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quarta-feira, 3 de novembro de 2021

O anti-engelsismo: um compromisso contra o materialismo


por Caio Navarro de Toledo
ensaio em PDF/1980

O termo “dogmático” tem sabor filosófico muito particular: é a palavra que os idealistas e agnósticos usam com mais gosto contra o materialismo.
(Lênin)

O recurso à práxis constitui-se frequentemente, dentro do marxismo, num modo de não falar ou de falar pouco do materialismo.
(Sebastiano Timpanaro)

Introdução

Aos clássicos do marxismo a acirrada polêmica e o intenso debate teóricos nunca foram práticas estranhas; pelo contrário, constituíram-se em procedimentos frequentes e amplamente difundidos em virtude da compreensão que se tinha acerca das tarefas e exigências requeridas na luta pelo avanço do pensamento e da revolução socialistas. A luta teórica e ideológica que se travava — seja na forma do combate às obras dos pensadores burgueses que exerciam influência no ambiente cultural e político da época, seja na forma da denúncia dos revisionismos e erros de interpretação daquilo que se entendia constituir os fundamentos do socialismo científico — impunha que todas as obras produzidas fossem objeto de amplo questionamento crítico e de avaliação criteriosa. A complacência, o talmudismo e o dogmatismo eram, assim, atitudes e práticas desconhecidas nos meios intelectuais socialistas.

Como assinalou um estudioso, tais debates — muitas vezes realizados de forma apaixonada — eram “no essencial informados por um estudo aprofundado e íntimo dos trabalhos uns dos outros”.[1]

Nenhum intérprete e historiador do marxismo deixa de reconhecer que este período de vigorosas controvérsias dentro do pensamento socialista foi decisivo para o avanço teórico do marxismo e para o seu desenvolvimento em escala mundial. Em certa medida, pode-se mesmo aventurar a hipótese segundo a qual, hoje, a chamada “crise do marxismo” tem muito a ver com a perda deste caráter polêmico e crítico que sempre representou o marxismo — particularmente naqueles momentos em que o debate e a produção teórica não se faziam distantes das lutas sociais.

Em seu 1° número, Teoria & Política publica um artigo[2] que se pretende polêmico e que, em suas palavras, se afirma ousado. Polêmico na medida em que atribui a Friedrich Engels a paternidade, dentro do marxismo, daquilo que o autor denominou de “dogmatismo naturalista”; ousado porque julga — ao propor, hoje, aos marxistas brasileiros a tarefa de se escrever o “anti-Engels”— estar defendendo uma tese original, inédita e revolucionária dentro do pensamento marxista contemporâneo. De imediato e à guisa de introdução, dois breves comentários poderiam ser feitos:

a) O “dogmatismo naturalista” de Engels: uma tese não-demonstrada

O autor do ensaio participa de uma equívoca e simplista concepção de trabalho polêmico, pois, ao denunciar o “dogmatismo naturalista” existente na obra filosófica de Engels, dispensa-se inteiramente da tarefa teórica de demonstrar — através de argumentos, provas e razões — a tese que sustenta. Se a discussão de uma tese tão genérica como esta imporia uma avaliação criteriosa e uma análise minuciosa do conjunto dos trabalhos filosóficos de Engels, o que se pode afirmar quando o polemista não arrola sequer uma única frase do autor criticado?[3]

Seria esta nossa exigência um “vício acadêmico”? A nosso ver, esta possível objeção não teria o menor fundamento, pois, como foi observado, qualquer polêmica — se se pretende teórica e politicamente consequente — deve ser feita de forma rigorosa e com o pleno conhecimento da obra que se pretende criticar. Esta recomendação não procede necessariamente dos meios acadêmicos; ela foi irrepreensivelmente praticada pelos clássicos do marxismo.

Talvez o autor pudesse contra-argumentar que deixou de utilizar o recurso das citações e da análise sistemática dos textos engelsianos posto que existiria um amplo conhecimento, por parte do público marxista em geral, daquilo que denominou de “tendência naturalista que percorre a obra de Engels”. Embora sejamos obrigados a conceder que existe uma relativa concordância, entre os intérpretes do marxismo, acerca desta última afirmação, não há absolutamente qualquer consenso — a não ser entre os pensadores antimarxistas — sobre o chamado “dogmatismo naturalista” na obra filosófica de Engels.[4]

A rigor, não pode haver polêmica alguma quando o discurso é um conjunto de proposições cujas teses nunca são demonstradas. Defender teses “heterodoxas” e “ousadas” — sem a menor preocupação de justificá-las teoricamente — não contribui, a nosso ver, para fazer avançar o pensamento crítico e a luta ideológica no seio do marxismo. Combater um (pretenso) dogmatismo através de um procedimento dogmático é, no mínimo, um paradoxo lógico.

b) A longa trajetória do anti-engelsismo

Ao afirmar o caráter ousado de seu ensaio e insinuar a originalidade da tese central que procura defender (escrever, hoje, o “Anti-Engels”), AGF parecer ignorar alguns aspectos do desenvolvimento do pensamento marxista no ocidente. Desconhece ele. que o anti-engelsismo não é apenas uma realidade teórica, como também se constitui numa das teses mais acalentadas e mais difundidas pelo chamado “marxismo ocidental”?

Que ilustre pensador marxista do ocidente não formulou restrições e objeções à obra filosófica de Engels? Embora cada um fundamente de forma diversa suas críticas ao pensamento filosófico de Engels, pode-se, contudo, afirmar que [o jovem] G. Lukács, K. Korsch, A. Gramsci, J. P. Sartre, T. Adorno, H. Marcuse, L. Goldmann, L. Colletti e outros coincidem na proposta teórica de distinguir e postular a autonomia da obra teórica de Marx em relação à de Engels. Em outras palavras, todos estes autores defenderam a tese de que é tarefa essencial e inadiável, para a reabilitação e revigoramento do marxismo, “salvar” a obra de Marx da contaminação — “metafísica”, “positivista”, “naturalista”, “dogmática”, “mecanicista”, “determinista”, “fatalista”’ etc. — a que ela esteve sujeita em virtude da malsinada atividade filosófica perpetrada por Engels.[5]

Tal como está construído o seu discurso, AGF conduz o leitor a pensar que a necessidade da elaboração do “anti-Engels” — tarefa revolucionária no interior do marxismo contemporâneo, afirma ele — é uma conclusão a que chegou através de uma reflexão eminentemente pessoal. Tudo sugere, no texto em questão, que estamos assim diante de uma tese original e inédita dentro da história do marxismo. Mesmo admitindo aqui a hipótese de que não ignore a existência daquele debate, inaugurado em 1919 com a publicação do conhecido ensaio de G. Lukács,[6] argumentamos que AGF não apenas deveria se referir a esta realidade teórica dentro do marxismo, como, e principalmente, deveria ele se definir em relação a qual interpretação do marxismo anti-engelsiano se filia ou, então, rejeita. Se o autor tem plena consciência de que sua proposta nada tem de original, deveria, a nosso ver, delimitar e explicitar a especificidade da sua postura teórica no âmbito do marxismo ocidental anti-engelsiano. Ou seja, num artigo que se pretende polêmico e ousado, seria de se esperar que fossem indicadas e demonstradas as insuficiências teóricas e os equívocos políticos nos quais incorrem aquelas interpretações que defenderam, muito antes de AGF, a tese de um marxismo sem os trabalhos filosóficos de Engels.

Em suma, caberia ao autor justificar teoricamente: de um lado, a razão pela qual, em seu texto, omite qualquer referência à existência e aos desdobramentos daquela polêmica; de outro lado, por que propòe retomar, hoje, uma tese pouco original dentro do pensamento marxista. Contudo, mais importante do que isso: deveria ele nos convencer, com argumentos e evidências teóricas, de que a sua proposta supera criticamente todas as interpretações do marxismo anti-engelsiano até agora formuladas.

Esclareça-se novamente que — ao enfatizarmos a necessidade de uma explícita definição do autor face às teses anti-engelsianas postuladas pelo “marxismo ocidental” — não nos movemos a partir de qualquer viés de cunho academicizante, onde a exigência de erudição frequentemente escamoteia a originalidade da reflexão pessoal e crítica. O que nos surpreende no artigo de AGF é que, ao formular uma tese de tamanha importância teórica e política dentro do pensamento marxista, desconsidera ele um rico e problemático debate em tomo desta específica e polêmica questão. Prescindir do conhecimento da tradição teórica e do debate no interior do marxismo tem levado a alguns equívocos. Assim, algumas teses que hoje aparecem como “avançadas” e “revolucionárias” nada mais são do que falsas e superadas propostas teóricas e políticas dentro do marxismo.

Na verdade, justamente ao contrário do que parece supor AGF, “ousadia” no marxismo ocidental é postular, hoje, a defesa do trabalho filosófico realizado por Engels na sua fase de maturidade.

O presente artigo não visa, contrapondo-se à proposta de AGF (“escrever o ‘anti-Engels’”), propor à maneira dos títulos editoriais da moda, a realização do “a favor de Engels”. Os limites de um breve artigo tomariam este projeto não apenas ingênuo como também uma farsa da pior qualidade teórica. De início, esclareça-se também que — embora suscitados pela leitura do ensaio de AGF — não se trata aqui de polemizar com todas as teses e múltiplos aspectos da interpretação do marxismo ali presente.[7]

Neste artigo buscaremos examinar alguns aspectos da obra filosófica de Engels. Particularmente, procuraremos ressaltar os méritos e o valor do projeto engelsiano de enfrentar — a partir de um ponto de vista estritamente materialista — a problemática teórica da ciências naturais de sua época. Valendo-se de alguns intérpretes da obra de Engels, buscar-se-á aqui esclarecer o sentido da empresa engelsiana de articular o materialismo histórico com as ciências da natureza. De outro lado, ao procurar discutir as teses principais de alguns representantes do marxismo ocidental, tentaremos mostrar os riscos e as dificuldades teóricas e políticas nos quais se enredam algumas das interpretações anti-engelsianas do marxismo.

Marx: o projeto teórico e Engels

Como uma questão preliminar, talvez devêssemos examinar e discutir a relação que Marx manteve com o projeto teórico de Engels no sentido de se constituir uma filosofia materialista — o materialismo dialético.

A Marx era indiferente este projeto? Representava a tentativa engelsiana um enorme equívoco teórico, “absolutamente estranho ao genuíno pensamento de Marx”? Ou ainda, como observa o autor: teria Marx assistido, sem pestanejar, “a destruição de sua própria filosofia pelo seu mais íntimo amigo e colaborador”?[8]

Apesar de reconhecermos que existiu entre Marx e Engels “uma colaboração intelectual sem outro exemplo na história do pensamento”[9], entendemos, contudo, ser possível estabelecer uma relativa autonomia da produção teórica de um face à do outro. Não advogamos, pois, a dogmática tese defendida por alguns porta-vozes de partidos comunistas oficiais e pela “filosofia soviética” — particularmente a partir do período da “guerra fria”— segundo a qual existiria uma absoluta identidade ou homogeneidade entre os pensamentos de Marx e Engels.[10] Para nós, a relativa autonomia entre seus pensamentos — condição para a fecunda e criadora cooperação intelectual — não significou, porém, uma oposição ou divergência nas linhas fundamentais da teoria, da pesquisa e da produção crítica de um e de outro.

Ao contrário daqueles que pretendem subestimar a contribuição teórica de Engels, deve-se afirmar que não estamos, em absoluto, diante de uma relação “entre mestre e discípulo” ou “entre criador e divulgador”. Embora Engels sempre tenha reconhecido a “superioridade” de Marx e ressaltado que suas obras tinham uma “certa participação independente”[11], é tarefa das mais difíceis distinguir divergências entre as suas obras. Este reconhecimento é compartido por um discípulo da Escola de Frankfurt, severo crítico da obra de Engels: “(...) é oportuno sublinhar que, quaisquer que sejam as críticas contra Engels, não se trata de buscar uma pura e simples linha de demarcação entre seu pensamento e o de Marx. Que isto somente é possível de forma limitada demonstra o fato de que, em qualquer crítica dirigida a Engels, devem entrar em ação temas e problemas que resultam da posição elaborada em comum pelos dois autores”.[12]

Desta forma, não se pode senão discordar de AGF quando afirma: “A ideia da qual partimos é de que Marx e Engels não perceberam as ‘tensões’ divergentes de suas concepções porque historicamente não poderiam mesmo perceber” (pág. 95). Entende AGF que, assoberbados pelo combate que tratavam contra o “dogmatismo idealista”, não poderiam Marx e Engels perceber as diferenças existentes entre os pressupostos teóricos e filosóficos sobre os quais se erigiam suas respectivas obras. Na verdade, pretende AGF mostrar que Marx não se deu conta do “dogmatismo naturalista” presente nos trabalhos de Engels. Neste momento, a genialidade de Marx — tantas vezes invocada em detrimento da capacidade intelectual de Engels — estava, assim, comprometida por “circunstâncias históricas”. Bem se sabe, contudo, que nenhuma circunstância histórica ou qualquer tipo de “bloqueio mental” impediriam Marx e Engels de polemizar intensamente contra as ideologias dominantes no seio da cultura burguesa de suas épocas (positivismo, materialismo vulgar, empirismo, agnosticismo).[13] Desta forma, ao contrário do que supõe AGF, a luta teórica empreendida por Marx e Engels não se reduziu apenas ao combate ao chamado “idealismo dogmático”.

