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segunda-feira, 17 de março de 2025

O marxismo ocidental de Slavoj Žižek


por Domenico Losurdo

I. O anti-imperialismo de Žižek

Se comparado com 1989 e os anos imediatamente posteriores, e se comparado com o período em que o discurso sobre a nada pranteada morte definitiva de Marx se tornara praticamente senso comum, o quadro ideológico de nossos dias se mostra bem diferente: é claro e crescente o interesse pelo grande pensador e revolucionário, e os autores que de uma maneira ou de outra a ele se referem gozam não raro de considerável prestígio e popularidade. Devemos, então, falar de uma recuperação do marxismo ocidental?

Recentemente, o expoente mais ilustre daquele que adora se autodefinir, sedutoramente, como o “marxismo ocidental libertário” saudou 2011 como “o ano do despertar da política radical de emancipação em todo o mundo”[1]. Verdade seja dita, o autor não demorou a admitir a desilusão em que logo recaiu. Mas abstraiamos os desenvolvimentos sucessivos e concentremo-nos no ano de 2011, saudado em termos tão lisonjeiros: sim, era o ano em que novos movimentos de protesto (Occupy Wall Street, Indignados etc.) pareciam se alastrar como fogo, mas também o ano em que a Otan deflagrava contra a Líbia uma guerra  que, depois de provocar dezenas de milhares de mortos, se encerrou com o terrível linchamento de Muammar Kadafi. O caráter neocolonial da agressão era reconhecido por respeitados órgãos da imprensa ocidental. No entanto, Hillary Clinton entregava-se a um júbilo tão excessivo (“nós viemos, nós vimos, ele morreu!”, we came, we saw, he died! — exclamava triunfante a então secretária de Estado), a ponto de provocar escrúpulos até num jornalista da Fox News: em sua opinião, esse entusiasmo por um crime de guerra era perturbador. Infelizmente, a infame empresa neocolonial aqui tratada não apenas não encontrou resistências de relevo no marxismo ocidental como, na Itália, foi legitimada por pelo menos uma figura histórica dessa corrente de pensamento[2].

Ainda em 2011, em Tel Aviv e em outras cidades israelenses, centenas de milhares de “indignados” acorriam às praças contra o alto custo de vida, os aluguéis exorbitantes etc., mas eram bem cautelosos quanto a discutir a persistente e acelerada colonização dos territórios palestinos: a “indignação” alertava para as crescentes dificuldades dos estratos populares da comunidade judaica, mas não julgava digna de atenção a interminável tragédia do povo submetido à ocupação militar. Assim descreve essa tragédia, numa prestigiosa revista estadunidense, um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém: ao menos no que se refere aos territórios palestinos ocupados, Israel é uma “etnocracia”, em última instância, um Estado racial.

A colonização das terras palestinas expropriadas pela força prossegue ininterrupta. Os que ousam protestar “são tratados com rigor, às vezes levados à prisão por longo período, às vezes mortos no decorrer das manifestações”. Tudo isso se insere no âmbito de “uma campanha impiedosa cujo objetivo é tornar a vida dos palestinos o mais miserável possível [...], na esperança de que eles vão embora”. É uma obra de limpeza étnica, ainda que diluída no tempo. Estamos diante de uma etnocracia tão dura que nos traz a memória os “tenebrosos precedentes da história do século passado”[3]. Apesar disso, os “indignados” com o alto custo de vida a que estão submetidos, mas indiferentes à cruel “etnocracia” imposta aos palestinos, foram celebrados por dois ilustres autores de orientação marxista como paladinos de uma nova sociedade, “baseada nas relações comunitárias”[4].

Seria 2011, então, “o ano dos despertar da política radical de emancipação em todo o mundo” (para citar Žižek), ou do despertar do ideal de uma sociedade “baseada nas relações comunitárias” (como disseram Hardt e Negri), ou ainda seria o ano em que os crimes colonialistas e neocolonialistas encontram o silêncio ou a conivência até dos ambientes tradicionais da esquerda? Ao traçarem seu balanço abstraindo completamente a sorte reservada aos povos coloniais, Žižek, Hardt e Negri reproduzem, ampliando-o ainda mais, o limite de fundo do marxismo ocidental. Desse ponto de vista, o sucesso de que sobretudo Žižek goza em nossos dias leva-nos pensar não numa recuperação, mas num último suspiro do marxismo ocidental.

