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quarta-feira, 6 de abril de 2022

ARTE REALISTA| This is Not America



This is Not America
Lisa-Kainde Diaz / Naomi Diaz / Residente / Trooko

Estamo' aquí
Oye, que estamo' aquí
Mérame, estamo' aquí

Desde hace rato, cuando ustedes llegaron
Ya estaban las huellas de nuestros zapatos
Se robaron hasta la comida'e gato
Y todavía se están lamiendo el plato

Bien encabrona'o con estos ingratos
Hoy le doy duro a los tambores
Hasta que me acusen de maltrato
Si no entiendes el dato
Pues te lo tiro en cumbia
Bossanova, tango o vallenato

A lo calabó y Bambú, bien Frontú
Con sangre caliente como Timbuktu
Estamos dentro del menú
2pac se llama 2pac por Túpac Amaru del Perú

América no es solo USA, papá
Esto es desde Tierra del Fuego hasta Canadá
Hay que ser bien bruto, bien hueco
Es como decir que África es solo Marruecos

A estos canallas
Se les olvidó que el calendario que usan se lo inventaron los Mayas
Con La Valdivia Precolombina
Desde hace tiempo, ah
Este continente camina

Pero ni con toda la marina
Pueden sacar de la vitrina la peste campesina
Esto va pa'l capataz de la empresa
El machete no solo es pa' cortar caña
También es pa’ cortar cabezas

Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde

Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde, ah

Si quieres, mi machete te muerde, ah
Si quieres, mi machete te muerde, ah
Si quieres, mi machete te muerde, ah

Te muerde, ah
Te muerde, ah

Los paramilitares, la guerrilla
Los hijos del conflicto, las pandillas
Las listas negras, los falsos positivos
Los periodistas asesinados, los desaparecidos

Los narcos gobiernos, todo lo que robaron
Los que se manifiestan y los que se olvidaron
Las persecuciones, los golpes de Estado
El país en quiebra, los exiliados
El peso devaluado

El tráfico de droga, los carteles
Las invasiones, los emigrantes sin papeles
Cinco presidentes en once días
Disparo a quema ropa por parte de la policía

Más de cien años de tortura
La nova trova cantando en plena dictadura
Somos la sangre que sopla la presión atmosférica

Gambino, mi hermano
Esto sí es América

Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde

Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde, ah

Si quieres, mi machete te muerde, ah
Si quieres, mi machete te muerde, ah
Si quieres, mi machete te muerde, ah

Te muerde, ah
Te muerde, ah

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Residente (ft. Ibeyi). Videoclipe (2022) dirigido por Gregory Ohrel.
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sexta-feira, 12 de junho de 2020

Sobre as milícias

 
por Thiago Sardinha

Queria fazer uma reflexão provocativa sobre algo que vem sendo utilizado de forma ampla e generalizada, daí aparecem algumas questões: 1) que bom que certas discussões ganham amplitude; 2) nem sempre essa amplitude é na mesma proporção da sua qualidade, o que causa imprecisão nas suas abordagens. O fato é: existem exageros e também existe a necessidade de ter cuidado. Diante disso, queria falar um pouco sobre o que considero “milícia” e especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Pretendo pontuar também rapidamente sobre os limites e exageros das abordagens sobre a milícia no Brasil e no Rio de Janeiro. Destacarei formas de organização, práticas de controle e sua relação com o Estado. Sem fugir do objetivo de discutir os limites e exageros, vou ater-me às absurdas comparações entre milícias do Rio de Janeiro com as “milícias” da Venezuela.

Cada vez mais escândalos envolvendo a família Bolsonaro vêm sendo associados como práticas milicianas. Com muito cuidado e olhando mais de perto, queria dizer que não compactuo com esta sentença. Dizer isso não é o mesmo que defendê-la de suas articulações com milicianos notórios. Meu objetivo é pontuar alguns elementos de forma a contribuir com o debate.

A Zona Oeste do Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense possuem (infelizmente) como marca histórica a ação constituída de grupos armados, incluindo a milícia. Milícia que tradicionalmente é também associada a grupos paramilitares e grupos de extermínio, em que estes possuem armamento e reproduzem práticas militares mesmo sendo civis. Na Zona Oeste do Rio de Janeiro, na região cortada pela Avenida Cesário de Melo, estes grupos possuem não apenas acesso ao armamento pesado, mas também domínio territorial, exploração econômica generalizada, além das tradicionais como transporte de Van, venda de gás, serviço de entrega de água e TV por assinatura.

O grupo que ficou mais conhecido desta região foi a chamada Liga da Justiça. Atualmente esta mesma região é controlada pelo Ecko, sujeito que representa algumas mudanças na forma de dominação territorial e perfil integrante. Por exemplo, no período de controle da Liga da Justiça era muito comum e quase exclusivos participação e envolvimento de policiais civis e militares, guardas Municipais e até bombeiros, agentes penitenciários, ex-militares e muito poucos civis. Com o Ecko, temos muito mais civis, menos policiais, muito ex-traficante do varejo e muita gente desempregada que vê na milícia uma oportunidade de “trabalho”. Não podia deixar de comentar o terror implementado pela milícia nos territórios em que exercem seu domínio. Além da exploração econômica que já mencionamos, execução sumária e sumiço de pessoas também são características recorrentes. Tudo isso para alcançar seus objetivos, muitas das vezes sendo eleitoral, porém, não se encerrando neste.

A milícia como grupo armado violento atuante no espaço urbano periférico da cidade do Rio de Janeiro não apenas disputa território com outros grupos, mas assimila suas práticas com as dos grupos de extermínio e das facções do varejo. Sua herança histórica pode ser encontrada nos cavalos corredores e esquadrão da morte, outros grupos armados conhecidos do cotidiano violento da periferia da cidade do Rio de Janeiro.

Um ponto que é interessante e mais complexo é a sua relação com o Estado. Muito se fala que a milícia “é o Estado” apenas por envolver agentes do Estado, principalmente funcionários públicos das forças de segurança. Esta afirmação advém de leituras acerca do Estado em que, partindo do ponto de vista moral, há uma predisposição para exercer este tipo de controle. Estou convencido de que esta parte da discussão é mais complexa do que aparenta. Veja, é notório que milicianos usem o Estado para ampliar suas atividades e para lhes dar proteção quando assim necessitarem, e proteção de quem? Do Estado! Portanto, isto explica a entrada e até acordos com políticos do Legislativo ou mesmo os próprios milicianos almejando carreira política. É neste ponto que muitos irão afirmar que a família Bolsonaro representa, sim, uma milícia. Eu perguntaria: qual? Pois mesmo a proximidade de Flávio Bolsonaro com o miliciano Adriano não o caracteriza como miliciano que realiza execução sumária para controle territorial com exploração econômica. Volto a dizer, é mais complicado do que parece.

Eu diria que ocorre muito mais uma “decomposição do Estado em uma estrutura miliciana” do que a milícia virar um instrumento de ação do Estado, que no caso brasileiro se junta com as características de um Estado de capitalismo dependente e periférico. O que a milícia exerce hoje se parece bastante com as regras de Estado de Exceção, com as quais muitos se espantam por somente agora compreenderem o que a periferia, Zona Oeste do Rio de Janeiro, já experimenta por anos. Seria mais uma expressão da perda de monopólio da violência pelo Estado do que o Estado ampliando sua capacidade de exercer o monopólio da violência.

O que faz muitos afirmarem que a família Bolsonaro é uma milícia decorre da aproximação de facções de dentro das Forças Armadas, Polícias Civis e Militares e até mesmo da Polícia Federal, que, juntos, compõem o Bolsonarismo. Concordo com este raciocínio até certo ponto, pois não considero que a família Bolsonaro possua uma milícia nacional nos moldes que comentei acima, a exemplo da Liga da Justiça ou da quadrilha do Ecko, mas que ocorre um alinhamento ideológico entre esta mesma milícia e o Bolsonarismo. Este não depende da Família Bolsonaro para a sua manutenção e ampliação. Qualquer atividade ilícita de facções policiais não deve ser enquadrada como milícia, seria um apressado engano.

As milícias cariocas e os coletivos populares bolivarianos

Apenas para relembrar, a milícia do Rio de Janeiro possui uma formação histórica em outros grupos armados comuns na periferia da cidade, como os grupos de extermínio de execução sumária, facções policiais, como os cavalos corredores e esquadrões da morte, jogo do bicho, além daqueles sujeitos “matadores de bairros”. A milícia também atua com o objetivo de realizar a exploração econômica generalizada através do domínio territorial com práticas militares e conta com a participação (e até liderança) de agentes do Estado, como policiais militares (ativos, aposentados e expulsos), policiais civis, guardas municipal, bombeiros e civis. Nessa teia de ações acrescentam-se as execuções recorrentes, tortura e desaparecimento de moradores dos territórios controlados por estes grupos.

É comum encontrar na imprensa liberal diferentes formas desonestas, caluniosas e até criminosas sobre a Venezuela. Tal atividade recebeu muito eco na extrema direita brasileira, servindo até de programa para campanha eleitoral: “O Brasil não será uma Venezuela”, “Deus me livre o Brasil virar uma Venezuela. ”

Na verdade, esta comparação dos grupos que atuam na Venezuela com as milícias cariocas é grotesca já pela própria classificação. Em alguns países latino-americanos o termo “milícia” teria outra conotação, principalmente, política e revolucionária. Portanto, milícia aqui no Brasil possui significado associado ao crime organizado e, fora do país, possui um significado político. Nesse sentido, as práticas da milícia que atua no Rio seriam classificadas como grupos “paramilitares” por estes países. Isto já é motivo suficiente para causar tanta confusão. A outra forma que ajuda a compreender como é impossível fazer este tipo de comparação é pela sua formação histórica. Vejamos.

As chamadas “milícias” venezuelanas são conhecidas popularmente como Brigadas Bolivarianas. Estas Brigadas são formadas por civis que recebem treinamento militar, pertencentes aos diferentes coletivos de bairros que também se juntam às Brigadas para formarem, juntamente com o exército, marinha, aeronáutica e guarda nacional, a Força Armada Nacional Bolivariana. Além desses, existem outros coletivos que não fazem parte das brigadas, mas que possuem atuação armada em áreas estratégicas do território venezuelano. Estes coletivos são reconhecidos pelo Estado, principalmente por atuarem em momentos de emergência e interesse nacional.

O objetivo do governo de Nicolás Maduro é contar com mais de 1 milhão de integrantes das Brigadas dispostos a defender a soberania nacional diante dos frequentes ataques promovidos pelos EUA em conluio com paramilitares colombianos. Só de coletivos são mais de 80 espalhados pelos bairros populares da Região Metropolitana de Caracas. Os coletivos mais conhecidos são os dos bairros La Piedrita (o mais antigo, com 34 anos), 23 de Enero e Coletivo Catedral Combativa. Estes coletivos estão politicamente comprometidos e ideologicamente afinados com a Revolução Bolivariana, estão sempre nas ruas defendendo os interesses nacionais diante dos grupos armados de direita chamados de guarimbas.

Com a clareza dos seus propósitos, os coletivos usam o lema herdado de Hugo Chávez de que a “Revolução Bolivariana é uma revolução pacífica, mas não desarmada” e assim reafirmam seus compromissos que já vêm de longe. As origens dos coletivos remetem aos grupos de luta armada da década de 1960, é também daí que surge o nome “coletivo”. Diante da violenta repressão que sofriam, havia a necessidade de andarem juntos para se protegerem e garantir a sobrevivência, pois só no bairro 23 Enero foram mais de 130 lideranças políticas assassinadas. A maioria dos fundadores e integrantes dos coletivos têm como origem política organizações como o PCV (Partido Comunista da Venezuela) e o MIR (Movimento Revolucionário de Esquerda), por exemplo, que aderiram à luta armada nos anos 1960 e 1970. Os integrantes vão desde militares até professores, agricultores e outros trabalhadores de diferentes áreas. É importante ressaltar que os coletivos e as brigadas não realizam policiamento e nem fazem controle armado da sociabilidade com as práticas militares que lhe foram repassadas, pelo contrário, vivem normalmente suas vidas nas suas ocupações diárias, pegando em armas apenas em momentos de tensões de interesse nacional. Os coletivos de guerrilhas que atuavam nessa época foram colocados na ilegalidade e foi somente no início do governo de Hugo Chávez que voltaram à legalidade de forma que fossem reconhecidos pelo Estado, juntando-se com as Brigadas Bolivarianas conforme dissemos acima.