Embora ninguém ouse afirmar que Marx foi complacente para com a obra de seu velho amigo, insinua-se, assim, que os árduos e urgentes combates do presente foram responsáveis pelo fato de Marx ter sido um mal leitor de Engels... Marx teria, por exemplo, denunciado e ridicularizado o positivismo de Comte, mas teria sido incapaz de ver — a um palmo de seu nariz — o vulgar materialismo positivante de seu companheiro de armas!

Negando o argumento que vê ambiguidades ou “erros” nas avaliações feitas por Marx sobre a obra filosófica de Engels, sustentamos que a colaboração intelectual entre os dois pensadores foi de tal natureza que havia um profundo e íntimo conhecimento de tudo o que cada um realizava individualmente. A discussão e a troca constante de informações — tal como revela a copiosa correspondência entre ambos — é uma prova da qualidade e do rigor daquela colaboração teórica.

Deve-se ainda assinalar, que nenhum intérprete do marxismo oferece qualquer prova (livro, ensaio, carta etc.), escrita por Marx, onde se façam quaisquer reparos ou objeções ao projeto teórico e aos trabalhos filosóficos desenvolvidos por Engels. Pelo contrário, nos textos escritos por Marx só encontramos referências favoráveis às iniciativas de Engels no campo da Filosofia.[14]

Cremos que uma citação de E. Hobsbawm sintetiza de forma exemplar os comentários acima expostos: “(...) ao reconhecer que os dois pensadores não eram irmãos siameses e que (como Engels reconhecia) Marx era o pensador mais profundo, deveremos manter-nos em guarda contra a tendência moderna de confrontar Marx com Engels, geralmente com desvantagem para o segundo. Quando dois homens colaboram tão intimamente como o fizeram Marx e Engels, durante mais de quarenta anos, sem qualquer desacordo teórico de importância, é de presumir que um deles tinha pleno conhecimento do que estava na mente do companheiro. Sem dúvida, se Marx tivesse escrito o Anti-Dühring (publicado quando ainda vivia), seu texto seria diferente e talvez contivesse algumas novas e profundas sugestões. Mas não há razão alguma para crer que ele discordasse de seu conteúdo. Isto é aplicável aos trabalhos que Engels escreveu depois da morte de Marx”.[15]

A realidade de uma “certa participação independente”, autonomia relativa de Engels em relação a Marx, conforme assinalou o primeiro, parece ser um fato que os intérpretes anti-engelsianos não podem aceitar. Para estes, a história do pensamento marxista seria outra (mais fecunda e promissora, acreditam eles), caso Engels se recolhesse à verdadeira dimensão teórica que “merecia”: a de discípulo (aplicado) e a de divulgador (fiel) da obra genial de Marx...

Marx & Engels: o desafio das ciências da natureza
 
Citemos duas cartas:
 
“Querido Mouro: dissestes muito bem. Tu podes permanecer no cálido leito — ocupar-te das relações agrárias russas, em particular, e da renda territorial em geral, (...) — enquanto eu devo sentar-me em duro banco e fartar-me de vinho frio, interrompê-lo bruscamente e ajustar contas com esse pesado Dühring ” (Engels a Marx — 28/5/1876).

Numa outra carta, Engels assim definia a relação de trabalho mantida com Marx: “Em consequência da divisão de trabalho existente entre Marx e eu, tocou-me a tarefa de apresentar nossos pontos de vista na imprensa periódica, especialmente na luta contra as opiniões adversas; de modo que sobrasse tempo a Marx para a elaboração de sua obra maior”. Desta forma, o Anti-Dühring foi praticamente uma responsabilidade atribuída a Engels na luta teórica e ideológica que se travava no seio da social-democracia alemã. A insistência de Liebknecht, mais o apoio do próprio Marx, obrigaram Engels a assumir, como dizia ele, aquela “tarefa por demais ingrata”.

Deve ser igualmente assinalado que apesar de Engels ter dedicado mais anos de suas pesquisas às ciências naturais, isso não significava um menor interesse de Marx em relação àquelas áreas do saber. Pelo contrário, a extensa correspondência entre Marx e Engels e dos dois com outros pesquisadores revela, de forma inequívoca, que ambos sempre estiveram atentos a todas às descobertas e pesquisas que se realizavam no campo das ciências da natureza?[16]

Como foi esclarecido pelo próprio Engels, coube a ele — em virtude de Marx estar inteiramente voltado para a elaboração de O capital — enfrentar como marxista a problemática das ciências da natureza. Daí a força do argumento sustentado por E. Hobsbawm: Marx poderia ter sido o autor — embora o texto fosse necessariamente outro — do Anti-Dühring.

Os intérpretes anti-engelsianos do marxismo ocidental que sustentam ser o marxismo, fundamentalmente, uma “Ciência da História” (Materialismo Histórico ou, como pretende Colletti, urna “Sociologia crítica”) jamais chegam a enfrentar e contestar os inúmeros depoimentos de Marx onde o seu interesse pelas ciências da natureza é expresso de forma irrestrita e sem nenhuma ambiguidade. Para aqueles intérpretes, apenas sobra o duvidoso argumento de que Marx não escreveu sequer um ensaio sobre esta problemática... De outro lado, é preciso deixar assentado aqui que, apesar de toda a simpatia e incentivo demonstrados por Marx, a responsabilidade intelectual das obras que pretendem fundamentar o materialismo dialético — seja pelos seus erros, seja pelas suas virtudes — cabe exclusivamente a Engels. Contudo, o que negamos aqui é a simplicidade e a arbitrariedade da opinião, expressa por alguns comentadores, segundo a qual aqueles trabalhos assinados por Engels não pertencem ao campo do “marxismo autêntico”.

Como o próprio Marx reconhecera numa famosa carta, Engels sempre chegava antes do que ele na proposta de novas pesquisas científicas. (Este caráter precursor de Engels se verificou também na própria Economia Política). Outra qualidade intelectual de Engels foi a sua aguda “receptividade para os fatos político-sociais e culturais novos”.[17] Sua ousadia revelava-se na sua disposição de refletir, como materialista, sobre as novas questões e problemas suscitados pelos avanços científicos do século XIX, particularmente quando tinham eles consequências no plano da vida social. Ressalte-se ainda que — embora tenha revelado um interesse mais constante pelas ciências naturais e, talvez, ser mais dotado teoricamente para elas do que Marx — Engels tinha plena consciência dos riscos e dos perigos que teria pela frente, pois jamais afirmou ser um especialista naquelas disciplinas científicas.[18] Contudo, os erros e os riscos, inevitáveis quando se penetra pela primeira vez num terreno relativamente desconhecido, valiam a pena ser enfrentados em virtude das exigências impostas pela luta em defesa do socialismo e do materialismo marxista — seja ao nível da prática social, seja ao nível do conhecimento científico.

O marxismo ocidental: a “debacle teórica” de Engels

Para alguns autores do “marxismo ocidental”[19], além de vulgarizar e desnaturalizar o autêntico pensamento de Marx, Engels se aventurou numa empresa inútil e, até mesmo, negativa. Para Colletti, o marxismo não se constituiria numa nova filosofia. O materialismo de Marx se reduziria à ciência da História cujo estatuto teórico e funcionamento prescindiriam de uma “concepção do mundo”. Ou melhor, o marxismo não seria o conjunto de duas disciplinas articuladas, o materialismo histórico e o materialismo dialético, mas se reduziria, segundo Colletti, à ciência e à crítica da sociedade burguesa (“Sociologia crítica”). Para o teórico italiano, de forma equivocada, Engels teria postulado uma filosofia marxista — o materialismo dialético; tese que seria retomada por autores os mais diversos: de Lênin a Plekhânov, de Stálin a Lukács (da maturidade). Defendendo um marxismo sem Engels, Colletti procura demonstrar que o materialismo dialético e, particularmente, a famosa “dialética da natureza”, nada mais seria do que nova versão da filosofia da natureza de Hegel e das estruturas da sua dialética (idealista).

Diz Colletti: “Esta filosofia (o ‘materialismo dialético’) aceita como materialista a ‘dialética da matéria’ pela qual Hegel realizava o idealismo absoluto”.[20] Em virtude de não ter compreendido que toda “dialética da natureza” é intrinsecamente hegeliana (idealista), Engels teria sido responsável por uma incrível “debacle teórica” dentro do marxismo: “tomou por ciência a metafísica, ou seja, a filosofia romântica da natureza; e por metafísica, a ciência efetiva, ou seja, a ciência experimental moderna”.[21]

Embora visando particularmente o Diamat, A. Schmidt faz uma vigorosa crítica do pensamento de Engels na medida em que veio a se constituir na base do materialismo dialético soviético. Afirma que a “metafísica sustentada até hoje pelo materialismo dialético soviético (Diamat)” se apoia sobre as teses desenvolvidas no Anti-Dühring e na Dialética da natureza. Desfigurando o autêntico projeto de Marx, uma grosseira “metafísica da natureza” toma o lugar da análise materialista histórica da sociedade burguesa contemporânea. Enquanto em Marx, natureza e história estariam indissoluvelmente interligadas, para Engels constituem elas dois campos diversos da aplicação do método dialético. Afirma A. Schmidt: “A dialética se transforma naquilo que nunca foi em Marx: numa concepção do universo, num princípio positivo do mundo”. Mais adiante, ao negar que o marxismo autêntico seja — tal como o concebe o materialismo soviético — um hegelianismo materializado, assinala: “O materialismo marxista é (...) crítica é superação — ainda que com algumas motivações filosóficas — da filosofia enquanto filosofia. Orientado à totalidade histórico-social, pode chegar a se elevar acima da filosofia enquanto considera que as questões estritamente filosóficas (...) são algo derivado e mediato”.[22]

Defendendo uma concepção que entende o marxismo fundamentalmente como práxis, nas últimas linhas de seu provocativo ensaio, conclui: “(...) o que Engels em seu escrito sobre Feuerbach define como ‘a questão decisiva de toda a filosofia’, a questão da ‘relação do ser com o pensamento, do espírito com a natureza’, perde absolutamente sua importância, pois conceitos como ‘pensamento’ e ‘ser’, ‘espírito’ e ‘natureza’ — da mesma forma que os princípios de explicação das ciências naturais — são produtos da práxis, instrumentos com os quais os homens tratam de resolver não problemas eternos, mas sim problemas historicamente condicionados”.[23]

As teses de L. Colletti e A. Schmidt poderiam poderiam ser sintetizadas nas seguintes palavras de Timpanaro: “Em substância dizem o seguinte: a grande conquista gnoseológiça e político-social de Marx consistia, de um lado, em haver compreendido que os homens por meio do trabalho entram em relações sociais e, do outro, em relações com a natureza; portanto, não existe conhecimento da natureza que não seja em função da transformação da natureza pelo homem. Uma vez chegados a este ponto de vista tão superior ao de toda a filosofia precedente, por que retroceder a uma filosofia da ‘natureza em si’? Por que produzir uma ‘novela filosófica da matéria’ entrando em competição com a filosofia schellingiana e hegeliana e com as toscas generalizações de positivismo”?[24]

As objeções de L. Colletti e A. Schmidt às tentativas engelsianas de formular uma filosofia marxista seriam incorretas seja no plano teórico, seja no plano histórico. Teoricamente porque se fariam de um ponto de vista insuficientemente materialista; historicamente porque desconsiderariam o ambiente filosófico e científico que caracterizava a Alemanha e a Europa depois de 1850.

Diante das ideologias dos cientistas ou epistemologias não-materialistas (ou pouco materialistas) devia o marxismo tomar ou não uma posição teórica? A resposta de Engels foi positiva. Como enfrentar, pois, os materialismos (não dialéticos), o positivismo, o empirismo, o agnosticismo?