O recalque da questão colonial é parte integrante da plataforma teórica e política do filósofo esloveno. Para ele, o mundo existente, anos-luz distante do Outro desejado ou sonhado, é dominado integralmente pelo capitalismo; não faria sentido distinguir as potências imperialistas e colonialistas dos países que há pouco tempo se libertaram do domínio colonial e que ainda, entre tentativas e erros, tentam superar o atraso, alcançar a plena independência também no plano econômico e atribuir-se instituições políticas adequadas às próprias condições econômico-sociais, bem como à própria situação geopolítica. Žižek não é menos hostil do que Arendt à categoria de Terceiro Mundo. Aliás, ele é mais radical. É contundente sua ironia em relação àqueles países que, embora façam referência a uma ideologia revolucionária e por vezes ao marxismo, agitam a bandeira do anti-imperialismo: a luta de classes já não teria como protagonistas “os capitalistas e o proletariado de cada país”, mas se desenvolveria num quadro internacional, contrapondo os Estados mais do que as classes sociais; dessa forma, a marxiana “crítica do capitalismo enquanto tal” se reduz e se deforma em “crítica do ‘imperialismo’”, que perde de vista o essencial, isto é, as relações capitalistas de produção[5].

Depois de tirar do caminho as categorias de Terceiro Mundo, imperialismo e anti-imperialismo, a única distinção sensata, no que diz respeito ao presente, seria a distinção entre “capitalismo autoritário” e não autoritário. Na primeira categoria deve ser incluída a China[6], mas podem ser inseridos também o Vietnã e talvez a própria Cuba, depois das recentes aberturas de mercado e à economia privada (ao menos tendencialmente capitalista). Seja como for, aqui devem ser inseridos os países da “América Latina”, marcados por um “capitalismo populista” inclinados ao caudilhismo e ao autoritarismo[7]. Se olharmos com atenção, de alguma maneira ressurge a distinção desprezada pelo filósofo esloveno, aquela entre Terceiro Mundo, de um lado, e Ocidente capitalista (e com tradições e persistentes tendências colonialistas), de outro. Só que agora tal distinção reaparece por glória exclusiva do Ocidente liberal, que se torna o modelo a ser seguido pelos países do Terceiro Mundo.

Em conclusão: o ponto de vista de Žižek não diverge da autoconsciência das classes dominantes na Europa e nos Estados Unidos. A constatação dessa convergência não é, por si só, uma contestação. É o próprio filósofo esloveno, porém, quem nos fornece essa contestação. Ele menciona a diretiva dada por Kissenger à CIA no intuito de desestabilizar o Chile de Salvador Allende (“Façam com que a economia grite de dor”) e destaca como tal política teve continuidade contra a Venezuela de Chávez[8]. Evita-se, porém, uma pergunta que naturalmente se impõe: por que a Venezuela de Chávez e Maduro deveria ser considerada mais “autoritária” do que o país que pretende a todo custo desestabilizá-la e subjugá-la e que pretende exercer sua ditadura na América Latina e no mundo? Claro, do ponto de vista da autoconsciência do Ocidente liberal, o despotismo ou o autoritarismo exercido contra os povos coloniais são irrelevantes. Com base nessa lógica, em seu discurso de posse do primeiro mandato presidencial, Bill Clinton celebrava os Estados Unidos como a mais antiga democracia do mundo: a escravização dos negros e a expropriação, deportação e dizimação dos nativos não mereciam nenhuma atenção. A uma abstração semelhante e igualmente arbitrária procede Žižek, que nem sequer se pergunta se o autoritarismo de Washington não estimula em alguma medida o autoritarismo de Caracas.

Pode-se fazer uma consideração de caráter geral: é muito estranha uma crítica do capitalismo que poupe os piores aspectos desse sistema, muito evidentes, segundo a lição de Marx, nas colônias. Não teria credibilidade uma crítica ao trabalho assalariado que silenciasse sobre o trabalho escravo, pois a história do trabalho escravo em suas diversas formas está em ampla medida ligada à história da opressão colonial. E certamente é enganosa uma crítica do “autoritarismo” como a de Žižek, que nos leva a menosprezar o “autoritarismo” praticado contra povos que, por decisão soberana de uma grande potência ou de uma coalizão de grandes potências, são submetidos a embargos devastadores ou a bombardeios e ocupação militar.