Diferentes das milícias cariocas, as Brigadas Bolivarianas são politizadas e com propósitos claros de defesa da soberania nacional. Esta perspectiva passa longe das milícias cariocas, as quais cumprem um papel de manutenção da violência e extermínio contra o povo trabalhador das periferias. Para se ter uma ideia, recentemente a Venezuela sofreu duas tentativas de invasão por paramilitares armados estrangeiros compostos por mercenários norte-americanos com experiência nas invasões do Afeganistão e Iraque e que faziam parte da Guarda Presidencial de Donald Trump, a chamada Operação Gedeón. No entanto, foram presos pelos coletivos populares de bairro, os quais a imprensa brasileira insiste em comparar com as milícias daqui. Esta incursão era mais um plano de Juan Guaidó tentando dar um golpe de Estado. No caso brasileiro, participam de golpes e relações mafiosas com políticos e o Estado.

Diante da exposição feita até aqui, portanto, com toda certeza, é impossível comparar as milícias que atuam como agentes da militarização do espaço urbano no Rio de Janeiro, com os coletivos populares de bairro da Venezuela. Na próxima oportunidade, tentarei falar um pouco sobre os grupos paramilitares colombianos, aliás, estes sim, são muito parecidos com as milícias cariocas.

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Fontes:
[1]https://www.brasildefato.com.br/2019/04/26/militares-com-vida-civil-conheca-a-rotina-da-brigada-bolivariana-na-venezuela
[2]https://www.brasildefato.com.br/2019/07/17/como-atuam-os-chamados-coletivos-entre-as-armas-e-o-servico-social-na-venezuela
[3]https://www.youtube.com/watch?time_continue=1&v=qsfO3iP6unY&feature=emb_logo
[4]https://www.brasildefato.com.br/2020/05/04/o-que-esta-por-tras-do-grupo-paramilitar-que-tentou-invadir-a-venezuela
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sexta-feira, 24 de abril de 2020

Os comunistas contra a máfia

por Marta Fana

Em 9 de maio de 1978, os italianos acordaram com a notícia triste do assassinato do ex-primeiro-ministro democrata cristão Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas. Na mesma manhã, na pequena cidade siciliana de Cinisi, a polícia encontrou o corpo de Giuseppe “Peppino” Impastato, um jovem militante anti-máfia assassinado pela Cosa Nostra – a máfia siciliana.

Impastato é homenageado todos os anos como um exemplo da luta dos jovens italianos contra o que já foi a organização criminosa mais poderosa do país (e assim permanece na própria Sicília). A versão oficial apresenta isso como uma história apartidária que envolve divisões políticas, embora a lápide do próprio Impastato o lembre como um “militante revolucionário e comunista morto pela máfia democrata-cristã”.

O esquecimento do caráter político das figuras que combateram a máfia ao longo dos anos se tornou um dos pilares da memória pública. É adequado para aqueles que querem relegar essa luta a um assunto meramente judicial – defender a legalidade – e ignorar a questão social por trás dela. No entanto, se por mais de um século a máfia travou uma guerra contra camponeses rebeldes e trabalhadores agrícolas, militantes comunistas e socialistas, sindicalistas e parlamentares comunistas , a resistência contra o seu controle é igualmente política.

Desde a última década do século XIX, a luta contra a máfia tem sido uma luta contra o poder tanto das classes dominantes quanto de seus aliados; na verdade, a própria máfia, ao longo do tempo, fundiu as duas categorias.

Esta é uma história siciliana, mas também um espelho da história nacional italiana e dos massacres ordenados pelo estado. Aqueles que dirigiram esses crimes permanecem impunes. No entanto, eles pertencem exatamente ao bloco de poder burguês que há tanto tempo usa grupos armados, fascistas e a máfia para executar suas ordens.

Batalhas antecipadas

Diversos estudos demonstram que a máfia surgiu nas últimas décadas do século XIX como uma organização para proteger os lucros que o crescimento do comércio de frutas cítricas (e de suas exportações) trouxe aos latifondisti (grandes proprietários). As gangues da máfia defendiam os lucros não apenas dos limões e laranjas, mas também do enxofre, pois os proprietários das minas buscavam proteção organizada.

Os gabellotti – empresários que alugavam e administravam as propriedades dos grandes latifundiários – também eram mafiosos ou ligados à máfia. Eles eram ladeados pelos campieri, uma força policial privada que mantinha a ordem nas fazendas, como uma espécie de ancestral dos caporali (chefes de gangues de trabalho) – figuras que controlavam a força de trabalho pela repressão violenta.

Isso levou à resistência dos trabalhadores, como foi o caso da Fasci dei Lavoratori (Ligas dos Trabalhadores), também conhecida como Fasci Siciliani (Ligas da Sicília), um movimento popular que se desenvolveu entre 1891 e 1894 antes de ser reprimido pelo Exército Real sob o comando do primeiro ministro Francesco Crispi, bem como pela máfia.

Estes Fasci surgiram como uma resposta das classes subordinadas, uma vez que os proprietários de terras da Sicília descarregaram os custos da crise agrícola sobre os diaristas e mineiros. Oficialmente fundado por Giuseppe de Felice Giuffrida em 1º de maio de 1891, estes Fasci foram organizados em seções territoriais em nível provincial. Eles tinham uma abordagem explicitamente socialista, ao contrário das várias outras ligas que surgiram em outras regiões , que foram fortemente influenciadas pelo anarquismo.

O movimento de trabalhadores agrícolas, trabalhadores das minas de enxofre e camponeses exigia melhores condições de trabalho, o dia de trabalho mais curto, maiores salários e a redução das tarefas gratuitas que eram obrigados a servir aos proprietários de terras ou aos gabellotti que administravam as fazendas. Mas eles também queriam uma reforma agrária que redistribuisse a propriedade da terra.

Eram, por definição, contra a máfia, porque lutavam tanto por status quanto em oposição à opressão econômica e militar imposta pelos mafiosos.

Resumindo esta posição, os Estatutos do Fascio de Santo Stefano Quisquina proibiam aos membros de “serem associados a todos aqueles que traíram os objetivos do Fascio… ou aqueles que são conhecidos como vagabundos, mafiosos e homens envolvidos em transações criminosas ”.

Esses Fasci fizeram um dos primeiros grandes movimentos na Itália, como disse Antonio Labriola, um dos primeiros e maiores estudiosos do marxismo na Itália; foi o segundo grande movimento da massa proletária que surgiu na Itália depois de 1888-1891.

Escrevendo em 1893, um ano antes do governo eliminar o Fasci pela força, Labriola expressou um poderoso otimismo da vontade, acrescentando que “o movimento siciliano nunca deve desaparecer”.

Infelizmente, o movimento foi realmente quebrado. Mas não morreu completamente – porque a luta pela terra e a libertação das classes trabalhadoras, assim como a inspiração socialista do movimento (mais tarde também comunista) estava destinada a ter uma longa história na Sicília. Na verdade, foi graças à “longa onda” do movimento pela terra e por uma reforma agrária democrática que o Partido Comunista Italiano (PCI) conseguiu construir apoio na ilha e se tornar um partido de massas no final da Segunda Guerra Mundial.

Nas eleições regionais de 20 de abril de 1947, o bloco popular comunista e socialista obteve 29,13% dos votos, contra 20,52% dos democrata-cristãos. As camadas populares se organizaram, lutaram e votaram contra o bloco de poder do qual a máfia fazia parte.

Um banho de sangue antiesquerda

No entanto eles enfrentaram uma repressão brutal. Já nos primeiros meses de 1947, antes da eleição, a máfia assassinou Nunzio Sansone (fundador e secretário da câmara do trabalho em Villabate), e Leonardo Savia – como Sansone, um comunista na linha de frente na luta pela reforma agrária. Os mafiosos também mataram os ativistas Accursio Miraglia e Pietro Macchiarella.

Depois que os sicilianos deram seu veredicto nas urnas, mostrando que não seriam intimidados, a máfia respondeu com um massacre em Portella della Ginestra,em 1º de maio de 1947. No comício para marcar o Dia Internacional dos Trabalhadores na pequena comuna siciliana, rajadas de metralhadora mataram onze pessoas e deixaram quase cem feridos.

Este foi um momento decisivo na história da Itália, pois mostrou as forças por trás do bloco governista que tomou forma nos anos do pós-guerra. Os democrata-cristãos governavam a Itália em conjunto com partidos conservadores, e em aliança entre a burguesia industrial do Norte e os proprietários do sul – um pacto do qual a máfia agora fazia parte.

Nesse ambiente, os comunistas e os socialistas eram o inimigo número um. E o ministro do Interior em 1947 era Mario Scelba, um anticomunista por excelência, que reprimiu de forma sangrenta o movimento operário tanto nos anos imediatamente posteriores ao pós-guerra como nos anos 60.

A visão anticomunista das autoridades italianas e sicilianas ressoou nas palavras do outro grande aliado do bloco governante: a Igreja Católica conservadora e anticomunista.

O então cardeal de Palermo, Ernesto Ruffini pressionou o governo democrata- cristão de Alcide de Gasperi a banir os comunistas, após garantir sua excomunhão pela própria Igreja.

A repressão continuou nos anos seguintes, colhendo novas vítimas entre s socialistas e comunistas de Placido Rizzotto e Salvatore Carnevale. Essa repressão estava também ligada ao destino do movimento camponês e à questão não resolvida do Sul – a luta de classes fora das fábricas. Nestes anos, a esquerda teve que entender essa relação entre o proletariado e a luta de classes, entre organização e alianças de classe, de modo a ter um caminho a seguir.

Um movimento político

Talvez isso tenha sido melhor expresso nos textos de Raniero Panzieri coletados em L’alternativa socialista: scritti scelti 1944-1956. Na época, ele era um líder do Partido Socialista Italiano; mais tarde foi um dos fundadores do trabalhismo. Enviado pelo seu partido para a Sicília em 1949, ele criticava o fracasso da esquerda em entender a situação:

Muitos camaradas... pensam que o movimento camponês e, em particular, as ocupações de terra são um movimento “espontâneo”, ou seja, um movimento puramente econômico. Acho que precisamos ser claros: politicamente, o movimento camponês é uma tentativa de revolução democrática. Mas, neste nível, está longe de ser um movimento espontâneo e econômico. Avança formas políticas e ideológicas e objetivos não menos que econômicos, por exemplo através da demanda por novas formas de governo local, justiça administrativa e tributária diferente, elevando o nível cultural, etc.

De fato, as demandas sociais do movimento eram o oposto das estruturas de poder cristãs e democráticas estabelecidas, baseadas na chantagem, na especulação e no privilégio. Buscando proteger esse poder, as forças reacionárias trabalharam para impedir que os comunistas e os socialistas fossem eleitos nas municipalidades e governos municipais. Eles foram repetidamente impedidos de apresentar candidaturas, pela intimidação e assassinato daqueles que teimosamente trabalharam para transformar a Sicília e suas várias localidades em uma terra de democracia.

Houve avanços excepcionais, como se vê no relato de Vera Pegna, uma jovem que se mudou para a Sicília e se juntou ao PCI em Palermo. Embora parecesse que as demandas urgentes da ação cotidiana eram a única necessidade real, ela estudou o Manifesto comunista, de Marx e Engels, e Que fazer?, de Lênin – era necessário que qualquer militante que se juntasse às fileiras do partido desenvolvesse uma fundamentação teórica sólida.

