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segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Metafísica idealista


por Henri Lefebvre

Esses metafísicos, portanto, põem o conhecimento como algo acabado (numa ideia misteriosa, num Deus) antes de ter começado. Põem o conhecimento antes daquilo de que é conhecimento; o espírito antes da natureza; o pensamento absoluto (divino) antes do pensamento humano e da experiência humana. Invertem a ordem real; põem o carro adiante dos bois e empreendem a análise do conhecimento de cabeça para baixo.

Considerando o conhecimento como algo acabado e previamente produzido, condenam-se necessariamente a tomar uma pequena parte do conhecimento, uma parcela da ciência atingida em seu tempo, e a transportá-la no absoluto. Foi assim que Leibniz, ao inventar o cálculo diferencial, atribuiu-o ao Deus metafísico que ele imaginava: “Dum deus calculat, fit mundus”.

Chamamos de “metafísica”, por definição, aquele pensamento que separa o que é ligado. Chamaremos de “idealistas”, por definição, as doutrinas que elevam ao absoluto uma parte do saber adquirido, fazendo tal parte uma ideia ou um pensamento misteriosos que, segundo eles, existem antes da natureza e do homem real.

Essas definições, em seguida, voltarão a aparecer sob novos aspectos. Mostraremos que elas são adequadas ao uso habitual dessas palavras e, mais ainda, que são fecundas, permitindo esclarecer numerosas questões filosóficas e suprimindo problemas “falsos” e mal colocados.

Disso resulta que todo idealismo é metafísica. (A recíproca não é verdadeira: muitas metafísicas são idealistas, mas existem outras doutrinas metafísicas não idealistas, ou seja, certos tipos de materialismo.)

Pode-se perguntar: “Como é que uma tal doutrina que separa do real e do saber uma parcela com o fim de hipertrofiá-la, chegando mesmo a nada mais ver além dessa parcela e levá-la ao absoluto, como é possível uma tal doutrina, que divide e estanca a atividade do conhecimento humano?”.

Em outras palavras, a metafísica exigia do conhecimento seus documentos de identidade, colocando a questão: “Como é possível o conhecimento? Como é que o sujeito encontra o objeto? Como são possíveis a ciência matemática e suas aplicações ao real objetivo, como a física, etc.?” Eram precisamente essas as questões colocadas pelo metafísico Kant. Nesse momento, em nome do conhecimento considerado como fato prático, histórico e social, perguntamos o inverso: “Como foi possível metafísica?”.

Nos tempos primitivos (e mesmo atualmente, entre aquelas populações que, por estagnação ou degenerescência, não saíram da situação de “primitivos”), reinam algumas convicções que, até hoje, deixam marcas entre nós. Sem conhecerem sua própria estrutura física e as leis do mundo material que os cerca, os primitivos interpretam, a seu modo, determinados fenômenos psíquicos ou físicos muito simples: a imagem no espelho, a sombra, o sonho, etc. Acreditam que os seres humanos — em particular os mortos — surgidos nos sonhos são almas destacadas de seus corpos. O indivíduo que aparece num sonho é considerado responsável e passível de punições pelos atos, ainda que “irreais”, que sua própria aparição cometeu durante o sonho. Também o sonhador se considera responsável pelos atos que comete em sonho.

A imagem no espelho é considerada como o “duplo” real, vivendo a seu modo, daquele que se olha. A sombra é também vista como uma parte da alma humana. Em certas regiões rurais, por se supor que a alma do morto possa “voltar” nos espelhos, estes são cobertos depois de cada falecimento. Conhece-se também o célebre conto de Chamisso, Peter Schlemihl, o homem que perdera sua sombra, ou seja, que vendera a alma ao diabo.

Ao que parece, primitivamente, o indivíduo humano só tomava conhecimento de si através de uma espécie de desdobramento material. Mas deve-se observar que, posteriormente, o desdobramento se aprofunda; a vida social se diferencia e se aperfeiçoa; surge a divisão social do trabalho e, notadamente, a separação entre trabalho material e trabalho intelectual. Um intelectual especializado, matemático ou filósofo, ignora mais ou menos tudo aquilo que se refere à vida prática; e, quando age praticamente, na vida cotidiana, encontra-se num outro plano e, por assim dizer, numa outra região da consciência, diversa daquela em que se situa quando pensa. Para ele, o desdobramento no interior de si mesmo torna-se um fato; seu pensamento poderá muito bem esquecer os ensinamentos de sua vida real, aliás frequentemente mutilada. Mas o desdobramento material do primitivo, a teoria do duplo e da sombra errante fora do corpo, vieram fornecer símbolos, uma linguagem, uma expressão poética a esse desdobramento real interior que tem lugar numa consciência já mais diferenciada. Assim, Goethe — que não acreditava no diabo pessoal — expressou os sofrimentos do intelectual moderno diante de sua vida real incompleta, mutilada, desamparada pelo pensamento abstrato, através de uma lenda antiga, segundo a qual um alquimista vendia sua alma ao diabo a fim de reconquistar a juventude: Fausto.

Primitivamente, supunha-se que a alma abandonava o corpo com o último respiro spiritus — devia sobreviver, mas apenas por um certo tempo, durante o período do ritos funerários e pós-funerários que mantinham sua “vida. Depois, ela se perdia na sombra amorfa de todas as almas dos ancestrais, já que era impossível, apesar dos ritos mais minuciosos, manter todas as almas passadas! Pouco a pouco, foi se atribuindo a essas almas passadas um resíduo de longínqua existência, inteiramente abstrata, impessoal e ineficaz, sem relação direta com os vivos; essa relação era reservada aos mortos recentes, salvo nos casos excepcionais de heróis, santos, etc. Foi então que se concebeu a existência “espiritual”; deve-se observar, outrossim, que no início, notadamente entre os gregos, essa existência espiritual” não aparecia como uma recompensa ou consolação, mas como uma triste fatalidade, um tédio interminável. Ulteriormente, porém, essa terminologia “vida espiritual”, “espírito”, etc. — forneceu um simbolismo para exprimir a situação das consciências e dos pensamentos infinitamente distantes da vida real, destacados do real e da ação.

A questão das relações entre o ser e o pensamento, a natureza e o espírito, o objeto e o sujeito do conhecimento, foi sempre a questão fundamental de toda filosofia. Trata-se de saber qual das duas séries de termos em presença foi primordial: o ser ou o pensamento, a natureza ou o espírito, a matéria ou o conhecimento.

Mas essa questão, enquanto “problema metafísico do conhecimento, tem suas raízes nas concepções dos primitivos; com efeito, a relação que se busca é algo “dado; é um fato, o fato do conhecimento. A separação metafísica entre sujeito e objeto — que, ao mesmo tempo, coloca o problema e o torna insolúvel — reproduz e agrava, nas condições da consciência moderna, a separação imaginária, o desdobramento fictício entre a parte lúcida de nosso ser (a alma, o espírito) e a parte “natural (o corpo, o mundo).

Para eliminar esse problema insolúvel, basta considerar a relação como um fato, tomando-a tal como se apresenta: o sujeito e o objeto, o pensamento e a natureza, são diferentes mas ligados, através de um liame que é uma interação incessante.

O famoso “problema do conhecimento alcança assim suas verdadeiras proporções. Pode-se examinar os instrumentos do conhecimento com o objetivo de aperfeiçoa-los: e este é o papel, em particular, da lógica. Mas não é admissível pôr em questão o próprio conhecimento.

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LEFEBVRE, H. Lógica formal. Lógica dialética. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, pp. 53-56.
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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Como o misticismo e a pseudociência se tornaram centrais para o nazismo


Uma entrevista com Eric Kurlander
Jacobin Brasil
Ideias sobrenaturais estavam se generalizando na virada do século XX, em especial na Alemanha. Porém, na crise social após a Primeira Guerra Mundial, as ideias esotéricas e pseudocientíficas viraram uma ferramenta poderosa de mobilização nazista, direcionadas para demonizar os judeus e a esquerda.
No fim do século XIX, a Europa industrializada era o epicentro daquilo que Max Weber denominou de “desencantamento do mundo”. Práticas religiosas tradicionais vinham sendo desafiadas pelas forças da modernidade, com a Igreja incomodada com o avanço do Iluminismo, ciência e secularismo.

Entretanto, geralmente a famosa citação Weber omite a segunda parte de sua tese – que o mundo estava se encantando também por algo novo. Novos tipos de doutrinas esotéricas, religiosas e fronteiras emergiam como alternativas aparentemente modernas à religião e à ciência tradicional.

Isso incluía a antroposofia (uma variação austro-alemã sobre a doutrina esotérica da teosofia, que combinavam elementos da espiritualidade oriental com cristianismo, filosofia ocidental e ciência natural); ariosofia (uma versão mais explicitamente racialista e eugenista da teosofia), a Teoria do Gelo Mundial (uma teoria “acientífica” que insiste que o gelo é a substância básica por trás de todos os processos tanto cósmicos como geológicos e evolutivos da terra), astrologia e parapsicologia (o estudo dos fenômenos psíquicos e paranormais). Essa tendência incluiu também religiões alternativas, New Age, homeopatia, folclore e um interesse renovado pelo hinduísmo e budismo.

Em seu livro Hitler’s Monsters, Eric Kurlander analisa a específica influência de ideias sobrenaturais que tiveram ascensão e as consequências da ideologia nazista. Ele argumenta que a invocação e apropriação de crenças populares esotéricas, pseudocientíficas e religiosas ajudaram o partido de Adolf Hitler a atrair apoiadores, desumanizar seus inimigos e perseguir suas ambições imperiais e raciais. Porém – como diz o historiador a Ondřej Bělíček –, essas ideias também se enraizaram em um contexto sociopolítico particular – que se reproduz, se não na mesma escala, também em nosso próprio presente.