II. Žižek, o desprezo pela revolução anticolonial e a demonização de Mao

A desconsideração da luta entre colonialismo e anticolonialismo também se manifesta nos capítulos da história evocadas pelo filósofo esloveno. A propósito da revolução dos escravos negros de São Domingo/Haiti, ele observa que, depois da morte de Jean-Jacques Dessalinis, em 1806, esse evento sofre uma “regressão para uma nova forma de domínio hierárquico”[9]. A observação é correta se nos ativermos exclusivamente à política interna. No plano internacional, ao contrário, o cenário é bem diferente: mesmo sem conseguir estabilizar e superar a autocracia, o poder dos escravos ou ex-escravos continua a desempenhar uma função revolucionária: é Alexander Pétion, presidente entre 1806 e 1818, quem obtém de Simón Bolívar o compromisso com a libertação imediata dos escravos em troca de apoio à luta da América Latina pela independência da Espanha. Por outro lado, em defesa obstinada do instituto da escravidão, vemos a “democrática” república norte-americana, que, com um política de embargo ou de bloqueio naval, tenta impor a inanição ou a capitulação ao Haiti, o país que, não obstante o despotismo de seu regime político, encarna a causa do abolicionismo e da liberdade para os negros. Se quiséssemos utilizar o critério que Žižek estabelece para a leitura do presente, deveríamos dizer que o Haiti representava o “capitalismo autoritário”, ao passo que os Estados Unidos representavam o capitalismo mais ou menos “democrático". Contudo, tal leitura nos permite entender muito pouco tanto do presente quanto do passado, além de distorcer ambos.

Não menos unilateral é o juízo formulado pelo filósofo esloveno sobre a União Soviética que sucede a morte de Lênin. Limito-me aqui a reportar uma afirmação lapidar: “Heidegger erra quando reduz o Holocausto à produção unilateral de cadáveres; quem se reduziu a isso foi o comunismo stalinista, não o nazismo”[10]. Deixemos de lado o gosto pela provocação, tão caro a esse autor, que frequentemente parece apreciar mais pirotecnia do que os argumentos. O essencial não é isso: vimos eminentes historiadores caracterizar a agressão hitlerista do Leste como a maior guerra colonial de todos os tempos, uma guerra colonial contra a qual, já sabemos, Stálin se prepara mesmo antes da conquista do poder. Pois bem, o mínimo que se pode dizer é que o teórico do “marxismo ocidental libertário” não tem uma posição preliminarmente anticolonialista! Como ignora o papel internacional do Haiti, encarnação da causa abolicionista apesar de seu regime político despótico, também não dá nenhuma atenção ao papel internacional da União Soviética de Stálin, que, aniquilando a tentativa hitlerista de reduzir a Europa oriental a “Índias alemãs”, deu a sentença de morte para o sistema colonialista mundial (ao menos na sua forma clássica).

O mais significativo é o modo como Žižek se posiciona em relação a outro recente capítulo da história, aquele referente à China. No que concerne à gravíssima crise econômica e à terrível penúria provocadas ou seriamente aprofundadas pelo Grande Salto para a Frente de 1958-1959, ele fala com distraída desenvoltura sobre a “decisão de Mao de matar de fome dez milhões de pessoas no fim dos anos 1950”[11]. Quando vi essa afirmação pela primeira vez, fiquei estarrecido: a tradução italiana seria imprecisa ou muito enfática? Nada disso! A versão original também não dá margem a dúvidas e, na verdade, é ainda mais desconcertante: “Mao's ruthless decision to starve tens millions to death in the late 1950's[12]. No original se fala não de “dez milhões de pessoas", mas de “dezenas de milhões de pessoas"; provavelmente, o tradutor tentou salvaguardar o prestígio do autor que traduziu, redimensionando  seus arroubos. De qualquer modo, é preciso que fique claro: o motivo recorrente da campanha voltada a demonizar, junto com o líder que em Pequim exercia o poder por mais de um quarto de século, a República Popular da China enquanto tal, a república surgida da maior revolução anticolonial da história, tal motivo é reverberado sem nenhuma cautela crítica pelo mais famoso expoente do “marxismo ocidental libertário”!

