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quinta-feira, 27 de julho de 2023

Baudrillard compreendeu a vida simbólica do capital, mas se esqueceu do mundo material

por Miri Davidson
Jacobin

O pensador francês Jean Baudrillard desenvolveu uma análise pioneira do simbolismo e do consumo no capitalismo moderno com algumas opiniões valiosas. Mas perdeu de vista as estruturas materiais das quais depende o poder do capital e mergulhou num beco político sem saída.
O que devemos pensar de Jean Baudrillard hoje em dia? Embora ele tenha sido uma referência importante para qualquer estudante da hiperrealidade do capitalismo tardio, parece que ninguém tem falado sobre ele há anos.

Por um lado, essa negligência é intrigante. As afirmações de Baudrillard sobre o colapso da linha entre realidade e simulação são mais prementes do que nunca, com generais russos transmitindo ao vivo seus ataques a cidades ucranianas e “pesquisadores” do QAnon transformando enigmáticos poemas do 8chan em insurreições no mundo real.

Por outro lado, parece perfeitamente razoável: com a revitalização da política socialista, o radicalismo performativo de grande parte do trabalho posterior de Baudrillard – acompanhado de rejeições ao marxismo e a qualquer projeto político emancipatório – parece ainda mais vazio. Perry Anderson descreveu Baudrillard como “um pensador cujo temperamento, para melhor ou pior, é incapaz de concordar com qualquer noção de aceitação coletiva”. Em um momento em que “pensar de forma diferente” por si só é prerrogativa da extrema-direita, é duvidoso que esse tipo de atitude nos ajude.

No entanto, Baudrillard nem sempre estava convencido da ineficácia da política de esquerda ou da redundância do marxismo como referencial teórico. De fato, seus três primeiros livros — O Sistema de Objetos (1968), A Sociedade do Consumo (1970) e Por uma Crítica da Economia Política do Signo (1972) — demonstram um esforço sustentado de atualização do marxismo para que ele pudesse abordar as questões prementes de seu tempo.

Como explicar a decomposição da classe trabalhadora na era do pós-guerra? O que a produção em massa tinha a ver com o declínio das lutas dos trabalhadores? Embora as respostas de Baudrillard a essas questões se desdobrem ao longo dos anos em proclamações cada vez mais não sérias sobre uma “nova fase” do capitalismo semiótico, suas orientações em mudança podem nos dizer muito sobre a trajetória da teoria francesa e a crítica parcial ao capitalismo que ela deixou em seu rastro.

Os pronunciamentos de Jean Baudrillard sobre o colapso da linha entre realidade e simulação são certamente mais prescientes do que nunca hoje.

Um levantamento zoológico dos signos

Iniciando sua carreira intelectual como germanista, Baudrillard cotraduziu A Ideologia Alemã de Marx e Engels para o francês, leu a obra de Theodor Adorno e Max Horkheimer antes de ser traduzida, e conheceu Georg Lukács desde cedo. Mas parece que ele tomou “literalmente”, como escreve Charles Levin, a afirmação de Lukács de que “o problema das mercadorias” era “o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todos os seus aspectos”.

Em outras palavras, para Baudrillard, a mercadoria não era um portador fetichizado das relações sociais capitalistas, fazendo com que essas relações parecessem coisas externas a nós. Era literalmente um objeto, e a análise desse objeto era para ele a tarefa principal da crítica teórica.

Assim, O Sistema de Objetos, primeiro livro e tese de doutorado de Baudrillard, buscou realizar uma espécie de levantamento zoológico de objetos cotidianos, começando com a seguinte pergunta:

Poderíamos classificar o crescimento luxuriante de objetos como fazemos com a flora ou a fauna, com espécies tropicais e glaciais, mutações repentinas e variedades ameaçadas de extinção?

Esse crescimento luxuriante de objetos atestou o que Kristin Ross descreve como o “sacode” da modernização francesa nos anos do pós-guerra: uma transição da pobreza da guerra para a domesticidade consumista que aconteceu com uma velocidade notável, tornando os anos 1960 irreconhecíveis em comparação com a década anterior. Como Ross escreve:

“Em apenas dez anos, uma mulher rural poderia adquirir eletricidade, água corrente, fogão, geladeira, máquina de lavar, uma noção de espaço interior distinto do espaço exterior, um carro, uma televisão e várias liberações e opressões associadas a cada um.”

Essas mudanças, que foram sentidas igualmente nas cidades em rápida expansão, explicam por que muitos intelectuais franceses da época – Roland Barthes, Maurice Blanchot, Henri Lefebvre, Edgar Morin, os Situacionistas – adotaram a categoria de “vida cotidiana” como chave para a compreensão da ordem social.

Para Baudrillard, o que esses objetos nos diziam era, acima de tudo, algo sobre a mudança na composição da classe. Para ele, os objetos não eram principalmente coisas funcionais. Eles eram signos: sinais através dos quais as relações de classe eram comunicadas e reproduzidas, através dos quais as necessidades eram fabricadas e o valor extraído, e através dos quais os antagonismos de classe eram sufocados.

Qualquer objeto, portanto, precisava ser compreendido a partir da perspectiva de seu “valor de sinal”. Esta era uma categoria duvidosa que Baudrillard inventou para complementar (e eventualmente substituir) as categorias de valor de uso e valor de troca de Marx em sua análise da mercadoria.

Para Baudrillard, o valor de sinal estava no cerne de como o capitalismo do pós-guerra funcionava. A capacidade de produção em massa superou a demanda e, portanto, novas necessidades tiveram que ser fabricadas e novos desejos criados para existirem. Os objetos se desvincularam de seus valores de uso, e uma matriz de significados simbólicos impulsionou tanto a produção quanto o consumo.

Baudrillard acabaria por entender que o capitalismo em si havia se transformado em um sistema semiótico — um jogo de significados desvinculado de qualquer base material. Essa concentração míope no nível semiótico logo foi espelhada na virada cultural ou linguística na teoria social a partir dos anos 1980. Essa virada envolveu dispensar qualquer análise séria das grandes mudanças que estavam ocorrendo na reconfiguração do trabalho, da exploração e das relações de classe em todo o mundo e rejeitar qualquer forma de crítica materialista como economicista ou reducionista de classe.
 
O compromisso das “classes médias”

No entanto, quando escreveu Para uma crítica da economia política do signo, Baudrillard ainda estava trabalhando dentro de uma estrutura amplamente marxista e intrigado com a mecânica da reprodução de classes. Sua própria formação estava localizada em algum lugar na complicada matriz das “classes médias” — seus avós eram camponeses enquanto seus pais eram funcionários públicos (“pequeno-burgueses muito humildes”, como ele dizia) — e as classes médias eram uma preocupação central deste livro.

Baudrillard ficou fascinado com a maneira singular como essas classes médias se relacionavam com os objetos domésticos. O que estava por trás da fixação por cortinas, cortinas duplas, carpetes, capas, porta-copos, lambris, abajures, plintos, bugigangas e tela de arame? E a mesa que está “coberta por uma toalha que, por sua vez, é protegida por uma toalha de plástico”, o cerco de cada artefato por um tapete rendado, ou a elevação moral de revestimentos — “o triunfo do verniz, polimento, folheado, banho, cera, encáustica, laca, vidro, plástico”?

Para Baudrillard, esse revestimento e cercamento barroco de posses falava de uma compulsão “não apenas para possuir, mas para enfatizar o que ele possui duas ou três vezes”. Essa compulsão, por sua vez, revelava a posição tensa da classe média em crescimento: simultaneamente ansiosa e triunfante, era “uma classe que avançou o suficiente para interiorizar os modelos de sucesso social, mas não o suficiente para evitar interiorizar simultaneamente a derrota”.

Ou seja, as classes médias viam tanto seu sucesso (a posse de objetos domésticos) quanto sua derrota (os limites rígidos de seu poder social) como sendo de sua própria criação. Elas aceitavam o aura reconfortante dos objetos como uma compensação por sua agência sacrificada. Era essa “legitimidade frustrada (com relação à vida cultural, política e profissional) que leva as classes médias a investirem no universo privado, na propriedade privada e na acumulação de objetos”, de acordo com Baudrillard. O tapete rendado falava de um compromisso de classe.

Política selvagem

Oproblema que Baudrillard procurou investigar — o que já foi chamado de “aburguesamento” da classe trabalhadora e sua relação com sua decomposição em curso — era, e é, um problema real. A mistificação atual sobre por que muitos eleitores aparentemente da classe trabalhadora parecem ter abandonado seus interesses de classe para votar em partidos de extrema-direita talvez pudesse ser superada com uma melhor compreensão de quem são as classes médias (por exemplo, se deveríamos vê-las como uma pequena burguesia muito ampliada, como sugere Dan Evans).

No entanto, a abordagem de Baudrillard para esse problema sempre foi unilateral. Sua atenção microscópica à disposição de objetos domésticos colocava fora da linha de visão as imensas mudanças no trabalho e na produção que estavam ocorrendo na época. Essa ênfase permeia sua visão de mundo: o consumo em massa parece não ser mais apenas um local de reprodução de classe, nem uma importante condição para a auto-acumulação do capital, mas a força motriz de todo o sistema. Com base nisso, só podemos entender a resistência como a rejeição do consumo e da ordem simbólica que o sustenta.

Trabalhando no Departamento de Sociologia de Nanterre, em março de 1968, Baudrillard se encontrava no marco zero do movimento estudantil.

Isso parecia confirmar para Baudrillard que sua experiência de luta política. Trabalhando como assistente de Lefebvre no Departamento de Sociologia em Nanterre em março de 1968, ele se viu no epicentro do movimento estudantil. Mas após a vitória esmagadora de Charles de Gaulle nas eleições de junho daquele ano, ele lembrou que “o movimento se desvaneceu a uma velocidade fantástica – realmente fantástica”.

Muitos dos envolvidos nesse movimento argumentaram que seu fracasso estava enraizado nas contradições entre sua base operária e estudantil. As principais organizações trabalhistas, como a Confederação Geral do Trabalho (CGT), buscaram desarmar a greve geral, enquanto os líderes do Partido Comunista Francês (PCF) denunciavam os líderes estudantis como “falsos revolucionários”. No entanto, se as instituições trabalhistas haviam se vendido, parecia que elas o fizeram, pelo menos em parte, em resposta à sua base. Como disse um palestrante em uma discussão do corpo docente de Nanterre, a classe trabalhadora havia se “apegado ao consumo”.