Ondřej Bělíček: No fim do século XIX, desenvolveu-se um forte movimento dedicado a ideias sobrenaturais, doutrinas esotéricas, espiritualismo e ocultismo. O que esse movimento na Alemanha e na Áustria teve de diferente, em comparação a outros lugares onde essas tendências também floresceram?

EK: A singularidade é dupla. Por um lado, o investimento naquilo que eu chamo de “imaginário sobrenatural” na Alemanha e na Áustria tinha uma influência maior. Não se tratava só de um aspecto discreto do dia a dia, tal qual quando você vai à igreja ou uma sessão espírita no domingo. Foi algo integrado à política e às teorias sociais de forma muito mais direta e onipresente. Muitas dessas figuras esotéricas passaram a delinear conclusões políticas baseadas nessas crenças.

Isso, por exemplo, ocorreu também na França e no Reino Unido, ainda que não na mesma medida. Por outro lado, o teor do imaginário sobrenatural, em que existiam muitos movimentos como teosofia, astrologia e assim por diante, também era bem mais racial-folclórico na Alemanha e na Áustria que na França ou Reino Unido.

Havia muitas pessoas falando sobre diferentes raças no século XIX, não só na Alemanha e na Áustria. Entretanto, quando se olha para a forma como tais doutrinas esotéricas e anti-científicas foram implantadas na esfera pública, a raça e o antissemitismo foram, ao que parece, mais proeminentes em comparação com a França, Reino Unido e até mesmo os Estados Unidos, que tinham seus próprios grupos esotéricos, como os “camisas prateadas” da KKK e William Pelley.

Em suma, a raça faz parte também da língua oficial da ciência e da reforma social no Reino Unido, França e Estados Unidos, mas não estava no centro das práticas científicas e ocultas; e tais práticas, inversamente, não desemprenharam um papel central nas ideologias ou teorias de direita na política ou na sociedade.

OB: Você também menciona que o folclore alemão, a mitologia, a religião indo-ariana e as teorias racistas frequentemente eram parte do sistema escolar alemão. Você menciona especificamente a influência que o professor Leopold Pötsch tinha no jovem Hitler. Isso também foi uma particularidade nacional?

EK: Isso chega ao conceito de ciência alternativa. Todos falavam sobre Charles Darwin e o declínio civilizacional do Ocidente, a ascensão de raças não brancas – tudo o que fazia parte das discussões científicas naturais e sociais da segunda metade do século XIX. Até mesmo progressistas liberais e socialistas utilizavam o conceito de raça naquele momento, que não seria aceito hoje.

Se você fosse à escola na França ou nos Estados Unidos nas décadas de 1880 e 1890, ouviria teorias sobre a superioridade racial de alguns grupos sobre outros, e teorias da história que tendiam a idealizar os homens brancos ou de seu país de uma forma muito nacionalista. A diferença é que, na Alemanha e na Áustria, a mitologia nórdica e o folclore se misturaram com esse chamado pensamento “científico” sobre raça, politizado e, então, integrado à pedagogia. Isso ocorreu não apenas nas escolas, mas na literatura popular e científica.

OB: Muitas das principais personalidades de movimentos sobrenaturais na República de Weimar, na Alemanha, depois se tornaram proeminentes nazistas. De alguma maneira, os partidos no entreguerras trabalharam politicamente com a crença do sobrenatural ou isso foi específico dos nazistas?

EK: Sem dúvida, existam alguns indivíduos nos partidos de centro esquerda interessados ​​em astrologia e mitologia alemã, mas, de modo geral, eles não os integraram em suas ideias políticas e sua propaganda. Se você fosse membro dos dois partidos liberais, dos social-democratas ou dos comunistas, seria improvável que você invocasse as imagens de vampiros e o diabo, lobisomens ou bruxas, para descrever seus oponentes políticos ou a si próprio. Nem você falaria frequentemente sobre suásticas ou antigos sóis negros ou runas como símbolo da raça ariana ou nórdica.

Só que não apenas os nazistas invocavam essa iconografia. Existiam grupos paramilitares famosos de toda sorte que recorriam a esses tipos de símbolos, que organizavam festivais de solstício e falavam em restaurar o Império Alemão e reassentar os europeus ocidentais com “camponeses guerreiros”.

Os partidos de centro esquerda alemães, como na maior parte dos países, almejavam certamente argumentar a respeito do que fazer com finanças, tributos e educação, mas os partidos de centro direita eram tão propensos a invocar propaganda emocional ligada a teorias baseadas em raça sobre a superioridade germânica e o perigo quase sobre-humano dos monstruosos judeus e bolcheviques, de uma forma difícil de se engajar racional ou empiricamente. Como argumentaria com alguém que apela ao caráter loiro e de olhos azuis quase míticos do povo alemão e diz que seu país foi colonizado por uma cabala de bolchevistas judaicos, maçons e raças inferiores?

Nem todos os alemães acreditavam nessas coisas: muitos – talvez até mesmo a maioria – não acreditava. E se recorde que apenas um terço deles votou em Hitler. Os nazistas nunca tiveram mais de 37% dos votos, apesar da crise vinda da Grande Depressão e outros fatores. Porém, as pessoas que votavam nazistas parecem ter sido desproporcionalmente inseridas no imaginário sobrenatural.

OB: Suponho que, depois da guerra perdida em 1918 e da Grande Depressão, essas ideias sobrenaturais devem ter se espalhado entre toda a população alemã. É possível afirmar qual tipo de pessoa tendia a apoiar essas ideias?

EK: A história, a sociologia e a ciência política nos mostraram que, enquanto os nazistas apelaram ao número substancial de alemães de todas as demografias, católicos e trabalhadores tendiam a não votar tanto nos nazistas. Por outro lado, os protestantes de classe média baixa ou de origem sociológica no meio rural votavam desproporcionalmente no partido de Hitler. Ao observar o modo como funciona o imaginário sobrenatural, é aquilo não aparece de forma proeminente nos socialistas urbanos e no meio social dos trabalhadores.

Não é que as classes trabalhadoras alemãs fossem imunes às ideias sobrenaturais – se a ciência oculta, a pseudociência ou a religião alternativa. De certo, alguns membros da classe trabalhadora liam seus horóscopos ou acreditavam em aspectos do paranormal. Só que, por variadas razões, as classes trabalhadoras eram, em geral, mais isoladas das consequências políticas dessas ideias graças ao caráter do meio urbano e proletário – poderosamente à esquerda e, de fato, muitas vezes suavemente marxista.

Além da força dessa cultura proletária, o próprio interesse socioeconômico dos trabalhadores e sua típica filiação partidária com os social-democratas ou os comunistas, temos uma ênfase intelectual da teoria marxista em explicações materialistas sobre a realidade sociopolítica. Por tais razões, era bastante difícil para os partidos não marxistas e ideologias não materialistas penetrarem nas classes trabalhadoras alemãs, sobretudo entre os habilidosos trabalhadores em áreas urbanas, que se mostraram nitidamente resistentes à política conservadora, clerical e, em menor grau, fascista no período entreguerras.

Mesmo entre o eleitorado com uma maior propensão ao pensamento não materialista, baseado na fé, como os católicos rurais e de cidades pequenas, a força do meio social e religioso católico – reforçado por décadas de perseguição protestante – isolou os católicos devotos de formas alternativas de pensamento sobrenatural, assim como os radicais-nacionalistas, partidos desproporcionalmente protestantes, como o Partido Nacionalista do Povo Alemão e os nazistas.

Essas ideias parecem ter sido mais populares entre os alemães de classe média que talvez não fossem mais devotos católicos ou protestantes, mas que ainda se interessaram em religiões alternativas, esoterismo meio cristão meio pagão e outras ideias sobrenaturais. Essas tendências esotéricas também parecem nitidamente ter se originado na Alemanha, especialmente onde a política é objeto de preocupação – o que parece ser outra diferença entre o jeito como essas doutrinas se espalham e como o “imaginário sobrenatural” funcionava na França, Reino Unido, Estados Unidos, por exemplo, em comparação com a Alemanha e a Áustria.

Nos países anteriores, parece que as mulheres participavam desses movimentos tanto quanto os homens, certamente como seguidoras, mas também, muitas vezes, como lideranças. Na Alemanha e na Áustria, propagando o esoterismo, a pseudociência e o paganismo folclórico pareciam ser um empreendimento quase exclusivamente masculino.

Você nota isso no movimento nazista, que era também muito masculino. Eram principalmente homens brancos que não foram particularmente educados em termos de conhecimento científico, mas tinham certa educação universitária. Trabalhadores de colarinho branco, pequenos empresários, engenheiros, esses são os tipos de pessoas que tornaram essas ideias mais interessantes. Um perfil demográfico similar ao daqueles que gostam de assistir shows sobre “alienígenas” ou relíquias perdidas ou soldados mortos-vivos do Himmler no History Channel hoje em dia. São as pessoas que têm algum tipo de educação, alguns conhecimentos sobre história, mas estão abertos a argumentos pseudocientíficos e baseados na fé.

OB: De várias maneiras, isso se assemelha aos grupos de pessoas de hoje que creem em teorias de conspiração, como QAnon, movimento antivacina e etc.. Como os intelectuais, cientistas e autoridades reagiram a essa tendência pseudocientífica naquela época?

EK: Muitas figuras líderes de centro esquerda ou liberais observaram esse investimento nada saudável no pensamento sobrenatural, baseado na fé, e afirmaram: “aqui está um fenômeno que é anticiência, irracional e preocupado com o pensamento mágico, a história alternativa e a religião mágica, e parece estar ajudando as forças antidemocráticas de extrema direita. Precisamos ter cuidado com isso”.

