Idem, p. 407.
[15] Idem, p. 665.
[16] Cf. Schopenhauer, A.
O mundo como vontade e representação, § 68. In:______.Sämtliche Werke.vol. II, p. 467.
[17] Schopenhauer, A.
O mundo como vontade e representação, § 70. In:______. Sämtliche Werke.vol. II, p. 478. Edição brasileira: Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação, p. 510.
[18] Cf. Idem, ibidem.
[19] Cf. Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação, E, cap. 48. In:______. Sämtliche Werke.vol. III, p. 700. Isso não nos deve levar a ver a negação da vontade como uma reabsorção do indivíduo no todo do mundo, como se bastasse restabelecer a unidade que a multiplicidade do mundo fenomênico desfez para alcançar a redenção. Essa interpretação, porém, está presente em uma série de comentadores da obra de Schopenhauer, e mesmo Horkheimer parece interpretá-lo assim num texto dos Notizen (que permaneceu póstumo) intitulado “Schopenhauer als Optimist”. Segundo Horkheimer, mesmo Schopenhauer, com a teoria da negação da vontade de viver, recairia no dogmatismo otimista ao considerar a possibilidade do fim do sofrimento como uma realidade metafísica. Para ele, ainda que Schopenhauer não argumente contra a realidade da miséria, como fazem os outros sistemas, ainda assim ele incorreria no erro de considerar possível uma reconciliação da vontade consigo mesma. Esta se daria com o retorno da vontade individual à vontade una: “no fundo, [ele] pensa que a dor e o tédio só correspondem à vontade individual, não à vontade lisa e plana”. Disso se segue, para Horkheimer, que Schopenhauer expressaria um otimismo metafísico ainda mais decisivo ao aceitar o mito da trans- migração das almas, que estaria pressuposto na ideia de que apenas alguns indivíduos podem alcançar uma saída redentora do mundo como vontade. Assim, conclui Horkheimer, “a boa infinitude é um consolo duvidosamente filosófico. Dessa maneira, em última instância, Schopenhauer conserva a razão contra si mesmo. O quarto livro de sua obra principal se revela como um descarrilamento, como um lapsus que os outros três conseguem refutar”. Horkheimer, M. Notizen. In:______. Gesammelte Werke, vol. 6, p. 388. Já na conferência Pessimismus Heute (1969), essa mesma interpretação de Schopenhauer é o ponto de partida para vincular o pessimismo teórico com uma “práxis não não-otimista” (nicht unoptmistische Praxis), pois representaria uma via de superação do pessimismo por meio de uma solidariedade que contém em si momentos teológicos. Essa interpretação, porém, nos parece questionável, pois Schopenhauer não fala em nenhum momento de um retorno, a não ser o retorno ao estado anterior ao delito do nascimento, o que só pode ser caracterizado negativamente como “nada”. O inteiramente outro, em Schopenhauer, se apresenta como algo simples- mente inteiramente diferente do mundo fenomênico. Cf. Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação. Complementos, Cap. 48. In:______. Sämtliche Werke, vol. III, p. 691.
[20] Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação, § 70. In:______.Sämtliche Werk, vol. II, p. 480.
[21] Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, § 177. In:______. Sämtliche Werk, vol. VI, p. 394. Na conferência Religião e filosofia, Horkheimer aponta a concordância dessa concepção de Schopenhauer com o pensamento do teólogo protestante Paul Tillich. A semelhança com Hegel estaria na consideração do momento de verdade da religião pelo qual um conteúdo verdadeiro estaria expresso na forma inadequada da alegoria ou da representação. Cf. Schmidt, A. Die Wahrheit im Gewande der Lüge: Schopenhauers Religionsphilosophie. München, Zürich: Piper, 1986.
[22] Horkheimer, M.
Religion und Philosophie. In:______. Gesammelte Schriften, vol. 7, p. 193.
[23] Horkheimer, M.
Schopenhauers Denken im Verhältnis zu Wissenschaft und Religion. In:______. Gesammelte Schriften, vol. 7 (Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973), pp. 252.
[24] Horkheimer, M.
Pessimismus Heute. In:______. Gesammelte Schriften, vol 7, p. 232. O texto continua: “Com sua postura no final negativa vincula-se àquilo que aqui em Frankfurt é conhecido como ‘teoria crítica’”.
[25] Idem, Ibidem.
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Bibliografia:
CHIARELLO, M. G. Das Lágrimas das coisas. Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
HORKHEIMER, M.“La actualidad de Schopenhauer”. In: ADORNO, T. W.;______. Sociologica, Madrid: Taurus, 1966.
______. “Schopenhauer y la Sociedad”. In: ADORNO, T. W.;______. Sociologica, Madrid: Taurus, 1966.
______. Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973. In:______. Gesammelte Schriften. vol. 7. Org. de A. Schmidt. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1985.
______. Eclipse da razão. Trad. de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2001.
______. Teoria crítica I. Trad. de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2006.
POST, W. Kritische Theorie und metaphysischer Pessimismus. Zum Spätwerk Max Horkheimers. München: Kösel-Verlag, 1971.
SCHMIDT, A. Drei Studien über Materialismus. Schopenhauer, Horkheimer, Glücksproblem. Munique: Carl Hanser Verlag, 1977.
______. Die Wahrheit im Gewande der Lüge: Schopenhauers Religionsphilosophie. München, Zürich: Piper, 1986.
______. Max Horkheimer heute: Werk und Wirkung. Frankfurt am Main: Fischer, 1986.
SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Editadas e comentadas criti- camente por Arthur Hübscher. Wiesbaden: F. A. Brockhaus, 1972.
______. Parerga e paralipomena. Trad. de Wolfgang Leo Maar. In: Coleção “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural, 1980.
______. O mundo como vontade e representação. Trad. de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.
VEAUTHIER, F. W. “Zur Transformation der Pessimismus-Motive im Denken Max Horkheimers”. In: Schopenhauer Jahrbuch, nº 73, Frankfurt am Main, 1988, pp. 593-607.
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Resumo: Apresenta-se aqui um breve comentário introdutório à tradução de O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião (1971) de Horkheimer. Trata-se apenas de indicar o lugar e a importância desse texto na filosofia tardia de Horkheimer e mostrar, com isso, as diferentes abordagens que o fundador da Teoria Crítica oferece do pensamento de Schopenhauer e do pessimismo.

Palavras-chave: Horkheimer, Schopenhauer, pessimismo, filosofia, ciência, religião

Abstract: This paper presents a brief introduction to Horkheimer’s The thought of Schopenhauer Concerning Science and Religion (1971) by indicating the role and the importance of this text in Horkheimer’s late philosophy, as well as the several approaches of Schopenhauer’s thought throughout his work.

Key-Words: Horkheimer, Schopenhauer, pessimism, philosophy, science, religion
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RAMOS, F. C. “Horkheimer leitor de Schopenhauer: uma tradução e um breve comentário”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, n. 12 – p. 99-113 – jul.-dez. 2008.
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