Aqueles menos apegados ao consumo pareciam ter o maior potencial revolucionário. Estudantes, mulheres, gays e lésbicas, imigrantes: todas essas figuras privadas, por várias razões, de um salário familiar estável ou do sonho da domesticidade consumista, irromperam na esfera pública com o que Baudrillard chamou de comportamento político “selvagem”. Desde greves selvagens de trabalhadores imigrantes até revoltas estudantis, essas figuras “marginais” pareciam ser as únicas capazes de desafiar o que ele chamava de “domesticação” da humanidade.

As greves “selvagens”, para Baudrillard, pareciam expressar uma lógica fundamentalmente não instrumental: “Abertamente, coletivamente, espontaneamente, os trabalhadores pararam de trabalhar, assim, de repente, em uma segunda-feira, sem pedir nada, negociando nada.” Eles pareciam não se importar nem com o valor intrínseco do trabalho, nem com o incentivo salarial, nem com a racionalização capitalista do tempo.

Em última análise, a política selvagem da paisagem pós-68 refletia a mente selvagem, com sua recusa de todas as velhas categorias marxistas que agora pareciam nos oprimir: produção, trabalho, valor de uso, história universal, revolução, dialética, mediação, representação. Para Baudrillard, todas essas categorias revelavam “um etnocentrismo incurável do código”. Elas estavam presas na lógica do próprio sistema que procuravam contestar.

Anti-capitalismo sem emancipação?

Os primeiros escritos de Baudrillard refletem, portanto, as mesmas tendências — e os mesmos problemas — que os de muitos pensadores da Nova Esquerda que procuraram revigorar o marxismo para a era do pós-guerra. Este foi um período de prosperidade tão grande que a tese de Marx de crescente empobrecimento proletário parecia ter sido desmentida: as crises cessaram, a produtividade aumentou, os salários aumentaram e as classes médias cresceram.

Essas condições deram origem a uma forma de teoria social que se concentrou na alienação em vez da exploração, já que o problema central das democracias ocidentais parecia não ser a precariedade, a pobreza e a crise, mas a mercadorização da vida cotidiana. As pessoas não eram livres porque enfrentavam insegurança material crônica – ou assim parecia – mas por causa da submissão da vida e da atividade humanas pelas injunções racionalistas de comprar, vender e consumir.

Como Baudrillard escreveu em O Sistema de Objetos:
 
Assim como as necessidades, sentimentos, cultura, conhecimento — em suma, todas as faculdades propriamente humanas — são integrados como mercadorias na ordem da produção… assim também todos os desejos, projetos e demandas, todas as paixões e todos os relacionamentos, são agora abstraídos (ou materializados) como sinais e como objetos a serem comprados e consumidos.

Em outras palavras, o capitalismo era um problema por causa da reificação: ele convertia a vida humana em coisas e aplanava sua variedade irredutível em quantidades padronizadas necessárias para a troca.

Do nosso ponto de vista hoje, parece claro que essa crítica é parcial; ela confunde o sintoma com a doença. Observar a reificação, o consumo e a mercadorização como os problemas principais levaram a respostas políticas que buscavam simplesmente negar essas coisas: coisificação, anti-consumismo, desmercadorização.

Baudrillard queria desreificar o mundo introduzindo novas categorias — a troca simbólica, que tirou de Georges Bataille uma fascinação por desperdício, excesso e despesas, era a mais importante delas. Era como se esse vocabulário pudesse, em si mesmo, superar a dominação das relações capitalistas. Outros pensadores, menos cínicos do que ele, construiriam várias gerações de radicalismo político com base no anti-consumismo e na desmercadorização.

O anti-consumismo em si não é de forma alguma uma posição emancipatória. Claro, o anti-consumismo em si não é de forma alguma uma posição emancipatória. E a desmercadorização sempre foi tanto um momento de acumulação capitalista quanto a invasão das relações de mercadoria em cada vez mais cantos da vida social. A desmercadorização também poderia ser facilmente um projeto para levar as mulheres de volta ao ambiente de trabalho, para o seu lugar “natural”, o lar, como é o objetivo de muitos movimentos de extrema-direita hoje em dia.

De fato, pensadores de extrema-direita, como Alain de Benoist e Aleksandr Dugin, conhecem bem a crítica da Nova Esquerda à mercantilização e ao consumo. Para a extrema-direita, o “capitalismo desperto” apaga nossas identidades – que ela fantasia como fixadas em uma essência biológica ou racial – ao nos fazer consumir e para que consumamos melhor. Como afirmou a primeira-ministra de extrema-direita da Itália, Giorgia Meloni, em um discurso de 2019:
 
Não posso me definir como italiana, cristã, mulher, mãe. Não. Devo ser cidadã x, gênero x, pai 1, pai 2. Devo ser um número. Porque quando sou apenas um número, quando não tenho mais uma identidade ou raízes, então serei o escravo perfeito à mercê de especuladores financeiros. O consumidor perfeito.

Baudrillard ele mesmo não era um pensador de extrema-direita. No entanto, suas obras posteriores, como A Guerra do Golfo não Aconteceu, são fundamentadas exatamente no tipo de narrativas de choque de civilizações em que a extrema-direita prospera hoje. Como escreveu Peter Osborne, por trás de todo o seu aparente radicalismo estava “o conservadorismo civilizacional mais triste” — esse era “um discurso filosófico da modernidade no pior sentido”.

Baudrillard não começou assim, e suas primeiras escritas refletiram um esforço genuíno para repensar o marxismo economicista do Partido Comunista Francês e entender a decomposição da classe trabalhadora. No entanto, seu tipo de anti-capitalismo mostra ser uma base instável para uma política emancipatória.

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[0] Tradução de Sofia Schurig.
[1] Miri Davidson é professora de teoria política na Universidade de Warwick. Atualmente, ela está trabalhando em seu primeiro livro, provisoriamente intitulado Primitivismo Contra o Marxismo: Antropologia Francesa e Pensamento Político Radical, 1945-1975.

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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Como Michel Foucault entendeu tão mal o neoliberalismo

 
Entrevista de Daniel Zamora para Kévin Boucaud-Victoire 
Jacobin

À emergência do neoliberalismo dos anos 1970, Michel Foucault viu a promessa de uma nova ordem social, mais aberta à autonomia individual e modos de vida experimentais. Não foi assim que as coisas se desenrolaram.

Em seu novo livro que sairá em inglês no ano que vem pela Verso, o sociólogo Daniel Zamora e o filósofo Mitchell Dean reconstituem a jornada intelectual de Michel Foucault pós-1968, em que um flerte com o radicalismo de esquerda deu lugar a um fascínio pelo neoliberalismo.

Nesta entrevista ao site francês Le Comptoir, Zamora reflete sobre a turbulência intelectual da França dos anos 1970 e como a resposta de Foucault a ela prefigurou muito o nosso mundo político hoje.

Kévin Boucaud-Victoire (KBV) – Os herdeiros autoproclamados de Foucault são altamente diversos; eles variam de libertários de esquerda a funcionários da Câmara de Comércio e incluem social-democratas e os vestígios da “segunda esquerda” francesa. Como nós explicamos isto? Como situamos Foucault?
Daniel Zamora (DZ) – Em primeiro lugar, acho que alguns intelectuais têm o hábito questionável de impor sua própria agenda a certos filósofos. Colocar-se sob a autoridade de alguma grande figura da vida intelectual para legitimar suas próprias ideias é uma prática comum, mas foi levada a um grau particularmente bizarro no caso de Foucault. Mesmo a contextualização mais básica de seu trabalho é difícil de se fazer na França. Você tem que perguntar porque, hoje, algumas das obras mais estimulantes sobre a história intelectual francesa são produzidas por estudiosos anglo-saxões como Michael Behrent ou Michael Scott Christofferson. Você também deve se perguntar porque os lembretes sobre a associação de Foucault com os “novos filósofos” ou a “segunda esquerda” são tão inaudíveis.

Não é um pouco irônico que um autoproclamado “historiador do presente” agora seja lido e interpretado em completa abstração de seu próprio presente. Quem gosta de reivindicá-lo hoje, quer torná-lo uma figura que corresponda às suas próprias expectativas.

Mais fundamentalmente, acho que a enorme diversidade também é em parte resultado de como o próprio Foucault apresentou seu trabalho. Ele nunca procurou construir um sistema de pensamento ou uma grande teoria social; ele se definiu de maneira mais geral como um “experimentador”. Os textos e os conceitos que para ele eram importantes apenas o interessavam como formas de interrogar sua própria época. Para se chamar de “estruturalista”, ele poderia flertar com o maoísmo da gauche prolétarienne ou, mais tarde, guiar as ideias de neoliberalismo em sua batalha contra qualquer coisa que atribua ao indivíduo uma certa concepção de si mesmo. É daí que veio sua famosa metáfora, comparando seus livros a “caixas de ferramentas” que poderíamos mobilizar como quiséssemos. Mas essa visão tem seus limites.

Um conceito nunca é completamente independente do contexto ou dos propósitos que cercaram seu nascimento. Sempre permanece parcialmente prisioneiro de sua própria arquitetura. Portanto, podemos ser céticos em relação a esses intermináveis ​​encantamentos que visam, por exemplo, reconciliar Marx e Foucault em alguma grande síntese, quando de fato, no final de sua vida, Foucault buscava justamente “livrar-se do marxismo”. O mesmo vale para quem tenta transformá-lo em um pensador hostil ao neoliberalismo.
KBV – Qual é a contribuição da análise de Foucault sobre o neoliberalismo?
DZ – Sua análise é notável por representar uma das primeiras tentativas de estudar de perto o neoliberalismo como um pensamento coletivo ─ as coisas que o uniam, bem como as grandes diferenças que coexistiam dentro dele. Frequentemente esquecemos que entre Friedman e Hayek havia um abismo intelectual. Mas foi só na década de 1990 que surgiram mais estudos pesquisados ​​sobre a história intelectual e a análise do neoliberalismo. Assim, Foucault ofereceu uma das primeiras interpretações interessantes de seus principais conceitos e ideias.

Em particular, ele o distingue do liberalismo clássico, na medida em que não é uma forma de “laissez-faire”, mas, pelo contrário, uma política ativa de construção de mercado. Não existe o domínio do Estado por um lado e o livre jogo das forças do mercado por outro. Foucault observa de forma bastante assertiva que para os neoliberais austríacos o fracasso do liberalismo econômico do século XIX os levou a ver sua própria doutrina construindo ativa e conscienciosamente o mercado, uma entidade que de forma alguma era natural. “Não haverá o jogo do mercado, que deve ser deixado livre, e depois o domínio no qual o Estado começa a intervir”, explicou em suas palestras, “já que o mercado, ou melhor, a concorrência pura, que é a essência do mercado, só pode aparecer se for produzida, e se for produzida, será por uma governamentalidade ativa.”