Na imprensa, Bertolt Brecht e alguns socialistas zombaram dos nazistas por flertarem com essas ideias. Eles acharam chocante que os alemães acreditassem nos apelos emocionais de Hitler e Goebbels – em alguns casos escritos por Hanns Heinz Ewers, um escritor de terror famoso por romances sobre vampiros, cientistas loucos e adoradores de diabo e, depois, um propagandista nazista. Não compreendiam como algum partido poderia chegar ao poder sendo algo equivalente contemporâneo de Stephen King ou Clive Barker na promoção de sua causa. Alguns apoiadores dos partidos liberais, que perderam muitos mais de seus eleitores para os partidos conservadores e de extrema direita que os social-democratas ou os comunistas, estavam realmente prontos para botar a culpa de seu fracasso político no comportamento irracional dos alemães.

Alfred Rosenberg, o ideólogo nazista, assumiu que muitas pessoas votaram nos nazistas porque estavam interessadas no oculto. O influente filósofo político conservador Carl Schmitt notou um investimento generalizado no que ele chamou de “romantismo político”. Então, com o declínio do centro liberal, os únicos partidos políticos que poderiam se opor aos nazistas eram os partidos de esquerda, mas eles falavam uma linguagem totalmente diferente e eram incapazes de competir com os nazistas nos termos do apelo emocional ao nacionalismo e ao renascimento folclórico, fundamentados no “desejo de mito dos alemães” e desejo de transcender as crises políticas e econômicas e as divisões sociais do período entreguerras.

OB: E quanto ao próprio Hitler? Você poderia descrever qual era sua relação com ideias sobrenaturais, ocultismo ou pseudociência?


EK: Hitler foi perfeitamente emblemático como um típico membro do Partido Nazista – ou, de certo, líder nazista – a esse respeito. Ele não era tão envolvido em ideias sobrenaturais, por exemplo, tal qual Himmler, Hess ou Alfred Rosenberg. Sempre foi mais cético quanto às teorias sobrenaturais mais amplas sendo usadas de forma muito proeminente como parte da propaganda nazista. Ele, todavia, ainda as elaborou, e sua retórica foi misturada com argumentos pseudocientíficos, a invocação da mitologia e o apelo às emoções. Ainda que não comprasse todas as doutrinas de raça esotérica que alguns de seus colegas fizeram, ele entendeu sua importância para o Partido Nazista e empregou essa linguagem.

No meu livro Hitler’s Monsters, menciono a famosa citação de Hitler em Mein Kampf alertando o Partido Nazista a não se tornar lar de “acadêmicos errantes envolvidos em bearskins”. Lembrando do xamã do QAnon com pele de animal que invadiu o prédio do Capitólio norte-americano em janeiro de 2021, esse comentário obscuro de Hitler parece bem mais relevante. Como Donald Trump ou Marine Le Pen, que se afastaram publicamente dos “xamãs do QAnon” em suas fileiras, Hitler estava preocupado se o Partido Nazista pudesse perder apoio entre os eleitores da classe média tradicional.

Mesmo se Hitler publicamente tentasse divulgar nazistas de grupos religiosos esotéricos e pagãos, como a Sociedade Thule e o folclore “errante dos estudiosos em bearskins”, ele, porém, reconheceu que seus apoiadores estavam atraídos por ideias sobrenaturais e teorias de conspiração para dar sentido a um mundo cada vez mais complexo e ameaçador.

OB: Qual foi a relação dos nazistas com ideias sobrenaturais depois que Hitler chegou ao poder? Você menciona que era perigoso para o Partido Nazista deixar crescerem o movimento sobrenatural e o ocultismo, pois temiam que pudesse sair de seu controle.

EK: Não é que eles rejeitaram o raciocínio sobrenatural. Eles estavam com medo especificamente de grupos ocultos que representassem um obstáculo sectário a uma “comunidade racial” unificada liderada pelo o Partido Nazista. Essas doutrinas e associações ocultas, como a teosofia, a ariosofia, o movimento da antroposofia de Rudolf Steiner, e outros grupos folclóricos e messiânicos – que tiveram seus próprios rituais, tradições secretas e, acima de tudo, seus próprios “Führer” – foram vistas pelos nazistas como sectárias. Isso significava que eles detinham sua própria identidade sociocultural e, potencialmente, uma ideologia em competição com o nazismo.

Portanto, muitos estudiosos apontam a repressão ao ocultismo durante o Terceiro Reich – equivocadamente, em minha visão, dizendo “olha, os nazistas odiavam o ocultismo”. Só que eles não odiavam. Eles tentaram controlar certos tipos de ocultismo e outros grupos “sectários” por várias razões, da mesma maneira que tentaram controlar a religião, os programas sociais, mulheres, trabalhadores, camponeses ou industriais. A propensão natural deles como um regime fascista era tentar controlar as coisas e fazer com que todo mundo “trabalhasse para o Führer”, mas isso não significa que eles rejeitassem o völkisch esotérico ou religioso ou o pensamento pseudocientífico.

Então, sua hostilidade aos ocultistas não era do mesmo tipo que aquela que envolvia atitudes nazistas em relação aos socialistas ou comunistas ou, de certo, aos judeus. Eles reiteradamente aceitaram no partido ex-líderes ocultistas, desde que parassem de tentar manter organizações esotéricas-folclóricas separadas, como a Sociedade Thule ou a Werewolf Bund ou a Tannenburg Bund.

Os nazistas estiveram também divididos sobre o que era “ocultismo científico” e o que era o ocultismo popular para ganhar dinheiro. O vice de Hitler, Rudolf Hess, os membros do Ministério da Educação do Reich, Himmler, a SS e até o Ministério de Propaganda de Goebbels trabalharam para diferenciar as doutrinas ocultistas e as ideias e indivíduos “científicos” alternativos ou, ao menos, pragmaticamente úteis daquilo que chamavam de ocultismo de Boulevard popular ou “judaico”, como Erik Hannusen – que, eles diziam, apenas roubava o dinheiro das pessoas.

Assim, os nazistas vigiavam e periodicamente prendiam ou interrogam os ocultistas que supostamente faziam dinheiro minando o “esclarecimento público”. Contudo, para Himmler, Hess, Walther Darré, e outros líderes nazistas, os ocultistas científicos “reais” e cientistas alternativos ainda podiam averiguar se o raio de Thor era mágico ou se a posição das estrelas e da lua promovia a agricultura orgânica.

Esses “cientistas” foram patrocinados por vários ministérios nazistas e especialmente pela SS de Himmler. Então, eles seletivamente rejeitavam algumas ideias e indivíduos ocultistas como não sérios e anticientíficos, mas também estavam dispostos a legitimá-los e até mesmo empregá-los quando eram simpáticos à doutrina esotérica e alternativa particular ou à crença völkisch religiosa. O conceito duvidoso da Teoria do Gelo do Mundo parecia reforçar a ideia de uma raça ariana antiga e sugerir o questionamento da “física judaica” da mesma maneira a lei relatividade e a mecânica quântica. Daí o porquê de tanto Himmler como Hitler tê-la patrocinado.

OB: Você menciona que a imaginação sobrenatural “propiciou um espaço ideológico e discursivo em que era possível desumanizar, marginalizar os inimigos dos nazistas e transformá-los em monstros”. Você poderia elaborar como funcionou isso?

EK: Quando você sai do reino da ciência moderna, como a biologia e a física, começa a operar no reino do “imaginário sobrenatural”, onde tudo é possível ou justificável, visto que passa a misturar a biologia com esoterismo, história e arqueologia com folclore e mitologia, pode transformar os judeus asquenazes de um povo parcialmente europeu que compartilharam com alemães uma ancestralidade da Europa Central e Oriental, em monstros biológicos totalmente alienígenas, com tendências cruéis e sobre-humanas, por trás de tudo de malévolo ocorrido na história.

O imaginário sobrenatural, que mistura a ciência e o ocultismo, a história e a mitologia, permitiu também que os nazistas escolhessem as características que gostariam de atribuir ao inimigo deles, comparando-os a vampiros, zumbis, diabos e demônios. Também permitiu a eles que atribuísse certas características superiores aos alemães, delineadas, muitas vezes, de forma idêntica da mitologia ou da ciência alternativa.

Em seu último esforço para criar uma divisão partidária na elite no fim de 1944, eles invocaram os nomes de lobisomens, do folclore germânico. Apesar de os lobisomens serem considerados heróis trágicos ou nobres possivelmente ligados à horda de Odin ou aos berserkers nórdicos, eles eram na França seres amaldiçoados ligados ao satanismo e à feitiçaria. No folclore alemão, os lobisomens eram, portanto, heróis trágicos, ligados enfim ao sangue e ao solo; criaturas que defenderiam suas florestas e terra contra os intrusos eslavos. Por outro lado, os vampiros não eram figuras românticas trágicas nem mesmo heróis, como foram retratados na França ou no Reino Unido, mas parasitas orientais degenerados ligados aos judeus e aos povos eslavos, que estavam tentando minar a pureza do sangue alemão.

Folclore, mitologia, teorias sobre alienígenas, Teoria do Gelo Mundial, gigantes de gelo, deuses e monstros foram usados para justificar por que os alemães teriam o direito de invadir o Leste Europeu e subjugar ou destruir raças inferiores e o chamado “judaico-bolchevismo”.

O pensamento sobrenatural tinha um efeito multiplicador sobre as políticas violentas já existentes na eugenia dessa época, abusadas em tantos outros países, incluindo o Reino Unido, a Suécia ou os Estados Unidos, mas nunca em uma extensão desenfreada. O ingrediente “secreto” aqui, argumento eu, era o pensamento “sobrenatural”.

OB: Que influência o imaginário sobrenatural teve sobre o esforço de guerra dos nazistas?