O centro de sua atividade era Caccamo, uma das cidades em que a máfia havia impedido os comunistas de participar das eleições locais. Ela desafiou o poder do chefe da máfia Panzesca, e quando os comunistas ficaram em pé na votação de 1962, elegeram quatro representantes. Mas este foi um sucesso relativo e raro. Logo depois Pegna deixou a ilha, abalada pelas ameaças da máfia e pela sensação de isolamento.

De fato, a máfia nunca havia deixado de atacar os sindicalistas de origem comunista e socialista. Se nas eleições regionais de 1955 os partidos que compunham o Bloco do Povo ficaram em listas separadas pela primeira vez desde antes do fascismo, e apresentaram candidatos, durante a campanha eles mantiveram uma frente comum contra a máfia. Afinal de contas, no início daquele ano, a máfia havia matado vários militantes, incluindo Salvatore Carnevale, um trabalhador nas minas de enxofre, que também era um dirigente do sindicato CGIL. As autoridades democrata-cristãs não compareceram ao seu funeral, mas os trabalhadores da mineração e da fazenda apareceram em massa.

Panzieri, que se tornou secretário regional do Partido Socialista, convocou uma manifestação em massa para homenagear o companheiro assassinado. Líderes políticos regionais e nacionais compareceram no vilarejo de Sciara: do então secretário regional da CGIL, Pio La Torre, ao secretário Pompeo Colajanni do PCI de Palermo e ao deputado socialista Sandro Pertini (mais tarde presidente da República), que encerraram a manifestação com um apelo à classe e especialmente aos jovens: “Da sua morte devemos dar um exemplo e uma inspiração. E o exemplo que ele deixou é de lealdade à classe trabalhadora e ao partido”.

Panzieri enfatizou a conexão íntima entre todas as lutas de classes contra o bloco burguês-mafioso:

Salvatore Carnevale nasceu para testemunhar, através da sua luta e da sua vida, o irresistível despertar das forças camponesas determinadas a afirmar a sua presença, os seus direitos históricos, os seus direitos humanos neste país contra o sórdido e desumano domínio dos proprietários de terras, dos barões, dos mafiosos e do crime.

A queda do movimento

Entre 1946 e 1956 cerca de 274.000 pessoas migraram da Sicília para o norte da Itália ou para o exterior; eram parte de uma população não muito superior a 4 milhões; foram seguidos por outros 352.000 na década seguinte.

A maioria tornou-se trabalhadores precários nas indústrias do Norte, onde a sua luta continua em todos os locais, dentro e fora da fábrica. No entanto, essa experiência pode enriquecer os debates contemporâneos sobre a luta de classes e a migração.

Naquelas décadas houve o crescimento econômico que seguiu a reconstrução do pós-guerra, com acelerado desenvolvimento industrial no sul e não apenas no norte. Ao lado disso, do desenvolvimento intensivo de capital, houve um grande crescimento na terceirização de empreendimentos pelo estado, desde a recuperação de terras para a agricultura até a expansão da infraestrutura da região.

Isso trouxe lucros consideráveis ​​tanto para os proprietários de terras quanto para a burguesia urbana da qual a própria máfia fazia parte. Um órgão público projetado para colocar bilhões e financiar o desenvolvimento do Sul, o “Cassa per il Mezzogiorno”, permitiu que a máfia acumulasse lucros e capital, tornando-se uma potência econômica que em breve também se deslocaria para as regiões do Norte com oportunidades ainda maiores. O que se seguiu foram décadas de guerras sangrentas entre clãs da máfia em que ninguém foi poupado – culminando com o assassinato do general carabinieri [polícia militar] Carlo Alberto dalla Chiesa em 1982 e dos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino em 1992. A máfia atacou os comunistas e também o sistema legal.

Exemplo disto foi Peppino Impastato, o militante assassinado em 1978, que era um jovem comunista ativo na esquerda dos anos 1960 e 1970. Ele apoiou as lutas dos trabalhadores rurais e desempregados. Mas acima de tudo era uma voz desafiadora de protesto contra a expropriação da terra dos camponeses para construir a terceira pista do aeroporto de Palermo. Essa era a principal base de poder do chefe da máfia Cinisi, Gaetano Badalamenti, cujo controle do aeroporto garantia um fluxo considerável de drogas. Peppino relatou de forma irreverente sobre esses acontecimentos nos protestos de rua e pelo rádio através da emissora que fundou, a Radio Aut.
 
Sob ordens de Badalamenti, Peppino foi morto em uma explosão. Para esconder a mão da máfia no assassinato, os investigadores e a imprensa alegaram que Peppino havia acidentalmente se matado enquanto organizava um ataque terrorista. Naqueles anos, era uma prática comum jogar a culpa por bombas e massacres sobre o inimigo político interno, os comunistas. Mas o assassinato foi ordenado pelos poderes locais. Somente na década de 1990 o caso Impastato finalmente se abriu novamente, com as acusações feitas contra Badalamenti e seu braço direito Palazzotto, presos pelo assassinato em 2002.

Em 1982, alguns meses antes do assassinato do chefe de polícia Dalla Chiesa, outra figura importante na luta contra a máfia também foi assassinada: o parlamentar comunista Pio La Torre, que havia sido líder da CGIL na Sicília, na década de 1950 e um militante incansável na luta pela terra. La Torre tinha perspicazmente detectado linhas de falha na máfia como um sistema organizado de poder e acumulação de capital.

Foi por causa de sua proposta – que mais tarde se tornou lei – que a máfia foi reconhecida como uma organização criminosa e portanto punida não apenas com a prisão de seus membros, mas pelo confisco de seus bens – imóveis, empresas e terras agrícolas. Para o comunista, atacar o coração deste negócio – parte do capitalismo – exigia um ataque ao seu poder de acumular e seu controle e propriedade do capital. Mais de três décadas se passaram desde que a lei foi introduzida, e a máfia ainda não está morta. Provou-se capaz de se transformar e entrar no labirinto interno do capitalismo italiano, com base no vasto poder econômico que acumulou. A Cosa Nostra não usa mais armas quase tanto quanto antes. Mas permanece no controle.

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[0] Tradução: José Carlos Ruy.
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terça-feira, 21 de abril de 2020

Repensando o lúmpen: crime organizado e a economia política do capitalismo


 
por Gerald Horne
Le Drepeau Rouge

Em seu clássico 18 de brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx oferece uma vívida descrição do que chama de lúmpen-proletariado: “havia vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzaroni, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus, donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos” (1979, i49; ver Engels, 1975 e Winston, 1973,75).

Esta classe — ou estrato de classe — não deve ser confundida com os desempregados, ou com o proletariado em si mesmo; na realidade, este conjunto tende a atacar a classe trabalhadora. Eles são o detrito do capitalismo e, de alguma forma, formam um reflexo das práticas parasitárias e espoliativas da burguesia.

A análise de classe é um fundamento do método marxista, e volumes de suas obras se dedicaram a seus vários estratos, abrangendo da burguesia à pequena burguesia, à classe trabalhadora e o campesinato. O trabalho de Herbert Aptheker sobre a escravidão pode ser visto também neste contexto no que tange ao foco no antagonismo irreconciliável entre uma classe, a dos escravos, e a de outra, a dos senhores de escravos.

O lúmpen-proletariado, no entanto, não recebeu a devida atenção que merece na análise do capitalismo. O que é infeliz, na medida em que o lúmpen, ao longo do tempo veio a exercer um papel proeminentemente desconsiderado no avanço das sociedades espoliativas. De fato, ao examinar o destino da URSS, é aparente que o que transparece no decorrer da última década foi o declínio da organização e ideologia da classe trabalhadora, e a ascensão do lúmpen (Sterling, 1994; Handelman, 1995).

Nos EUA, o lúmpen historicamente teve um papel mais amplo. Assim como a Inglaterra despejou setores do lúmpen em sua colônia na Austrália, o mesmo foi feito na Geórgia e outras Colônias (Salgado, 1982; Hughes; Wood, 1984; Galenson, 1991; Asbury, 1928). Isto teve múltiplos propósitos: ofereceu uma válvula de segurança para a Inglaterra, permitindo à nação se livrar de elementos que pudessem ser disruptivos e que eram vistos como indesejáveis. No mais, o tipo de violência e subterfúgio necessário para subjugar populações indígenas, fossem na Austrália ou na América do Norte, era a especialidade particular de “charlatões, trapaceiros ou donos de bordéis” e semelhantes, atuando a serviço de poderosas elites.

O que precisa ser considerado com mais cautela é que ao longo do tempo não apenas o lúmpen, particularmente nos EUA, desenvolveu poderosos sindicatos ou famílias do crime organizado, mas alguns destes setores também, como a lagarta se transformando em borboleta, se tornaram parte da burguesia e vieram a influenciar a já degradada cultura burguesa. De fato, estudiosos e ativistas precisam se atentar mais ao papel que o crime organizado prestou na evolução vultosa da economia estadunidense (Johnson, 1995a; Browning e Gerassi, 1981). Analisar o imperialismo em si mesmo como uma forma de crime organizado nos dá algumas pistas, mas não diz o suficiente.

Nos EUA, o lúmpen veio a dominar setores inteiros da economia e alçaram particular influência em uma indústria que galga enormes lucros enquanto molda consciências — a indústria do entretenimento. As imagens vindas desta indústria cobriram o planeta e ajudaram a injetar a cultura do imperialismo estadunidense nos quatro cantos do mundo. Novamente, a assimilação desse desenvolvimento tem de ser considerada com mais cuidado, se quisermos entender e subverter o imperialismo por si próprio.

Os saqueadores de Quantrill, organização pró-escravidão alinhada com os Confederados durante a Guerra Civil Americana

De todos os crimes perpetrados pelo colonialismo e o imperialismo em África, um dos mais covardes foi o despejo de elementos do lúmpen em terras colonizadas. Em 1961, o Departamento de Assuntos Africanos na Gana de Kwame Nkrumah, citando o Sir Cornwall Lewis, tristemente refletiu sobre os custos sociais desta práticas:
a escória da Inglaterra foi despejada nas colônias, advogados pouco sucedidos, comerciantes falidos, debauchery arruinados, toda miudeza na forma de profissão era amontoada nas terras coloniais.
Citando o escritor Mabel Jackson, o documento continua,

Todo ano é enviado um carregamento de detritos humanos para Angola e Moçambique, vindos de Portugal. Mendigos amargurados por dificuldades, ladrões, assassinos, soldados insubordinados, marinheiros, e uma pitada de exilados políticos são atirados às colônias. Ela nos diz que às vezes estes homens são chamados de degradados — e são acompanhados por suas esposas que são meninas de orfanatos e reformatórios que se casam no momento do embarque na Europa. (Voice of Africa, 1961)

Estes elementos desclassificados aderiram rapidamente à filosofia dominante da supremacia branca, a medida em que este novo status racial de “branquitude” os resgataram de sua posição de classe decadente (ver por exemplo, Roediger, 1991, Ignatiev, 1995, Saxton 1991). Com o passar do tempo, estes ajudaram a introduzir e fortalecer a cultura lúmpen que atormenta a África independente até os dias de hoje.

Setores lúmpen também exerceram um papel central em outro fenômeno que parasitou a África ao longo dos anos: o dos mercenários. Claro, o estabelecimento de mercenários europeus não se restringiu à África. Por anos, a Suíça adquiriu notória reputação como fornecedores de forças mercenárias à vários regimes na Europa; estes regimentos eram compostos fortemente por lúmpen (McCormack 1993, 80; ver também Langley e Schoonover 1995). O uso promíscuo de mercenários foi um parente próximo do implantação de piratas, bucaneiros, e soldados aventureiros, cujas aventuras sanguinárias frequentemente eram a base da acumulação primitiva do próprio capital. Um estudioso observou que o conceito de “negação plausível”, que serviu ao imperialismo tão bem em episódios desde Watergate até o caso Irã-Contras, foi na verdade cunhado por líderes do início do século XVII como um estímulo ao mercenarismo e a pirataria: dessa forma, se estes bandidos obtivessem o saque necessário, tudo bem, e se não conseguissem ou fossem capturados, então a responsabilidade por suas atividades poderia ser negada (Thomson, 1994; Tilly, 1990).