Outro elemento interessante de sua análise, nesse caso voltado principalmente para o neoliberalismo americano, é que ele vê essa nova mentalidade neoliberal como “ambiental”. Não pretendia produzir subjetividades, mas estimular os indivíduos a se comportarem de determinadas maneiras, principalmente agindo sobre seu ambiente econômico. O neoliberalismo como uma “tecnologia do meio ambiente”, disse ele em suas palestras, anuncia uma “retirada maciça em relação ao sistema normativo-disciplinar”. Foucault observou que, para alguém como Gary Becker, o combate ao crime deve ser feito com base em incentivos econômicos e não com a construção de subjetividades criminais. Na visão neoliberal, o criminoso é apenas alguém cujo cálculo de custo-benefício o inclina para o crime.

Como resultado, o objetivo da ação econômica deve ser alterar essas variáveis ​​de modo a reduzir “de forma otimizada” o “incentivo” ao crime. Foucault entende então o neoliberalismo não como a retirada do Estado, mas como a retirada de suas técnicas de sujeição. Não estava tentando atribuir uma certa identidade a nós, e simplesmente tentando agir em nosso ambiente.

Para o principal pensador das técnicas modernas de normalização, isso significa algo! Esta análise explica a profunda conexão entre a implantação do neoliberalismo como uma forma de governamentalidade na França de meados da década de 1970 e a defesa de Foucault da invenção de novas subjetividades. Longe de se opor, aos seus olhos, as duas coisas andam juntas. O neoliberalismo, sendo mais aberto ao pluralismo, parece oferecer uma estrutura menos restritiva para a proliferação de experimentos minoritários.

Mas tudo isso representa menos uma crítica ao neoliberalismo do que uma forma de tornar sua racionalidade inteligível. Nesse ponto, é significativo que Gary Becker, um dos pais do neoliberalismo americano, tenha concordado perfeitamente com a análise de Foucault de seus próprios textos. Criticar o neoliberalismo significa não espelhar sua própria imagem de si mesmo, mas, ao contrário, desconstruir a mitologia que construiu para si mesmo.
KBV – A análise de Foucault sobre o neoliberalismo parece ignorar cuidadosamente a experiência de Pinochet, iniciada em 1973, e o fato de que essa “governamentalidade” pode acomodar-se ao autoritarismo. Parece estranhamente a-histórico.
DZ – De fato, é uma escolha deliberada da parte de Foucault. Thatcher e Reagan ainda não estavam no poder na época, mas você já podia ver as características conservadoras que caracterizariam seu triunfo político. Assim, Foucault conhecia bem a política de Ronald Reagan, então governador da Califórnia, para onde Foucault viajava regularmente a partir de meados da década de 1970. E a associação de Milton Friedman com a campanha do ultraconservador republicano Barry Goldwater na eleição presidencial de 1964 provavelmente também não lhe escapou.

Eu, no entanto, acho que sua análise foi historicamente situada, mas mais no contexto francês. Para entendê-lo, primeiro é necessário colocá-lo no contexto da crescente oposição dos intelectuais ao programa da União da Esquerda (1972-1977) e ao socialismo do pós-guerra. E depois juntando-se às ideias avançadas pela “segunda esquerda” na França, organizada em torno de figuras como Michel Rocard no Partido Socialista ou Pierre Rosanvallon na CFDT. Portanto, neste cenário, onde partes da esquerda questionavam qual seria o seu futuro, Foucault não via o neoliberalismo como um bicho-papão, mas sim, como Serge Audier colocou, ele estava buscando um “uso inteligente” dele como uma alternativa ao socialismo.

Assim, ele examinou o neoliberalismo como uma “governamentalidade”, como uma forma de pensar a política, ao invés de uma agenda econômica. Essa forma de ver o neoliberalismo, aliás, foi motivada na França pelo contexto muito particular das políticas de Valéry Giscard-d’Estaing. Foucault viu o desenvolvimento do neoliberalismo na França, com o governo Giscard, como uma ruptura com a clivagem “esquerda-direita” clássica. Na verdade, ele apontou, como Serge Audier observou com bastante razão, o excelente relacionamento de Giscard com os socialistas do SPD alemão de Helmut Schmidt. É preciso lembrar que antes de uma virada mais conservadora em 1976, sua presidência foi marcada pela descriminalização do aborto, a introdução de visitas de prisioneiros, o fim da censura, bem como a redução da idade legal para votar. O neoliberalismo, portanto, não era visto estritamente no quadro da oposição esquerda-direita, mas como uma governamentalidade capaz de redesenhar a forma como a própria política era pensada.

Foucault via os gaullistas e comunistas como pertencentes ao campo “social-estatista”, na terminologia da segunda esquerda, enquanto os giscardianos e os rocardianos pareciam representar um campo menos centrado no Estado, contrastando-o com as virtudes da sociedade civil e empreendedora. Esse aspecto, aliás, parece ser totalmente ignorado nas obras de Geoffroy de Lagasnerie ou Christian Laval. O esforço de Foucault para reinventar a esquerda e examinar o neoliberalismo não estava ocorrendo em um vazio, mas em seu próprio contexto político, especialmente em diálogo com a segunda esquerda.
KRV – Nesse sentido, a análise de Foucault não foi puramente teórica?
DZ – De fato. Assim como Lagasnerie tem razão em ver nas palestras de Foucault não uma denúncia, mas precisamente uma forma de experimentação intelectual que visava questionar sua época, não a nossa. Em um contexto em que Foucault acredita que as questões de desigualdade e exploração foram basicamente resolvidas e onde a ideia de revolução está desatualizada, o que está em questão é a autonomia individual. O poder não era mais algo a ser “tomado”; ao invés disso, espaços devem ser construídos nos quais os indivíduos podem se reinventar e testar outras formas de existência. Sua crítica concentrava-se em todos os mecanismos de sujeição: seguridade social, escolaridade, sistema de justiça etc. A crítica deveria possibilitar que, como ele disse em sua famosa citação referente ao Iluminismo, “não sejamos tão governados.”

Por ser o poder onipresente, o pensamento de Foucault não aspirava “libertar” o indivíduo, e sim, aumentar sua autonomia. Portanto, embora a mudança tivesse que ocorrer em grande parte por meio de uma proliferação de experimentos minoritários, dentro do poder, essa governamentalidade neoliberal “ambiental” poderia, em sua visão, ampliar os espaços de autonomia que seriam libertados da normatividade “social-estatista”.

E esta não foi uma ideia que se limitou a Foucault. Podemos recordar, no mesmo contexto, a visão de André Gorz sobre o neoliberalismo. Ele escreveu para a Nouvel Observateur, sob o pseudônimo de Michel Bousquet, que “se o giscardismo pode afrouxar o poder do centro e abrir novos espaços para a iniciativa coletiva, por que não se aproveitar disso?”. Embora Giscard fosse um neoliberal, acrescentou, “isso não quer dizer que a liberalização da sociedade deva ser necessariamente um projeto da direita”. Ele continuou a enfatizar que “em toda a Europa de hoje há trocas e permeações parciais entre neoliberais e neo-socialistas.” Para Gorz e Foucault, não é que o neoliberalismo representasse uma solução, porém ele abria os olhos para a perspectiva sobre ocupar os espaços libertados do Estado e preenchê-los com outros tipos de experiências. É claro que suas prescrições não se materializaram exatamente e as grandes “porções de Estado” que foram “liberadas” por meio das políticas neoliberais não levaram a uma política de emancipação. A evacuação do Estado não levou a uma proliferação de espaços autônomos e o discurso da autonomia transformou, paradoxalmente, o Estado de bem-estar em uma máquina de “ativação” (isto é, bem-estar para o trabalho) que é mais disciplinar do que emancipatória. Mas isso é outra história…
KRV – Foucault não acreditava na revolução, mas, sim nas microrresistências do dia a dia e na necessidade de “inventar a própria vida”. Ele pensava que “a relação de alguém consigo mesmo” era o “primeiro e último” ponto de “resistência ao poder político”.
DZ – Por muito tempo Foucault não ofereceu realmente nenhuma perspectiva no que diz respeito à transformação social. Ele apresentou retratos deslumbrantes dos mecanismos de normalização, de poder, de disciplinamento do corpo, etc. Mas a resistência era, em geral, a grande peça que faltava. Seu alvo era bastante passivo, incapaz de responder ao poder. Foi, creio eu, apenas em sua última década, por meio de seu interesse pelas técnicas de si, que ele passou a conceder mais autonomia ao sujeito. Assim, paulatinamente, o poder foi se configurando como uma mescla das técnicas de coação e técnicas de si, nas quais o sujeito se constitui. Poder e resistência são agora as duas faces da mesma moeda. A relação consigo mesmo torna-se assim um espaço potencial de liberdade e autonomia em que os indivíduos podem se mobilizar em oposição ao poder.

Nesse contexto, a resistência para Foucault não assume mais a forma de movimentos sociais ou lutas de classes. Flui, ─ conforme sua fala sobre um congresso instituído por Pierre Rosanvallon, em 1977 ─, “de uma preocupação moral individual”. Não era mais uma questão de “tomar” o poder ou transformar o mundo no sentido clássico, mas, escreveu ele, “mudar nossa subjetividade, nossa relação com nós mesmos”. A questão de um modelo de sociedade foi, dessa forma, substituída pela maneira como devemos viver em sociedade. Foucault propôs uma “arte”, uma “estilização” da vida, ao invés de uma estratégia política. Mudar a si poderia, assim, estimular o que Deleuze chamaria de “revoluções moleculares”, mudando a sociedade a partir de sua base. Em outras palavras, a ética tomaria o lugar da política.

Não há necessidade em explicar que nas décadas que se seguiram à sua morte em junho de 1984, esta mudança iria, para dizer o mínimo, tomar uma direção ambígua. Ao localizar a resistência principalmente na relação do indivíduo consigo mesmo, Foucault reduziu significativamente o alcance de sua crítica social. Paradoxalmente, ele repeliu, precisamente, aquelas estruturas econômicas e políticas que constituem a estrutura dentro da qual essa “relação consigo mesmo” poderia ser experimentada. Questões ligadas à exploração, à divisão desigual do trabalho (agora em uma escala global) ou à desigualdade econômica desaparecem e parecem completamente inacessíveis por meio dessas “microrresistências”.