EK: Em primeiro lugar, o imaginário sobrenatural influenciou as visões geopolíticas dos nazistas, que manipularam a arqueologia, o folclore e a mitologia para fins de política externa. Himmler e Rosenberg desenvolveram os argumentos – com base, em larga medida, em folclore, mitologia e ciência alternativa – de que, há milhares de anos, as pessoas nórdicas eram a civilização dominante na Europa e que eles tinham o direito de reivindicar esse status. Arqueologia ruim, o uso seletivo de biologia e da antropologia e a mitologia alimentou várias ideias a respeito da Europa Oriental e por que os alemães teriam direito, tais quais cavaleiros teutônicos medievais, de (re)conquistar o Leste.

O pensamento sobrenatural não era o único fator na determinação da política nazista, mas certamente reforçou as relações racistas e imperialistas dos nazistas em relação aos europeus orientais. Sim, em algum momento durante a guerra, os nazistas negociaram acordos com os ucranianos e os Estados bálticos por razões pragmáticas, mas, em última instância, eles tinham esse gigantesco complexo de pensamento sobrenatural subjacente às suas concepções de raça e espaço. Isso ajudou a justificar, por exemplo, a deslocar os poloneses para fora de suas casas e botar alemães em seu lugar ou enviar os judeus para os campos de concentração.

O imaginário sobrenatural estava também diretamente ligado a experimentos de eugenia durante o Holocausto. Um dos piores médicos nazistas, Sigmund Rascher, era filho de um dos mais célebres antroposofistas, Hanns Rascher. Você tem esse importante médico muito aberto a essa ideia de raça e espaço – que acompanha Ernst Schaefer na expedição ao Tibet de Himmler para descobrir as antigas origens da raça ariana – e mais tarde está disposto a fazer experiências em seres humanos para testar suas teorias pseudocientíficas e de Himmler.

Quando você toma o nível de ingenuidade científica e de confiança que os alemães tinham nos anos 1930 e o mistura com um regime imerso no pensamento sobrenatural, liderado por Hitler e Himmler, que não tinham experiência em ciência natural, que eram autodidatas, que liam folclore e mitologia e sonhavam com espaçonaves, e propicia a plataforma de uma guerra terrível onde a violência massiva já se tornava aceitável, isso é bastante perigoso. Junto à eugenia, isso tudo compôs o combustível desses experimentos horríveis e até mesmo do Holocausto.

OB: Parece que os alemães que acreditavam no imaginário sobrenatural realmente achavam que os eslavos eram vampiros, os judeus vermes e os soviéticos basicamente monstros.

EK: Eu não posso dizer a você que milhões de soldados em campo de batalha realmente viam judeus como monstros sobre-humanos; muitos alemães tinham amigos e cônjuges judeus antes e depois do Terceiro Reich. Entretanto, os nazistas certamente usaram o imaginário sobrenatural para desumanizar judeus, eslavos e bolcheviques e transformá-los em um inimigo desumano. Alguns alemães étnicos relataram terem sido atacados, confessamente durante o trauma da guerra, por “bebedores de sangue” eslavos.

A questão é: como isso aconteceu? Meu argumento é que não era somente a ciência da biologia ou imperialismo ou capitalismo industrial ou a violência em massa e o trauma da “guerra total” – todos esses fatores eram importantes –, mas também o imaginário sobrenatural nazista. O quanto alguém acredita de fato nas várias doutrinas, contos e ideias que constituíam esse imaginário dependia da pessoa. Às vezes, todavia, parece que alguns nazistas realmente acreditavam que havia outras espécies e raças – em particular, os judeus, que eram simplesmente monstros desumanos, literal ou figurativamente, e que tinham que ser eliminados para que a civilização “ariana” sobrevivesse.

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[0] Tradução: Gercyane Oliveira.
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terça-feira, 23 de março de 2021

Anarquismo individualista e reação

 
por Murray Bookchin
 
Com certeza, o individualismo ideológico não desapareceu completamente durante este período de grande agitação social. Um considerável reservatório de anarquistas individualistas, especialmente no mundo anglo-americano, foi nutrido pelas ideias de John Locke e John Stuart Mill, bem como o próprio Stirner. Individualistas caseiros com variados graus de comprometimento com as visões libertárias esparramadas pelo horizonte anarquista. Na prática, o anarcoindividualismo atraiu precisamente indivíduos, de Benjamin Tucker nos Estados Unidos, um adepto de uma curiosa versão de livre concorrência, até Federica Montseny na Espanha, que muitas vezes honrou suas crenças stirneristas na transgressão. Apesar de suas confissões de uma ideologia anarcocomunista, nietzscheanos como Emma Goldman permaneceram face a face [cheek to jowl] em espírito com os individualistas.

Dificilmente os anarcoindividualistas exerceram uma influência sobre a nascente classe trabalhadora. Eles expressavam sua oposição de forma unicamente pessoal, especialmente em panfletos inflamados, comportamentos ultrajantes, e estilos de vida aberrantes nos guetos culturais do fin de siècle de Nova York, Paris e Londres. Como um credo, o anarquismo individualista permaneceu, em grande medida, um estilo de vida boêmio, mais destacado em suas demandas de liberdade sexual (“amor livre”) e apaixonado pelas inovações na arte, no comportamento e no vestuário.

Eram tempos de severa repressão social e quietude social amortecida em que anarquistas individualistas vieram para o primeiro plano da atividade libertária — e então principalmente como terroristas. Na França, Espanha e Estados Unidos, anarquistas individualistas cometeram atos de terrorismo que deram ao anarquismo sua reputação de uma conspiração violentamente sinistra. Aqueles que se tornaram terroristas foram menos frequentemente socialistas libertários ou comunistas do que homens e mulheres desesperados que usaram armas e explosivos para protestar contra injustiças e filistinismo de seu tempo, supostamente em nome da “propaganda pelo ato”. Mais frequentemente, no entanto, o anarquismo individualista se expressou em um comportamento culturalmente desafiador. Ele veio para a notoriedade no anarquismo precisamente na medida em que os anarquistas perderam a conexão com uma esfera pública viável.
 
O contexto reacionário de hoje explica muito a emergência de um fenômeno no anarquismo euro-americano que não pode ser ignorado: a propagação do anarquismo individualista. Em um tempo quando até mesmo as formas respeitáveis de socialismo estão em um recuo desordenado de princípios que podem de alguma forma ser interpretados como radicais, questões de estilo de vida estão outra vez suplantando a ação social e a política revolucionária no anarquismo. Nos tradicionalmente liberal-individualistas Estados Unidos e Grã Bretanha, os anos 1990 estão transbordando de autointitulados anarquistas que — sua retórica radical exibicionista à parte — estão cultivando um anarcoindividualismo moderno que chamarei de anarquismo de estilo de vida [lifestyle anarchism]. Suas preocupações com o ego e sua singularidade e seus conceitos polimórficos de resistência estão constantemente erodindo o caráter socialista da tradição libertária. Não menos do que o marxismo e outros socialismos, o anarquismo pode ser profundamente influenciado pelo ambiente burguês ao qual professa se opor, com o resultado de que a crescente “interioridade" e narcisismo da geração yuppie deixaram sua marca em muitos declarados radicais. Aventurismo ad hoc, bravura pessoal, uma aversão à teoria estranhamente similar às tendências antirracionais do pós-modernismo, celebrações da incoerência teórica (pluralismo), um compromisso basicamente apolítico e anti-organizacional com a imaginação, o desejo, o êxtase e um encantamento da vida cotidiana intensamente voltado para si mesmo refletem o preço que a reação social tem assumido do anarquismo euro-americano nas últimas duas décadas.[1]

Durante a década de 1970, escreve Katinka Matson, a compiladora de um compêndio de técnicas para o desenvolvimento psicológico pessoal, ocorreu “uma mudança notável no modo como nos percebemos no mundo. A década de 1960”, ela continua, “viu uma preocupação com ativismo político, Vietnã, ecologia, seres, comunas, drogas, etc. Hoje estamos nos voltando para dentro: estamos procurando por definição pessoal, aperfeiçoamento pessoal, pessoal realização e iluminação pessoal”.[2] O pequeno bestiário nocivo de Matson, compilado para a revista Psychology Today, cobre todas as técnicas da acupuntura até o I Ching, desde est à terapia de zona. Em retrospecto, ela poderia muito bem ter incluído anarquismo de estilo de vida em seu compêndio de soporíferos introspectivos, a maioria dos quais promove ideias de autonomia individual, em vez da liberdade social. A psicoterapia em todas as suas mutações cultiva um “eu” interiormente direcionado que busca autonomia em uma condição psicológica repousada de autossuficiência emocional — não o self socialmente envolvido denotado pela liberdade. No anarquismo de estilo de vida, como na psicoterapia, o ego é contraposto ao coletivo; o self, à sociedade; o pessoal, ao comunitário.
 
O ego — mais precisamente, a sua encarnação em vários estilos de vida — tornou-se uma idée fixe para muitos anarquistas pós-1960s, que estão perdendo contato com a necessidade de uma oposição organizada, coletiva e programática à ordem social existente. “Protestos” sem firmeza, escapadas sem direção, auto-afirmações, e uma “recolonização” muito pessoal da vida cotidiana, paralelo aos estilos de vida psicoterápicos, new age, auto-orientados de baby boomers entediados e membros da Geração X. Hoje, o que passa por anarquismo na América e cada vez mais na Europa é pouco mais do que um personalismo introspectivo que denigre o comprometimento social responsável; um grupo de encontro variavelmente renomeado como “coletivo” ou “grupo de afinidade”; um estado de espírito que zomba arrogantemente da estrutura, da organização e do envolvimento público; e um playground para palhaçadas juvenis.