A luta teórica nos trabalhos de Engels

Reconhecia-se que Moleschott e Büchner eram, do ponto de vista filosófico, inferiores a Feuerbach. Mas, a diferença estava em que o materialismo de ambos estava solidamente articulado na ciência da natureza. Este materialismo, que não se contentava em afirmar a prioridade do sensível sobre o espiritual, tinha pretensões mais amplas: explicar a sensibilidade — a inteligência e a moralidade — em termos exclusivamente biológicos. O caráter simplista e grosseiro deste materialismo revelava-se, assim: no desconhecimento da “segunda natureza” que o trabalho confere ao homem dentro do reino animal; a crença mistificada na ciência como solução das “enfermidades sociais” (desigualdades, injustiças sociais) negando-se, pois, a realidade da luta de classes. Observa Timpanaro que “a resposta a estas aberrações tinha que ser dada a partir do materialismo; não com uma simples reivindicação do elemento subjetivo, concebido ainda de forma espiritualista, como práxis incondicionada que somente encontraria seus limites nas condições ‘objetivas’ (externas) e não os encontrasse também no seu próprio fundamento físico-biológico”.[25]

A segunda onda materialista surge com Darwin. Com o evolucionismo a historicidade deixava de ser característica peculiar da humanidade. Com ele também se recolocaria o problema da primeira natureza do homem, da origem da humanidade e de seu futuro desaparecimento. Embora também grosseiro e politicamente reacionário, o evolucionismo de Darwin teria o “mérito de se apresentar não somente como reflexão metodológica sobre a ciência, mas também como reflexão sobre a situação e sobre as possibilidades do homem, tal como as apresentava a investigação científica”.[26]

Ao lado destes materialismos, a partir de meados do século até o seu final, desenvolvia-se um empirismo desregrado, “tendendo ao agnosticismo e, inclusive, a coquetear com a religião”. Como materialista Engels buscou enfrentar todos estes desafios. Na Dialética da natureza, advertia para o perigo dos cientistas, através de um estreito positivismo, caírem no “mundo dos espíritos” (religião, superstição) — ou seja, nas filosofias burguesas da ciência: “(...) fica demonstrado, de forma palpável, qual o caminho mais seguro para nos transferirmos do terreno da ciência para o misticismo. Já não se trata da extravagante teoria da filosofia da Natureza, mas sim do mais vulgar de todos os empirismos: o que despreza todas as teorias, o que desconfia de qualquer atividade do pensamento”.[27] De outro lado, era preciso combater a pretensão do materialismo vulgar de “aplicar a teoria da natureza à sociedade e reformar o socialismo”, conforme assinalou Engels naquela mesma obra.

Em nenhum momento seria justo, pois, o juízo de Colletti sobre a “debacle teórica” produzida por Engels: não seria verdade que tivesse este tomado por metafísica o “materialismo efetivo, ou seja, a ciência moderna”. Como acertadamente assinalou Timpanaro, “entre o marxismo e a ciência da segunda metade do século havia pelo meio os Dührings, ou seja, os apressados e incompetentes filósofos das grandes conquistas científicas”.[28] Igualmente deve-se lembrar que, nessa mesma época, muitos cientistas julgavam poder prescindir inteiramente da filosofia; mas, como agudamente observou Engels na Dialética da natureza, “os cientistas que mais insultam a filosofia são precisamente escravos dos piores resíduos vulgarizados da pior filosofia”.

Refletindo sobre esta mesma problemática, C. Glucksmann assinalou que, “(. . .) para Engels e Lênin, o materialismo dialético não é isolável do estado de desenvolvimento das ciências e convém ‘reler’ Engels neste sentido para mostrar que as categorias filosóficas não são uma retomada direta e ingênua da filosofia hegeliana: elas são reelaboradas à luz da epistemologia e da história das ciências de sua época”.[29] A recusa, hoje, dessa perspectiva de análise — relação materialismo/ciências da natureza — tem se traduzido na “dominância da filosofia dominante: o neopositivismo, o empirismo”. Ou, como pretende Timpanaro, na difusão de epistemologias de cunho subjetivista ou platonizante que negam a historicidade da natureza ao mesmo tempo que oferecem interpretações espiritualistas da mesma.

V. Gerratana observou que a acusação de dogmatismo que têm sofrido as obras filosóficas de Engels se explicaria, em grande medida, em virtude de uma certa interpretação difundida pela II Internacional: o Anti-Dühring, por exemplo, segundo esta versão, se constituiria num verdadeiro manual ou enciclopédia do marxismo. A partir desta interpretação, as obras de Engels passaram a ser vistas como exposições completas e sistemáticas dos “princípios teóricos fundamentais do socialismo científico estreitamente ligados a todos os aspectos principais da ciência moderna”.[30] Valendo-se de uma outra perspectiva — a do italiano A. Labriola —, V. Gerratana propõe uma “leitura de tipo metodológico” para uma compreensão adequada da obra engelsiana. Segundo Labriola, o Anti-Dühring, por exemplo, poderia se constituir no melhor antídoto contra o escolasticismo. Paradoxalmente, o famoso e polêmico capítulo sobre a “negação da negação” — que lido manualisticamente ensejou verdadeiras caricaturas da dialética — seria o melhor exemplo de procedimento crítico e científico: “(...). naquele capítulo Engels se preocupou, antes de tudo, em desmentir que o uso que Marx faz em O capital da fórmula hegeliana da ‘negação da negação’ tivesse um valor demonstrativo e que a dialética pudesse ser empregada em qualquer circunstância como um substitutivo da investigação científica concreta”.[31] Nesta mesma linha de argumentação, C. Glucksmann assinala: “(...) num dos textos que se poderia qualificar de hegeliano, visto que Engels retoma o famoso exemplo do crescimento biológico da semente ao fruto, [Engels] afirma que a ‘negação da negação’, enquanto regendo o processo de desenvolvimento da natureza, nada nos ensina acerca ‘do processo de desenvolvimento particular’ deste mesmo crescimento biológico”.[32]

De outro lado, deve-se ressaltar aqui que, em virtude da natureza de alguns escritos (eminentemente polémicos) e do caráter fragmentário e incompleto de outros (caso típico de A dialética da natureza), os textos de Engels, conforme observou Lênin, não escaparam a uma “esquematização pedagógica”. Este fato consistiu em reduzir, por vezes, a dialética numa “soma de exemplos, em lugar de ver aí a ‘lei do conhecimento’”. Não se pode, igualmente, deixar de reconhecer que nos trabalhos de Engels encontramos ambiguidades e contradições. Mas, no fundamental, sua perspectiva teórica nunca foi — como observaram Gerratana e Glucksmann — a de propor uma “dialética fora do desenvolvimento das ciências e da prática científica dos pesquisadores”. Tal como Lênin, Engels não defendia uma dialética em geral ou plenamente sistematizada que viesse, por exemplo, substituir a análise dos processos determinados e específicos, seja ao nível da sociedade, seja ao nível da natureza.

Novamente invoquemos as palavras de A. Schmidt, crítico da obra filosófica de Engels. Embora afirme que as “3 leis dialéticas” foram plenamente incorporadas pela teoria soviética, reconhece: “Por razões de equidade, devemos afirmar que Engels, diferentemente de seus seguidores atuais do Leste, de nenhuma maneira pensou em recomendar aos cientistas naturais a dialética como método imediato de investigação”.[33]

Uma leitura mais atenta e criteriosa da obra filosófica de Engels — que a situe rigorosamente no seu contexto histórico específico, bem como leve em conta a sua natureza eminentemente polêmica e crítica — invalidará todas aquelas interpretações que pretendem nela ver a fonte dos erros e descaminhos sofridos pelo marxismo (“autêntico”, “revolucionário”); tais como: dogmatismo, naturalismo, fatalismo etc. Quanto à primeira crítica, vale lembrar a justa e aguda observação de Lênin, no Materialismo e empirocriticismo: idealistas e agnósticos sabem muito bem que — para desqualificar teoricamente o materialismo — a melhor arma é (ainda) a acusação de dogmatismo.

Nesta mesma linha de argumentação, são extremamente pertinentes as conclusões de Timpanaro: “A desvalorização de Engels implica uma forma precisa de entender o marxismo. No século atual, cada vez que prevaleceu na cultura burguesa uma certa orientação do pensamento — o bergsonismo, o crocianismo, a fenomenologia, o neopositivismo etc. — alguns marxistas levaram a cabo um esforço de ‘interpretação’ do pensamento de Marx que o fizesse mais homogêneo possível à filosofia predominante”.[34] Deve-se apenas acrescentar que esta operação de “homogeneização” frequentemente se faz em prejuízo dos fundamentos materialistas do pensamento marxista.

A concepção de práxis: os perigos do idealismo

No artigo de AGF, o chamado “dogmatismo naturalista” de Engels implicaria graves equívocos tanto no nível do pensamento quanto no da prática política revolucionária; entre outros, o “determinismo histórico”, a recusa da “dimensão subjetiva e criadora da práxis”, a redução da liberdade à “consciência da necessidade”. Pelo seu objetivismo metodológico, o “dogmatismo naturalista” engelsiano seria igualmente responsável pela crença na “inevitabilidade da revolução”. Ou, na formulação de Colletti: “visão fatalista da história humana”. Devem todos estes “erros” e “desvios” serem imputados aos escritos de Engels?

Sucintamente que seja, esbocemos a problematização destas questões.

Enquanto para Marx haveria um indissolúvel nexo entre causalidade e finalismo (cf. a famosa passagem de O capital onde estaria invertida a relação causa/efeito),[35] em Engels a liberdade seria definida hegelianamente como “consciência da necessidade”. Residiria aí, para alguns intérpretes, a diferença fundamental entre o materialismo histórico (de Marx) e o “materialismo metafísico” (de Engels). Contudo, observa ainda Timpanaro que se fizermos uma leitura mais cuidadosa da obra de Engels — não nos limitamos, assim, ao capítulo sobre a Liberdade do Anti-Dühring — descobriremos que a “capacidade de referir os meios ao fim como característica peculiar do agir humano” também está ali presente. Na Dialética da natureza pode-se ler o seguinte: “O homem, porém, quanto mais se afasta da animalidade, tanto mais sua influência sobre a natureza ambiente adquire o caráter de uma ação prevista, que se desenvolve segundo um plano, dirigida no sentido de objetivos antecipadamente conhecidos e determinados”.

Mais adiante, à guisa de conclusão, reafirma Engels: “O animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, isto é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença”.[36] (Os itálicos são de Engels.)

Seriam necessários outros mais a fim de confrontar estas formulações com aquelas de AGF, quando solenemente estabelece (pág. 88): “Esta concepção (o “dogmatismo naturalista” de Engels — CNT) considera os homens como prisioneiros de leis que são mera extensão das leis naturais, pois são instituídas na produção estritamente material”. O que deve valer aqui: as palavras de Engels ou a interpretação a ele imputada por AGF?

Na verdade, se levarmos em conta os 2 textos — o de Marx em O capital e este de Engels —, ambos escritos no chamado “período de maturidade”, não parece haver distinções fundamentais entre as concepções dos dois autores sobre a relação entre a casualidade e finalismo no interior da prática social.

Mas, advertindo acerca dos perigos e das falácias de certas concepções (míticas) do livre arbítrio, Timpanaro ressalta a necessidade de nos socorrermos, uma vez mais, dos textos de Engels. É preciso ter presente que entre o objetivo visado e o resultado concreto de nosso agir sempre existe uma diferença. Esta diferença tende a aumentar quando estes resultados são mais distantes (em 2𝑎 e 3𝑎 instâncias) e “quando se examinam os efeitos derivados da combinação de muitíssimas vontades individuais”.

Reflexão, pois, rigorosamente materialista, sem falsos otimismos acerca da práxis humana. “Na grande margem entre resultados e intenções, viu Engels a prova de que a humanidade não havia saído, senão parcialmente, da fase ‘natural’, não havia ainda ‘saltado’ para o reino da liberdade”.[37]

De outro lado, a fim de combater uma concepção que privilegia, de forma idealista, a chamada “dimensão subjetiva da práxis”, é preciso levar-se em conta que a vontade humana não é um “primum incondicionado”; ela é igualmente condicionada por causas biológicas, sociais, culturais etc. Engels, esclarece Timpanaro, “observa com razão que a inconsequência ‘não consiste no fato de que se reconheçam forças motrizes ideais, mas, sim, no fato de não se remontar destas às suas causas determinantes’”.[38] Não se questiona, pois, a capacidade do homem — em virtude de seu desenvolvimento intelectual, possibilitado pelo trabalho — de criar projetos e de subordinar os meios aos fins que elege. O que se contesta, de um ponto de vista estritamente materialista, é a suposição de que a determinação dos fins seja completamente arbitrária, ou seja, não causada. Assim, torna-se duplamente enganoso identificar: de um lado, liberdade com as chamadas “condições subjetivas” de nosso agir; e, de outro, necessidade com as “condições objetivas”. A rigor, o elemento necessidade residiria também no próprio fator subjetivo. Daí afirmar o autor citado: “O plus que tem o homem frente ao animal é um plus de capacidade de prevenir e subordinar os meios aos fins, é também um plus da inteligência na determinação do fim, mas não é um plus de ‘arbítrio’ na opção entre diferentes fins”. Pensar de forma diferente é resvalar para alguma forma de idealismo.

Se uma leitura de tipo spinozista ou hegeliana é possível ser encontrada no Anti-Dühring — na medida em que a liberdade é aqui definida como “consciência da necessidade”—, outros textos e todos os trabalhos de natureza histórica produzidos por Engels invalidam inteiramente interpretações semelhantes àquela desenvolvida por AGF (para este, a obra filosófica de Engels recusaria “a dimensão subjetiva e criadora da práxis, absolutizando, assim, o conceito de necessidade — que passa a ser sinônimo de inevitabilidade” (pág. 88 — grifos de AGF).