Estes corsários foram um apêndice útil à política externa estadunidense, a medida em que esta jovem nação no século XIX almejava conquistar territórios ao longo do hemisfério e além, e contornar a proibição do tráfico de escravos (Brown, 1980; Smith, 1978; Krasner, 1978). Um bando digno de nota de ladrões, os Quantrill’s Raiders, criou uma geração notórios foras da lei como Jesse e Frank James, Cole Younger e uma geração de assassinos, provendo um vívido exemplo das conexões entre o lúmpen, o racismo e a guerra (Schultz, 1996).

Mesmo assim, o impacto dos que os portugueses chamavam de degradados foi mais dramático no continente no qual a Europa ocidental era especializada em degradar: a África. O despejo dessas forças em África continua a ressoar, a despeito da erosão do colonialismo europeu. Por exemplo, na África do Sul, as autoridades do apartheid se concentraram mais em combater dissidentes políticos do que o crime. Como resultado, a África do Sul independente enfrenta uma criminalidade impressionante, alimentada pelo que chamou um jornal local de “gangues financiadas pelo Estado que usaram o apadrinhamento governamental como forma de construir impérios de negócios criminosos”. Na província de Mpumalanga eles são chamados de “gangues dos empresários” e são conhecidos por trabalhar ao lado do chauvinista Partido da Liberdade Inkatha; uma gangue era “liderada por cinco poderosos empresários negros” (Weekly Mail and Guardian, 6-12 setembro de 1996). Estima-se que 278 sindicatos do crime organizado na África estão envolvidos no tráfico de drogas, desmanche de carros, e em delitos piores (Zimbabwe Herald, 15 de fevereiro de 1996). E existem empresas de mercenários, como a Executive Outcomes, que vende seus serviços à governos em troca de concessões na exploração de diamantes (Horne, 1995).

Claro, o lúmpen está longe de ser um fenômeno unicamente africano. No Japão, a influente Yakuza — gangsteres conhecidos por seus corpos tatuados e dedos amputados — são relativamente próximos de certa elite financeira. Foram pioneiros em administrar casas de filmes, shows de strippers, prostituição e apostas (Saga, 1991, 195). Na China, antes da vigência do Partido Comunista, as forças nacionalistas lideradas por Chiang Kai-shek colaboraram com mafiosos como Du Yuesheng da Green Gang; estes bandidos atuaram como gestores e gerentes de fábrica e ajudaram os nacionalistas a minar a força dos trabalhadores em 1927 (Wakeman, 1994; ver também Emsley e Knalfa, 1996).

Mesmo hoje, de acordo com a Far Eastern Economic Review (1 de maio de 1997), estima-se que há um número sustentado de 10% de oficiais eleitos no legislativo e na Assembleia Nacional de Taiwan que tem afiliações no crime organizado. O político associado à gangues mais conhecido de Taiwan, Luo Fu-tsu, “se identificou como líder espiritual de uma das maiores gangues de Taiwan, a Aliança do Caminho dos Céus”. Ele é também “membro legislativo do Comitê Judiciário”, que formula as leis básicas da província rebelde da China.

Averiguar a influência desta persuasiva cultura lúmpen na cultura política da China — incluindo a cultura do Partido Comunista — é uma tarefa de consideração valiosa. Em qualquer evento, estes mafiosos aparecem em tempos de insatisfação e guerra, quando canais normais de produção são corrompidos, como foi o caso, por exemplo, em Londres durante a Segunda Guerra Mundial (Murphy, 1993, 8).

Está claro que o lúmpen não tem sempre um impacto inteiramente danoso. O papel dos “bandidos sociais” é bem conhecido (Perez 1989; Schwartz 1989). Assim como se distingue o pequeno do grande produtor, e se distingue o trabalhador que ganha 1 milhão por ano e os que ganham menos de 10 mil, deve-se fazer as devidas distinções entre os vários tipos de lúmpen em seu impacto sociopolítico e potencial. Ainda assim, como destaca Alisse Waterson, o que deve ser cuidadosamente escrutinado é a noção de que gangsteres representam algum tipo de cultura de resistência ao capitalismo. Deve haver uma centelha de evidência imbuída nesta ideia, mas o que é frequentemente ignorado é o ponto de que gangsteres nos EUA mais notadamente estiveram altamente acomodados às normativas culturais e aos requisitos da produção social. Em última instância o enfrentamento [ao sistema] se limita ao gesto simbólico e frequentemente permanece no nível da aparência. Na realidade, a experiência de muitos anos do crime organizado nos EUA sugere que seus objetivos sejam congruentes com e ajudem a sustentar as ambições do próprio capitalismo. O anúncio da suposta resistência representada pelos criminosos encobre seu verdadeiro papel na reprodução social, subverte a verdadeira resistência e ajuda a suprimir alternativas — particularmente aquelas na variedade da classe trabalhadora (Waterson, 1994).

Herbert Hunke

Nos EUA, o crime organizado é relatado como tendo influência significante na indústria da construção, na indústria do setor de vendas, saneamento e nos nichos usuais das apostas, drogas, prostituição e similares. Gangsteres também tem influência em áreas onde sua presença não chama atenção. Por exemplo, muita atenção é dada à indústria pornográfica, particularmente no que tange a se esta é misógina e deve ser recriminada ou, como pensam alguns, não deve ser impedida porque é uma expressão legítima da liberdade de expressão (Kipnis, 1996; Hunt, 1991; Dworkin, 1989). O que é raramente mencionado — embora muito relevante — é que esta é uma de várias outras indústrias onde criminosos sustentam hegemonia; da mesma forma, pelo menos antes dos anos 60, o mesmo podia ser dito sobre as assim chamadas “bibliotecas adultas” e boates gays (Potter, 1986; Washington Post, 12 de abril de 1979).

O erro de romantizar o papel do crime organizado torna difícil analisar o fenômeno em sua complexidade por completo. Por exemplo, a indústria musical é um dos poucos ramos onde afro-americanos têm papel central. Aqui, estes se depararam com o papel generalizado dos mafiosos, alguns dos quais eram judeus ou ítalo-americanos. Por causa da incapacidade de examinar uma forma de exploração de classe particularmente vil, este antagonismo se expressou frequentemente em termos raciais ou étnico-religiosos.

Assim, estimou o lendário crítico musical e produtor John Hammond que “não menos que três a cada quatro clubes de jazz e cabarés (…) eram ou liderados, financiados, ou de alguma forma geridos por mafiosos judeus ou sicilianos” (Morris 1980, 4). Morris Levy, que foi dono da famosa boate Birdland, “nunca escondeu suas conexões com a máfia nova-iorquina (…) muitos especularam que foi a máfia quem colocou Levy a cargo dos negócios e de que ele é sustentado pelos criminosos até hoje” (Picardie e Wade, 1990, 53,57). A exploração grosseira de músicos — particularmente músicos afro-americanos — é generalizada. Infelizmente, quando a objeção era feita às pessoas ligadas a Levy, era dada mais atenção ao plano de fundo étnico-religioso do que o de classe.

Infelizmente, a cultura popular estadunidense — e não apenas o “gangsta rap”— é insuflado pela influência de elementos do lúmpen, uma das razões pelas quais tem sido mal falada pelo mundo. Este não tem sido um fato apenas na música e, conforme será apresentado brevemente, também é no cinema e na literatura. Herbert Huncke, descrito pelo New York Times (9 de agosto de 1996) como prostituto, “malandro de rua, ladrão e dependente químico”, era conhecido como o homem que inspirou uma galáxia de escritores aclamados e que deu nome à “Geração Beat”; era um “funcionário da Máfia de Capone” e passou onze anos na prisão, incluindo maior parte da década de 1950. Participou de obras de escritores desde William Burroughs (1966) à Allan Ginsberg (1956), e também Jack Kerouac (1957). A geração beat teve papel importante na formação de uma cultura jovem estadunidense nos anos 60 e exerceu influência global.

Louis Lepke Buchalter, mafioso e líder da Murder Inc.


O que é mais revelador sobre o papel dos criminosos na economia política é sua função histórica de força disruptiva no interior do movimento sindical. Aqui, seu papel como cúmplice e parasita da burguesia expõe-se às claras. Em sua análise dos Sindicatos dos Trabalhadores em Peles e Couro do setor têxtil, Philip S. Foner apontou “uma vasta cadeia de conexões entre empregados antissindicais, lideranças sindicais socialistas de direita e a mais notória das quadrilhas de criminosos do submundo”, referindo-se a Louis Buchalter e Jacob Shapiro (1950,396). Sidney Lens registrou que “Louis e Jacob possuíam duzentos e cinquenta capangas a sua disposição para ajudá-los a conduzir o sindicato dos pintores de Nova Iorque”. (1949,68). Escutas congressuais durante a década de 1930 investigaram o que Leo Huberman chamou de “cadeia de espionagem laboral”, uma rede inteira que fazia o trabalho sujo de desestabilizar sindicatos em nome das elites corporativas (Huberman, 1937; Howard, 1924).

Em sua análise sobre o uso de mafiosos pela Ford Motor Company, Stephen Norwood observou que os EUA é “o único país industrial avançado onde corporações dispõem de força militar coercitiva”. Harry Bennett, assessor principal de Henry Ford, era próximo do submundo de Detroit, o que era central na “violência e espionagem” que agitou “uma campanha gerencial para desestabilizar sindicatos que estavam se organizando e interromper greves” (1996, 367, 391). De fato, ao compreender a fraqueza da Esquerda e a ascensão da Direita nos EUA, as forças progressistas prestaram atenção insuficiente à totalidade da oposição enfrentada pela classe trabalhadora.

O Sindicato dos Caminhoneiros, por décadas um dos maiores do mundo capitalista, ficou conhecido como a força sindical onde mafiosos exerceram grande influência. Funcionários do sindicato que se opusessem a seus mandos eram assassinados, e os negócios às vezes eram cúmplices neste esforço (Witwer 1994, 175, 233). Em Las Vegas, onde sindicatos geridos pela máfia eram prevalentes, financiadores como George Wingfield — patrono do Partido Republicano — empregava personagens desagradáveis para manter os sindicatos fora do Estado e manter inativos aqueles que não eram perseguidos (Raymond, 1993,79).

O crime organizado — o “grande lúmpen” — historicamente foi um dos principais aliados da burguesia estadunidense para manter sua hegemonia. Em troca, os mafiosos tiveram permissão para, em algumas instâncias, subir “respeitosamente” aos padrões da burguesia eles mesmos. De qualquer forma, mafiosos nesta nação gozaram de uma forma de enriquecimento da qual a burguesia em muitas nações nunca verá. Isto adiciona um nível de grosseria e falta de princípios ao já grosseiro domínio da burguesia.

Sam Gincana, mafioso americano que conspirou com a CIA para assassinar Fidel Castro

Um exame de memória na biografia dos maiores mafiosos dos EUA é certamente instrutivo em revelar seus vínculos próximos ao Estado e à burguesia, seu etnocentrismo, e suas conexões com a indústria do entretenimento. Arnold Rothstein por exemplo, foi creditado por subornar membros do Chicago White Sox para perderem intencionalmente em 1919 na World Series de baseball. Em sua cidade de origem, Nova York, havia uma “aliança entre a máquina política [Tammany] e o crime”; além disso “grande parte dos investimentos de Rothstein vinha diretamente de Wall Street”. De fato, Rothstein foi um dos primeiros investidores da “Loew’s Inc., empresa próxima da MGM”, a produtora de filmes. Rothstein atuou como “intermediário nas negociações onde [Horace] Stoneham, John McGraw e Judge McQuade compraram o time de baseball New York Giants” (Katcher, 1994, 73,165,192).