Conscientemente ou não, muitos anarquistas de estilo de vida articulam a abordagem de Michel Foucault de “insurreição pessoal” ao invés de revolução social, baseado numa ambígua e cósmica crítica do poder como tal, em vez de uma demanda pelo empoderamento institucionalizado dos oprimidos em assembleias populares, conselhos e/ou confederações. Na medida em que essa tendência descarta a possibilidade real da revolução social — ou como uma “impossibilidade” ou como um “imaginário” — vicia o anarquismo socialista ou comunista em um sentido fundamental. De fato, Foucault promove uma perspectiva de que “a resistência nunca está numa posição de exterioridade em relação ao poder... Portanto, não há locus único [leia: universal] da grande Recusa, sem alma de revolta, fonte de todas as rebeliões, ou pura lei do revolucionário”. Apanhado como todos nós estamos no abraço onipresente de um poder tão cósmico que, exageros e equívocos de Foucault à parte, a resistência se torna totalmente polimorfa, nós vagamos inutilmente entre o “solitário” e o “desaforado”[3]. Suas ideias sinuosas vêm até a noção de que a resistência deve necessariamente ser uma guerra de guerrilha que está sempre presente — e que é inevitavelmente derrotada. 

Anarquismo de estilo de vida, assim como o individualista, aporta um desdém pela teoria, com filiações místicas e primitivistas geralmente muito vagas, intuitivas, e mesmo antirracionais para analisar diretamente. Eles são mais  propriamente sintomas do que causas da deriva geral em direção a uma santificação de si mesmo como um refúgio para o mal-estar social existente. No entanto, anarquismos amplamente personalistas ainda têm certas premissas teóricas confusas que se prestam a um exame crítico.

Seu pedigree ideológico é basicamente liberal, fundamentado no mito do indivíduo completamente autônomo cujas reivindicações da própria soberania se valem de axiomáticos “direitos naturais”, “valores intrínsecos”, ou, em um nível mais sofisticado, do intuído ego transcendental kantiano que é o gerador de toda a realidade cognoscível. Essas visões tradicionais emergem no “eu” ou ego de Max Stirner, que compartilha com o existencialismo a tendência a absorver toda a realidade em si mesmo, como se o universo girasse em torno das escolhas do indivíduo auto-orientado.[4]

Trabalhos mais recentes no anarquismo de estilo de vida geralmente evitam o “eu” soberano, todo-abrangente de Stirner, embora retendo sua ênfase egocêntrica, e tendem para existencialismo, situacionismo reciclado, budismo, taoismo, antirracionalismo e primitivismo — ou, de maneira bastante ecumênica, todos eles em várias permutações. Suas semelhanças, como veremos, cheiram a um retorno pré-lapsariano a um original, muitas vezes difuso e até mesmo petulante ego infantil, que precede ostensivamente a história, a civilização, e uma tecnologia sofisticada — possivelmente a linguagem em si mesma — e eles têm alimentado mais de uma ideologia política reacionária ao longo do século passado.
 
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Notas:
[0] Tópico do livro de Murray Bookchin, Social Anarchism or Lifestyle Anarchism: The Unbridgeable Chasm, São Francisco, AK Press, 1995, pp. 7-11. Tradução de Paulo Ayres.
[1] Apesar de todas as suas deficiências, a contracultura anárquica durante a parte inicial da agitada década de 1960 foi muitas vezes intensamente política e elencando expressões como desejo e êxtase em termos eminentemente sociais, muitas vezes ridicularizando as tendências personalistas da posterior geração Woodstock. A transformação da “cultura jovem”, como era originalmente chamada, desde o nascimento dos direitos civis e movimentos de paz para Woodstock e Altamont, com sua ênfase numa forma de “prazer” puramente autoindulgente, é refletida no retrocesso de Dylan de “Blowin 'in the Wind” para “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”.
[2] Katinka Matson,
Preface, The Psychology Today Omnibook of Personal Development (Ne"o/ York: William Morrow & Co., 1977), n.p.
[3] Michel Foucault, The History of Sexuality, vol. 1, translated by Robert Hurley (New York: Vintage Books, 1990), pp. 95-96. Celestial será o dia em que se poderá obter formulações diretas de Foucault, as interpretações de cujos pontos de vista são frequentemente contraditórios.
[4] O pedigree filosófico deste ego e sua fortuna podem ser rastreados através de Fichte de volta a Kant. A visão de Stirner sobre o ego era meramente uma mutação grosseira dos egos kantiano e particularmente do fichtiano, marcado por intimidação [hectoring] em vez de introspecção [insight].
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domingo, 21 de junho de 2020

O que o yoga tem a ver com o avanço da extrema direita na Índia?


  por Praveen S.
Brasil de Fato

Nova Delhi, 25 de fevereiro de 2020. Melania Trump, esposa do presidente dos EUA, assiste a uma exibição de yoga em uma escola pública da Índia. Em seguida, junta-se aos estudantes em um exercício de meditação, como parte da disciplina “Aula da Felicidade”. A 20 km dali, grupos de extrema direita aliados do primeiro-ministro, Narendra Modi, atacam opositores com pedras e vandalizam comunidades muçulmanas, queimando carros, casas e mesquitas.

A discrepância entre as duas cenas é um emblema das contradições do atual governo indiano. Entre dezembro de 2019 e o início da pandemia, 78 pessoas foram mortas no país durante protestos contra mudanças nas regras de cidadania que ameaçam colocar milhões de muçulmanos na ilegalidade por falta de documentos.

O yoga é o símbolo máximo do soft power (“poder brando”) da Índia, ou a face benévola do hinduísmo por meio da qual o governo consolida sua atuação no terreno das relações exteriores.

O Dia Internacional do Yoga, comemorado neste domingo (21), foi criado por iniciativa de Modi e costuma reunir multidões nos cinco continentes. Este ano, pela primeira vez, o governo indiano não organizou sessões coletivas ao ar livre. Por conta da pandemia, o tema da edição 2020 é “Yoga em casa e com a família”.

O primeiro-ministro fez um pronunciamento à nação às 6h30, seguido do ministro do Yoga, Shripad Naik, que afirmou em cadeia nacional: “Quem pratica yoga tem menos chance de ser infectado com o coronavírus”.

Estereótipo

Yoga é um conceito reivindicado por religiões como hinduísmo, jainismo e budismo, e contempla um conjunto de disciplinas físicas tradicionais originárias da Índia. A face mais conhecida no Ocidente são os exercícios de alongamento, respiração e flexibilidade associados a práticas meditativas.

Segundo a Federação Internacional do Yoga, os Estados Unidos têm 30 milhões de praticantes, o que equivale a 9% da população do país. Na Índia, a proporção é de 7,5%, contrariando um estereótipo difundido ao redor do mundo.

“A popularização do yoga no Ocidente começou em meados do século 19, então não é resultado de um projeto do BJP [partido de Modi]. O que ele faz é exportar um olhar enviesado sobre o yoga e uma identidade muito específica da Índia para os praticantes”, afirma Patricia Sauthoff, doutora pela Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, no Reino Unido, e mestre em história com foco em religiões no sul da Ásia.

Uma aula de yoga em um bairro de classe média da capital Nova Delhi custa entre R$ 150 e R$ 450 por mês. Oito a cada dez indianos têm renda mensal inferior a 10 mil rúpias, o equivalente a R$ 675,00. O setor movimenta cerca de R$ 150 bilhões por ano em todo o planeta.

“Hoje, no Brasil ou na Europa, você encontra mais [estúdios de] yoga do que na Índia”, observa a antropóloga Mariana Faiad Batista Alves, que estudou o sistema de castas e suas implicações na Índia em suas pesquisas de mestrado e doutorado. “Quem vai à Índia percebe de cara que é uma prática da classe média, muitas vezes sexista e elitista, de classe e de casta”, acrescenta, lembrando as frequentes acusações de assédio sexual contra gurus e instrutores de yoga.

Nacionalismo hindu

Vegetariano e praticante de yoga, Modi filiou-se há 50 anos ao Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), organização com 6 milhões de membros que opera como um grupo paramilitar.

O RSS se opôs à independência da Índia, em 1947, e propõe a “refundação” do país com base nos valores do hinduísmo. A organização defende a perpetuação do sistema de castas, que divide a sociedade em grupos hereditários.

Os hindus acreditam que cada grupo se origina de uma parte do corpo do deus Brahma, considerado o criador do Universo. Os brâmanes, por exemplo, teriam nascido da cabeça, e os dalits, “intocáveis”, teriam se originado da poeira sob os pés do criador. Cada grupo, ou casta, estaria destinado a exercer uma função diferente na sociedade – os brâmanes seriam intelectuais, enquanto dalits trabalhariam com lixo ou esgoto.

A Constituição de 1950 proibiu a discriminação de castas, mas não erradicou a violência nem o domínio exercido pelos brâmanes. O RSS, que representa o nacionalismo hindu, nunca concordou com essa parte do texto e questiona o secularismo – liberdade de crença e separação entre instituições governamentais e religiosas – como princípio fundamental.

Modi é conhecido nacionalmente desde 2001, quando se tornou ministro-chefe do estado de Gujarat pelo Partido do Povo Indiano (BJP), braço político do RSS. O período foi marcado por episódios de violência contra minorias religiosas. No final de fevereiro de 2002, 790 muçulmanos foram mortos em três dias no estado. Acusado de ser cúmplice dos crimes, Modi passou a ser idolatrado por fundamentalistas hindus dentro e fora de Gujarat.

Eleito primeiro-ministro em 2014, o político do BJP precisou acalmar os ânimos fora do país e esclarecer que não pretendia romper com seis décadas de democracia na Índia. Só no primeiro ano de governo, ele visitou 25 países – o brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido), por exemplo, visitou dez.

Produto à venda

Em sua primeira participação na Assembleia Geral das Nações Unidas, enquanto a mídia internacional se preparava para possíveis ataques a opositores e minorias, Modi falou sobre os benefícios do yoga.

“Yoga não é apenas um exercício, mas um meio de se conectar com o mundo e a natureza”, disse o primeiro-ministro. “Ela deve provocar mudança em nosso estilo de vida e criar consciência, além de ajudar a combater as mudanças climáticas. Vamos construir juntos um Dia Internacional do Yoga”, propôs.