Na realidade, a ideia de que revoluções “moleculares” descentralizadas poderiam, de alguma forma, causar efeitos agregados em grande escala tem se mostrado totalmente impraticável quando aplicada às relações econômicas. Se alguém quisesse ser polêmico sobre isso, poderia até questionar a relação dessa visão com a do neoliberalismo. “Não se esqueça de inventar sua vida”, concluiu Foucault no início dos anos 1980. Esta visão não está em perceptível harmonia com a injunção de Gary Becker de que devemos nos tornar “empreendedores de nós mesmos”?
KBV – Em resumo, você está ecoando a crítica do que Murray Bookchin denunciou como “anarquismo de estilo de vida”.
DZ – Bookchin estava absolutamente certo em enxergar essas “insurreições pessoais” de Foucault como um tipo de guerrilha sem fim que aparenta sempre destinada ao fracasso. Ao menos, isto é o que parece impedir qualquer reflexão sobre como inventar diferentes formas institucionais e organizacionais para nossa existência.

A principal limitação dessa perspectiva, a meu ver, pressupunha que o capitalismo e o poder repousavam sobre uma ampla gama de micropoderes que operavam no nível das relações sexuais, da escola, das estruturas familiares, das especializações, da ciência, etc. A partir deste ponto de vista, o Estado, por exemplo, se mostra, apenas, como mero invólucro de um conjunto de relações que funcionam em escalas menores. Por isso a estratégia de subverter o capitalismo e o Estado, não pelo ataque frontal, mas através deste micronível, ou seja, na “vida cotidiana”.

Assim, através da estilização da própria existência e da criação de espaços de experimentação, seria possível transformar toda a edificação social a partir de dentro. A ideia era que o capitalismo está, em última instância e por sua natureza, conectado a uma certa forma de organização social e cultural; que para se reproduzir, precisa, por exemplo, de organização familiar patriarcal. Mas, em vez disso, a história mostrou que, embora o capitalismo possa mobilizar essas estruturas, também é perfeitamente capaz de acomodar, até mesmo promover, outros modos de vida ou estruturas familiares. Isso os torna excelentes mercados a serem conquistados.

É claro que o “tudo é político” de maio de 68 tornou possível interrogar uma ampla gama de relações de poder que antes eram mantidas invisíveis. No entanto, paradoxalmente, também acompanhou um recuo da ação coletiva que agora parece mais um símbolo de uma derrota histórica do que uma nova forma de revolução. Quando grandes variáveis ​​macroeconômicas parecem fora de nosso alcance, um recuo para o relacionamento consigo mesmo ou para uma transformação da linguagem, de certa forma contribuem em fazer da necessidade uma virtude.

Essa maneira de conceituar as coisas levou a todos os tipos de pseudo-contestações, como as “TAZs” (Zonas Autônomas Temporárias) de Hakim Bey, onde um “acontecimento” em uma galeria de arte chique pode constituir um espaço “temporariamente” autônomo. Ou poderíamos pensar em todas as variedades ainda muito populares de formas alternativas de consumo, que supostamente nos salvariam do desastre por meio da ética individual.
KBV – Você concordaria com Jean-Claude Michéa quando ele diz que Foucault é o complemento cultural de Hayek, Friedman e Gary Becker?
DZ – Eu diria que, mais do que “complementar” Hayek e Friedman, o problema com Foucault é que ele implicitamente abraçou sua representação de mercado: a de um espaço menos normativo, menos coercitivo e mais tolerante para experimentos minoritários do que o Estado de bem-estar social sujeitou como regra da maioria. Friedman sempre gostou de dizer que “a urna produz conformidade sem unanimidade” enquanto “o mercado produz unanimidade sem conformidade…”. A seu ver, o mercado, por definição, representa um mecanismo mais democrático do que a deliberação política porque protege a natureza plural das preferências individuais.

Implicitamente, acho que Foucault ajudou a disseminar essa falsa dicotomia. Com isso, não quero dizer que devemos descartar as lutas contra certos tipos de normalização ou coerção ─ a arte, como disse Foucault, de “não ser tão governado”. É verdade que o Estado de bem-estar social pós-guerra visava reproduzir um certo modelo de família, e o sistema de justiça, certos “perfis” criminosos. Mas, por definição, toda política ─ seja estatista ou neoliberal ─ é normativa. E é importante contestar esses mecanismos. Mas isso não significa que podemos dispensar a normatividade. Se decidirmos conceder a todos uma renda básica em vez de assistência médica gratuita, substituiremos uma normatividade (que define certos sujeitos por meio de certos “direitos sociais”) por outra (que prioriza a “escolha” individual no mercado). Mas Foucault, no contexto do “antitotalitarismo” francês, geralmente associava tais mecanismos de normalização ao Estado e, dessa forma, ele implicitamente enxergava o mercado como um local onde a normatividade poderia ser mais facilmente subvertida.

Independentemente da importância da elaboração de Foucault sobre as maneiras pelas quais instituições como a seguridade social ou o sistema de justiça poderiam nos atribuir uma certa concepção de nós mesmos, ele ignorou completamente a normatividade e a coercividade do mercado. Seu ponto de vista era de que a política concebida no modelo da soberania, especialmente via regra da maioria, que era essencialmente o espaço da coerção e da normatividade; os sinais impessoais e descentralizados do mercado eram uma alternativa sedutora à deliberação política na medida em que pareciam proteger as escolhas minoritárias, precisamente pela forma supostamente “ambiental” com que agiam.

Toda configuração econômica ou institucional é normativa (o importante é descobrir que tipo de instituições queremos). Em um livro recente, o filósofo Martin Hägglund escreveu, com bastante razão, que ser livre não significa estar livre de restrições normativas, mas, sim ser livre para negociá-las, transformá-las, contestá-las. É a habilidade de construir instituições democráticas dentro das quais possamos definir coletivamente as normas que devem governar a sociedade. O mercado não oferece uma alternativa à normatividade, ele meramente afrouxa o controle da normatividade sobre aqueles com capital suficiente para desfrutar das “escolhas” que o próprio mercado oferece.

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[0] Traduzido por Jorge Batista, LavraPalavra.
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segunda-feira, 15 de março de 2021

ARTE REALISTA| Problematizando o Copo



Sinopse: Anarriê chegou para expor as coisas que precisam ser combatidas a qualquer custo e por nenhuma razão. (Porta dos Fundos)
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Problematizando o Copo (farsa, BRA, 2021), de Rodrigo Van Der Put.
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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Glosas críticas ao artigo “A grande tarefa do marxismo é o sexo’’


por Eduardo Borges

As teses de Marília Moschkovich publicada no Blog da Boitempo[1] por um lado parecem estar corretas quando analisamos os desdobramentos argumentativos de todo o texto, no que tange a articulação da dialética marxista, isto é, tomando como premissa que em última instância é o momento subjetivo ou melhor, teleológico da classe em movimento em posição de combate que objetivará uma práxis verdadeiramente revolucionária, o sexo (sexualidade) enquanto constitutiva desses indivíduos determinados encontra-se em total imbricamento e possui um conteúdo revolucionário autêntico se tomado em sua inteireza. No entanto, creio ser bastante discutível tomar o sexo enquanto a grande tarefa do marxismo em geral. A investigação séria e honesta do ponto de vista teórico tem como o seu motor a própria realidade, que impõe aos homens de seu tempo a necessidade (categoria da necessidade) da investigação teórica, nesse sentido, creio termos questões mais urgentes que devem ser postas em primeiro plano, ainda mais se atentemos a realidade brasileira e sua situação de dependência estrutural.

Deixando essa segunda analise de lado, a análise crítica da autora relativo aos fenômenos da sexualidade, e, em relação ao modo como essas pautas (sexo enquanto ato sexual/sexualidade/gênero, raça) se envolvem na luta de classes, creio que seja de extrema importância e relevância para o debate da revolução brasileira. Pensemos sobre essas duas questões postas, aliás muito necessária que nos instiga a pensar, e nos força a ter um entendimento e um rigor teórico muito maior sobre essas questões como também, a ter um entendimento muito mais claro do materialismo histórico dialético.

I. Sobre o sexto parágrafo da autora

A tese é a seguinte; a autora vê que a tensão que surge na contradição às formas tradicionais de família, da estrutura material e simbólica do gênero dominante, do comportamento sexual ‘‘normal’’, que acarreta em negações, isto é, em outros modos de comportamento sexual, de estruturações de gênero ajuda a compreender essas próprias categorias como gênero, sexualidade, família etc. Sobre essa tese está tudo bem e claro, mas, o mais importante que se pode tirar desse parágrafo é a noção de que essas negações estabelecem uma relação dialética com as formas hegemonicamente dadas. A autora as trata como negações, e não como afirmações. Analisando desse modo (modo dialético), tais fenômenos sociais aparecem para nós enquanto carregado de conteúdo revolucionário, pois tais fenômenos carregam em si, um conteúdo critico (teórico e prático) a própria ordem.

Tendo em vista essa tese central, desdobrarei um seguinte exemplo que acho de extrema importância e relevância para pensarmos essas questões de modo teoricamente revolucionário. Para isso, já trago como premissa que a sexualidade é em última instância social; a determinação orgânica se submete a determinação social devido a mediação pelo trabalho: ‘‘Voltando ao homem: a adaptação biológica, que é uma adaptação passiva ao meio ambiente, é suplantada, com o trabalho humano, por uma adaptação ativa, que muda o meio ambiente.’’ Referindo-se ao que se pode denominar enquanto evolução e progresso humano sem nenhuma conotação ideológica Lukács completa:

O segundo ponto é o que Marx chamou de recuo das barreiras naturais. Isso quer dizer que, por meio do trabalho, um ser originariamente biológico se converte em um ser humano; com isso, o fator biológico não desaparece, mas é transformado (…) Quem preconiza uma sexualidade pura preconiza a sexualidade pura de 1970, (a do seu tempo) e não a de qualquer era remota. (Entrevista concedida por György Lukács para o jornal alemão Der Spiegel).

A partir do raciocínio da autora, vejamos por exemplo o fenômeno da bissexualidade. É sabido para nós que a heterossexualidade é uma forma construída sob bases concretas. Engels em seu livro Origem da família, da propriedade privada e do estado (1984) dirá que a propriedade privada aparece na história ocidental como um atributo masculino, a propriedade privada daquele ‘‘instrumento de trabalho’’ chamado escravo. Daí em diante até nossos tempos, mutatis mutandis, as formas de relação sexual, de família, gênero etc. são expressadas tendo em vista esse modo de organização material da vida social. Diferentemente do que pensa Freud em relação a bissexualidade, isto é, enquanto um estado biológico original dos seres humanos, a bissexualidade enquanto comportamento sexual não é biológica. Creio que a bissexualidade seja bem instrutiva para percebermos o conteúdo crítico dos fenômenos da sexualidade, e aqui defenderei a seguinte tese: não há bissexualidade em sociedades de classes.