Na mesma linha de argumentação desenvolvida por Marx no 18 Brumário, assim se expressava Engels, numa carta a H. Starkenburg: “Não é verdade (...) que a situação econômica seja a causa, que ela só seja ativa e tudo o mais (político, jurídico, religioso etc.) passivo. Pelo contrário, existe um jogo de ações e reações sobre a base da necessidade econômica, que acaba sempre por se impor em última instância”. Mais adiante, ressalta o papel da vontade humana na história: “Não se trata, portanto, como alguns imaginam por comodidade, de que a situação econômica produz um efeito automático. Ao contrário, os homens fazem eles mesmos sua história, mas num meio determinado que a condiciona, sobre a base de condições reais anteriores já existentes, entre as quais as relações que, por muito que possam ser influenciadas pelas relações políticas e ideológicas, continuam sendo, em última instância, as relações determinantes, constituindo o fio condutor que as une e que é o único que nos conduz à compreensão das coisas”.[39]

Afirmar que daqui se poderia extrair uma concepção rigidamente determinista[40] ou que recusaria a “dimensão subjetiva da práxis” implica, a nosso ver, em fazer coro com as críticas, típicas do antimarxismo, que sentem um verdadeiro “horror ao materialismo”. Exaltar a vontade e a liberdade humanas ao ponto de escamotear o postulado marxista da “determinação em última instância da base material” — bem com ignorar o fato de que a escolha entre os fins não é absolutamente arbitrária —, só pode comprometer a teoria materialista da história fundada por Marx e Engels.

A relação homem/natureza na perspectiva materialista

Como última questão deste artigo, examinemos, sumariamente que seja, um outro tema implícito no ensaio de AGF: relação homem/natureza na perspectiva marxista.

Neste ponto, a coincidência entre AGF e os demais intérpretes anti-engelsianos do marxismo ocidental é quase completa. Afirma AGF: “(...) a natureza, ao produzir criatura tão pretensiosa, recebe desta o castigo, na forma de uma traição irrecuperável: é rebaixada a objeto do homem. A natureza, que era objetividade por si mesma, ao fecundar a consciência torna-se para ela apenas anterioridade e enigma a desvendar, para que seja fundada historicamente a realidade humana sob a égide da práxis” (pág. 82).

De outro lado, afirma A. Schmidt: “O mundo objetivo não é um em-si simplesmente refletido, mas, sim, em ampla medida, é um produto social”. L. Colletti, num comentário à obra do mesmo A. Schmidt, assinala: “Em Marx, a natureza sempre aparece no horizonte da história humana, em relação com a produção social e, por isso, com objeto da análise materialista- histórica”.[41]

Estas interpretações, que se inspiram nos Manuscritos e nas Teses sobre Feuerbach, implicam a superação do clássico postulado materialista da sujeição do homem à natureza; igualmente é se levado a supor que a questão da “reconciliação da humanidade com a natureza” — um dos temas centrais do pensamento marxista — esteja inteiramente subordinada à problemática da “reconciliação dos homens entre si”. Para AGF, por exemplo, a natureza — ao ser “apropriada” para “a produção histórica da realidade humana” — é “rebaixada a objeto do homem”. Tudo parece indicar que, mediante a práxis, a natureza, ao se transformar apenas em “anterioridade” e “enigma a desvendar”, já não se apresenta mais nem como um “ser estranho” nem como uma realidade hostil à atividade humana. Através da práxis — independente do modo de produção dominante na sociedade —, o homem parece já reconciliado com a natureza, pois a história natural se integrou plenamente na história humana.

Como observou G. Prestipino: “O ‘marxismo ocidental’ (...) procura acentuar a dependência da realidade natural em relação à sociedade até dissolvê-la inteiramente numa expressão (...) da historicidade própria do agir humano”.[42] Razão parece ter o mesmo autor quando afirma que o “fator histórico-cultural” que estaria por detrás de pensadores como Lukács (da História e consciência de classe), Korsch e os da Escola de Frankfurt seria o neo-idealismo. Juízo que pode ser perfeitamente atribuído ao ensaio que aqui criticamos, pois, para AGF, a natureza — ao se tornar objeto do conhecimento humano — perde a sua autonomia face à realidade humana. Não nos parece que uma “ontologia materialista” possa se satisfazer com um vago postulado da “anterioridade” da realidade natural, como repete AGF. Embora possa ser transformada pela práxis humana, através da ciência e da técnica, a natureza — a não ser de um ponto de vista idealista — não perde a sua autonomia, nem mesmo a sua objetividade diante da realidade humana, seja na sociedade capitalista, seja na sociedade comunista.

De um ponto de vista estritamente materialista, incorporar a natureza à atividade produtiva do homem não implica necessariamente “eliminar a sujeição do homem à natureza”. Significa, isto sim, em determinadas condições, saber administrar esta sujeição; ou seja, num sentido baconiano, pode-se afirmar que “a natureza somente nos obedece se nós a obedecemos”.[43]

Nas palavras de Engels, para o escândalo de voluntaristas e humanistas não-materialistas: “A liberdade não consiste em sonhar a independência em relação às leis da natureza, mas sim no conhecimento destas leis e na possibilidade, ligada a tal conhecimento, de fazê-las agir segundo um plano em vista de um fim determinado”.

No Anti-Dühring e na Dialética da natureza — retomado um tema presente no Manifesto —, Engels “compara o uso capitalista da Ciência com a aventura do aprendiz de feiticeiro, capaz de desencadear antigas e novas forças da natureza, mas incapaz de dominá-las. Enquanto a regulação científica das forças naturais não for complementada pela regulação racional das relações sociais de produção, estas forças agirão apesar de nós e contra nós e (...) nos dominarão”.[44] O avanço técnico-científico, embora se constitua numa condição material indispensável para o controle da natureza, não garante por si mesmo o fim de todas as alienações sociais (o ‘‘reino da liberdade”). Para que isso venha a ocorrer efetivamente na realidade humana, torna-se necessário que o progresso técnico e científico seja complementado por novas relações de produção — onde inexistam quaisquer formas de dominação e opressão sociais.

Desta forma, para os clássicos do marxismo, a possibilidade de reconciliação entre história humana e a história natural aumenta consideravelmente na medida em que cessem os antagonismos sociais. Não se afirma, contudo, que na sociedade sem classes a natureza passa a ser inteiramente controlada pelo homem, submetendo-se integralmente aos seus projetos e desígnios. Mesmo na sociedade comunista persiste a luta do homem com a natureza;[45] a partir deste novo momento na história da civilização, criam-se, isto sim, as condições (objetivas e subjetivas) para que a natureza — embora mantendo ainda a sua autonomia — venha a ser gradativamente humanizada. Como assinalou Gerratana: “Um modo de produção no qual tenham desaparecido os antagonismos de classe (e no qual, portanto, o homem como ser biológico, como indivíduo psicofísico, não mais seja o suporte passivo de relações sociais que o transcendem) permite submeter ao controle comum dos produtores associados a luta destes com a natureza e, por conseguinte, dominar as condições nas quais tais produtores devem estar sujeitos às leis naturais. Unicamente neste modo de produção poderá haver uma conexão real entre história humana e história natural, entre materialismo histórico e materialismo das ciências naturais”.[46]

Concluímos. O repto que AGF lança aos marxistas brasileiros no sentido de produzir, aqui e agora, o “Anti-Engels” — se não for entendido como uma mera boutade teórica — implica, como foi assinalado, uma certa interpretação do marxismo.

Lançar fora as inestimáveis propostas de pesquisas filosóficas contidas nas obras de Engels e desconsiderar o valor heurístico nelas existente só pode comprometer o projeto de se constituir uma filosofia rigorosamente materialista. Embora contenha ambiguidades e imprecisões teóricas e científicas é, contudo, da obra de Engels que se deve partir a fim de se poder enfrentar os idealismos dentro das ciências modernas, bem como combater as equívocas concepções políticas inspiradas em algumas filosofias da práxis, de duvidoso conteúdo materialista.