O discurso inusitado foi bem recebido, e 175 países abraçaram a ideia. Desde então, o Dia Internacional serve de palanque para o primeiro-ministro. Em 2015, ele reuniu 30 mil pessoas para praticar yoga na avenida Rajpath, diante do palácio presidencial, em Delhi. Na ocasião, após 35 minutos de exercícios, Modi afirmou que a data inaugurava “uma nova era de paz”.

O evento foi transmitido em 100 telões espalhados pelo mundo – um deles na Times Square, em Nova Iorque, nos EUA. O governo indiano estima que 177 países tenham realizado alguma atividade comemorativa naquele dia.

“Os estúdios de yoga têm uma grande responsabilidade: não difundir a ideia de que a cultura indiana é apenas a cultura do hinduísmo [religião predominante no país] ou das castas superiores”, observa a indiana Aadita Chaudhury, doutoranda em Estudos de Ciência e Tecnologia na Universidade de York, no Canadá, que escreveu um artigo para a rede Al Jazeera sobre as semelhanças entre os supremacistas brancos e os nacionalistas hindus. “Essa é uma imagem equivocada, que só interessa ao RSS. Quem caminha pela Índia percebe um sincretismo muito grande”.

Fantasia orientalista

A cada 21 de junho, mais pessoas se reúnem para celebrar o yoga. Só na Alemanha, em 2019, foram 4 milhões. Walter Lindner, embaixador alemão na Índia, enalteceu a “jogada de mestre” de Modi: “Yoga é um produto que se pode vender em qualquer lugar do mundo”.

No mesmo dia, o primeiro-ministro expôs o desejo de democratizar a prática: “Precisamos levar o movimento do yoga às vilas, às florestas, tornando-a parte integral da vida dos pobres, dos adivasis [comunidades tribais]”.

Embora o casal Trump tenha entrado no jogo, em fevereiro deste ano, o poder brando da Índia está cada vez mais “manjado” por líderes internacionais. Em 2018, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, cancelou em cima da hora uma sessão de yoga com Modi em Nova Delhi ao ser informado de que a atividade tinha “fins diplomáticos” e de propaganda do governo indiano.

“Quando foi criado o Dia Internacional, muita gente fora da Índia ficou entusiasmada com o Modi. Sempre achei chocante essa falta de senso crítico. Porque, em 2015, todos nós já deveríamos saber quem ele era, por conta de tudo que aconteceu em Gujarat”, afirma a antropóloga Mariana Faiad Batista Alves.

“Yoga, em termos abstratos, é uma prática corporal super bacana, que faz bem à saúde. A ideia de soft power também é interessante e pode gerar frutos para a Índia. A questão é que Modi manipula as fantasias orientalistas do Ocidente a favor dele e legitima suas ações por meio dessa narrativa”, completa a pesquisadora.

No primeiro ano de mandato, Modi inaugurou o Ministério do Ayurveda, Yoga, Naturopatia, Unani, Siddha e Homeopatia, sob pretexto de “promover a rica e centenária herança indiana no campo das ciências da saúde”. Opositores acusaram o BJP de instrumentalizar o Estado para difundir valores religiosos e das castas superiores, conforme a cartilha do RSS.

Desde então, centenas de escolas na Índia incluíram sessões de yoga no currículo da educação primária e secundária. Alguns exercícios, como o Surya Namaskar, exigem que o praticante se curve ao Deus do Sol, o que provocou a ira de organizações muçulmanas – o Islã só permite que os seguidores se curvem diante de Alá.

Quando esses embates vêm à tona, o governo indiano costuma dizer que “tudo deve ser analisado caso a caso”, ressaltando que 47 nações de maioria muçulmana apoiam a resolução das Nações Unidas de incentivar a prática do yoga.

Acirramento

A conjuntura da Índia vem se acirrando desde 2019, quando entraram em vigor uma emenda à lei de cidadania (CAA, na sigla em inglês) e um novo registro nacional de cidadãos, ameaçando colocar 3,9 milhões de pessoas na ilegalidade por falta de documentos.

Modi foi o primeiro político indiano a assinar um texto que condiciona à religião o acesso a direitos, rompendo com o secularismo previsto na Constituição – as regras para obtenção de refúgio e cidadania no país se tornaram mais brandas para não-muçulmanos. Também no ano passado, o governo revogou a autonomia da Caxemira, território de maioria islâmica disputado por Índia e Paquistão, e cortou por meses o acesso à internet na região.

Outra decisão emblemática de 2019 foi a autorização da Suprema Corte para construção de um templo hindu em Ayodhya, norte do país, no mesmo terreno em que hinduístas destruíram em 1992 uma mesquita, local de oração de muçulmanos, erguida no século 16.

Em momentos de maior conflito, o primeiro-ministro insere com ainda mais frequência as tradições milenares em seus discursos. Além de postar vídeos em que ele próprio aparece praticando yoga, Modi compartilhou em sua conta oficial no Twitter um depoimento do yogi Sadhguru em defesa da CAA, em dezembro de 2019.

Outro aliado de Modi é o empresário bilionário Baba Ramdev. Um dos gurus de yoga mais populares do país, ele já defendeu a prática milenar como caminho para “curar a homossexualidade” e se posicionou diversas vezes em favor da CAA.

Em janeiro, a revista britânica The Economist estampou na capa a manchete “Índia intolerante”. Também por conta das repercussões da CAA, o jornal estadunidense The New York Times publicou artigos de opinião contrários a “repressão seletiva” das forças de segurança de Modi, afirmando que elas miram opositores e muçulmanos e protegem grupos aliados.

Até hoje, o único membro do governo a responder questionamentos sobre o uso político do yoga e sua relação com os objetivos da nova lei de cidadania foi o vice-presidente Venkaiah Naidu, em fevereiro.

“Yoga não é atividade política. Não é por causa de Modi. É pelo seu corpo”, declarou na abertura do festival Mahashivarathi, evento promovido por um centro de yoga em Delhi. “A atmosfera que está sendo criada contra a CAA é lamentável. Os partidos da oposição precisam entender isso. Quem cria esse conflito está insultando a nação”, completou.

Ame-a ou deixe-a?

“Só porque eu não quero fazer yoga não significa que eu não seja patriota”, disse o parlamentar indiano muçulmano Asaduddin Owaisi em 2015, no contexto da celebração do primeiro Dia Internacional. De lá para cá, as tensões só aumentaram.

Em 2017, os relatórios do Departamento de Registro de Crimes da Índia incluíram pela primeira vez a categoria “crime cometido por elementos antinacionais”. A tipificação inclui ações de “extremistas de esquerda” e “terroristas jihadistas”.

A pesquisadora Patricia Sauthoff, citada no início desta reportagem, ministrou o curso “História e Política do Yoga”, inaugurado em 2016 na Universidade Nalanda, leste da Índia, durante a gestão do reitor Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia.

“A ideia era falar sobre o papel do yoga no país. Porque as pessoas chegam na Índia com uma expectativa, aí veem o conceito sendo apropriado por um governo de direita, e isso produz um choque”, explica.

“Debatíamos as diferenças entre a longa tradição do yoga e a maneira como isso vem à tona na atualidade, com essa perspectiva do RSS e o nacionalismo hindu”, completa Sauthoff. “A origem do yoga remete a certa hibridez entre as tradições do budismo e do hinduísmo. Resumi-lo a uma prática hindu é ignorar parte significativa da história da Índia e suas complexidades”.

Depois de um semestre, as aulas tornaram-se alvo do BJP. Em meados de 2017, o secretário nacional do partido, Ram Madhav, exigiu a abolição do curso e criticou o fato de a professora ser estrangeira.

A Universidade de Nalanda enviou um e-mail a Sauthoff ameaçando tomar “medidas cabíveis” caso ela não se desculpasse à nação. Meses antes, a gestão Amartya Sen havia sido substituída por um grupo alinhado a Modi.

A pesquisadora não se desculpou, e logo foi taxada como “antinacional” por apoiadores do BJP nas redes sociais. O curso foi abolido pela reitoria e ela nunca mais voltou à Índia. “Foi assustador e muito revelador sobre a maneira como eles operam”, resume.

“A criação da categoria ‘antinacional’ cumpre papel fundamental no projeto nacionalista hindu”, lembra a antropóloga Mariana Faiad Batista Alves. “Todo crítico do BJP é visto como antinacional, e quem não é hindu é visto como não-indiano. Todo muçulmano passa a ser visto como um paquistanês em potencial, e as mudanças na lei de cidadania, no final de 2019, são a radicalização disso”.

Yogi Adityanath (BJP), ministro-chefe de Uttar Pradesh, estado mais populoso do mundo, chegou a sugerir que aqueles que se posicionam “contra o yoga” deveriam deixar o país.

Integrantes de partidos e movimentos de esquerda indianos relataram em off que se encontram em uma sinuca de bico: embora seja urgente denunciar o projeto do BJP, ninguém quer ser taxado como “anti hindu” em um país em que 80% da população segue o hinduísmo.

Em vez de criticar o yoga em si, opositores questionam Modi por tentar se apropriar das tradições milenares para desviar o foco dos problemas reais da Índia. Em fevereiro deste ano, por exemplo, o líder do partido Samajwadi, Akhilesh Yadav, disse ironicamente que o primeiro-ministro deveria sugerir um asana postura de yoga) para os jovens desempregados do país.

Apesar das críticas esboçadas por parte da imprensa ocidental, Mariana Faiad Batista Alves diz que o governo indiano continua blindado, em certa medida, o que demonstra a eficácia desse poder brando. “Mesmo quem critica o Modi no Ocidente não o coloca no mesmo nível do Bolsonaro, por exemplo, embora ele seja até pior, por toda a violência institucionalizada e pelo projeto por trás do nacionalismo hindu”, analisa.