Não existe sexualidade biológica, todo e qualquer comportamento sexual é histórico-social. A heterossexualidade o é, e a homossexualidade também. Esses comportamentos estabelecem uma relação dialética, pois ambas de certo modo são realizadas através de determinações que ambas colocam umas às outras. Uma não existe sem a existência e movimento da outra. Diferentemente do que pensa Freud, a homossexualidade não é um desvio a uma ordem dada num sentido patológico, mas uma negação das imposições sociais simbólicas e materiais (controle dos corpos para a reprodução social sob o capitalismo) da heteronormatividade. Ela é então um comportamento negativo, sendo o afirmativo a heterossexualidade. Ambas se assentam sobre condições materiais que os dão corpos simbólicos em um momento ontologicamente secundário. Ambas não são escolhas subjetivas individuais, mas comportamentos coletivos socialmente determinados. A bissexualidade, entretanto, não possui bases concretas, condições materiais para a sua manifestação plena. Quem se afirma bissexual, afirma apenas uma argumentação subjetiva e não pratica[2]. A bissexualidade existe apenas como um ideal elaborado teoricamente com correspondência ontológica, isto é, uma resolução das contradições existentes, ela seria então a síntese dessa contradição entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Não há condições socialmente necessárias para a realização pratica (objetivação) da bissexualidade, haja vista que todas as formas de relação sexual e relacionamento são determinadas pelas estruturas consolidadas pela classe e gênero dominante. Desse modo ela só existirá quando viermos a destruir essas estruturas de classe e gênero.

Se seguirmos o raciocínio muito bem feito da autora, iremos notar que enquanto negação a ordem dada, a homossexualidade carrega em si conteúdos emancipatório, pois ela aparece enquanto um fenômeno critico, mas como em toda negação, ela também carrega em si continuidades da mesma ordem dominante, por isso a necessidade de pensarmos a sexualidade é de extrema urgência, ela é um campo aberto para o combate, pois a sua existência não necessariamente é revolucionária, precisamente por ela não ser a resolução do problema (do ponto de vista prático). Por isso existe gays machistas por exemplo, e lésbicas que reproduzem o comportamento também machista. Aqui fica claro que o grande problema está com o gênero masculino, que como vimos, ainda é o que carrega o maior poder material e por isso, político. Em tempos onde aumenta indivíduos homossexuais de direita e de extrema direita, fica claro que esse campo é um campo de combate, e se estamos ainda sucumbidos a sociedade capitalista, devemos potencializar o seu conteúdo critico de modo constituamos uma práxis verdadeiramente revolucionária. Aqui vale salientar o fracasso do arcabouço teórico e prático para com essas questões do pensamento liberal de esquerda. Tal pensamento tende a tratar a questão de modo mecanicista, isto é, como dois polos totalmente distintos. Seguindo esse raciocínio temos então que a homossexualidade por exemplo, seria uma afirmação e não uma negação, e, que sendo afirmadas num plano subjetivo ou através de uma emancipação política e não humana, os problemas com a opressão e a dominação estariam resolvidos.

Sobre a questão da bissexualidade, não dissemos aqui que todo indivíduo será bissexual numa sociedade sem classes, mas sim, que é apenas no comunismo que haverá liberdade concreta para todo e qualquer tipo de manifestação sexual e de relações afetivas plenas.

II. Sobre o sétimo parágrafo

Tirando o reducionismo (acaba sendo um erro lógico) semântico das categorias ontológicas universal e singular, que acaba por nivelar duas coisas distintas, a universalidade da luta de classes por um lado, e por outro lado, posições individuais (o homem branco ser minoria) daqueles que a defendem, o raciocínio da autora também me parece pertinente. O desdobramento da análise dialética é bem direta e sintética, e no final da argumentação, fica claro o que a autora quer nos dizer naquele reducionismo feito anteriormente. O reducionismo e erro lógico da autora é a seguinte frase: ‘‘Por que tanta resistência em abandonar um universal quando sabemos, já, que universalidades não passam de singularidades em posição de poder?’’ Uma coisa é afirmar que a questão de classe é uma singularidade tomada como universal, e outra é dizer que quem as defende são singularidades que se acham universais.

Tirando isso, o que decorre daí é um ótimo raciocínio daqueles que operam bem a dialética marxista. Porquê? Pois, o que a autora quer nos dizer, é que a universidade da questão de classe já foi moldada pelos novos acontecimentos históricos, isto é, a particularidade já determinou o caráter daquela universalidade até então reproduzida idealmente, que respondia bem a realidade até pelo menos a década de 60, onde a classe trabalhadora era operária e majoritariamente masculina nas sociedades capitalistas avançadas e também de certo modo nos países dependentes. Diferentemente de alguns marxistas vulgares que tendem a reduzir a dialética a um idealismo subjetivo, por desconhecer certas cartas de Engels[3] no debate acirrado que foi defender o pensamento de Marx depois de seu falecimento, e é claro, por falta de estudo dos escritos do próprio Marx, acabam por ver a questão de classe elaborada por Marx e Engels como uma categoria fechada, nas quais as pautas LGBT deveriam se ‘’submeter’’ a questão de classe, e não que essas pautas já sejam/estejam no corpo da questão de classe. Isso é fundamental.

Marx defende aquele movimento no qual, o mais complexo que determina, e nos faz entender o menos complexo, ou melhor, é o estágio mais desenvolvido (historicamente) que nos faz compreender um certo conhecimento anterior ou um processo histórico anterior, de modo que o que resulta daí uma elaboração teórica mais rica de determinações, isto é, mais universal, precisamente porque a análise da particularidade de um tempo resultou numa alteração (não total) da universalidade até então teorizada. O conceito (universal) até então significado se modifica, devido a categoria da particularidade, que é nada mais, do que aqueles fenômenos históricos já devidamente determinados pelo materialismo histórico-dialético, que se elevam a universalidade se assim o for, deixando de lado tudo aquilo que é acidental isto é, singular. Permitam-me aqui citar Marx em maior extensão:

A sociedade burguesa é a mais complexa e desenvolvida organização histórica da produção. As categorias que exprimem as relações desta estrutura, permitem-nos ao mesmo tempo entender a estrutura e as relações de produção das sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se ergueu, cujos vestígios ainda não superados continua a arrastar consigo, ao mesmo tempo que desenvolve em si a significação plena de alguns indícios prévios, etc. A anatomia do homem dá-nos uma chave para compreender a anatomia do macaco. Por outro lado, as virtualidades que anunciam uma forma superior nas espécies animais inferiores só pode ser compreendidas quando a própria forma superior é já conhecida (MARX, 1979, p. 48).

Cabe então para nós, como Marx sugere, conhecer as determinações mais essenciais dessa problemática (sexualidade x classe) para saber se tais fenômenos são, primeiramente particulares e se eles se elevarão a universalidade. O raciocínio da autora nos leva nesse caminho, isto é, imbrica a sexualidade e essas ‘‘novas’’ pautas no marco da questão de classe de um modo dialético, cabe saber o como se dá essa relação para saber o que precipitará no fundo do frasco de ensaio. A questão de saber, é o que se encontra e pode ser universalizado nesse fenômeno particular, e não o que há de universal nesse particular. A primeira é a dialética marxista, a segunda o idealismo subjetivo.

III. Explicando com um exemplo didático esse idealismo subjetivo

Immanuel Kant na sua tentativa de compreender a noção ainda recém surgida de evolução biológica (início da biologia), tenta dar resposta através de sua concepção filosófica sobre este problema. Ele nega completamente a possibilidade de existir um processo evolutivo, onde as novas formas particulares acabariam por modificar a essência do conceito, isto é, de como um ser pode ser, e ao mesmo tempo estar em processo de Devir, modificando assim a essência daquele antigo ser. Ele não responde a essa questão, mas afirma a sua concepção de que há apenas, ou uma classificação dos universais contidos a priori num fenômeno particular, ou uma especificação do que há de universal, também já contido a priori, mas ainda desconhecidos. Em ambas há a determinação do universal no particular, no entanto o primeiro movimento é do universal ao particular e o segundo do particular ao universal. Dirá ele:

A forma lógica de um sistema consiste apenas na subdivisão de conceitos universais dados (como é o caso, aqui, daquele de uma natureza em geral), pensando o particular (aqui, o que é empírico), com a sua variedade, contido sob o universal, segundo um determinado princípio. Ora, se procedemos empiricamente e se nos elevarmos do particular ao universal, é necessária uma classificação do múltiplo, isto é, uma comparação de diversas classes entre elas, cada uma das quais se submetendo a um determinado conceito; e, quando elas se completam, segundo a notação comum, a subsunção delas sob classes superiores (gêneros), até atingir o conceito que contém em si o princípio de toda classificação (e constitui o gênero supremo). Se, ao contrário, começamos pelo conceito universal para depois descer ao particular, através de uma completa subdivisão, tal procedimento se deverá designar por especificação do múltiplo sob um conceito dado, pois se procede do gênero superior aos inferiores (subgêneros ou espécies) e da espécie às subespécies. Isso se exprime de modo mais justo se, ao invés de dizermos (como na linguagem comum) que se deve especificar o particular que se acha sob um universal, dizemos que se especifica o conceito universal e se submete a ele o múltiplo. De fato, o gênero (considerado do ponto de vista lógico) é, por assim dizer, a matéria ou o substrato bruto que a natureza elabora com sucessivas determinações nas espécies e subespécies particulares; pode-se dizer, assim, que a natureza se especifica a si mesma segundo um determinado princípio (ou ideia de um sistema), por analogia com o uso assumido por esta palavra nos juristas quando falam da especificação de certas matérias brutas.[4] 

Colocando a questão da sexualidade e a questão de classe tal como elaboram marxistas vulgares, – aquela famosa frase por exemplo: ‘‘as pautas LGBT têm que se universalizar’’ isto é, serem englobadas por uma universalidade já estabelecida a priori, tal raciocino se assemelha a concepção de mundo idealista subjetivo, tal como expresso no pensamento filosófico de Kant. A diferença é apenas relativa ao conteúdo e não a forma, ou seja, o que para Kant a essência (universal) é o conceito criado por Deus, para esses ‘‘marxistas’’ é o conceito de demandas de classe enquanto imutável e que determina a forma particular. O movimento operado que a autora critica, nem é o primeiro movimento operado por Kant (do particular ao universal através da classificação), que para Lukács significou um avanço para uma verdadeira elaboração da dialética, a de Hegel posteriormente, mas a segunda, isto é, do universal para o particular através da especificação.