Meyer Lansky, grande nome da máfia por décadas, tinha negócios com a família Bronfman, que fundou a Seagram’s, e com Lewis Rosensteil da Schenley’s, que era próxima de J. Edgar Hoover, do FBI. Lansky discutiu constantemente política internacional e previu que um dos maiores impactos da revolução Cubana, seria a perda substancial de suas atividades e de outros mafiosos na ilha; esta previsão ajudou a formar uma aliança entre mafiosos e o governo estadunidense para derrubar o governo de Castro. Antes disso, Lansky contribuiu fortemente com a causa sionista e no final da vida, por causa de um antissemitismo perceptível por parte de seus sócios ítalo-americanos — e em uma tentativa transparente de escapar da lei- foi morar em Israel; seu esforço para evitar a deportação tinha apoio da ultra direita israelense. Lansky investiu pesado em Las Vegas e sentiu que “os WASPS não podiam aceitar que um bando de judeus e italianos malandros de rua pudessem ganhar dinheiro em Vegas e em outros lugares. Eles queriam nos colocar de fora e finalmente conseguiram” (Lacey, 1991, 55,80,255,291,337).

Sam Giancana, que compartilhou uma amante com John F. Kennedy, se gabava do crime organizado ter patrocinado estrelas, incluindo “os irmãos Marx, George Raft, Jimmy Durante, Marie McDonald, Clark Gable, Gary Cooper, Jean Harlow, Cary Grant e Wendy Barrie”. Ele disse que o então presidente Harry Truman era “seu garoto” e acrescentou que a máfia em “Chicago usou seu dinheiro e influência para testar e se aproximar de todos, de Ronald Reagan a Ed Sullivan”. O mafioso Diamond Joe Esposito “se gabava dos encontros rotineiros com Calvin Coolidge e de distribuir votos e favores a pedido do Presidente”. Gincana “fez negócios com o produtor Harry Cohn” de Hollywood e se provou útil a ele em seus conflitos com os sindicatos. De fato, a máfia queria uma “tomada dos sindicatos, de costa a costa (…) ameaçando membros dos sindicatos com perda de empregos, os criminosos poderiam organizar os esforços de maridos, esposas, filhos e filhas em apoio a praticamente qualquer golpe que a máfia podia sonhar, incluindo a eleição de um candidato” (Gincana, 1992, 34, 105, 107, 158, 409).

Mickey Cohen, maior mafioso de Los Angeles durante a década de 1940 e 1950, arrecadou grandes quantias para o Irgun em Israel. Ele não estava sozinho na exploração da consciência. Jack Dragna, outro grande mafioso de Los Angeles, era também liderança de uma organização por direitos civis ítalo-americana na cidade das estrelas. Como Lansky, Cohen era sensível ao antissemitismo real ou imaginado por parte de seus associados ítalo-americanos e outros. Cohen era também próximo a Harry Cohn, mas recusou seu pedido para assassinar Sammy Davis Jr. após a estrela afro-americana ter causado controvérsia por causa de seu relacionamento com a atriz Kim Novak. Como muitos outros mafiosos, Cohen era próximo de Frank Sinatra, que fora outrora alinhado com a Esquerda, mas se tornou mais tarde apoiador do Partido Republicano. Cohen também tinha suas conexões políticas, afirmando que “em um dado momento entre os anos 40 e 50 eu tinha uma comissão inteira da polícia de Los Angeles para mim. Muitos dos comissários não tinham escolha. Ou caminhavam junto ao programa, ou eram empurrados para longe da vista”. Ele direcionou dinheiro para campanhas políticas do Prefeito Fletcher Bowron e acrescentou, “eu tinha o número privado do seu escritório e de sua casa”. Ele também arrecadou fundos para as campanhas políticas de Richard M. Nixon. Ele era grato à imprensa controlada por William Randolph Hearst, que o retratava “como um Robin Hood” e ordenou que seus organismos de imprensa se referirem a ele como um “apostador”, não como um “bandido” (Cohen, 1975, 43,83,91,95,106,232; ver também Reid, 1973, 110, 171).

Abner “Longy” Zillman, criminoso de alta patente em New Jersey, também sentiu que “a maioria dos mafiosos italianos de Nova York eram antissemitas”; ele era também próximo a Harry Cohn da Columbia Pictures e dos Irmãos Schenk da MGM, sem mencionar Dore Schary, um “amigo próximo” e executivo do cinema. Ele também teve grande interesse nos sindicatos embora “esta estima (…) vinha da necessidade de encontrar emprego para seu exército de parentes”. Como Cohen e Lansky, ele tinha amplos interesses, incluindo siderúrgicas, no Kinney Parking Systems (comprado pela Time-Warner tempos depois), jukeboxes, hotéis, boates, etc. (Stuart, 1985, 50,188,88-89,97).

Uma análise sobre a vida dos mafiosos levanta questões intrigantes que valem boas investigações, mesmo que não se tome como verdade todos os aspectos de suas histórias. Se se examina a “limpeza étnica” nos bálcãs, por exemplo, é aparente que figuras do crime organizado como Arkan, que eram ultranacionalistas, que basicamente pilharam e saquearam outras nacionalidades e entregaram seus espólios aos “Blood Brothers” que se juntaram a eles; a atividade lúmpen faz uso da etnicidade para seu próprio interesse (Rieff, 1995; CNN, 1997). Famílias do crime organizado operam em um princípio semelhante, a medida em que penderam ao etnocentrismo e espalharam suas atividades entre membros da própria família. Isto levanta a questão do alcance do nacionalismo em sua ressurgência atual e qual seriam seus elementos lúmpen nele envolvidos. Conforme apontado, a construção da “identidade branca” na África colonizada se baseou predominantemente em uma deficiência compartilhada de melanina no compartilhamento dos saque tomado dos africanos.

E existe a visão distinta dos mafiosos sobre o “sexo”. O estupro homossexual a marca preferida de punição escolhida pelos gangsteres e, infelizmente, se tornou parte da cultura em alguns presídios onde são hegemônicos. Como sua contraparte heterossexual, o estupro homossexual é mais um crime de violência e subordinação do que um ato sexual. Assim, uma das táticas preferidas de punição de Gincana era molestar seus oponentes com bastões de poker”; Gincana ameaçou uma vez violar um oponente com uma arma em seu reto e puxar o gatilho. Quando William Jackson foi assassinado pela máfia, foi “instalado um dispositivo elétrico em seu reto” (Gincana, 1992, 100, 148, 397).

A máfia de Cuba antes da revolução era especialista em apresentações de sexo, estrelando relações sexuais lésbicas ao vivo (Ragano e Raab, 1994, 46). Cohen se gabava por ser dono de “locais gays”, embora acrescentasse em seguida, “eu nunca tive de ir a nenhum deles” (1975,223). É sabido que os piratas, precursores do crime organizado, por vezes tendiam a ter visões semelhantes a respeito da sexualidade (Burg 1982). O que precisa ser questionado mais sistematicamente é a influência do lúmpen — para além da prostituição masculina ou feminina — na cultura sexual dos EUA, particularmente as ligações entre sexo e violência (Chauncy, 1994, Faderman, 1991, Duberman, 1991).

Tais questionamentos são necessários, pois é aparente que as forças progressivas subestimaram a influência perversa do crime organizado na cultura estadunidense, a despeito de seu protagonismo evidente em conspirações de assassinato aqui e fora do país. É uma pena, pois a medida em que os EUA coloca seus tentáculos de influência na Rússia, nos Bálcãs e em outras partes do globo, tem havido um aumento inevitável e deliberado do crime organizado. A influência da máfia tem sido ocultada- sua proeminência nas manchetes e no cinema ofusca nossa sensibilidade a seu impacto. O jornalista investigativo Jeff Gerth do New York Times não está longe das pistas quando sugere que:

O crime organizado se entranhou em todos os níveis da estrutura social, a condução de Donald Cressey, consultor da Comissão Presidencial sobre Violência conclui: “A penetração nos negócios e no governo por parte do crime organizado é tão completa que não é mais possível diferencial criminosos do submundo de empresários do mundo superficial ou funcionários do governo. (1976, 132).

Estas conexões estiveram particularmente evidentes na Califórnia e mais notavelmente nas carreiras de dois dos filhos prediletos do Estado, Richard Nixon e Ronald Reagan. Califórnia, a “fronteira final”, no século passado esteve envolta em um evento que chamou atenção pelas táticas sedentas de sangue das quais o lúmpen se especializou — a expropriação de nativos americanos. Aqui na fronteira, como detalhou Mickey Cohen, mafiosos se uniram abertamente com autoridades eleitas e figuras de negócios respeitáveis. Para citar uma destas instâncias: Guy McAfee, encarregado do vice esquadrão da Polícia de Los Angeles nos anos de 1930, fez uma carreira em operações de apostas e casinos junto a mafiosos; ele ajudou a construir o Golden Nugget em Las Vegas, por exemplo (Johnson, 1975b, 55).

O que é surpreendente é que poucas destas relações foram feitas em sigilo. Michael Denning notou que “as revistas de tabloides eram cheias de histórias de criminosos; no início dos anos 30 havia publicações inteiras dedicadas à “contos de gangsteres”, “contos de mafiosos” e histórias de detetives (1997,254). Surpreendentemente, a narrativa que focou na expropriação da terra dos nativos americanos — o gênero do faroeste (western) — foi suplantada em Hollywood pelo cinema mafioso, que simplesmente atualizou a história da pilhagem e da política (Dargis,1996).

Os que interpretavam bandidos no cinema, como George Raft, eram conhecidos de criminosos do mundo real como Bugsy Siegel e Owney Madden. Howard Hughes, o industrial, era sócio de Siegel no Flamingo of Las Vegas. O diretor Howard Hawks era amigo próximo de Al Capone. O filme Scarface incluía cenas da vida criminosa, como Raft e Paul Muni levando flores a um rival no hospital e então tirando uma arma das flores e atirando no oponente (Munn 1993, 32, 89, 204). De fato, Meyer Lansky sugere, criminosos do mundo real aprenderam das maneiras de Raft de se vestir e seus maneirismos vieram a definir a atuação das máfias (Lacey, 1991, 148).

Los Angeles e sua principal indústria, a de Hollywood, se tornou uma fonte vultosa de lucros para mafiosos e por sua vez, um campo de recrutamento e verniz da imagem que tinham as máfias. F. Scott Fitzgerald sugeriu esta ligação em seu romance sobre Hollywood, The Last Tycoon (1969). Esta ligação se aprofundou durante a Depressão de 1930 quando, de acordo com análises, os estúdios estavam zerados de caixa e mafiosos como Longy Zwillman, que tinha relações com executivos de Hollywood, injetaram capital neste ramo. Este analista, Hank Messick, acrescentou posteriormente que como resultado desta aliança e “sob pressão dos mafiosos, a arte vinha sendo abandonada em detrimento de produções destinadas ao apelo do senso comum da sociedade” (1973, IX, 51-52).

Ainda, a importância maior desta aliança não foi apenas relevante para o cinema. Não, esta aliança sustentou mafiosos na ampliação de suas influências entre sindicatos, particularmente sindicatos em Hollywood- Caminhoneiros, pintores e afins — e aumentou sua influência na sociedade. Novamente, esta relação não era segredo. Antes disso, Orson Welles previu as implicações mais profundas desta relação quando observou que:

Um grupo de industriais financiam um grupo de mafiosos para desmobilizar o sindicalismo, averiguar a ameaça do socialismo, a ameaça do socialismo ou a possibilidade da Democracia (…) Quando os mafiosos foram bem sucedidos no que foram pagos para fazer, eles se voltam aos homens que os pagaram (…) Os mestres das marionetes se deparam com suas criações tomando vida própria. (Denning, 1997, 375).

Concordando ou não com a análise de Messick ou Welles, o ponto é que havia uma relação aberta e evidente entre os mafiosos e uma das mais lucrativas indústrias do país.

Assim, o Washington Times-Herald reclamou em 26 de Setembro de 1947 de que a “maioria dos gangsteres da Califórnia (…) ou tinham entrada social entre os novos-ricos ou eles mesmos subiram de nível como Astors e Vanderbilts de seu tempo”. Não era um mero acidente este comentário ter sido feito durante um ano quando a ressurgência de greves no pós-guerra representava uma ameaça direta e perceptível à hegemonia da burguesia, que via o braço armado das máfias como instrumento para desmontar esta insurgência. Ao mesmo tempo a infame Associação dos Comerciantes e Fabricantes de Los Angeles formou um Comitê Cidadão de Lei e Ordem para amparar o Departamento de Polícia de Los Angeles na supressão de grevistas (Labor Herald, 15 de fevereiro de 1946).