Reeleito em maio de 2019, Narendra Modi cumpre o segundo mandato à frente da Índia. O BJP tem 303 das 543 cadeiras do Legislativo e governa 12 dos 29 estados do país.
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sábado, 30 de novembro de 2019

ARTE REALISTA| Meditagram


Sinopse: Olá, Budalovers! Quer ver uma sinopse mais legal que essa? Então arrasta pra cima, reage com foguinho, responde por DM, usa meu filtro de #CarpeDiem... (Porta dos Fundos)
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Meditagram (farsa, BRA, 2019), de Vini Videla.
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quarta-feira, 28 de agosto de 2019

ARTE REALISTA| Paz e Amor


Paz e Amor
Lulu Santos

Lá vem eles dizendo de novo
Dessa vez vai ser pra valer
Lá vem eles mentindo pro povo
Que a parada vai se resolver
Quem nêgo acha que engana
Nem fulano, nem beltrana
Ficam prometendo um paraíso
Mas não sabem evitar a dor

Lá vão eles fugindo de novo
Sem sequer tentar se esconder
Lá vão eles pulando do fogo
Bem na hora do 'vamo vê'
Quem abandona o navio
Não segurará pavio
Ficam esperando um paraíso
Que jamais vai ser

Paz e amor só para quem lutar por isso
Paz e amor só para quem lutar

Lá vem eles, pregando de novo
Dessa vez é a vez que vai ser
Lá vem eles, incensos e flores
Hare krishna, falô pode crê
Como tem gente que se engana
Crente, crente que é bacana
Ficam esperando um paraíso
Que jamais vai ser

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Toda Forma de Amor (BRA, 1988) - Lulu Santos.
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sexta-feira, 23 de agosto de 2019

ARTE REALISTA| As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor


As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor
Raul Seixas

Tá rebocado, meu compadre
Como os donos do mundo piraram
Eles já são carrascos e vítimas
Do próprio mecanismo que criaram

O monstro Sist é retado
E 'tá doido pra transar comigo
E sempre que você dorme de touca
Ele fatura em cima do inimigo

A arapuca está armada
E não adianta de fora protestar
Quando se quer entrar num buraco de rato
De rato você tem que transar

Buliram muito com o planeta
O planeta como um cachorro eu vejo
Se ele já não aguenta mais as pulgas
Se livra delas num sacolejo

Hoje a gente já nem sabe
De que lado 'tão certos cabeludos

Tipo estereotipado
Se é da direita ou dá traseira
Não se sabe lá mais de que lado

Eu que sou vivo pra cachorro
No que eu tô longe eu tô perto
Se eu não estiver com Deus, meu filho
Eu estou sempre aqui com o olho aberto

A civilização se tornou tão complicada
Que ficou tão frágil como um computador
Que se uma criança descobrir o calcanhar de Aquiles
Com um só palito para o motor

Tem gente que passa a vida inteira
Travando a inútil luta com os galhos
Sem saber que é lá no tronco
Que 'tá o coringa do baralho

Quando eu compus fiz Ouro de Tolo
Uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse
Mas eles só vão entender o que eu falei
No esperado dia do eclipse

Acredite que eu não tenho nada a ver
Com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira
A única linha que eu conheço
É a linha de empinar uma bandeira

Eu já passei por todas as religiões
Filosofias, políticas e lutas
Aos 11 anos de idade eu já desconfiava
Da verdade absoluta

Raul Seixas e Raulzito
Sempre foram o mesmo homem
Mas pra aprender o jogo dos ratos
Transou com Deus e com o lobisomem


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Gita (BRA, 1974) - Raul Seixas.
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segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O fascismo ocultista de Dugin e o sequestro do anti-imperialismo e do anti-salafismo


 
por Wahid Azal 

Em seu artigo publicado no zine CounterPunch em Setembro de 2015, “Um novo capítulo na Internacional Fascista”, Alexander Reid Ross nos deu uma luz sobre o pé em que anda a Internacional Fascista em tempos recentes, sublinhando o papel do fascista russo e teórico da Quarta Teoria Alexander Dugin e suas redes nela. O que não recebe ampla atenção, todavia, sobre o estado atual das atividades dessas redes duginistas, especialmente nas redes sociais, é seus esforços de recrutamento ativo tanto entre a esquerda quanto entre grupos dispersos de muçulmanos xiitas e sunitas anti-salafistas, particularmente entre apoiadores do Eixo de Resistência. Essa sucessão de esforços parece ser muito mais uma tentativa de tornar a situação mais confusa, empreendida por certos agentes decisórios por trás das cenas que poderiam fraturar (ou neutralizar) uma frente unida contra o Império a partir da mobilização de base e eventualmente redirecioná-la para fins mais sinistros, do que efetivamente uma aliança legítima. Nesse artigo, iremos abordar a faceta pouco debatida desses desenvolvimentos (trata-se de um guia informando sobre o subtexto da palavra de ordem ideológica duginista “para além da esquerda e da direita” e sua tentativa de agradar todo mundo); e, nesse mesmo rumo, trataremos da apropriação duginista de uma estrutura ocultista primordialmente ocidental (em especial da visão de mundo da mágika do Kaos) e sua transformação pelos duginistas em uma estratégia para ação política a serviço da Internacional Fascista.

Para onde leva o tradicionalismo de Dugin?


Muitas discussões sobre Alexander Dugin já publicadas sublinharam suas vastas e quase sempre contraditórias influências, assim como seu passado e trajetória ideológica. Por exemplo, o “tradicionalismo” ou “neotradicionalismo” de Dugin – isso é, sua adesão às ideias do sufi francês e convertido ao Islã René Guénon (morto em 1951) e o italiano Julius Evola (morto em 1974) – foi detalhada por Mark Sedgwick e outros (ver, por exemplo, o livro dele de 2004, Against the Modern World, capítulo 12). Todavia, ao menos nos anos mais recentes, o tradicionalismo de Dugin tem sido exagerado, tendo em mente seu heideggerianismo fanático (quase messiânico) – especialmente quando o comparamos com as visões de desprezo, e mesmo de aberta hostilidade, que muitos da escola tradicionalista nutriam quanto a Martin Heidegger. Isso parece o ter colocado fora da proverbial aquarela do neotradicionalismo. Comentários feitos em um dos primeiros capítulos de seu livro de 2014, Martin Heidegger: The Philosophy of Another Beginning, página 18, onde Heidegger é elevado por Dugin ao status de uma figura escatológica de um novo clímax ao lado do profeta do Islã, apenas reforçam as visões negativas tradicionalmente quanto ao “anti-tradicionalismo” de Dugin normalmente expressas por neotradicionalistas contemporâneos.

Assim, o pretenso tradicionalismo perenialista de Dugin, que serviu por um bom tempo como seu cartão de visitas biográfico, não é mais um traço confiável para descrevê-lo de forma acrítica e sem questionamentos. Se Dugin algum dia foi um neotradicionalista, não o é mais em qualquer sentido significante, o que faz o uso e apropriação feita das ideias de Dugin por nacionalistas brancos dos Estados Unidos, como Matthew Heimbach, ainda mais sem qualquer validade. Portanto, continuar a discutir as ideias e posições de Dugin sob a luz do tradicionalismo evoliano e guenoniano pode ser de fato algo só confunde porque em tempos recentes ele se movimentou na direção oposta, rumo ao que alguns neotradicionalistas provavelmente caracterizariam como “correntes contra-iniciáticas” e como “contra-tradição”.

A Mágicka do Kaos como a verdadeira visão de mundo duginista

A ideias misantrópicas do ocultista britânico e satanista Aleister Crowley (morto em 1947), por outro lado, estruturam a visão de mundo duginista e sua práxis contemporânea. De fato, é dentro da visão de mundo da Mágicka do Kaos (ou Magia do Caos) que a compreensão de muitos dos paradoxos e aparentes contradições da visão de mundo duginista devem ser buscados – e em especial da palavra de ordem da Quarta Teoria, “para além da esquerda e da direita” –, já que esse é (de forma explicitamente articulada ou não) o verdadeiro locus animador da práxis da extrema-direita duginista, a começar pela escolha de sua simbologia, isso é, a bandeira eurasiana de oito pontas (ou flechas) amarelas ou brancas estruturadas em um padrão de irradiação, com um fundo preto de fundo. Esse símbolo é referido dentro da Magia do Caos como a “roda do caos”, “o símbolo do caos”, “os braços do caos”, “as flechas do caos”, “a estrela do caos”, “a cruz do caos”, “a caosfera” ou “o símbolo do oito”. A visão de mundo da Magia do Caos é um fruto da filosofia thelêmica de Crowley, devemos lembrar. Uma espécie da reminiscência da Sociedade Thule e da apropriação da suástica por Hitler a partir dos escritos dos escritos da fundadora da Sociedade Teosófica Helena Blavatsky (morta em 1891), Dugin pegou seu desenho das popularizações feitas por magos do caos ocidentais durante os anos 1970 e 1980 os quais se apropriaram dele por sua vez através do trabalho do escritor britânico de ficção científica e fantasia Michael Moorcock.

Devemos ressaltar aqui que tanto o número oito quanto a cor preta possuem papel de destaque em toda a simbologia neonazista e de extrema-direita, para não mencionar que a própria “roda do caos” guarda semelhanças chamativas com o conhecido símbolo da “roda de sol negro” usada pela SS e muitos neonazistas contemporâneos (assim como o símbolo antigo dos velhos falangistas espanhóis). Em sua própria defesa, Dugin provavelmente alegaria que o número oito possui importantes correspondências dentro do esoterismo cristão assim como se refere a Cristo. Todavia, sua óbvia (ou, antes, dúbia) escolha da “roda do caos” tende a refutar essa afirmação. Além disso, como um autoproclamado nacionalista russo, não fica exatamente claro porque Alexander Dugin escolheu seu principal símbolo de fontes localizadas dentro da tradição do ocultismo britânico ao invés daquelas presentes na sua Rússia nativa, ou, ainda, dentro da Cristandade Ortodoxa Oriental a que ele afirma aderir. Esse ponto sozinho, acreditamos, apenas reforça as alegações que dizem respeito ao anti-tradicionalismo de Dugin, ao mesmo tempo que o situa em universo totalmente diferente daquele que ele pretende ser um porta-voz.