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Notas:
[0] Artigo publicado no no. 2 da Revista Teoria & Política. 1980. O texto original pode ser encontrado no site de marxismo21 (seção Memória de Esquerda). Para inserção no dossiê Friedrich Engels, publicado por marxismo21, o texto sofreu correções ortográficas e de pontuação.
[1] Anderson, Perry, Sur le marxisme occidental. Paris, Maspero, 1977, pág. 97 (grifos nossos).
[2] “Introdução à crítica do dogmatismo” de Adelmo Genro Filho. A partir de agora, indicaremos o nome do autor através de suas iniciais: AGF.
[3] Na verdade, faça-se justiça, o autor cita — através de um texto de Stálin — uma frase de Engels.
[4] A “demonstração” do “dogmatismo engelsíano" surge de uma forma indireta, à maneira silogística. A nosso ver, constrói-se no texto de AGF o seguinte argumento: “Stálin é um pensador dogmático naturalista”; “Stálin reproduz o pensamento filosófico de Engels”. Donde se conclui que: “O pensamento filosófico de Engels é dogmático naturalista”. AGF julga provar a veracidade da 1.𝑎 premissa através da análise de alguns trechos do famoso ensaio de Stálin; a veracidade da 2.𝑎 é dada como assentada no interior do pensamento marxista (afirma AGF: “no rastro de Engels...”; “com base na obra da, Engels, Stálin...”). Desde Aristóteles, sabe-se que este tipo de raciocínio silogístico não é correto do ponto de vista lógico; ou seja, as premissas não implicam necessariamente a conclusão. A conclusão, mesmo que as premissas fossem verdadeiras, é falaciosa.
[5] Todos os autores acima — que constituem o
marxismo ocidental” — são unânimes em reconhecer a fecunda contribuição de Engels ao nível da historiografia marxista. Alguns chegam até mesmo a afirmar que os juízos históricos de Engels foram quase sempre superiores aos de Marx. Contudo, a teoria do materialismo histórico é da exclusiva autoria de Marx. V. Anderson, Perry L’État absolutiste, Ed. Maspero, 1978. Esclareça-se que P. Anderson não se inclui no rol dos marxistas antiengelsianos.
[6] Lukács, G., “O que é o marxismo ortodoxo?” In: História e consciência de classe.
[7] Alguns dos conceitos e temas contidos no ensaio referido (muitas vezes insuficientemente desenvolvidos): ontologia marxista, filosofia da práxis, determinismo, alienação, dogmatismo etc. Relações entre: materialismo histórico e materialismo dialético; dialética marxista/dialética hegeliana; teoria/política; acaso/necessidade; voluntarismo/fatalismo; homem/natureza etc.
[8] Timpanaro, Sebastiano, Práxis, materialismo y estructuralismo, Barcelona, 1973, pág. 75.
[9] Anderson, Perry, 1977, pág. 11.
[10] Jones, G. Stedman, ‘‘Retrato de Engels”. In: Hobsbawn, E. J., História do marxismo, Paz e Terra, 1980.
[11] Ironicamente, talvez tenha sido a modéstia e a extrema honestidade intelectual de Engels, a responsável, em certa medida, pela injusta apreciação acerca de sua contribuição teórica para o marxismo. Numa nota ao Ludwig Feuerbach reconhecia ele a superioridade teórica de Marx. “Marx tinha mais envergadura, via mais longe, observava mais e com maior rapidez que nós todos juntos. Em suma, Marx era um gênio (...). Sem ele a teoria nunca seria o que é hoje”. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, Ed. Fulgor, 1962.
[12] Schmidt, Alfred, El concepto de naturaleza en Marx, Siglo XXI, 1976, pág. 2.
[13] A carta de Marx a Engels (7 de julho de 1866) onde classifica a obra de Comte como “positivismo medroso” é representativa deste combate.
[14] É sabido que Marx colaborou com um capítulo do Anti-Dühring e fez inúmeras anotações nos manuscritos de A dialética da natureza. Nas cartas a V. Liebknecht (7 out. 1876) e a W. Blos (10 nov. 1877) ressalta a importância da empresa de Engels ao escrever a Dialética da natureza. Numa carta a W. Freud (21/1/1877), Marx revela igualmente seu interesse pela realização engelsiana no sentido de concluir “uma obra de filosofia da natureza”.
[15] Hobsbawm, Eric, “Introdução às formações econômicas pré-capitalistas”. In: Marx, K., Formações econômicas pré-capitalistas, Paz e Terra, 1975.
[16] Se as leituras científicas de Marx e Engels — fora do campo da História, da Economia Política, do Direito etc.— eram escassas e praticamente nulas até 1850, a partir daí elas se desenvolvem intensamente. Entre 1850-1860, Marx se ocupa das ciências da natureza (Física, Cosmologia. Geologia, Fisiologia). Durante este período, Engels se dedica preferencialmente às Matemáticas e à Física. De 1870-1880, intensificam-se as leituras de Engels na área das Ciências Naturais, cujos reflexos aparecerão nas suas obras: Anti-Dühring, A dialética da natureza e Ludwig Feuerbach. De 1877 até a sua morte, Marx retoma de forma mais sistemática suas leituras no campo das Ciências Naturais e Matemáticas. Como observou J.-P. Lefèvre: "É nesta época que Marx projeta escrever uma Dialética e Engels lamenta estar sendo constantemente solicitado pelos social-democratas e não poder, assim, concluir seus trabalhos teóricos”. Marx, K. & Engels, F., Cartas sobre las ciencias de la naturaleza y las matemáticas, Anagrama, 1975.
[17] Carta de Marx a Engels (4/7/1864): “Tu sabes que: 1. eu sempre chego atrasado e 2. que eu sempre sigo tuas pegadas”. Nesta carta, além do caráter precursor, assinala-se também a sensibilidade de Engels para os novos fatos culturais.
[18] Cf. Prefácio à 2.a edição do Anti-Dühring.
[19] Tomamos aqui como referências teóricas dentro do marxismo anti- engelsiano as teses desenvolvidas por L. Colletti e A. Schmidt.
[20] Colletti, L., Le marxisme et Hegel, Ed. Champ Libre, 1976, pág. 199. Em virtude das dimensões e da natureza do presente ensaio, deixa-se aqui de se proceder a uma demonstração mais rigorosa do pensamento de Colletti. Idem no tocante à obra de A. Schmidt.
[21] Idem, De Rousseau à Lenine, Gordon & Breack, Paris, 1972, pág. 192.
[22] Schmidt, A., op. cit., pág. 222 (grifos nossos).
[23] Idem, ibidem, pág. 221/2. Mais adiante, afirma: “A natureza aparece sempre e somente no horizonte da história que, para dizer com ênfase, só tem a ver com os homens. Mas a história é, em primeiro lugar, e imediatamente práxis. O conceito de práxis, tal como se elabora nas Teses sobre Feuerbach é o conceito teoricamente mais importante de Marx”. Acerca da implicação idealista desta tese, discutiremos mais abaixo.
[24] Timpanaro, S., op. cit., pág. 80. Este item e o próximo valem-se das interpretações acerca da obra de Engels propostas por: Timpanaro, S., op. cit.; Glucksmann, Christine, “Hegel et le marxisme”, La nouvelle critique, n.° 33, 1970 e Gerratana, Valentino, “Interpretaciones dei ‘Anti-Dühring’” In: Investigaciones sobre la historia dei marxismo I, Grijalbo, 1975.
[25] Timpanaro S., op. cit., pág. 81.
[26] Idem, ibidem, pág. 82.
[27] Engels, F., A dialética da natureza, Paz e Terra, 1979, pág. 237; mais adiante (DN).
[28] Timpanaro, S., op. cit., pág. 84.
[29] Glucksmann, C., op. cit., pág. 32 (grifos nossos).
[30] Guerratana, V., op. cit., pág. 150.
[31] Idem, ibidem, pág. 154.
[32] Glucksmann, C., op. cit., pág. 32.
[33] Schmidt. A., op. cit., pág. 50.
[34] Timpanaro, S., op. cit., pág. 71/72.
[35] L. Colletti discute esta famosa passagem de O capital em De Rousseau à Lenine, a partir da pág. 126.
[36] Engels, F., A dialética da natureza. As frases citadas são das págs. 222 e 223 da tradução brasileira.
[37] Timpanaro, S., op. cit., págs. 105 e 106. Ver a respeito a “Carta de Engels a Bloch” (21/9/1890).
[38] Idem, ibidem, pág. 107.
[39] "Carta de Engels a H. Starkenburg” (25/1/1894) (grifos nossos). In: Marx, K & Engels, F., Cartas filosóficas e outros escritos, Grijalbo, 1977, págs. 45/46.
[40] As acusações que frequentemente Engels recebe de “grosseiro determinista” não se sustentam diante de categóricas explicações que ele forneceu, em algumas de suas cartas, acerca do método materialista. Ver particularmente as “Cartas”: a C. Schmidt (27/10/1890); a Bloch (2/9/1890); a F. Mehring (14/7/1893). Seria Marx também vulgar determinista com o seu famoso Prefácio (1859) à Crítica da Economia Política? Como observa Timpanaro, muitos intérpretes do marxismo gostariam de ver este texto assinado por Engels!
[41] Colletti, L., “Prefácio ao livro de A. Schmidt”. In: A. Schmidt, op. cit., pág. 231.
[42] Prestipino, G., El pensamiento filosófico de Engels. Siglo XXI, 1977, págs. 175/6.
[43] Timpanaro, S., op. cit., pág. 109. J. Habermas, distanciando-se das conclusões da Escola de Frankfurt, “reconhece em Marx o conceito de uma natureza autônoma a quem (como dizia Bacon) tem-se de obedecê- la para poder dominá-la”. Cf. Prestipíno, G., op. cit., pág. 168, n.° 14.
[44] Prestipíno, G„ op. cit., pág. 158. No Anti-Dühring e Dialética da natureza encontram-se eloquentes páginas onde são denunciados os malefícios e as destruições provocados pela utilização e expansão irracional das forças produtivas. No capitalismo, “a cidade industrial converte todas as águas num hediondo líquido”. Engels fala do “envenenamento do ar, da água, da terra”. Indicações de uma bibliografia de orientação marxista sobre o problema ecológico encontram-se nos caps. IX e X do livro de G. Prestipino. Timpanaro observa que em Engels (particularmente na Origem da família) pode ser assinalado um “espírito rousseauista e fourierista” onde se faz a “crítica da civilização e das suas hipocrisias estendendo estas do plano econômico-social ao plano das relações sexuais e da instituição familiar: um plano no qual Engels estava muito mais livre de preconceitos e mais futurista do que Marx”.
[45] Para Marx, a luta do homem com a natureza independe do modo de produção: “Da mesma maneira que o selvagem deve lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para conservar e reproduzir sua vida, também deve fazê-lo o homem civil e deve fazê-lo em toda forma de sociedade e sob todos os modos de produção". O capital, livro III. Apud Gerratana, op. cit., pág. 141. Contudo, esta não parece ser a compreensão dos “filósofos da práxis”. A partir da realidade humana, “fundada sob a égide da práxis”, como nos assevera AGF, não se concebe mais a existência da luta do homem com a natureza, pois, através daquela “fundação”, nada mais há a ser reconciliado! Nas palavras de nosso autor, a natureza passa a ser simplesmente “enigma a decifrar”. Este é o
castigo exemplar desde o momento que se instaura o reinado da práxis humana...
[46] Gerratana. V., op. cit., pág. 141.
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TOLEDO, Caio Navarro de. “O anti-engelsismo: um compromisso contra o materialismo”. In: Teoria & Política, n. 2, 1980. Revisão ortográfica do marxismo21, 2020.
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quarta-feira, 31 de março de 2021

Novo esquerdismo


 por Robert A. Gorman

A exigência política está agora submetida a um movimento heterogêneo, desprovido de lideranças, usualmente chamado de Nova Esquerda. Um conjunto social de ativistas jovens, bem instruídos, predominantemente de classe média, que querem do marxismo apenas a ação concreta e imediata. A “velha esquerda” assemelha-se a uma galeria de estrelas intelectuais velhacas. No conjunto, demasiado tempo e esforço se foi em teoria radical, enquanto gerações de trabalhadores oprimidos vêm e vão. No caso de raça, onde a teoria de fato coalesceu com a prática revolucionária, a hegemonia burguesa transformou-se em ditadura partidária. Da perspectiva das massas, é fútil formular e justificar interminavelmente teoria revolucionária. Embora a Escola de Frankfurt tenha admitido abertamente a flagrante hipocrisia do neomarxismo [protomarxismo], sua “solução” capitulou com o capitalismo ao justificar teoricamente a passividade. O marxismo frankfurtiano refletiu um século de filosofia marxista, retratando piedosamente a dominação burguesa e encarando amedrontada o poder dormente da classe trabalhadora. O novo esquerdismo soa o alarme revolucionário. Ele é tático, não teórico, mobilizando os oprimidos e instituindo estratégias até agora apenas descritas em livros.

O novo esquerdismo busca apenas a transformação revolucionária do capitalismo. Uma vez que revolução é prática, teoria é claramente uma derivação. O autêntico marxismo instiga insurreições e apenas a posteriori desenvolve teorias explicando o que se sucedeu. “O fator importante, pois, é a forma concreta que o movimento real irá assumir. Se ela confirmar aquilo que este reivindica pra si enquanto conceito, então, em verdade, a teoria é verdadeiramente uma teoria revolucionária. Se, por outro lado, ela for invalidada, a teoria é rebaixada ao nível de uma ideologia, ou utopia...”. Teoria é uma reflexão posterior, um epifenômeno condicionado pela práxis. Ela é aberta, inacabada e relativista — e atrelada aos movimentos revolucionários exitosos. Apenas ideias estrategicamente úteis são “verdadeiras”: “consciência revolucionária é produto da luta”[1].

O novo esquerdismo é, portanto, definido pelas exigências da luta proletária, mudando, pois, na medida em que mudam as circunstâncias. Três princípios amplos explicam, contudo, o novo esquerdismo, embora nem todos os novos esquerdistas em todas as circunstâncias aderem a eles individual ou coletivamente.

Primeiro: uma vez que a revolução é autojustificável, ela pode ocorrer quando e onde um grupo adequadamente organizado destrua as instituições e elites existentes. Por exemplo, o fascínio da Nova Esquerda europeia e americana com revolucionários de sucesso do Terceiro Mundo, tais como Che Guevara, Regis Debray, Frantz Fanon e Mao Tse-tung. Estes heróis não travaram, em batalha, debate intelectual de qualidade sobre justiça pós-revolucionária. Revoluções exitosas respondem todos os problemas hipotéticos sobre os quais o marxismo tradicionalmente especula sobre.

Segundo: revoluções transformam por completo toda a rede de valores e relações burguesas. A dominação capitalista é reforçada por tudo, de comerciais de televisão a condições de trabalho, política eleitoral e religião organizada. O reformismo, separando níveis sociais e operando pouco a pouco para modifica-los um a um individualmente, desconsidera a multidimensionalidade do capitalismo. Historicamente, o reformismo tem mudado governantes e leis, não a qualidade da exploração capitalista, portanto é “incorreto”. Mudança social significativa ocorre simultaneamente em todos os níveis sociais ou não sobrevive em nenhum deles. A revolução transforma não só uma economia exploradora, mas todas as facetas da moralidade burguesa, inclusive atitudes acerca de sexo, drogas, educação, relações interpessoais e familiares, e de trabalho. Este último fenômeno é particularmente importante porque ele alicerça as relações produtivas capitalistas. A ética burguesa do “trabalho” — disciplina, honestidade, frugalidade e indulgência — geram a alienação do trabalhador. O culto do trabalho é uma invenção burguesa. Revolucionários o substituem por atividades realizadoras, satisfatórias, parecidas com o que capitalistas podem nomear “divertimento”. Obviamente tais ações irreprimidas irão alterar substantivamente fábricas, bem como toda a abordagem social acerca da produção e da distribuição. Embora o futuro pós-revolucionário seja indeterminado, novas instituições de cooperação surgirão concomitante o falecimento do capitalismo. Muitos novos esquerdistas advogam o comunalismo como uma forma social oposta ao capitalismo, emancipada, substituindo a ética de trabalho decadente pelo prazer, a cooperação e o amor[2].

Finalmente: homens e mulheres devem determinar seus próprios destinos. Revoluções exitosas são explosões espontâneas de vontade reflexiva liberada, completamente encampada por participantes livres e iguais. A história tem provado que partidos revolucionários hegemônicos escravizam, ao invés de libertarem, isto é, são não revolucionários e “falsos”. O materialismo ortodoxo, a “velha esquerda”, é o equivalente radical do idealismo burguês: ambos intelectualmente racionalizados e elites exploradoras. A ortodoxia não tem claros objetivos para além da industrialização e do suporte à hegemonia soviética no mundo, nenhum destes sendo uma via revolucionária. Portanto, o “aparato conceitual do marxismo” não mais dá conta das necessidades dos povos oprimidos[3]. O manto da emancipação humana, primeiramente carregado por Marx, “não é mais carregado pelo marxismo-leninismo organizado”[4]. As rebeliões de trabalhadores manifestam-se hoje em greves espontâneas, não supervisionadas, sem dirigentes e extraoficiais, reivindicando melhorias qualitativas nas condições de trabalho e de vida, e não apenas maiores salários. Estas “greves contestatórias” rejeitavam diferenciais salariais, autoridades hierárquicas e sindicalismo, e advogavam a autogestão dos trabalhadores. Não trabalhadores, em particular estudantes — únicos em termos de serem, simultaneamente, vítimas e observadores críticos — engajaram-se em confrontos de rua sem lideranças contra as forças hegemônicas, incluindo a polícia, o governo e grandes empresas. Estes ocorridos reforçam a espontaneidade, liberdade e o autodirecionamento, qualidades que uma revolução exitosa requer. A sociedade pós-revolucionária instituirá alguma forma de democracia participativa baseada na dignidade humana e na autoestima, onde os atores “fazem suas próprias coisas” sem explorar seus vizinhos.