IV. Observação

Observação: creio que a autora está profundamente enganada ao colocar as práticas BDSM enquanto atitudes negativas a ordem, tais como a homossexualidade por exemplo. Agora Freud está certo, assim como a histeria nos finais do século XIX expressavam o caráter degradador da sociedade patriarcal, a prática BDSM, se é que podemos dizer assim, pois a utilizando assim remete a ideia propagada pela ideologia, também é uma patologia resultada da opressão e dominação masculina dos corpos femininos mais substancialmente, mas também dos corpos masculinos. Podemos indagar a questão sob o ponto de vista de patologia social (e devemos analisar a questão com toda honestidade intelectual) e não como negação que traz em si potencialidades emancipatórias. O capitalismo já faz muito bem o serviço de mistificar suas patologias sociais e tratá-las como comportamentos que expressam liberdade. A autora aqui está profundamente enganada e se deixou levar pela ideologia liberal dominante.

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Notas
[0] Eduardo Borges é formado em Arquitetura e Urbanismo pela PUC-MG. Pesquisa história da arte numa abordagem marxista. Pesquisa sobre a Estética Marxista em variados autores, sobretudo a produção intelectual do filósofo húngaro György Lukács. Pesquisou sobre as peculiaridades do novo sistema produtivo de café especial e seus impactos sociais e econômicos no Sul de Minas.
[1] Link aqui: https://blogdaboitempo.com.br/2020/01/10/a-grande-tarefa-do-marxismo-e-o-sexo/
[2] A homossexualidade do ponto de vista prático é o resultado subjetivo e objetivo das condições materialmente e simbolicamente impostas, ela se expressa enquanto fenômeno, devido a essas condições históricas concretas construídas pelas classes e gênero dominantes. A bissexualidade se apresenta enquanto uma reivindicação subjetiva que é o produto teórico dessa relação concreta. Haja vista que a sexualidade não é biológica, mas moldada pelo gênero e classe em seu modo de organização material da vida social, torna-se necessário para a plena expressão da bissexualidade, a construção prática de suas condições.
[3] A editora Expressão Popular publicou um compilado de cartas e fragmentos de Marx e Engels organizado primeiramente pelo filósofo soviético Mikhail Lifschits. Lá encontra-se textos onde Engels para defender o pensamento de seu grande amigo teve que sintetizar e elaborar escritos relativos ao método propriamente dito, haja vista que Marx não procedeu (justificadamente) um sistema filosófico tal como Hegel, Kant etc., pois ser o método, o próprio resultado da sua investigação da particularidade. O livro publicado pela Expressão Popular tem como organizador José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida: Cultura, arte e literatura, textos escolhidos de Karl Marx e Friedrich Engels. José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida organizadores. Expressão Popular, São Paulo, 2012.

[4] 
I. Kant, Erste Einleitung in die Kritik der Urtelskraft. (Primeira introdução à crítica do juízo), Werke, ed. Cassirer, Berlim, 1922, tomo V, págs. 195-196 apud G. Lukács, 1970, p. 10.
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sábado, 21 de dezembro de 2019

ARTE REALISTA| Desconstruído


Sinopse: Melhor acreditar em Papai Noel do que na sinceridade de um macho desconstruído. (Porta dos Fundos)
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Desconstruído (farsa, BRA, 2019), de Rodrigo Van Der Put.
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sábado, 7 de dezembro de 2019

ARTE REALISTA| Meninx


Sinopse: Quando umx criança é concebida, elx não é nada mais que um aglomerado de células. (Porta dos Fundos)
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Meninx (farsa, Brasil, 2019), de Carol Durão.
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terça-feira, 19 de novembro de 2019

O golpe de estado e os limites do progressismo pós-estruturalista


 
por Néstor Kohan
 
Golpe de estado en Bolivia: debates pendientes y silencios cómplices
 
Nossa época, após a crise de 2008, é a do neocolonialismo imperialista. As cadeias de formação de valor são quebradas, terceirizadas e globalizadas, enquanto a produção capitalista – mantendo o controle das empresas e dos estados centrais – se desloca em suas unidades produtivas, movendo-se e ampliando-se para o Sul Global. A superexploração da força de trabalho (principalmente feminina e precária) é intensificada. A busca voraz e opressora pelos recursos naturais do Terceiro Mundo se torna fundamental e vital para diminuir o valor do capital constante e neutralizar a queda na taxa de lucro em meio à crise capitalista global. Um processo que, em tempos de catástrofes ambientais, mudanças climáticas e escassez de recursos não renováveis, supera o antigo colonialismo da distribuição do mundo em “áreas de influência”. As assimetrias entre diferentes formações sociais incentivam uma nova divisão internacional do trabalho, reproduzindo hierarquias, dependências, dominações e aprofundando o desenvolvimento desigual do capitalismo em todo o mundo.

Nesse contexto, Nossa América é atravessada por múltiplas contradições. Mas o fator principal e determinante é a disputa entre: (a) o domínio geopolítico, econômico e cultural do imperialismo dos EUA (principalmente as empresas multinacionais e o aparato político-militar dos Estados Unidos que as protege) e (b) o bloco latino-americano das classes subalternas (classe trabalhadora, camponeses sem terra, segmentos de trabalhadores precarizados sujeitos à superexploração do capital) e movimentos rebeldes em luta (dos quais os povos originários constituem a grande maioria em escala continental, acompanhados por outros cada vez mais mobilizados, como mulheres anti-imperialistas e ambientalistas, entre várias outras).

Em suma: múltiplas contradições e várias formas de luta, incluindo em (b) desde movimentos sociais que chegaram ao Estado a espaços de resistência extra-institucionais, legais, semilegais e clandestinos.

Nesse horizonte social, histórico e geográfico, a Bolívia constitui uma sociedade heterogênea na qual, nas últimas quatro décadas (a partir do decreto privatizante 21.060 de 29/8/1985) no campo popular, dois movimentos históricos convergiram: a tradição indígena e comunitária e a tradição operária dos mineiros. Duas correntes heterogêneas cujas rebeliões e demandas algumas vezes se encontraram e outras não. Evo Morales e o MAS, como movimento político, conseguiram articular e cruzar as duas tradições (não de um suposto “significante vazio”, segundo o jargão de Ernesto Laclau, mas propondo um projeto político-histórico integrador e descolonizador, claramente definido em suas determinações de hegemonia popular sobre a antiga “república colonial, dependente e racista”).

Os resultados à vista. Por ser o segundo país mais pobre da América Latina, a Bolívia passou a ter o maior crescimento do PIB, a maior diminuição da pobreza, a distribuição mais radical de renda e uma notável queda da inflação, contrastando com a crise econômica de todos os seus vizinhos na região. Não iniciou, porém, a transição para o socialismo, mas o século XX mostrou que o socialismo não pode ser construído em um país isolado. Até agora alcançou uma sociedade muito mais igualitária em um contexto de crise capitalista global, aguda e sistêmica, onde o capital subsumiu formal e realmente a maioria das tentativas de iniciar a transição para o socialismo. Tudo isso foi alcançado coletivamente e com a liderança política, pela primeira vez na história, de um presidente indígena. Um exemplo para todo o “altermundismo” (não apenas latino-americano) que teve que extirpar na raiz, como antes com o amigo de Evo, Hugo Chavez!

Por isso, o aparato político-militar dos Estados Unidos (país cujo embaixador fora expulso da Bolívia, bem como a USAID, o NED e outras agências de espionagem dos EUA) planejou, organizou e orientou o golpe de estado contra Evo Morales, que venceu legalmente as últimas eleições com uma diferença de 648.439 votos, ou seja, 10,5 pontos, sem nenhuma “fraude”[1]. Para conhecer nomes e sobrenomes específicos de funcionários dos EUA envolvidos, quantias em dinheiro, tipos de armas, rotas para introdução das mesmas na Bolívia, fundações e igrejas evangélicas envolvidas e outros detalhes dos bastidores do golpe de Estado, sugerimos consultar o artigo de Alfredo Jalife Rahme.[2]

Por que desta vez os Estados Unidos não colocaram um ditador militar clássico na cabeça do golpe boliviano, como Barrientos, Banzer, García Meza ou Videla, Pinochet, Stroessner? Porque o complexo industrial militar dos EUA (Eisenhower dixit) e a Casa Branca decidiram converter as Forças Armadas da América Latina em uma polícia antinarcóticos interna muito mais dócil e administrável (sem abandonar as doutrinas contrainsurgentes), que já não se ocupe mais de exercer seu controle, mesmo despótico, sobre o mercado interno e o Estado nação. As velhas Forças Armadas doutrinadas e treinadas no Panamá, na Escola das Américas e em West Point poderiam desencadear, sem deixar de ser fascistas, genocidas nem dependentes, uma inesperada guerra das Malvinas ou produzir um Noriega que sairia do controle. Hoje as ditaduras que os Estados Unidos dirigem são civis, policiais e militares! É por isso surgem à frente que as marionetes e caricaturas de um tal Juan Guaidó ou Jeanine Añez. “Democratas” que se proclamam presidentes sem terem sido eleitos por ninguém. Sem poder real, exceto para abrir as portas à subordinação imperial e à entrega de recursos naturais. Simples fotocópias borradas de um Porto Rico oficial (não o independentista), com sonhos de se tornar filiais sulamericanas de Miami.

No caso específico da Bolívia, a esse condimento de fascismo dependente, mafioso e lumpen, acrescenta-se o racismo extremo, de origem colonial furiosamente anti-indígena, apenas comparável à ideologia neonazista em favor da “supremacia branca” dos bôeres e Afrikaners da África do Sul durante o Apartheid. Não por acaso, a Bolívia recebeu criminosos de guerra croatas em Santa Cruz de la Sierra após a Segunda Guerra Mundial, muitos deles ativos na política doméstica até hoje, assim como Klaus Barbie, outro criminoso nazista da SS que, ao chegar à Bolívia, dirigia os serviços de inteligência nativos, sendo recrutado ao mesmo tempo pela Estação da CIA. Esse racismo extremista ficou nu quando os conspiradores contra Evo Morales queimaram publicamente o Whipala, símbolo da bandeira dos povos originários e caráter plurinacional do Estado boliviano.