A própria Hollywood foi confrontada por grevistas militantes no levante contra a desmobilização promovida pela liderança sindical tomada às multidões pela Aliança Internacional de Empregados do Teatro (IATSE) e o surgimento de uma Conferência militante de sindicatos de estúdios liderados pela esquerda.

A história começa em 1930 quando os estúdios se tornaram dependentes do dinheiro da Máfia. Neste contexto, Al Capone se encarregou de instalar dois de seus comparsas, Willie Bioff e George Browne, como lideranças de um sindicato estratégico do cinema, o IATSE. Os dois rapidamente se tornaram confortáveis com os atrativos do sul da Califórnia. Biof, um bandido convicto que bebia cem garrafas de cerveja em um único encontro, veio a se acionista dos estúdios da Fox e amigo de Harry Warner. Era dono de oitenta acres exuberantes no Vale de São Fernando “pelas propriedades de Tyrone Power e Annabella, Clark Gable e Carole Lombard”; suas posses incluíam “palmeiras de 600 dólares (…) as maiores e mais antigas da Califórnia” (Muir 1940, II; Chicago Daily News, 19 de julho de 1935; Chicago Tribune, 12 de Junho de 1935).

Com a Segunda Guerra Mundial, no entanto, o entusiasmo pelos mafiosos, muitos dos quais eram simpáticos a Mussolini, começou a minar. Os estúdios confessadamente estiveram pagando Bioff e Browne lindamente para manter apaziguados os sindicatos; no entanto, a acusação de um dos líderes do sindicato afirmou que esta medida não era suborno, senão extorsão. O tenente chefe de Capone, Frank Nitti, cometeu suicídio após ter sido indiciado — pelo menos ele foi encontrado com uma bala no crânio (New York Times, 20 de março de 1943; 5 de novembro de 1943; 28 de outubro de 1941).

Bioff e Browne acabaram se voltando contra seus parceiros da máfia, testemunhando contra eles. Dentre os condenados no processo estavam Johnny Roselli, operador central no Sul da Califórnia. Born Filippo Sacco em Esteria, na Itália, em 1905, chegou aos EUA e em 1911 rapidamente se envolveu com a atividade criminosa. Erigiu uma posição de autoridade dentre os mafiosos, se tornou uma “ponte da máfia” com o Prefeito Frank Shaw de Los Angeles e era um “executor de trabalhos” da indústria cinematográfica. Como dizem seus biógrafos:

O sucesso enorme e repentino dos filmes espalharam uma orgia de vícios que ameaçaram estraçalhar a indústria. Uso de drogas era generalizado, incluindo cocaína, heroína e álcool ilegal. Favores sexuais eram requeridos por diretores de cinema e se tornaram recorrentes. O Keystone Studios de Mack Sennett precisavam ser barrados e interditados.

As apostas eram rifadas e controladas pela Máfia, com executivos dos estúdios apostando até 15 mil dólares em uma única noite. Roselli foi pivô do sucesso de Harry Cohn e do Columbia Studios; eles moravam no mesmo apartamento e trocavam presentes. O “amigo mais próximo” da MGM Louis B. Mayer era o parceiro de máfia de Roselli, Frank Orsatti (Rappley e Becker, 1991, 75, 54,60,62).

Mas todas as suas altas conexões não evitaram a condenação de Roselli e sua sentença em 1944. Em 1945, a Conferência dos Sindicatos de Estúdios (CSU), liderou uma amarga greve de oito meses. Quando o estúdio retaliou cercando os grevistas em 1946, as linhas dos piquetes foram permeadas de cenas de violência. Em 1947 Roselli foi surpreendentemente solto da prisão, com alguns especulando que seus amigos do estúdio demandam sua ajuda para esmagar a CSU de uma vez por todas. Sua liberdade condicional causou um “escândalo nacional”; seu advogado, Paul Dillon, trabalhou como agente da campanha para o senado de Harry S. Truman, e estas conexões eram vistas como importantes para sua libertação prematura. (Johnson, 1950, 30; Los Angeles Times, 5 de julho de 1987).

O CSU foi esmagado, e Roseli reingressou na indústria cinematográfica, desta vez como produtor. Dentre seus trabalhos estavam T-Men, Canon City, e He Walked by Night. Estes filmes eram “populares em público e crítica, e se tornou uma grande influência em programas de rádio e TV como Dragnet”. Ele também se envolveu em negócios que lidavam com o setor militar da Guatemala no início dos anos de 1950, participando da derrubada de Jacobo Arbenz em 1954, e estreitou laços com os caminhoneiros, com Joseph Kennedy e com os cassinos de Las Vegas. Foi recrutado pela CIA para assassinar Fidel Castro. No meio dos anos de 1970, seu tronco foi encontrado em um tambor de óleo flutuando na Baía de Miami após ter sido chamado a ser testemunha em uma investigação sobre suas atividades mais nefastas. Bioff mudou de nome e se mudou para Phoenix, onde se tornou amigo do Senador Barry Goldwater; sua sorte acabou no meio da década de 1950 quando foi assassinado por um carro-bomba (Rappley 1991, 155, 202; Clarens 1980, 167; Los Angeles Times, 28 de julho de 1948; Los Angeles Examiner, 26 de agosto de 1948).

Neste ínterim, enquanto caminhavam para derrotar, a CSU proclamava que “os mafiosos estão chegando (…) os homens das comissões, reis dos caça-níqueis, donos de bordéis e personagens do submundo foram expulsos da cidade quando lembraram do Prefeito Frank Shaw” estão de volta; “os magnatas do cinema se aliaram com o submundo (…) como fizeram nos dias de Shaw” (CSU, ca. 1945/1946).

Ronald Reagan, o delator

A odisseia de Johnny Roselli não foi o único aspecto intrigante das consequências da destruição da CSU. Ronald Reagan, outrora líder da Screen Actors Guild, se aliou ao estúdio durante a paralisação dos trabalhadores; como resultado desenvolveu relações estreitas com líderes corporativos que se provariam essenciais em suas campanhas eleitorais.

Sidney Korshak, um advogado durante o julgamento de Roselli que trabalhou como Conselheiro de Capone, se tornaria, nas palavras de um agente do FBI, “o elo principal entre os grandes negócios e o crime organizado”. Lew Wasserman, antigo funcionário de Reagan, chamou Korshak de “um grande amigo pessoal”. Korshak era proprietário de Hoteis Hilton, do MGM Hotel, e tinha a Paramount e a General Dynamics como clientes; era amigo de J. Edgar Hoover. Wasserman tinha motivos para ser grato a Reagan, uma vez que reagan (enquanto liderança da Screen Actors Guild) permitiu Wasserman servir ao mesmo tempo como agente para os atores e seu empregador (Wasserman era chefe da MCAUniversal Studio). Isto contornou diretrizes antitrustes. Wasserman era também doador do Partido Democrata. Korshak era também próximo do produtor da saga Godfather, Robert Evans, ilustrando novamente o elo próximo entre representações de cinema e a realidade (New York Times, 22 de janeiro de 1996; Hollywood Reporter, 19 de agosto de 1994; Moldea 1986; Congresso dos EUA, 1951).

Goodfellas (1990)

A destruição da Conferência dos Sindicatos de Estúdios depois da Segunda Guerra Mundial foi um elemento essencial para cimentar a tendência da influência perversa do crime organizado nos sindicatos — em outras palavras, a ascensão da organização lúmpen e o declínio da organização da classe trabalhadora nos EUA. A despeito da mudança na liderança da AFL-CIO em outubro de 1995 e as subsequentes reformas nos sindicatos associados, incluindo o dos caminhoneiros, esta tendência permanece (New York Times, 24 de janeiro de 1992, 22 de junho de 1990, 9 de abril de 1989, 21 de fevereiro de 1984, 28 de abril de 1983, 12 de dezembro de 1980, 9 de fevereiro de 1980; Los Angeles Times, 9 de fevereiro de 1984; Business Week, 14 de fevereiro de 1983; Wall Street Journal, 5 de outubro de 1982; US News and World Report, 8 de setembro de 1980; National Law Journal, 29 de fevereiro de 1988). Por exemplo, a célula sindical local dos caminhoneiros 817 em Nova York, que representa muitos dos trabalhadores do teatro, é fortemente influenciada por uma gangue conhecida como Westies (English, 1990, 155).

Os filmes e a televisão, com sua glamourização em Goodfellas e em The Last Don, também em The Krays, “Telefon Don” e “Sammy the Bull”, continuam a prestar um papel substancial em higienizar seus parceiros, os mafiosos. Esta tendência deixa aflitos os jornais também; New York Times recentemente exaltou os corsários como verdadeiros democratas — claro, estes saquearam tesouros da África e sequestravam africanos para escravizá-los, mas, afinal de contas, compartilhavam o saque dentre eles (11 de março de 1997).

Retratar imagens glamourosas de bandidos portando armas não tem sido apenas instrumental em prover legitimidade a estes em território nacional, também serviu para espalhar a cultura organizativa do lúmpen proletariado para além das fronteiras, abrindo caminho para o imperialismo estadunidense ao minar a cultura opositiva da classe trabalhadora nos territórios nacionais. Bandidos jamaicanos, por exemplo, “glorificavam os faroestes hollywodianos”; em Kingston havia uma “tradição consagrada pelo tempo dos pistoleiros de hollywood”. Havia uma “simbiose secreta” entre estes pistoleiros caribenhos e “mercenários e políticos”; isto funcionou em detrimento da oposição feita pela classe trabalhadora liderada nos anos de 1980 pelo líder socialdemocrata Michael Manley (Gunst, 1995, XIV, 9, 74, 81).

Como o exemplo da Jamaica sugere, não fugiu à atenção da população negra de que outros acumularam quantias enormes de riqueza e melhoraram sua posição enquanto grupo dentro do capitalismo ao trilhar o caminho do lúmpen. Os negros nos EUA, mais notadamente talvez no sul de Los Angeles- não se cegaram ao desenvolvimento vizinho em Hollywood. Isto levou à criação do “gangsta rap” e magnatas da música com planos tão audaciosos quanto os lúmpens dos anos 30; ainda que de alguma forma, tipicamente estadunidense, o discurso no final das contas evitou que fizessem esta óbvia conexão.

No início da década de 1970, afro-americanos organizaram um Fairplay Committee — composto por um grupo de pessoas para melhorar seu status na indústria da música. Eles estavam tentando formar uma “família negra que se oporia às famílias” que controlavam estes negócios. Em resposta, o empresário da música Morris Levy contratou um afro-americano, Nat McCalla “um dos primeiros negros a ser admitidos nas fileiras da máfia italiana”. Mas esta iniciativa não acalmou as tensões raciais; um mafioso estava irado com a ascensão da Stax Records, gerida por negros: “Nós simplesmente tomamos sua empresa de publicidade e iremos tomar a gravadora, colocar todos estes pretos pra fora do ramo, e colocar seu líder preto na cadeia”. Todos estes sonhos racistas não se realizaram, no entanto, em 1980 McCalla “levou um tiro na nuca” em Fort Lauderdale e esta tentativa dos negros de seguir o caminho lúmpen na indústria musical foi interrompida (Picardie, 1990, 173,177,192-93;253).

Anos atrás, Max Weber definiu o Estado como a agência na qual se sustenta o monopólio da violência legitimada sobre a área sob seu domínio. No entanto, mesmo nos tempos de Weber, isto era raramente verdadeiro no sentido absoluto, na medida em que vários elementos lúmpen — de mercenários e piratas a mafiosos — regularmente usavam violência, particularmente contra inimigos da elite, como os sindicatos. A habilidade deste lúmpen em implantar violência é somente outro exemplo de um objetivo tradicional das elites da direita — diminuir o papel do estado e aumentar o controle de agentes não-estatais. Pode-se pensar que criar duas, três ou quantas Somálias, onde o estado foi eviscerado e a habilidade de sobreviver foi frequentemente dependente da proteção que se recebia das famílias — crime organizado ou algo parecido — é o objetivo final destas elites.