Embora a teoria da Nova Esquerda rejeite teoria em sentido estrito, suas táticas são geradas a partir de acepções marxistas bastante familiares, no que concerne à exploração capitalista, alienação e a desejabilidade pelo socialismo. A crença implícita na subjetividade livre, portanto na autonomia da superestrutura, remonta ao marxismo experiencial. Vinte anos antes do novo esquerdismo, Sartre advogou a substituição do trabalho produtivo disciplinado pela livre criação artística. A dialética hegeliana de Lukács descreve a revolução total como a autêntica resposta da história aos tentáculos interpenetrados hegemônicos do capitalismo. A crítica “inovadora” do novo esquerdismo sobre a vida cotidiana — seus valores opressivos, crenças, costumes, instituições — já havia sido estabelecida por Horkheimer e Adorno em vosso Dialética do esclarecimento. As análises da repressão sexual capitalista feitas por Reich e Marcuse energizaram a obsessão da Nova Esquerda com a violação dos tabus sexuais burgueses. O comunismo conselhista de Pannekoek é o modelo por eles adotado para a autogestão espontânea dos trabalhadores. Em resumo, as origens teóricas desconhecidas da Nova Esquerda são vastas, abarcando também fenômenos não marxistas, como direitos civis, direitos homossexuais, movimentos antiguerra, utopismo, anarquismo, dadaísmo, surrealismo. O ponto, todavia, é o ecletismo a-intelectual do novo esquerdismo, a sua mistura negligente de princípios antipódicos para compor um efetivo, embora irracional, estimulante revolucionário. Contradições ignoradas, não resolvidas, surgem do acoplamento simplista deles entre autonomia subjetiva (por exemplo, “faça suas próprias coisas”) e arranjos sociais cooperativos, para assumir otimistamente que ativistas amorais — e táticas baseadas somente na conveniência política, diversas vezes incluindo ataques físicos brutais — irão estabelecer comunidades pós-revolucionárias sustentadas na dignidade humana. Pode a sociedade realisticamente confiar em indivíduos que, não reflexivamente, descartam ética e epistemologia e advogam qualquer ação concebível — independente das consequências — que percebam como taticamente útil?

Em um sentido real, portanto, o novo esquerdismo é herdeiro de uma tradição revolucionária não-racional, mística, que inclui Georges Sorel e os filósofos da “Arguments”.

Sorel

Georges Sorel (1847-1922) acusava a filosofia iluminista racional e a ciência empírica de reduzir artificialmente a vida a categorias simples que são incapazes de compreender a “área escura” da humanidade: as forças subliminares da tradição, do sexo, da religião, da vontade e da nacionalidade, que permeiam a história humana[5]. O racionalismo, ingenuamente, acredita que a injustiça é erradicada com conhecimento empírico, legislação reformista e humanitarismo. Ao contrário, a vida é uma complexa totalidade de fenômenos internamente conectados. O conhecimento racional é mal ajustado a tal complexidade, involuntariamente gerando fraqueza e ignorância, não esclarecimento. Uma totalidade social complexa é compreendida não racionalmente, mas por meio do mito, isto é, em reconhecendo irracionalmente uma realidade dialética essencialmente irracional. O mito, e não o racionalismo burguês, é a base da autêntica investigação social. Por meio do mito experienciamos instintos primitivos inatos, extirpados dos sedimentos não míticos da história. O mito é, portanto, pessimista e crítico, repelindo fórmulas redutivas fáceis e negando o status quo racional. O mito, em outras palavras, é simultaneamente autêntico e revolucionário. Ou deixamos a sociedade intocada, vivendo em condições exploratórias “racionais”, ou aniquilamos sua totalidade em um asserto de autenticidade.

Sorel entendia o materialismo histórico de Marx nestes termos. Este explica de maneira pessimista a história humana e mobiliza uma classe trabalhadora crítica, revolucionária. Similarmente, este rejeita reformas ou reducionismo empírico, exortando o proletariado a desafiar e destruir o capitalismo. O marxismo é um mito porque postula uma complexa, irredutível, totalidade capitalista e inspira uma insurreição revolucionária. Além disso, este mito declara uma greve geral de trabalhadores, que destrói a civilização burguesa em nome da emancipação humana. O materialismo histórico não é de molde racional. Ainda que especule de maneira inconclusa sobre a cooperação socialista e a união coletiva, este é primordialmente negativo: glorificando rebelião, mais do que pintando uma utopia.

Esta mítica greve geral mobiliza trabalhadores em associações revolucionárias. Partidos de trabalhadores e sindicatos tradicionais inibem nossa intuição mítica revolucionária, portanto perpetuando a tirania racional. Associações revolucionárias de trabalhadores, por outro lado, organizam espontaneamente trabalhadores em times baseados em locais de trabalho, autogeridos, que subvertem as estruturas de autoridade burguesa. Estas inspiram seus membros a intuir o autêntico mito da revolução proletária subjetivamente, e subordinam as questões de prática econômica, social e política a este objetivo irracional. Associações revolucionárias, portanto, opõem-se às instituições burguesas, unem a classe trabalhadora contra um inimigo burguês comum, e geram formas sociais pós-revolucionárias de trabalhadores e agricultores autogovernados interagindo cooperativamente (lembrando o que Marx, em crítica a Proudhon, ironicamente chamou de “utopia pequeno-burguesa”).

A revolução proletária não busca nem poder nem o desaparecimento das classes. Ao contrário, ela purga a modernidade da opressão antinatural e inicia a liberdade direta da humanidade emancipada. Consequentemente, ela rejeita a ditadura de classe — mesmo a da maioria — e as burocracias governamentais debilitadas. O mito da greve geral é anti-intelectual, antiburguês, anti-hieraquico; sua única tática é o êxito. Esta não segue fórmulas teóricas nem obedece a esquemas táticos, e se torna violenta por razões práticas. Em aniquilando fisicamente o inimigo capitalista, os trabalhadores facilitam uma rápida transição à autogestão e rejuvelhecem os instintos pré-civilizados, irracionais, que organizarão a sociedade pós-revolucionária.

Sorel, como outros marxistas, advogava a guerra de classes, rejeitava o utopismo, advogava a abolição do estado e acreditava em revolução total. Mas também glorificava qualidades inatas, pré-burguesas, como heroísmo, grandeza, dignidade e autenticidade. Coerentemente, ele admirava e emulava antigos mártires cristãos e com isso — ilogicamente — respeitava muitas das tradições religiosas, sociais e sexuais da civilização ocidental. Ele acreditava em voluntarismo e liberdade autodeterminada, mas simultaneamente santificava um mito irracional que impulsionava a humanidade a um paroxismo revoltoso incontrolável. Ele era um materialista histórico que também advogava o anarcossindicalismo e a irracionalidade espontânea. Ele era um proletário revolucionário que citava simpaticamente Vico, Proudhon, Bergson, Nietzsche, Tocqueville, Taine, Renan e outros. Em suma, importava-se pouco com rigor teórico ou com a construção de sistemas intelectuais, pinçando e escolhendo ideias que mobilizassem os descontentes. Como um anticapitalista revolucionário que oportunisticamente nada disse ou fez — eventualmente apoiando até movimentos de inspiração fascista — ele foi o Pai Fundador espiritual do novo esquerdismo.

O grupo do “Arguments”

Uma influência mais imediata do novo esquerdismo são a filosofia e a teoria social associadas com diversos jornais radicais populares pós-stalinistas, particularmente o Arguments[6]. Apesar de muito jornal deste ser filosoficamente medíocre, ele levanta questões importantes e oferta corajosas respostas. Constituído quase exclusivamente por marxistas ex-ortodoxos liberados após o descongelamento intelectual pós-stalinista, o grupo do Arguments detonou o stalinismo com críticas espinhosas e frouxos níveis filosóficos. Referiam-se ousadamente a Heidegger, Sartre, Freud, Picasso ou qualquer outra figura — marxista ou não — relevante à sua crítica. Seu trabalho é filosoficamente assistemático, vago e ambivalente, ainda que socialmente significativo, por legitimar — especialmente na França — diferentes tipos de teoria marxista. “O revisionismo francês [o movimento Arguments, por exemplo] foi consequência direta da destalinização , mas ao mesmo tempo era o trabalho daqueles que foram, certa vez, stalinistas. Portanto também o eram suas demandas (total revisão), e também suas limitações. O revisionismo não adicionou nada ao marxismo, mas... estava lá para legar sua própria contribuição à grande empreita da libertação filosófica”[7]. Esta audaciosa empreita também incluía traduções pioneiras de clássicos do marxismo hegeliano, como trabalhos de Labriola, Lukács, Korsch e Gramsci.

Os temas da Arguments refletem os interesses agrupados no jovem Marx e no marxismo idealista: a dialética subjetivamente inspirada, a sociedade como uma totalidade interpenetrada, a alienação como um fenômeno econômico e social, a significância social da percepção e da vontade subjetivas, e a autonomia da cultura. Contribuições substantivas nestas áreas foram mínimas. Todavia, em meramente reformular o marxismo contemporâneo em termos não ortodoxos, sua influência entre radicais franceses desiludidos foi impulsionada. A contribuição mais duradoura da Arguments à teoria social francesa foi uma crítica eclética do cotidiano. Embora não original, como todo o seu trabalho, o grupo da Arguments popularizou a crítica radical da desumanizante, porém atrativa, sociedade ocidental europeia do consumo. Similarmente, o conceito marxista de revolução é alargado para além da economia, rumo, fundamentalmente, à transformação dos sentimentos das pessoas, estilos de vida e relações sociais. A autenticidade demanda negar criticamente as pedras-de-toque burguesas referentes a trabalho, sexo, drogas, família, arte, governo etc. Assim os revolucionários marxistas são simultaneamente pensadores de vanguarda, preocupados com estética e aproveitando plenamente a vida, bem como instigadores de rebeliões. Diversão e arte negavam o capitalismo por gerar sentimentos de desinibida autoexpressão, autocontrole e autonomia, conclamando assim “uma civilização da diversão”[8]. Economicamente, traduz-se isso em trabalho autogerido e propriedade pública do aparato produtivo. Todavia, isso é socialismo com uma diferença: Fábricas serão estúdios de arte e os trabalhadores artistas livres descontraidamente manipulando máquinas. O aforismo “Não Trabalhe Nunca”, escrito por jovens radicais sobre paredes parisienses durante os anos 50 e 60, é certamente um chamado marxista peculiar às fileiras.

Infelizmente, a teoria social do grupo Arguments carece de base teórica sólida. Suas bizarras demandas pressupõem ilogicamente uma essência humana suprimida lutando para escapar do escravizamento capitalista, uma liberdade inerente autodeterminada e um antirreducionismo reflexivo. A teoria do grupo Arguments deve, pois, ao marxismo idealista, experimental e crítico, e também, em adição, à sua implícita crítica ortodoxa da economia política. Tais coisas não são nunca separadas ou ranqueadas, habilitando os escritores a enfatizar o que quer que achem momentaneamente útil. Teoricamente, eles negam a reputação da ortodoxia como a representante legítima do marxismo mais do que tentam estabelecer uma teoria social convincente. Do ponto de vista prático, eles conclamam cidadãos oprimidos – trabalhadores e não-trabalhadores – a rebelar-se. Em um ambiente pós-guerra anti-stalinista, talvez análises dramáticas, ilógicas, sejam consideradas táticas revolucionárias eficazes. De qualquer modo, o grupo do Arguments desempenhou um papel menor na evolução teórica do marxismo, popularizando velhas ideias mais do que criando novas. Mas seu desleixo teórico e suas ambições revolucionárias influenciaram o novo esquerdismo a abandonar inteiramente a pretensão filosófica. Uma crítica teórica popular, conquanto eclética e inconvincente, do cotidiano gerou o ativismo não-teórico da Nova Esquerda.

Ativismo da Nova Esquerda

Com o legado de Sorel e do grupo do Arguments, não é surpreendente ouvir novos esquerdistas condenarem literatura radical por desnecessariamente “argumentar” e “mentir”; “de qualquer modo... [isso] não faz muita diferença, apenas a experiência direta... [é] incontroversa”[9]. A revolução é um objetivo prático que não deve ser obscurecido por intelectualização desnecessária. As massas do capitalismo “não estão atreladas juntas por uma teoria abstrata da história, mas por um desgosto existencial”[10]. A ação revolucionária tem suas próprias consequências justificáveis – e elas, por si, abrangem a teoria revolucionária. “A revolução é um processo indefinido que não tem estágios que possam ser decompostos assim, um processo que não pode começar de uma demanda pelo socialismo, mas que leva a este inevitavelmente quando a vanguarda revolucionária sinceramente representa as classes exploradas”. O marxismo só é teoricamente válido quando as consequências da ação revolucionária substanciam-no. Doutro modo, este é um jogo intelectual calculado apenas para pacificar as massas. Note a confluência ilógica, mas calculada, na citação de Daniel Cohn-Bendit, de encantamento, sexo, violência, liberdade espontânea, egoísmo e revolução social:

“Agora, coloque seu casaco e vá ao cinema mais próximo. Olhe para o sexo amoroso insosso na tela. Este não é melhor na vida real? Faça sua cabeça para aprender a amar. Então, durante o intervalo, quando os primeiros anúncios subirem, pegue seus tomates, ou, se preferir, ovos e arremesse-os. Então saia para a rua e retire todos os últimos anúncios governamentais... então aja. Aja com outros, não por eles. Faça a revolução aqui e agora. Ela é sua”[11].