A sujeira desse racismo é “espiritualmente” envernizada, é claro, pelo óleo sagrado e pelos apelos ao fundamentalismo religioso e ao fundamentalismo do neopentecostalismo, dos mórmons e da extrema direita do evangelismo, cada dia mais poderosos na região, como ficou descoberto não apenas com o discurso ao estilo “Pastor / Pregador” do Camacho boliviano, mas também com o brasileiro Bolsonaro. O suposto “Deus de raça branca” retorna, mais uma vez, para acompanhar e legitimar a submissão das comunidades indígenas nativas. Uma herança da conquista europeia pelo óleo sagrado e pelos apelos ao fundamentalismo religioso e ao fundamentalismo do neopentecostalismo, dos mórmons e da extrema direita do evangelismo, cada dia mais poderosos na região, como foi descoberto não apenas com o discurso “Pastor / Pregador” Camacho boliviano, mas também com o brasileiro Bolsonaro. O suposto “Deus branco” retorna, mais uma vez, para acompanhar e legitimar a submissão das comunidades indígenas nativas. Uma herança da conquista europeia. Diante de um ataque anunciado e previsível da extrema direita golpista, por que em 13 anos de gestão estatal o MAS não preparou ou conseguiu organizar uma defesa futura do processo de mudança que não dependesse das instituições tradicionais, do exército e da polícia?

Matéria de saldos pendentes … e, talvez, de futuras autocríticas?

No entanto, sem subestimar ou ocultar deficiências dos anos de gestão do MAS ou discussões abertas no futuro, a patética intervenção[3] da famosa ensaísta Silvia Rivera Cusicanqui fornece elementos para a análise. Sua intervenção controversa e indefensável, que nega sem vergonha a existência do golpe contra Evo, a torna… em nome do feminismo pós-colonial (feminismo curioso e exótico, seu, que não denuncia a vexação das mulheres indígenas por parte dos golpistas, os ataques com bazucas de grupos paramilitares contra mobilizações de mulheres que se manifestavam em apoio a Evo nem sequer a violência física exercida contra a dirigente do MAS Adriana Salvatierra, presidenta do Senado).

Além desses silêncios cúmplices, o interessante está em seus questionamentos. Desqualificando com um ar de arrogância e suposta superioridade – uma cópia do estilo de Gay Spivak e seus ataques a Marx? – Silvia Rivera ataca a “nostalgia da esquerda” [sic] na Bolívia. E daí se encoraja e acusa o nome e sobrenome Juan Ramón Quintana, ex-ministro da Presidência da Bolívia, autor de um volumoso trabalho sobre interferência americana no país andino e mão direita de Evo Morales, de tentar armar os povos originários e formar um exército indiano. Acusação que também se estende contra Hugo Móldiz. Como se fosse um pecado e houvesse um mandato para “dar a outra face” contra a violência irracional da extrema direita racista!

Diante de tal absurdo ideológico e político, não podemos deixar de interrogar: quem financia esse distinto expoente do oenegerismo “pós-colonial”?

Se para o pós-modernismo de Silvia Rivera, o golpe de estado contra o presidente constitucional Evo Morales é tão somente «uma hipótese» [sic], um relato, um discurso [os jovens mutilados, as mulheres violentadas e os indígenas assassinados pelos golpistas sofre essas agressões no imaginário e no âmbito dos discursos narrativos ou acontece no âmbito do real?], para a acadêmica Raquel Gutierrez Aguilar a derrubada violenta do presidente boliviano que ganhou as eleições com mais de 10% de diferença se explicaria pela enorme semelhança entre a Bolívia do MAS e … o autoritarismo do México do PRI[4]. Extravagante utilização do método comparativo! Como se Evo Morales pudesse ser comparado com a hierarquia corrupta do PRI mexicano! Como se a constante consulta eleitoral da Bolívia nos últimos 13 anos e o diálogo com os movimentos sociais pudessem ser associados ao fisiologismo da velha política anti-indígena mexicana. A que grau de involução ideológica e política pode levar o ressentimento das pessoas que se transformam em EX revolucionárias, perdendo a bússola na cartografia da luta de classes latino-americana!

Mas quem ganhou todos os prêmios em desorientação acadêmica diante dos trágicos eventos recentes na Bolívia foi o autonomista Raúl Zibechi. O mesmo que tentou nos explicar quem estava na rua na rebelião popular de 19 e 20 de dezembro de 2001, o que, pobrezinhos e pobrezinhas, não havíamos entendido e ele, iluminado por seu suposto “horizontalismo” ou oenegero, veio nos revelar. Superando a si mesmo, desta vez ele quebrou todos os recordes anteriores, defendendo um apoio “crítico” embaraçoso ao golpe contra Evo, chamando-o de “revolta popular”[5]. Esse publicitário até argumenta que Evo Morales, com certeza, “fraudulento”, permaneceu no governo … graças à OEA. Por Zeus! Platão exclamaria … em um de seus diálogos pedagógicos. Agora vimos a luz, graças ao inocentes, bem-intencionados e humanitários dinheirinhos das ONGs.

Apesar dessa notável virada à direita das ONGs pós-coloniais, “feministas” e autonomistas de salões … nem tudo cheira a podre na Dinamarca, digo, na América Latina. Felizmente, outras vozes dissidentes denunciaram o golpe de estado e o encobrimento da mídia (também acadêmico) dos quatro ventos. Essas vozes desobedientes nos lembraram que a atividade intelectual pode ser exercida e até obter algum reconhecimento internacional sem a necessidade de subordinar a voz do mestre ou repetir o script “humanitário” financiado por “instituições altruístas que apoiam a sociedade civil” com dólares ou euros do império.

Por exemplo, Leonardo Boff, Enrique Dussel, Gilberto López e Rivas, Atilio Borón, Pablo González Casanova, entre tantas pessoas, se manifestaram contra o GOLPE DE ESTADO e em defesa do processo liderado por Evo Morales e os movimentos sociais. Trazendo ar fresco, Ramón Grosfogel, um defensor histórico dos estudos descoloniais, repreendeu duramente Silvia Rivera Casucanqui por sua negação pós-moderna do golpe na Bolívia.

Os desafios contra essa suposta “esquerda progressista” que fala do meio ambiente, dos povos subalternos, do patriarcado e que podem substituir Lênin, Bolívar ou Che pelo veganismo e aloe vera … mas não coram contra a queima pública da bandeira indígena Whipala na Bolívia, nem fica com vergonha de marchar a reboque da agenda política das Embaixadas (com letras maiúsculas) dos EUA ao redor do mundo, permite-nos distinguir os projetos radicalmente anticolonialistas das imposições que seguem a moda do momento.

Lembremos que esses alinhamentos já estavam surgindo diante da autoproclamação do novo rei Guaidó, da dinastia do Departamento de Estado, contra o suposto “autoritarismo” do movimento bolivariano na Venezuela. O golpe de estado contra Evo Morales aprofundou o que vinha ocorrendo na Academia desde as denúncias e pedidos contra o “autoritarismo” de Nicolás Maduro. Muitos e muitos desses denunciantes em série exigem que os povos originários continuem sem hospitais, sem asfalto, com casas precárias e sem a possibilidade de se comunicar com áreas e aldeias distantes, enquanto eles e elas viajam de avião, têm o último modelo de computador, o telefone celular mais caro e sofisticado e casas com empregadas domésticas (“a garota que me ajuda”). São defensores e defensoras hipócritas de Pachamama, desde que sejam os “bons selvagens” idealizados, mas em sua vida privada não renunciam a nenhum avanço tecnológico nem ao luxo da modernidade ocidental. Essas mesmas pessoas com discurso duplo e moral tripla agora dão as costas aos indígenas, trabalhadores e movimento popular boliviano. Estamos indignados, mas não surpresos.

Finalmente. Foi uma boa decisão se exilar da Bolívia? Somente a história pode responder. Mas lembre-se de que, quando ocorreu o golpe de Estado contra Chávez, ele entrou em contato com Fidel Castro. O antigo líder da revolução cubana o aconselhou a não se imolar como Salvador Allende. Fidel estava certo.
 
Antes da revolta popular de seu povo, Hugo Chávez, que foi capturado pelos golpistas determinados a assassiná-lo, voltou. Evo retornará como presidente constitucional do Estado Plurinacional da Bolívia? A resposta depende da capacidade organizacional, resistência e insurgência das comunidades indígenas e da classe trabalhadora mineira, herdeiras dos levantes de Tupak Katari, Bartolina Sisa, Zárate Wilka, da Revolução de 1952 e da rebelião de Che. Os povos da Bolívia têm uma tradição esmagadora de luta. Quem disse que tudo está perdido?

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Notas:
[0] Tradução: PCB. 
[1] Long, G.; Rosnick, D.; Kharrazian, C. e Cashman, K. (2019): «O que aconteceu na contagem de votos das eleições na Bolívia em 2019? O papel da missão de observação eleitoral da OEA ». Washington DC, Centro de Pesquisa Econômica e Política (CEPR). Em http://cepr.net. 
[2] Jalife Rahme (2019): «Revelando o plano dos Estados Unidos para o golpe na Bolívia: nomes e sobrenomes, relação da Embaixada e países vizinhos» [en www.conclusion.com.ar. 
[3] Divulgada no YouTube e transcrita em: https://desinformemonos.org/esta-coyuntura-nos-ha-dejado- uma-grande-lição-contra-triunfalismo-silvia-rivera-cusicanqui-da-bolívia /. 
[4] Ver: https://www.elsaltodiario.com/bolivia/bolivia-la-profunda-convulsion-que-lleva-al-desastre-.
[5]Ver:https://desinformemonos.org/bolivia-un-levacimiento-popular-aprovechado-por-la-ultraderecha /.
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sábado, 27 de julho de 2019

ARTE REALISTA| Novos Termos


Sinopse: Sinopsing é o termo usado quando alguém faz um reducing do que o outro está falando. (Porta dos Fundos)
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Novos Termos (farsa, BRA, 2019), de Rodrigo Van Der Put.
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sábado, 20 de julho de 2019

ARTE REALISTA| Em Nome do Pai


Sinopse: Pai Nossx que estais nos céus. Santificadx seja o vossx nome. Venha a nós o vossx reino. Seja feita a vossx vontade. Assim na terra como nx céu. (Porta dos Fundos)
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Em Nome do Pai (farsa, BRA, 2019), de Rodrigo Magal.
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quinta-feira, 13 de junho de 2019

Olavo, o pós-estruturalismo e o Pequeno Príncipe


 
por Mauro Iasi
Blog da Boitempo

Tu deviens responsable pour toujours
de ce que tu as apprivoisé.
(Saint-Exupéry)

Quando nos vemos diante da catástrofe que nos assola, começamos a perceber alguns personagens de forma oportunista tentando abandonar o barco e se desvencilhar de declarações e laços que os ligam à nau desgovernada. É compreensível e esperado. No entanto, nossa responsabilidade é militar pelo não esquecimento.