O The Economist, citando Weber em semelhante aforismo, notou a proliferação de forças policiais privadas nos tempos recentes:

Desde 1970 uma transformação esteve em curso. Naquele ano, ainda haviam mais forças de seguranças públicas do que privadas nos EUA. A proporção de agentes públicos para os privados era de 14:1. Agora, o número de agentes privados está três vezes maior do que os da segurança pública; na Califórnia,este número chega a ser quatro vezes maior. A General Motors sozinha possui uma força policial privada de 4200 mais do que todas estas, exceto por cinco cidades estadunidenses. (19 de abril de 1997).

Na Irlanda do Norte, esquadrões da morte ascenderam, “gangues que acertam suas vítimas com tacos de baseball para suprimir crimes em regiões Católicas ou Legalistas.” Estes esquadrões estiveram assumindo o papel das forças policiais (Johnson, 1992; McKenzie, 1994). Tais desenvolvimentos se fazem para ordenar a exploração por parte das facções do crime organizado, que preenchem melhor estas brechas quando o estado se retira (ver, e.g, Horne, 1995b). Estas iniciativas oferecem oportunidades únicas de carreira para aqueles que têm precedentes violentos; Timothy McVeigh, condenado após explodir uma repartição federal em Oklahoma em abril de 1995, era um agente privado de segurança (Zielinski, 1995, 50).

Enquanto isso, o assalto ao estado e o declínio da Esquerda, abriu raras e extraordinárias oportunidades para o lúmpen. Frequentemente associados com os negócios “legítimos”, gangues do crime organizado fizeram crescer o número de negócios relacionados ao tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro (Chossudovsy, 1996). É quase como se os EUA, que começaram enquanto nação como um enorme impulso do lúmpen deportado da Inglaterra, agora, duzentos anos depois, não se tornassem só a terra de oportunidade para os mafiosos, mas também um modelo a ser exportado de criação de “repúblicas criminosas”.

Em qualquer circunstância, ao nos deparar com o novo milênio, alguns pontos estão óbvios: certamente uma aceleração da ideologia da classe trabalhadora e sua organização é um dever, mas uma condição que precede este movimento é um melhor entendimento — e subversão de seu significado — da ideologia do lúmpen e sua organização, que se tornou bastião do imperialismo estadunidense.

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[0] Tradução: Bruno Santana, LavraPalavra.
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sexta-feira, 13 de março de 2020

O 31 de março de Jair Bolsonaro

 
por Mauro Iasi

 Ele se portava como um gênio não reconhecido,
que todo mundo tinha na conta de um simplório.

(Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte)

A verdadeira meta do presidente miliciano é um golpe clássico que lhe permita a centralização política necessária, sob a espada militar, sem os incômodos parceiros no Congresso e no STF. Ele expressou várias vezes tal intenção, em entrevistas, declarações, posturas. Portanto, o espanto todo agora manifesto pelos senhores parlamentares e juízes diante da convocação pelo Presidente de um ato pelo fechamento do Congresso e do STF, não passa de pura encenação, pura pantomina de indignação.

O que se esconde por trás da manobra diversionista é uma complexa relação de forças entre dois segmentos – a direita e a extrema direita – que medem forças como pugilistas no início de uma luta. Temos trabalhado com a hipótese que há um segmento das classes dominantes que pensou em utilizar Bolsonaro como alternativa para derrotar o petismo para implementar a agenda mais dura do capital em crise. Esse segmento acreditava que podia controlar o miliciano, deixando-o com suas proezas bizarras enquanto se ocupava do essencial: as reformas contra a classe trabalhadora.

O problema é que não se trata, como temos afirmado, de mera bizarrice. A profundidade da crise e as características de nossa formação histórico-social atuam de maneira a dar sustentação ao projeto bolsonarista. Em situação supostamente normal, o retumbante fracasso das medidas econômicas do ultraliberalismo de Guedes apontaria para a alternância como forma da ordem democrática manter-se como capa protetora da ordem do capital sobre nova forma – como Itamar substituído por FHC e este por Lula.

As próprias classes dominantes interromperam de forma casuística a chamada normalidade ao depor a presidente sob o pretexto das pedaladas fiscais. Como o fracasso de Temer apontava para a volta de Lula, logo apareceram mais casuísmos jurídicos para tirá-lo do páreo abrindo espaço para o protofascista vencer as eleições.

Tratava-se, portanto, de um mero coadjuvante em um plano maior, um auxiliar para distrair o público enquanto o mágico faria sua arte, um palhaço de rodeio. Entretanto, como diria Chico Buarque, “quem brincava de princesa acostumou com a fantasia”. O miliciano se crê um messias, um mito, um salvador, e diferente da centro-esquerda, dispõe de meios para resistir às tentativas de derrubá-lo.

Quais seriam esses recursos de que o miliciano dispõe? As aventuras da grande burguesia monopolista lograram fraturar o país e forjaram a unidade da extrema-direita fundada no irracionalismo e sua personificação no capitão. Tal fato lhe confere um apoio de parte das massas que ultrapassa a fidelidade momentânea do bom ou mal desempenho da economia, pois é precisamente esse nexo que se queria obliterar – não pode ser medido por pesquisas de aceitação do governo uma vez que se trata de pura ideologia em funcionamento: uma cruzada contra a esquerda e os inimigos da Pátria e da família realizada pela gente de bem contra o mal. Evidente que o fundamentalismo religioso opera aqui de maneira decisiva.

O pragmatismo da direita, que sempre funcionou tão bem (a ponto de chegar a ser copiado acriticamente pela centro-esquerda), agora se defronta com algo que ele desconhece e teme. Em situações normais, bastava um pretexto qualquer (que no caso não precisaria nem ser inventado, pois estes existem em profusão), uma campanha midiática para isolar a figura e um desfecho institucional que afastasse o miliciano deslocando o eixo do poder para o Parlamento com algum tipo de parlamentarismo de ocasião ou algo do tipo, por exemplo, com Mourão.

Se o capitão contasse apenas com o apoio de um segmento de massas, ele já teria caído. Neste ponto intervém outro fator: as armas. Além das relações com milícias (que só não são evidentes para as instituições estabelecidas e para o Ministro da Justiça), temos o apoio das corporações militares – como ficou evidenciado no motim do Ceará – e parte das Forças Armadas, evidenciado pela forte presença militar no governo. Este é um ponto obscuro, isto é, até que ponto o capitão teria como mover segmentos das forças armadas em sua defesa, mesmo que para enfrentar outra parte que resistiria. No entanto, neste momento, não se trata de ter ou não o apoio efetivamente; parecer ter é suficiente para o blefe.

Caso interrompêssemos a análise neste ponto teríamos praticamente um empate. Aqueles que querem retirar o miliciano teriam posições institucionais, aparelhos midiáticos, um segmento de massas e parte do aparato repressivo. O capitão, por sua vez, teria a seu favor (blefando ou não), parte das massas, aparatos policiais e parte das Forças Armadas. Se tivesse que apostar, acredito que nesse cenário ele já teria caído. Por isso, sustento que aqui entra um fator diferenciador: parece-me que ele ainda se sustenta e sobrevive porque as classes dominantes se encontram divididas.

Há uma fração das classes dominantes que, apesar de perceber o inconveniente da figura e seus riscos, acredita que ele é um mal menor. Afinal, o fundamental são as reformas e a retomada das taxas e lucro a patamares aceitáveis. Se o preço a pagar é a destruição do país e uma aventura fascista, esses senhores estão dispostos a pagá-lo – como já fizeram no passado, diga-se de passagem. Creio que aqui está a chave do enigma da conjuntura: o miliciano ainda não caiu porque as classes dominantes estão divididas quanto à necessidade de tirá-lo e as consequências que daí viriam. A Rede Globo não está sendo contraditória ao denunciar falcatruas e depois elogiar a política econômica, apenas expressa, com isso, a divisão interna de seus verdadeiros mandantes.

Não devemos menosprezar um fato. Não estamos falando de classes dominantes clássicas, que ponderam, pensam, têm seus intelectuais orgânicos, fazem cálculos e pesam riscos e oportunidades. A adesão da burguesia brasileira ao imperialismo e a aceitação de sua existência subordinada e dependente produziu um subproduto que tem um impacto não desprezível na conjuntura – a saber, aquilo que poderíamos chamar de lupenburguesia. Trata-se de uma fração da burguesia que lucra diretamente com a contravenção e a corrupção (quando não diretamente com o crime), desde pequenos esquemas até mamatas gigantescas. Ela abarca desde um parlamentar que viu seu patrimônio aumentado em 450% em dois anos e que se notabilizou por cortar um bloqueio às terras indígenas em Roraima, passando por parlamentares que, depois de derrubar a presidente eleita em nome da família e dos bons costumes, são presos por pedofilia, corrupção, assassinato e outros delitos, até chegar em grandes empresários e suas relações perniciosas com o Estado, envolvendo grandes obras, contratos vultuosos, verbas públicas, licitações e outros expedientes pelos quais o fundo público e rapinado por interesses privados.

Em um certo momento da Revolução Cubana, Che avaliou que uma das dificuldades no enfrentamento das forças de Batista era que, diferente de exércitos tradicionais, eles teriam que enfrentar uma corporação que havia transformado desde o soldado até os comandantes em sócios das contravenções, do tráfico, dos cassinos, etc. Em grau e forma diversa presenciamos esse fenômeno nas forças policiais e seu desdobramento nas milícias. Não se trata de desvio de conduta de um ou outro policial, mas de um sistema que envolve desde o comando até a base da corporação, incluindo empresários, políticos, juízes e governantes. Essa fração está mais preocupada em proteger seus negócios. Não liga para os crimes de Bolsonaro tampouco para as querelas parlamentares, mas teme que ao revelar os crimes de um acabem por expor os seus.

O golpe de 2016 foi perpetrado sob o pretexto de manter a estabilidade contra o desassossego que impedia as reformas, mas o regime parlamentar com o capitão à frente é tudo menos estável. A burguesia estava pronta para um grande acordo, “com Supremo, com tudo”, mas o capitão move peças heterodoxas contra as quais o parlamento pode pouco. Derrotado o petismo (perdão aos otimistas, mas o petismo caiu da mesa do jogo, pois sua única carta é uma eleição “limpa”, por isso permanece à espera de 2022), o miliciano abre suas baterias contra seus aliados: o STF e o Congresso. Mas por que? Ora, porque o genial plano econômico não vingou e a milagrosa retomada do crescimento não veio. E alguém terá que ser responsabilizado. O capitão é tosco mas não é burro (bem, talvez seja, mas certamente sabe jogar) e sabe que ele está escalado para esse papel – e que as consequências de não cumpri-lo não são apenas sair e voltar para a churrasqueira na bela casa em um condomínio mal frequentado na barra, mas ir parar na cadeia junto com seus filhos. Por isso, ele vai reagir – ou, pior, vai tomar a iniciativa –, e tem recursos para tanto.

O inimigo é o mesmo: o socialismo! Marx, em seu magistral O 18 de brumário de Luís Bonaparte, comenta um momento em que Luís Napoleão se choca com os interesses parlamentares, passando a acusá-los de socialistas. Nas palavras dele: “Declara-se como socialista o liberalismo burguês, o Iluminismo burguês e até a reforma financeira burguesa” (p. 80). Entre nós, sob o signo da farsa, já tem gente falando que a Regina Duarte é um plano da esquerda para sabotar o governo Bolsonaro, a rede Globo é esquerdista, o STF é uma instituição à serviço do comunismo internacional, comandado desde a Venezuela.