Seja como for, tal comportamento por si só seria bem consistente com o ditame básico da Magia do Caos que afirma a maleabilidade de todas as crenças e a utilidade delas como ferramentas nas mãos do mago do caos. Aqui é a “vontade de poder” nietzscheana em si mesma que vira a motivação primordial do mago negro, convertido agora em ativista político. A partir disso, a próxima fórmula significativa da Magia do Caos é a da contínua mudança de paradigmas ou a constante mudança arbitrária de crenças, onde a sustentação de posições contraditórias simultaneamente se torna um veículo para a autorrealização e a compreensão da coincidência dos opostos que subjaz a todos os fenômenos, coincidentia oppositorum. Como prática espiritual existem numerosas correlações e comparações que podem ser feitas com essa ideia específica entre muitas tradições ao redor do globo (isso é, o taoismo, o sufismo, o tantrismo, o hermetismo, etc), e em si própria ela é algo neutro. O caso é que com Dugin e seus acólitos a questão não está ligada especificamente a qualquer prática espiritual e na sua realização por si, mas antes se trata puramente de uma prática política e de vontade de poder em sua forma mais bruta. Em outras palavras, para Dugin o laboratório alquímico e sua ars operativa reside não em si próprio, mas antes no mundo maior e no teatro da política onde o mago negro atua para “imanentizar o eschaton[1] e onde esse “eschaton” representa a inversão de todos os valores.

A pedra filosofal de Dugin é portanto o poder sobre o mundo como um fim em si mesmo, e não poder sobre si próprio. Isso, somado com outros traços de seu pensamento, é o que informa a palavra de ordem “além da esquerda e da direita” repetida como um mantra pelos duginistas. É também o que faz do duginismo algo particularmente perigoso como uma ideologia e como um movimento. Em outras palavras, nessa visão de mundo onde a Mágicka do Kaos atua como um motor primordial ideológico, princípios ocultistas são postos a serviço de um programa político fundamentalmente fascista. Alguns também chamariam isso de uma forma de satanismo e mais uma manifestação da própria modernidade e do “Ocidente materialista” que Alexander Dugin pretende combater. É possível dizer que o Nacional Socialismo hitlerista tentou basicamente a mesma coisa, a despeito de tudo que Dugin faz para se distanciar e criticar desse movimento – também animado, tal como foi, por preocupações e motivações ideológicas subjacentes quase idênticas.

Tendo isso em vista, René Guénon costumava dizer que Blavatsky e sua Sociedade Teosófica existente durante o século XIX e início do XX essencialmente atuavam como um cavalo de Troia colonialista apoiado pelos serviços secretos britânicos de modo a infiltrar e dispersar as culturas religiosas tradicionais dos vários subcontinentes em que se fazia presente (ver o seu livro, Teosofia: a história de uma pseudo-religião). Quando olhamos para as redes de Dugin no Irã, Líbano, Síria e em vários pontos do mundo islâmico, para não mencionar a Europa Oriental, não podemos descartar totalmente a possibilidade que padrões e induções similares estejam motivando e subjacentes à agenda de recrutamento dos duginistas onde o próprio Dugin pode ser visto como uma nova Blavatsky com suas redes como sucessores da Sociedade Teosófica – o cavalo de Troia do Império Britânico. Certamente, sua tentativa de estilhaçar o já fraturado espectro de esquerda/direita na Europa para recrutar mais gente para a extrema-direita parece apelar a isso diretamente dado que a sua retórica abertamente racista e reacionária quanto à crise imigratória/dos refugiados, tendo tudo em vista, tende a colocar um problema às alianças que eles fizeram dentro do mundo islâmico entre iranianos, iraquianos, libaneses, sírios e outros setores do eixo de resistência.

Rússia, a crise dos refugiados na Europa e a geopolítica duginista de extrema-direita em ação

Agora, o papel instrumental da Otan no colapso do estado líbio em 2011; a Guerra na Síria que agora chega ao seu quinto ano; o Estado Islâmico; Ucrânia e, acima de tudo, a crise de refugiados na Europa parece ter fornecido aos duginistas uma rara oportunidade para explorar rachas antigos e novos entre intersecções tanto da esquerda anti-guerra quanto entre ativistas da própria comunidade muçulmana para recrutar a partir desses grupos. Isso se evidencia especialmente nos recentes pontos adotados por um grande número de comentaristas de esquerda que costumam ser progressistas que aparecem regularmente no Russia Today e em outros pontos da mídia alternativa onde sua posição consistente anti-guerra quanto à Síria em específico e ao imperialismo ocidental em geral tem cedido espaço para uma mistura de narrativas reacionárias sobre a crise europeia de refugiados. Resumindo, temos uma situação em que certos progressistas (e mesmo muçulmanos) adotaram a retórica supremacista branca contemporânea sobre uma guerra de culturas de caráter fascista (e de seus contumazes amigos de viagem) que flagela os imigrantes do Oriente Médio e Norte da África e outros buscadores de asilo na Europa, em que a histeria direitista sobre o que se percebe ser uma ameaça à “cultura europeia” e “seu modo de vida” é repetida acriticamente, de vários modos, como se fossem papagaios.

Se alguns culpam o estado russo diretamente por tais desenvolvimentos recentes, o ponto de vista do presente autor é de que tal desenvolvimento de eventos ultimamente beneficia as agendas do próprio Império ao invés da Rússia, de modo tal que esses duginistas podem estar de fato servindo de cães de guarda para iniciativas políticas de longo prazo anglo-americanas e atlantistas ao invés daquelas específicas da Rússia. Seja como for, rumores surgem por todo o lado de que o estado russo foi um doador generoso (e mesmo chegou a financiar abertamente por alguns períodos) grupos fascistas e de extrema-direita como o Jobbik na Hungria e o Aurora Dourada na Grécia. Desde 2014 na Alemanha, por exemplo, o AfD (Alternative für Deutschland), o NPD (Nationaldemokratische Partei Deutschlands) e o PEGIDA teriam recebido substancial apoio financeiro moscovita como uma forma de desestabilizar Merkel e o centro alemão, personagens centrais nas sanções impostas à Rússia após a anexação da Criméia em Março de 2014. Alegações similares surgem quanto ao Front National de Le Pen na França. Certamente muito do jingoísmo anti-imigração e anti-refugiados publicado regularmente nas páginas do Russia Today em face dessas situações tende a apoiar tais alegações.

Todavia, mesmo com isso, não é claro exatamente como tais políticas beneficiariam estrategicamente a Rússia de Putin no longo prazo, já que essas mesmas forças que a Rússia ostensivamente apoia hoje poderiam facilmente ser dirigidas no futuro pelo seu rival geopolítico anglo-americano e usados contra a própria Rússia, como o caso da Ucrânia demonstra de forma cabal. Certamente pode se argumentar que a Rússia e os atlantistas Anglo-americanos estão usandos “proxies” concorrentes de extrema-direita uns contra os outros tendo em vista seus próprios interesses na Europa como uma forma de guerra assimétrica, tendo a Alemanha como um de seus campos de batalha chave e a questão da crise de refugiados como eixo nervoso. Mas isso tenderia a indicar algum racha na Internacional Fascista e também explicar uma das razões para os agressivos esforços de recrutamente presentemente feitos pelos duginistas (especialmente entre muçulmanos e esquerdistas desencantados e sem lar) nas mídias sociais e outros lugares. Apesar disso, na Grécia, por exemplo, não foi com o Aurora Dourada mas com o Syriza que Dugin investiu pessoalmente mais energia, e o papel do Syriza desde 2015 em acentuar a fratura interna dentro da esquerda europeia foi inegavalmente central...

Muito mais poderia ser dito, mas qualquer que seja a retórica jogada por duginistas entre comunidades ativistas para atraí-las, em seus próprios méritos o duginismo não é nem autenticamente anti-imperialista nem possui genuinamente quaisquer valores de esquerda. Nem, aliás, se trata de um movimento tradicionalista. Na verdade, em todas as suas faces o duginismo representa uma forma bem maquiada de separatismo branco fascista, o que significa dizer que é mais uma transmutação ideológica do supremacismo branco euroamericano que se organizou em um movimento. A própria definição enviesada de Dugin do que é a Eurásia, na qual a Eurásia meramente representa a faixa de terra horizontal entre Vladivostok e Lisboa (e na qual se exclui categoricamente todo o Sudoeste e Sudeste Asiático), reforça esse fato. Assim, os perigos sedutores representados pelo duginismo e suas redes a qualquer frente unida contra o Império entre a esquerda anti-imperialista e os muçulmanos anti-salafistas não pode ser subestimado.

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Notas:
[0] Tradução: El Coyote. 
[1] “Imanentizar o eschanton” se trata de expressão popularizada pelo autor Eric Voegelin, difundido no Brasil através de Olavo de Carvalho e da editora “É Realizações”. Voegelin utiliza a expressão pejorativamente para se referir aos esforços realizados por movimentos políticos de trazer a História a um Fim, isso é, de realizar o momento escatológico no mundo, na esfera imanente, visto por ele como um esforço tipicamente gnóstico – apesar de autores como Russel Nieli apontarem a proximidade teórica entre Eric Voegelin e autores gnósticos e perenialistas como Frithjof Schuon, o qual foi mestre espiritual de Olavo de Carvalho. [N. do T.]
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