A veracidade desta declaração é seu potencial mobilizador. Uma vez que a audiência de Cohn-Bendit neste caso era predominantemente de jovens de classe média, educados e desiludidos, ele macaqueou seus únicos valores e desejos, que eram taticamente, não epistemologicamente, significativos. Como a revolução é autojustificada, o novo esquerdismo coleta todas as ideias estrategicamente úteis, neste caso incluindo retórica triste, sexy, dura e egoística. O intento é revolução, não integridade intelectual ou moral.

A fatuidade intelectual do novo esquerdismo obscurece, com frequência, reais motivos. Originalmente os novos esquerdistas eram revolucionários, mas suas táticas flexíveis e discursos não dogmáticos atraíram uma variedade heterogênea daquilo que Weinstein chamava “ativistas de grupos de interesse”, pessoas que apoiam atividades sociais como realizar greves, marchas, protestos, boicotes e ocupações não pelo seu valor revolucionário, mas como meios úteis de reforma das desigualdades sociais[12]. Particularmente na América, com sua tradição liberal monolítica, novos esquerdistas “revolucionários” são, com frequência, companheiros de viagem laborando para trocar pessoas em cargos oficiais, mudar a lei ou estabelecer direitos e liberdades liberais àqueles não atuantes politicamente. Seus objetivos deixam o capitalismo intocado, portanto neste sentido eles estão usando o, bem como sendo usados por, autêntico novo esquerdismo. Este é um casamento de conveniência entre um parceiro desapercebido de seu próprio viés liberal, e um outro indisposto para discutir tal bobagem esotérica. O novo esquerdismo é, portanto, transformado, na prática, em um nebuloso, desfocado, movimento social, abarcando ativistas liberais assim como intrépidos revolucionários que rejeitam inteiramente o liberalismo. Como resultado, muito do radicalismo contemporâneo da Nova Esquerda europeia e, em especial, americana é não-revolucionário, mesmo que alguns dos novos esquerdistas sejam certamente revolucionários. Assim, um marxista justificadamente argumentou que o novo esquerdismo “revolucionário” “encapsula a política radical dentro das categorias do pragmatismo e de outras formas de pensamento positivista... [seu objetivo é] a transformação do conteúdo da vida social ainda retendo suas formas ideológicas e institucionais”[13].

Em subsumindo a teoria à prática, o novo esquerdismo recebe, ao mesmo tempo, mais e menos do que aquilo por que advoga. Os turbulentos anos 60, com seus movimentos de protesto, sublevações e violência civil, foram, ao menos parcialmente, condicionados por ativistas da Nova Esquerda, que organizaram e lideraram muitos jovens nas ruas de Paris, Nova Iorque, Washington e Berkeley. Novos esquerdistas sentiam que teoria inibe ação significativa. E ação foi o que tiveram, na maioria entre grupos sociais de elite e em áreas não urbanas que nem mesmo eles poderiam antecipar. O novo esquerdismo foi um sucesso. Mas sua popularidade entre as pessoas insatisfeitas se devia ao seu anti-intelectualismo, seus princípios antidogmáticos que — dentro da velha esquerda — haviam aterrorizado vários dissidentes não-revolucionários. Recebendo qualquer pessoa disposta a perturbar o status quo, o novo esquerdismo transformou-se a si mesmo em um movimento ativista não-revolucionário, composto de tal improvável combinação de camaradas, como hippies, ecologistas, estudantes, maconheiros, naturalistas primitivistas, vegetarianos, ativistas negros, feministas, artistas de vanguarda, neoconservadores, profissionais antiguerra, marxistas revolucionários... a lista se estende infinitamente. Cada um mobilizado em torno de questões perceptíveis de preocupação imediata, questões incitando protestos anti “o estado de coisas”. Mas muito poucos nutriram motivações antissistêmicas ulteriores. Com o anti-intelectualismo rampante, contudo, diferenças básicas separando revolucionários e não-revolucionários nunca apareceram. O novo esquerdismo, portanto, falhou tristemente se o julgarmos por seu próprio critério original. Enquanto instigava a ação social, em sua perspectiva revolucionária original esta ação, em geral, era sem sentido e insubstancial. Na medida em que o capitalismo se reformava, a maioria dos novos esquerdistas se desmobilizava, e a coalizão se desfazia. Antigos membros entraram em corporações e posições profissionais, ou foram buscar preenchimento emocional noutro lugar, talvez em grupos religiosos ou de culto. Quando movimentos políticos carecem de substância intelectual, quando eles irrefletidamente unem ativistas heterogêneos, eles provavelmente se dissolvem tão rápido quanto se unem. Portanto, ao desprezar teoria, o novo esquerdismo selou seu próprio desanimador destino.

Conclusão

Ironicamente, os efeitos sociais tanto do novo esquerdismo quanto da Teoria Crítica são idênticos: nenhum libertou ninguém da exploração capitalista. A mensagem histórica parece clara: enquanto ação política pode perpetuar a dominação e refletir o status quo, os movimentos revolucionários baseados somente em crítica abstrata ou ação espontânea não conseguiram lograr êxito. A práxis deve ser reflexivamente inspirada, reflexão concretamente realizada em, e expressa por, ação. Embora a Teoria Crítica e os novos esquerdistas condenem o materialismo não-dialético, reducionista, da ortodoxia, ambos eventualmente sucumbem ao demônio extirpado.

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Notas:
[0] Título original: “New Leftism”. Capítulo do livro Neo-Marxism: The Meanings of Modern Radicalism, Londres: Greenwood Press, 1982. Tradução de Ian Caetano, Blog Junho, 2017.
[1] Richard Gombin: The Origins of Modern Leftism (Baltimore, Md. Penguin Books, 1975), pp. 130 e 118. A melhor compilação de documentos significativos da Nova Esquerda está em M. Teodori: The New Left: a documentary history (New York: Bobbs-Merrill, 1969). Uma extensa bibliografia sobre escritos da Nova Esquerda e material de fundo relevante estão ofertados em Lyman T. Sargent: New Left Thought (Homewood, Ill: Dorsey Press). Pp 170-84.
[2] Ver ibid., pp. 35-56
[3] Carl Oglesby, “The idea of the new left”, in: The New Left Reader (New York: Grove Press, 1969), p. 11.
[4] Gombin, The Origins of Modern Leftism, p. 139
[5] Ver especialmente Georges Sorel, Reflections on Violence (Glencoe, Ill: The Free Press, 1950). Ver Também The Illusions of Progress (Berkeley: University of California Press, 1969), Matériaux d’une théorie du proletariat (Paris: Rivière, 1919), e The Decomposition of Marxism (New York: Humanities Press, 1961).
[6] O termo “Grupo Arguments” denota o trabalho aparecendo em três jornais similares do pós-guerra: Arguments, Internationale Situationniste e Socialisme ou Barbarie. Os membros incluíam H. Lefebvre, E. Morin, J. Duvignaud, P. Fougeyrollas, C. Audry, K. Axelos, D. Mascole, F. Chatelet e R. Barthes. Ver Mark Poster: Existential Marxism in Post-War France (Princeton: Princeton University Press, 1975), pp. 209-14.
[7] Gombin, The Origins of Modern Leftism, p. 54.
[8] Ibid., p. 74.
[9] Oglesby, “The idea of the new left”, p. 154.
[10] Rudy Dutschke, “On Anti-authoritarianism”, in: ibid., p. 251.
[11] Daniel Cohn-Bendit, “The Battle of the Streets”, in: ibid., p. 266
[12] James Weinstein, Ambiguous Legacy (New York: Franklin Watts, 1975)
[13] S. Aronowitz, “Introduction”. In: Max Horkheimer, Critical Theory – Selected Essays, p. xi.
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quinta-feira, 23 de julho de 2020

Tönnies e o nascimento da sociologia alemã


por Ranieri Carli

Em terras alemãs, os eventos ganharam um rumo particular. Como a burguesia toma o poder político baixo ao coturno prussiano de Bismarck, “a sociologia alemã nasce, pois, dentro dos marcos da apologética derivada desta transição” (Lukács, 1968: 474). Isso implica que está posta para a sociologia alemã uma série de tarefas distintas daquelas que se observam na França e na Inglaterra. Lukács diz que a apologia ao Estado prussiano fazia com que os problemas da vida social fossem identificados como meras questões jurídicas de Estado; bastava a intervenção do Estado (diga-se, de Bismarck) para que se decidisse o assunto.
 
Esta era a ideia do historiador e político Heinrich Treitschke, que predominava nos primórdios da sociologia alemã (cf. Lukács, 1968: 474). Efetivamente, Treitschke defendia que “o Estado demanda obediência: suas leis devem ser mantidas, forçosamente ou não. É um passo adiante quando a silenciosa obediência dos cidadãos torna-se um consenso racional interno, mas este consenso não é absolutamente necessário” (s/d: 12). O consenso liberal não é necessário; basta a intercessão do Estado. Um pouco depois no texto, o ideólogo de Bismarck assevera que “o Estado diz: para mim, é indiferente o que pensas sobre o assunto, mas deves obedecer” (Treitschke, idem: 13). Exige-se, portanto, a obediência servil ao Estado imperialista. Treitschke estava longe de ser um liberal democrata.

Tudo se submetia ao Estado prussiano: esta era a ideia hegemônica naqueles anos, conforme os estudos de Lukács. Por esta razão, a sociologia ficava momentaneamente sem objeto na Alemanha. O que poderia ser enfocado pela sociologia, na verdade, resolvia-se lançando mão da teoria do direito e da política.

A situação muda de figura quando há o florescimento das lutas de classes entre burguesia e operariado; “nesta nova situação, um grupo de economistas alemães (Brentano, Schmoller, Wagner e outros) trata de estender os domínios da economia nacional até convertê-la em uma ciência da sociedade” (Lukács, 1968: 474). O operariado torna-se força ativa no palco político da Alemanha; organiza-se no partido social-democrata. Essa nova objetividade histórica é a demanda à qual a sociologia virá a conceder respostas. A ciência burguesa volta seu foco para o movimento do trabalho; reage a ele. Para que não fiquemos no purificado plano das ideias e, assim, mistificarmos todo o processo, deve-se dar a devida atenção às particularidades históricas da Alemanha de então:uma sociologia fazia-se necessária para dar conta da “questão social”, tratando-a empiricamente, autonomamente, sem se reportar às contradições econômicas, como designa o método das ciências vulgares.

O positivismo não influencia esta sociologia produzida na Alemanha, pelo menos não em sua versão clássica comteana. Dada a herança de Kant entre os teóricos alemães, quando aspectos positivistas transpõem os limites da fronteira com a França, eles são filtrados por um subjetivismo kantiano. O pensamento alemão sempre manteve uma atitude de reserva ao positivismo clássico. E, no momento em que nasce a sociologia, os mandarins alemães já estão parcialmente imunizados contra a cientificidade naturalista da escola de Comte, Spencer e Durkheim. Produz-se, na verdade, um positivismo peculiar à Alemanha, de tipo neokantiano, que geralmente mantém a rígida separação entre ser e dever ser e a fragmentação entre as disciplinas, ainda que não conceba as sociedades enquanto um todo orgânico.
 
Lukács estabelece a obra de Ferdinand Tönnies enquanto o grande momento da nascente sociologia alemã. Em 1887, Tönnies publica Comunidade e sociedade. Essa é uma amostra de como a sociologia alemã elabora o positivismo à sua maneira. O sociólogo distingue entre comunidade e sociedade fundamentando-se em categorias das ciências naturais: a primeira seria um corpo cujos membros estariam agregados de forma homogênea, enquanto a segunda seria uma formação mecânica, o que pressupõe a existência plural de centros de força (cf. Tönnies, 1947: 19). A sociedade viria substituir cronologicamente a comunidade; é a leitura que Tönnies fazia do surgimento da sociedade burguesa à época de Comunidade e sociedade.

Não é ocioso lembrar que, concomitantemente, Durkheim estabelecia distinção similar no livro Divisão do trabalho social, também se valendo dos usuais paralelos com as ciências da natureza.