O paiol está cheio de explosivos, mas falta a faísca que fará tudo explodir. Para os dois lados, o que falta é mobilizar o pretexto. No caso do parlamento e da fração que quer a saída da peça incômoda para seguir o essencial do plano, pretexto já existe (o presidente já cometeu, segundo analistas insuspeitos, pelo menos dez crimes de responsabilidade), mas se depararam com uma correlação de forças que abre a possibilidade de confronto, e eles são, fundamentalmente, covardes. O miliciano, ao convocar os atos, colocou as instituições nas cordas, uma vez que estas se viram obrigadas a responder ou aceitar seu destino de viver sob a ameaça de um irresponsável. Agora, por conta da pandemia do coronavírus, os atos foram desmarcados. Fica a impressão de que o vírus acabou sendo uma saída honrosa para o golpista e o Congresso. No entanto, parece só adiar o problema.

Segue o plano de interromper o processo com um ato de força, mas, para tanto, o capitão miliciano precisa uma situação que justifique o ato de força para fechar o Congresso e estabelecer sua ditadura. E, evidentemente, esta não pode ser as emendas parlamentares que engessam o orçamento ou professores universitários pelados, fumando maconha e dando aula de marxismo nos cursos de engenharia.

A viagem do miliciano aos EUA nos dá a pista. O que Bolsonaro precisa é de uma guerra, ou ao menos algo que pareça uma guerra. Os venezuelanos já sabem, Trump já sabe… Os brasileiros ainda não, mas saberão em breve.
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terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Como a CIA se envolveu com mafiosos para sabotar a Revolução Cubana


 
por Jack Colhoun
Jacobin Brasil
 
Agosto de 1960, Miami: uma barganha reveladora foi feita entre o político cubano exilado Manuel Antonio Varona e o líder do crime organizado Meyer Lansky. Lansky, o empresário das apostas da máfia em Cuba desde os anos 30, possuía o Hotel Riviera de Havana e a boate Montmartre e seus fabulosos cassinos.

Em Cuba, Lansky era conhecido como o “homenzinho” por sua estatura de um metro e oitenta e cinco, mas seus olhos frios e duros e comportamento intenso eram expressões físicas de um homem acostumado a exercer poder e conseguir o que queria. Seu sonho de transformar Havana em um paraíso tropical para turistas norte-americanos se tornou realidade. Havana tinha a reputação de ter melhor jogo e vida noturna mais selvagem do Hemisfério Ocidental nos anos 50. E como Lansky compartilhou os lucros da máfia com o general Fulgencio Batista e com altos oficiais do exército e da polícia cubana, esse paraíso dos jogos de azar se tornou a pedra angular de um Estado de gângsters, com todos os direitos reservados.

Mas quando os revolucionários barbudos expulsaram Batista do poder no Ano Novo de 1959, Fidel Castro condenou a colônia mafiosa de jogos por corromper os valores cubanos e a fechou. A Revolução Cubana derrubou a Era do gangsterismo em Cuba.

Na reunião em Miami, Lansky ofereceu a Varona milhões de dólares para formar um governo cubano no exílio para substituir o regime revolucionário de Castro. Lansky também prometeu organizar uma campanha de relações públicas nos EUA para polir a imagem política de Varona. Em troca, Varona, um homem corpulento com pesados óculos de armação escura, endossaria o objetivo da máfia: reabrir seus cassinos, hotéis e boates em uma Cuba pós-Castro.

Alguns meses antes da reunião em Miami, Varona, um dos principais membros do reformista Partido Revolucionario Cubano-Autêntico, havia rompido publicamente com Castro. Desde então, ele vinha viajando entre cidades nos EUA e Caribe para conversar com outros cubanos anti-Castro em uma tentativa de liderar a contra-revolução no país.

Varona havia sido primeiro ministro e presidente do Senado sob o presidente do Autêntico, Carlos Prío Socarrás. Prío e seu irmão Paco estavam intimamente ligados a Lansky e Charles “Lucky” Luciano. Em março de 1952, Batista tomou o poder em um golpe de Estado e Prío fugiu, deixando Varona para assumir a liderança do Partido Autêntico. Mas a reputação dos Autênticos como um partido reformista havia sido muito manchada pelos laços de seus líderes com a máfia. O próprio Varona havia sido associado a contrabando e sequestro e mantinha pistoleiros em sua folha de pagamento.

Um memorando da CIA informava: “[Ele] manteve grupos de ação a seu serviço para forçar decisões políticas, tanto na província de [Camaguey] quanto na província de Las Villas, onde ele já foi líder provincial do Partido Autêntico”. Varona tinha bons motivos para aceitar a oferta de Lansky. E assim, em um notável ato de surrealismo político, a máfia norte-americana, notória por assassinatos e corrupção de políticos, limpou a imagem de seus parceiros cubanos no crime.

Eles contrataram a empresa de relações públicas Edward K. Moss em Washington, DC. Documentos nos arquivos da CIA revelam que ele tinha “conexões de longa data” com o crime organizado nos Estados Unidos. Um relatório destacava: “A operação de Moss parece ser contratos governamentais para o submundo e provavelmente coloca dinheiro da máfia em atividades legítimas”. Outros registros da CIA informaram que Moss trabalhou para a Administração de Produção de Defesa do Departamento de Comércio no início dos anos 50.

Julia Cellini, que dirigia os serviços de secretariado de Moss, veio de uma família de jogadores mafiosos. Seus irmãos Edward e Goffredo eram gerentes das salas de jogos do Casino Internacional e da boate Tropicana nos anos 50. Outro irmão, Dino, um associado próximo de Lansky, Santo Trafficante Jr. e Charles “The Blade” Tourine, era gerente do cassino na boate Sans Souci. Sua conexão com Moss remonta a 1957. Os irmãos Cellini repassaram dinheiro da máfia – estimado entre US$ 2 e US$ 4 milhões – para Varona através da Edward K. Moss Agency, e Moss também solicitou contribuições de empresas norte-americanas para Varona. Moss estava conectado a outros exilados cubanos anti-Castro, além de Varona. Ele se reuniu com Manuel Artime, líder do Movimento de Recuperação Revolucionária (MRR) e discutiu a possibilidade de levantar fundos para ele.

Moss também tinha laços com a CIA. Quando o diretor do FBI J. Edgar Hoover relatou que “estão sendo feitos esforços desde os Estados Unidos para financiar atividades anti-Castro na esperança de garantir o jogo, a prostituição e os monopólios de drogas no caso de derrota de Castro”, em 31 de dezembro. Em 1960, um memorando do diretor de inteligência central (DCI) Allen W. Dulles mostrava que CIA já sabia que Varona havia se encontrado com os jogadores da máfia. Isso porque Moss havia contado à CIA sobre seu trabalho para Varona. Um telegrama da CIA de 25 de agosto de 1960 ao JMASH no México informou que Varona havia “solicitado fundos [de] jogadores de Las Vegas em uma recente visita aos Estados Unidos”.

De acordo com um memorando da CIA, “Moss comentou que ele estava em contato com a equipe do presidente eleito Kennedy para que eles fossem informados de suas atividades. Seu objetivo ao fazer isso é que ele ainda não sabia qual seria a política do novo governo para divulgar atividades estrangeiras em solo norte-americano”. O inspetor-geral da CIA, J. S. Earman, reconheceu que a agência tinha “interesse” em Moss, mas disse que a CIA não o usava nas operações de Cuba.

Mas as coisas ficaram ainda mais complicadas. Enquanto Varona negociava os termos de sua parceria com os jogadores da máfia, ele também estava fazendo um acordo com a CIA. O arquivo de segurança da CIA de Varona indica que ele era “de interesse secreto” para a agência em 1957. Um outro memorando da CIA de outubro de 1957 declarou: “O assunto [Varona] é relatado como muito próximo de um Carlos Prío Socarrás, ex-presidente de Cuba”. Varona frequentemente visitava Prío em sua residência em Miami no Vendome Hotel.

Varona recebeu aprovação operacional como informante da Divisão do Hemisfério Ocidental da CIA em 28 de agosto de 1959. A sede da CIA recomendou que “controles adequados” fossem usados para impedir que Varona “se tornasse um embaraço para esta agência”. Segundo informações nos arquivos da CIA, a agência convidou Varona “para os Estados Unidos para estabelecer um movimento anti-Castro” em março de 1960.

Em junho de 1960, a CIA fez de Varona o coordenador geral da Frente Revolucionário Democrática (FRD), o governo cubano no exílio patrocinado pela CIA. A CIA municiou financeiramente o FRD e os líderes de seus grupos. Varona recebeu um subsídio de US$ 900 por mês da CIA a partir de 1º de junho de 1960.

Varona também participaria de uma operação secreta com a CIA e os jogadores da Máfia para assassinar Fidel Castro. Assim, o círculo do gangsterismo foi elevado ao quadrado. Uma colaboração oculta foi revelada. Por que a CIA se envolveria bandidos? Como explicou o diretor de segurança da CIA, Sheffield Edwards, ao FBI: “Desde que o submundo controlava as atividades de jogo sob o governo Batista, presumia-se que esse elemento continuasse a ter fontes e contatos em Cuba que poderiam ser utilizados em conexão com os esforços clandestinos da CIA contra o governo de Castro.”

Em Washington, funcionários fora do circuito de inteligência em Cuba ficaram nervosos quando descobriram o quão profundamente a máfia e seus parceiros cubanos estavam envolvidos no gangsterismo e na guerra secreta dos EUA em Cuba. Contado por um “empresário de Washington” sobre o subsídio a Varona, o Assistente do Secretário de Defesa para Operações Especiais, Graves B. Erskine, ficou alarmado. O general aposentado do Corpo de Fuzileiros Navais alertou o governo de que os laços de Varona com os gângsteres podem ter conseqüências desastrosas para a FRD e os Estados Unidos.

Em um memorando de janeiro de 1961, Erskine escreveu: “O empresário de Washington estava bastante preocupado com o impacto e o valor potencial da propaganda dessa suposta conexão de Tony Verona e os supostos criminosos no caso de sua organização ser penetrada pela inteligência de Castro. Ele desfruta de muitos contatos em toda a América Latina e teme qualquer história de propaganda do regime de Castro sobre esse relacionamento entre Verona, empresários norte-americanos e as atividades de Edward K. Moss, o que teria um sério impacto no prestígio dos Estados Unidos em todo o continente.”

O diretor do FBI, J. Edgar Hoover, alertou o procurador-geral, Robert Kennedy, sobre o relatório de Erskine em um memorando de 23 de janeiro de 1961. Hoover escreveu: “Recebemos informações no sentido de que os mafiosos do jogo nos EUA se ofereceram para distribuir até dois milhões a fim de financiar as operações anti-Castro de Varona e a organização que ele representa [Rescate], aparentemente na esperança de entrar no térreo, caso Castro seja derrubado.”

O FBI estava preocupado com as implicações políticas na aliança dos EUA com Varona e a máfia. E se a Revolução Cubana fosse prejudicada e a máfia retornasse à ilha para recuperar sua colônia de jogos? A opinião pública dos EUA se voltaria contra a Casa Branca e sua agência de inteligência?

Um memorando do FBI em janeiro de 1961 afirmou que “uma reação pública crítica poderia acontecer após a reativação de operações de jogo em larga escala em Cuba pelos principais criminosos, caso Castro fosse derrubado”. Até o espião veterano William Harvey chamou a colaboração secreta da CIA com os bandidos de “granada de mão” esperando para explodir. Harvey, que dirigiu a operação de assassinato da CIA-máfia entre 1962 e 1963, alertou o vice-diretor da CIA, Richard Helms, de que havia uma “possibilidade muito real” de que a máfia usasse seu conhecimento interno para chantagear a própria CIA.

A barulhenta peripécia de Lansky e Varona em Miami foi um momento revelador. O gangsterismo havia migrado para o exílio nos EUA, juntamente com dezenas de milhares de cubanos anti-Castro até agosto de 1960. E deveria desempenhar um papel importante nas maquinações secretas da CIA e dos exilados cubanos para derrubar a revolução cubana nos próximos anos.

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[0] Tradução de Cauê Seigner Ameni. Extraído do livro Gangsterismo: The United States, Cuba, and the Mafia, 1933 to 1966, publicado pela OR Books.
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