Trata-se, de fato, de atribuir a quem de direito cabe a responsabilidade por um desclassificado, tosco e desequilibrado miliciano e sua família mafiosa ter chegado ao posto máximo da República. Em um conhecido poema, Verhoer des Guten, cuja declamação me custou um processo, Brecht fala de um personagem que, diante da catástrofe do nazismo, tenta se isentar de culpa afirmando ser um homem bom, que apenas emitiu sua opinião, que é bom amigo. A pergunta central do poema pode ser encontrada no momento em que o homem bom afirma que não age movido por seus próprios interesses, ao que o poeta pergunta: que interesses te movem, então?

Penso que esta a pergunta central seja esta. Afinal, aquilo que aparece na boca e nas ações de significativos segmentos de massa representa interesses bem definidos – mais precisamente, interesses do grande capital monopolista em suas diversas manifestações (financeira, industrial, comercial, agrária, etc.). Muito já falamos disso. Agora, contudo, interessa-me um outro aspecto, aquele ligado à própria manipulação ideológica que leva os assim chamados “homens bons” a se tornarem o suporte da maldade encarnada.

Assim como Gramsci, estou convencido de que existe um núcleo saudável no senso comum. Ninguém aceitaria ser suporte de ações tais como aquelas que estão levando à devastação da política ambiental, à ampliação da violência contra a mulher, à política genocida disfarçada de segurança pública, ao ataque aos direitos trabalhistas ou à destruição da previdência em nome dos interesses do capital financeiro… Ao menos não em seu estado puro, isto é, uma vez esclarecido seu real conteúdo reacionário e anti-humano, assim como as consequências desastrosas que acarretam para as pessoas e o país. Por isso, o conteúdo substantivo dos ataques necessita ser embrulhado por uma grossa camada ideológica que os apresente ocultando suas determinações, justificando sua suposta necessidade inquestionável, invertendo seus atributos, naturalizando suas raízes sociais e históricas, e, por fim, conferindo um verniz universal ao caráter particular dos interesses que os protagonizam.

Esse modus operandi da ideologia transparece com clareza no tratamento dado ao episódio de violência em uma escola do Estado de São Paulo, em que adolescentes atacaram uma professora arremessando livros e carteiras contra ela. Demonstrando sua preocupação, o secretário de educação afirmou que todos devem condenar esse ato injustificável de violência e que o governo já estaria buscando formas de endurecer as punições contra agressores e familiares para responsabilizá-los por atos dessa natureza. Ora, embrulhado dessa forma, com pitadas de evidências do tipo “não se pode esperar que os professores deem conta disto sozinhos”, que “a escola e os pais têm que agir conjuntamente para garantir que isso não aconteça”, fica de fora a clara responsabilidade dos governos do PSDB que comandam o Estado de São Paulo há 25 anos e que têm tratado os professores como lixo – inclusive, sempre que podem, batendo neles com extrema crueldade e violência, sucateando as condições de trabalho, impondo superlotação de salas, diminuído pessoal de segurança escolar e manutenção, desvalorizando na prática o trabalho docente de forma permanente e decisiva em nome da sacrossanta lei de responsabilidade fiscal, dos superávits primários, do saneamento financeiro e da capacidade de pagamento da dívida. Ao final, segundo esse discurso, os responsáveis por essa “injustificada” violência seriam os jovens e suas famílias. Nada ameniza a violência praticada contra a professora, mas, desta forma, acaba por se ocultar nas tramas da ideologia, as determinações mais profundas que se convertem nas margens que oprimem e preparam as novas explosões de violência no rio das escolas.

Creio que podemos pensar a partir deste registro nosso drama atual. Quando pensamos no inepto limitado que comanda a República e seu circo de ministros que parecem retirados de uma peça de Pirandello (que aliás, doou sua medalha do prêmio Nobel de Literatura para a campanha de ajuda ao fascismo na Itália), logo nos vem à mente a malta de pessoas fazendo arminhas com as mãos e digitando o número da besta na urna eletrônica. Pensamos em organizações fartamente financiadas pela extrema direita conservadora mundial, como o MBL, o Vem Pra Rua e outras, ou, ainda, o esquema milionário para espalhar notícias falsas coordenado pelo mercenário Steve Bannon e o astrólogo caçador de patos que vive nos EUA.

É fato que todos eles têm sua responsabilidade, inclusive aqueles que acreditavam que estavam apenas evitando que o petismo bolivariano voltasse ao governo. Há, no entanto, um responsável que pode nem sequer ter votado no esposo da sobrinha do miliciano preso em Brasília.

A chave para encontrá-lo reside em uma constatação. O senso comum não estaria, por seus próprios mecanismos e características, apto a aceitar como válidas essa montanha de bobagens e falsificações grosseiras. Aquilo que se expressa no senso comum, já dizia Gramsci, resulta em larga medida do trabalho intelectual. Ou, dito de outra forma, aquilo que aparece em ideológicas arbitrárias, bizarras e ocasionais, nasceram de ideologias orgânicas e aparecem na consciência imediata das massas “sem benefício do inventário”.

No senso comum aparecem caoticamente mescladas, por um lado, crenças na virgindade de nossa senhora, dúvidas sobre o formato plano ou arredondado da Terra, tramas conspiratórias sobre a suposta imposição perversa de vacinar as crianças contra o sarampo ou sobre as mensagens ocultas nos livros didáticos que podem levar seu filho a virar gay ou, pior, comunista, e por outro, afirmações sobre o nazismo ser de direita, sobre o fracasso das experiências socialistas, sobre o quanto foi salvador o golpe de 1964 e humanistas seus torturadores, as virtudes do mercado e o rombo na previdência.

Tudo isso só pôde habitar assim o senso comum sem maiores problemas depois de um longo e paciente trabalho em desacreditar as ciências, a noção de verdade, a história. Ora, quem militou neste front pode não ser um bolsonarista que acredita que a terra é plana e que Olavo de Carvalho é filósofo, mas não deixa de ter contribuído de forma decisiva para semear o terreno no qual o obscurantismo, e seu plano de batalha, pudessem dar frutos.

Hegel, em seu estudo sobre a História da Filosofia, afirma que há dois antagonistas à filosofia e à busca da verdade. O mais antigo deles é a religiosidade, que ao declarar a incapacidade da razão e do pensamento de atingir a verdade, propõe que o caminho para a revelação é a renúncia da razão, humilhando-se diante da autoridade da fé (Hegel, Introdução à História da Filosofia, São Paulo: Hemus, 1983, p.17). O outro antagonista seria, surpreendentemente, a própria razão, que, combatendo a religiosidade e suas verdades reveladas ao afirmar que só a convicção de suas próprias evidências poderia levar o ser humano a reconhecer algo como verdade, conclui que “de maneira tão prodigiosa se inverteu a afirmação do direito da razão, por ter este como resultado, que a razão não podia conhecer nada como verdadeiro” (idem, p. 18).

Este contraste entre “opinião e verdade” que o filósofo alemão via como característico de tempos de crise e transição, voltou em nossas dias, por exemplo nas brilhantes e provocativas contribuições de vários autores, como Foucault que, seguindo as pistas de Nietzsche (que um dia se perguntou: “Pretendente da Verdade – tu? Trepado sobre pontes mentirosas de palavras, sobre arco-íris de mentiras”), afirmará que se trata de registros de verdade, discursos, que não estando o conhecimento inscrito de nenhuma forma na natureza humana, conclui que o “conhecimento foi, portanto, inventado” (La verdade y las formas jurídicas).

A ofensiva decisiva se deu, no entanto, com o pensamento pós-moderno, sedutoramente apresentado como um bálsamo sagrado e redentor contra as ortodoxias e conhecimentos envelhecidos, contra a razão moderna e suas certezas que conduziram à catástrofe contemporânea e as barbaridades, mas fundamentalmente contra o marxismo e sua pretensão de mudar o mundo.

O centro da pregação pós-moderna está na afirmação de que a ciência não passaria de uma entre outras narrativas ou discursos que não têm legalidade absoluta para se impor sobre outros jogos de palavras (religião, a arte, a economia, etc.). Como fica evidente na obra de Jean-François Lyotard, a pós-modernidade é a mais radical crítica à razão moderna e de suas chamadas “metanarrativas” – isto é, da pretensão de articular, em um todo compreensível, linhas de desenvolvimento seja histórico, econômico ou político, que na realidade não são mais que acontecimentos em si mesmo isolados e aleatórios, inseridos, como diria Foucault, à força no discurso. Como não se trata de compreender os fenômenos por suas determinações e sua história, resta a genial intuição, a particularidade do olhar, a narrativa, a percepção individual, a sensação emocional.

Extremamente sedutora na forma, a pós-modernidade é filha do irracionalismo e mãe da barbárie. Como toda genitora, fica incomodada diante da cria que não sai exatamente como desejada. Esperava um mundo livre das metanarrativas, expressão do poder sobre os corpos e da liberdade, mas se vê diante da produção industrial da mentira, do poder em seu estado puro – em suma: não da intuição genial liberta das amarras das normas acadêmicas, mas da burrice em sua forma exuberante. Deviam ter ouvido as palavras proféticas de Adorno e Horkheimer, alertando que a terra totalmente esclarecida resplandeceria como uma calamidade triunfal.

Os mitos pós-modernos se fizeram acompanhar de noções apresadas como a sociedade pós-industrial, o pós-capitalismo, o fim da centralidade do trabalho, a morte do sujeito, o fim das classes, mas a somatória de toda a criativa crítica-crítica desagua na genial antecipação de Hegel, a peremptória a afirmação da razão irracional: não se pode mais afirmar nada como verdadeiro. Não por acaso, a religiosidade, irmã gêmea da razão antagonista da verdade, cobra seu legado de obscurantismo para se afirmar novamente como caminho em meio às mentiras dos homens para se chegar à revelação do verdadeiro conhecimento.

É somente em um mundo desses que Olavo tem seu espaço, imerso no jogo aleatório de palavras, fatos e mentiras, despautérios e destemperos. Mas, não percamos tempo analisando o personagem menor – o brilhante texto de Christian Dunker aqui no Blog da Boitempo já deu conta disso (e parece de fato ter despertado a covardia do dito cujo com ele).

Em algum departamento de algum curso de alguma universidade, pessoas que se pensam civilizadas, com seus blazers de camurça e reforços de couro nos cotovelos, ou vestidos despojados acompanhados de colares eloquentes que lembram alguma arte tribal, ficarão indignadas com certas ilações.

Entretanto, em um asteroide distante com três baobás, Saint-Exupéry sentencia: tu és eternamente responsável pelo que cativas. Ainda que sejam… raposas ou fascistas.
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