A particularidade de Tönnies reside no fato de que a sua recepção de Marx não é de rejeição. As teorias de O capital sobre a transição da simples cooperação à grande indústria são qualificadas como “magistral análise” (Tönnies, 1947: 97). Por certo, Marx servia até certo ponto para a crítica romântica e reformadora que o sociólogo pretendia fazer ao capital. Para Tönnies, a sociedade é uma “construção artificial” que dista longinquamente da “unidade perfeita” de uma autêntica comunidade; o romantismo está posto nestes termos: “comunidade é a vida em comum duradoura e autêntica; sociedade é só uma vida em comum passageira e aparente” (Tönnies, idem: 21). A fim de enaltecer o “espírito de união” perdido com o advento da sociedade, o sociólogo recorria a Marx, muito embora subtraísse o aspecto revolucionário da crítica marxiana à economia política.

A aceitação de um certo Marx particulariza Tönnies em respeito a seus contemporâneos. Tönnies até mesmo retém a teoria do valor-trabalho: “coisas são consideradas iguais na medida em que cada objeto ou cada quantidade de objeto detém uma certa quantidade de trabalho necessário” (1947: 70). O autor de Comunidade e sociedade chega a defender Marx diante das críticas da escola austríaca de economia (cf. Tönnies, idem: 115, 116). Apesar de delimitar o valor-trabalho à sociedade burguesa (quando em verdade corresponde à totalidade extensiva da história), não há como não notar uma coragem em Tönnies no instante em que afirma o trabalho como medida do valor, em plena vigência do estágio monopolista do capital. Enquanto seus contemporâneos estão apartando da teoria os inconvenientes ao capital, é possível de se ler na obra de Tönnies que a produção de valores está a cargo da classe trabalhadora; trata-se de um verdadeiro triunfo da objetividade, embora Lukács não lhe dê o devido crédito[1].

Dada a sua condição de classe, pode-se supor que Tönnies não leve às últimas consequências a constatação de que a classe produtora é o operariado. A sua crítica ao capital retira suas armas da cultura [Kulturkritik]; é uma crítica à hostilidade da economia capitalista às formas elevadas de objetivação (arte, filosofia).

Ao longo de Comunidade e sociedade, Tönnies presta tratamentos diferentes às duas formas societárias: ao analisar a comunidade, o sociólogo privilegia os aspectos culturais, instituições como o matrimônio, a família, a autoridade política, a nobreza de sangue, a honra, etc; quando o assunto é a sociedade, põe-se a discorrer sobre a economia, a divisão do trabalho, a produção de valores, a mercantilização da vida social, o dinheiro, o lucro, a desapropriação dos meios de produção dos trabalhadores, a mais-valia, etc. Parece que o momento econômico vem a nascer com a sociedade burguesa. Não são extraídas maiores determinações da relação de exploração entre o senhor feudal e o servo da gleba; não se leva em conta a economia quando se aborda a comunidade e não se considera acultura na análise da sociedade. Tönnies não é neutro na escolha do método: de um lado,fazem-se um elogio à cultura comunitária e, de outro, um ato de repúdio à economia da sociedade.

No livro de 1887, o aspecto contraditório da sociedade é ressalvado para ser e afirmar a “unidade perfeita”, o “consenso”, a “reciprocidade de relações” da antiga comunidade. Biógrafo de Hobbes, Tönnies retira do iluminista inglês a noção de que em sociedade o homem é o lobo do homem; de que os indivíduos agem conforme seus interesses mais particulares, mais imediatos na formação societária. Enquanto que em sociedade, “cada qual está para si somente e em estado de tensão contra todos os demais” (Tönnies, 1947: 65), em comunidade, “consenso e concordância são também uma mesma coisa: vontade comunal em suas formas elementares; como consenso em cada uma de suas relações e efeitos, como concordância em sua força e natureza total” (Tönnies, idem: 41).

Já em Princípios de sociologia, de 1931, Tönnies fala não em “sociedade” mas sim em sociedade burguesa; afinal, como diria Aristóteles, o sociólogo dá o nome certo à coisa. Apesar de proporcionar algumas novidades em face de outros textos, nos Princípios de sociologia, o elemento romântico não se perde na caracterização da burguesia:
 
De todos os elementos favorecidos, em conexão parcial com os subsistentes do estamento senhorial, forma-se uma “classe” dominante, que se diferencia do estamento senhorial por não ser fechada por natureza, senão aberta, e por que se destaca menos da grande massa do povo por signos exteriores como nome, título e tradições (Tönnies, 1946: 109).

Entre todos os aspectos que poderiam diferenciar a burguesia dos senhores feudais, Tönnies optou pelo prosaísmo da classe dominante moderna. Os burgueses não detêm o nome, o título e as tradições que os diferenciariam da grande massa proletária. A burguesia não porta a “coloração de nobreza”; ela é passível de se confundir com a massa do povo. Ainda que Tönnies não caia na franca reação, é indubitável que um reacionário convicto como Nietzsche corroboraria com boa parte de tais ideias esboçadas pelo sociólogo.

A maneira de Tönnies conduzir a crítica à burguesia é cheia de particularidades (que não foram deixadas de lado na maturidade dos Princípios de sociologia). O seu método termina por conceber as formações sociais de modo supra-histórico: nas tipologias da sociedade não se compactuam elementos que pertencem às comunidades e vice-versa. O sociólogo compõe assim dois imensos blocos históricos, opostos rigidamente, a saber, o capitalismo e o pré-capitalismo.

Lukács analisa os resultados que decorrem deste tipo de destruição da razão:
Esta exaltação anti-histórica de conceitos derivados, por sua origem, da análise concreta de formações sociais concretas, não só dilui estes conceitos..., senão quer e força, ao mesmo tempo, seu caráter anticapitalista romântico. A “comunidade” se converte assim na categoria que abarca o campo de todo o pré-capitalista, na glorificação dos estados “orgânicos” primitivos e, ao mesmo tempo, na consigna contra a ação mecanizadora e anticultural do capitalismo (1968: 483).
De um lado, a comunidade a abarcar o todo do passado pré-capitalista — a despeito das particularidades sócio-históricas; de outro, a sociedade, que representa a emergência da sociabilidade burguesa. É uma antinomia lógica em que A não detém determinações de B. Os dois conceitos estão opostos entre si, sem mediações; não se tomam em conta aspectos de transição histórica entre as duas modalidades societárias; onde se inicia uma delas, termina a outra.

Tönnies era um romântico resignado; olhava para a história passada com saudades no mesmo instante em que acreditava que a sociedade burguesa e a substituição das comunidades eram inevitáveis:
Nesse aspecto, foi influenciado por Marx. Não há dúvida, em sua mente, de que o capitalismo era a principal força que levaria da comunidade à sociedade, do comunismo primitivo ao socialismo moderno. A agricultura, a guilda da cidade pequena, as tradições legais comunais e mesmo a própria família tinham de ser sacrificadas para que houvesse mercados de âmbito mundial, padrões racionais de organização social, produção em massa e um exército de trabalhadores sem raízes a ser explorados nas fábricas. Não tinha a menor dúvida sobre isso e não podia tolerar frases “idealistas” destinadas a disfarçar essas realidades (Ringer, 2000:163).
É verdade que Tönnies qualificava como idealismos “condenados ao fracasso” quaisquer empenhos em reconstruir as relações comunitárias do modo como estavam postas no antigo regime. A restauração da “unidade perfeita” conduziria a uma outra modalidade de cooperação distinta das medievais e antigas.

Há uma importante passagem dos Princípios de sociologia em que Tönnies clarifica a sua posição em face das lutas de classes entre burguesia e proletariado; declara que não se retorna para o passado, muito embora lamente o espírito cooperativo perdido na modernidade. Por isso, põe-se a favor da luta pelo “novo”; põe-se ao lado do “novo e jovem” representado pelos trabalhadores e contra o velho burguês, sob a condição que o novo oriente-se para a constituição de um re-atualizado espírito de unidade, de cooperação. Tönnies realmente não leva às últimas consequências a constatação de que a produção de valores está a cargo da classe trabalhadora. Escutemos de sua própria voz:
O novo e o jovem [os trabalhadores] constituem precisamente um esforço em direção à comunidade, representando concretamente a tendência, condenada sempre ao fracasso, de restabelecer circunstâncias passadas e mortas; porém também representam mais frequentemente e com melhores perspectivas de êxito uma tendência em direção ao estabelecimento de uma nova base econômica que quer diferenciar-se por princípio da capitalista e societária — mesmo quando tenha igualmente necessidade do capital. Neste sentido, são de grande importância, antes de tudo, as tão reiteradamente mencionadas organizações cooperativas, as quais partem nada menos que do princípio que faz da produção de valores de uso um objeto imediato do trabalho societário; é dizer, de um princípio que afirma a guerra ao valor de troca, cuja generalização devem-se os enormes êxitos do capitalismo, e que trata de conciliar..., pelo menos, o capital e o trabalho, procurando que o próprio trabalho domine e tome em suas mãos o capital em forma de instrumentos que lhe são necessários (Tönnies, 1946: 342,343).
O repúdio ao prosaísmo burguês levou Tönnies a aliar-se ao operariado, o que já era indicado pela sua apropriação da teoria do valor-trabalho. Entretanto, o intento não era a revolução. Tönnies pretendia a reforma, a conciliação entre trabalho e capital. A restauração da “unidade perfeita” da comunidade não implica a volta ao passado, senão a reforma do presente rumo à constituição de cooperativas; nelas, as características mais lesivas da divisão capitalista do trabalho seriam abrandadas.

Não existe, portanto, nenhum paradoxo entre a tomada de partido favorável à classe trabalhadora e a crítica de caráter romântico à sociedade burguesa; era um romantismo que se desvinculava da restauração reacionária. O novo e o jovem da luta proletária significam o estabelecimento contemporâneo da comunhão corrompida pela sociedade burguesa. Tönnies resigna-se com a instauração da sociedade burguesa e procura amenizá-la com as reformas que não transbordem para além das fronteiras do capital.

Os problemas aumentam quando Tönnies associa às formas societárias duas noções de “vontade” — o que Ringer chamará de “dicotomia fundamental” da obra de Tönnies (cf. Ringer, 2000: 160). Tönnies pretende estabelecer a seguinte diferença: uma espécie de “vontade essencial” fez vir ao mundo as comunidades e toda a sua coesão interna, enquanto que uma “vontade arbitrária” produziu a sociedade desagregadora (cf. Tönnies. 1947: 119). De acordo com o sociólogo, “a comunidade parte da unidade perfeita da vontade humana” (1947: 25). Tönnies hipertrofia a subjetividade criadora e atribui a ela o papel instituidor da dinâmica social. O sujeito torna-se uma entidade supra-histórica que funda as formações societárias com a sua vontade[2].

O contraditório de sua resignação romântica é realçado tendo em vista que Tönnies dava um grande relevo à “vontade subjetiva”. Se bastasse que os indivíduos desejem a restauração do sentimento comunitário, não haveria por que a resignação. Todavia, o estudo do movimento do capital ensinou a Tönnies que vontade não é onisciente ou onipotente; foi obrigado a constatar que a dinâmica social é muito mais abrangente do que os indivíduos isoladamente, do que as vontades e os interesses particulares do sujeito. Ainda que quisesse, a “vontade essencial” por si só não traria de volta o espírito comunitário; não foi por outra razão que Tönnies engajou-se na luta política pelas reformas que conciliassem capital e trabalho.

Tönnies exerceria uma grande influência no desenvolvimento da sociologia alemã. A sua crítica romântica ao capitalismo circunscreveu o terreno em que os sociólogos posteriores caminharam.

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Notas:
[1] Lukács comenta que Tönnies entendia como similares as versões de Marx, Ricardo e Rodbertus para a teoria do valor-trabalho (cf. 1968: 478). Isso é verdade, mas, sob nossa ótica, esse fato não reduz a importância do movimento de Tönnies no sentido de apreender as contradições da realidade burguesa; a confusão de Marx com Ricardo e Rodbertus não suprime dos seus textos a teoria valor-trabalho; ela continua lá. Entretanto, Lukács prefere desmerecer a enaltecer a tentativa de Tönnies em se apropriar de elementos da teoria marxista. A destruição da razão foi escrita em um momento conturbado, em plena guerra fria, e uma concessão desse porte às ciências burguesas talvez fosse impensável.
[2] “O sujeito de ambas [a vontade arbitrária e a essencial] põe em movimento o corpo (de outra sorte representável como desprovido de movimento) por meio de um impulso exterior. Este sujeito é uma abstração. É o ‘eu’ humano, concebido como desprendido de todas qualidades e como essencialmente cognoscente, como se representando as consequências (prováveis ou seguras) de possíveis efeitos que partam dele mesmo e medindo-as por um resultado final, cujas ideias se fixam como norma para separar esses possíveis efeitos, ordená-los e dispô-los para que se convertam em realidade no futuro” (Tönnies: 1947:121). O sujeito de Tönnies é a descrição de um ente divino, onipotente e onisciente.
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CARLI, R. György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 61-68.
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