Todavia,a acusação em questão não obtém crédito algum entre autores mais sérios. Até O livro negro do comunismo, embora insistindo nas proporções colossais do desastre, reconhece que o “objetivo de Mao não era matar em massa seus compatriotas”[13]. Eminentes homens de Estado ocidentais também se recusavam a cavalgar o cavalo de batalha da incipiente guerra fria contra o grande país asiático. Numa entrevista ao jornal semanal Die Zeit, o ex-chanceler alemão Helmut Schmidt fez questão de destacar o caráter não intencional da tragédia que o Grande Salto para a Frente provocou em sua época[14]. De modo análogo argumentou Kissinger: de fato, tratou-se de “uma das piores crises de penúria da história humana”[15]. Mesmo assim, Mao se propunha acelerar ao máximo “o desenvolvimento industrial e agrícola" da China, pretendia alcançar o Ocidente em curto período e, desse modo, obter uma condição de bem-estar difuso e generalizado. Em suma, segundo o ilustre estudioso e político estadunidense, Mao “novamente chamara o povo chinês a mover montanhas, mas desta vez as montanhas não se mexeram”.

Ainda que marcada pela honestidade e seriedade intelectual, as tomadas de posição anteriormente reportadas apresentam um limite: ignoram o contexto histórico em que se insere o Grande Salto para a Frente e que remete à longa duração da luta entre colonialismo e anticolonialismo. Já conhcecemos a preocupação expressa por Mao às vésperas da proclamação da República Popular da China: o país, apesar do respaldo da gloriosa luta de libertação nacional, corria o risco de depender economicamente dos Estados Unidos e, portanto, de se tornar uma semicolônia.

Com efeito, as diretivas da administração Truman eram ao mesmo tempo claras e impiedosas: já em condições desesperadoras devido a décadas de guerra e de guerra civil, a República Popular da China, não admitida na ONU e cercada e ameaçada no plano militar, devia ser submetida a uma guerra econômica que a conduziria rumo a uma “situação econômica catastrófica”, “rumo ao desastre” e ao “colapso”. Isso também provocaria a derrota do Partido Comunista Chinês, que até aquele momento governara somente áreas rurais mais ou menos extensas e, portanto, padecia de uma total “inexperiência” no que se referia ao “campo da economia urbana". Era dessa condição de extrema fragilidade econômica e de potencial queda ou recaída numa condição de dependência semicolonial que Mao tentava escapar, recorrendo a uma mobilização de massas de tipo militar em que dezenas de milhões de camponeses, embora semianalfabetos, com seu entusiasmo revolucionário, deveriam imprimir uma prodigiosa aceleração ao desenvolvimento econômico.

Na realidade, com sua impaciência e com sua inexperiência no “campo da economia urbana”, o líder chinês acabou caindo na armadilha preparada contra ele por seus inimigos. O resultado foi a catástrofe. Um fato, porém, dá o que pensar: no início dos anos 1960, um colaborador da administração Kennedy, a saber, Walt. W. Rostow, vangloriava-se do triunfo dos Estados Unidos, que tinham conseguido atrasar o desenvolvimento econômico da China por “décadas”. Isto é, a penúria que se seguiu ao Grande Salto para a Frente de 1958-1959 não era atribuída à suposta fúria homicida de Mao, mas sim à sabedoria maquiavélica da política perseguida por Washington[16].

Concluindo: Margolin, Schmidt e Kissinger erram ao não inserir claramente o desastroso experimento utopista de Mao na história da tragédia colonial iniciada com as guerras do ópio e ainda  em pleno desenvolvimento nos anos do Grande Salto para a Frente. No entanto, é Žižek que, omitindo tanto a luta entre colonialismo e anticolonialismo quanto a corrida frenética de Mao para escapar da desesperada miséria de massa resultante da agressão e do domínio colonial, atribui tudo à loucura homicida do líder chinês.

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Notas:
[1] Slavoj Žižek, In difesa delle cause perse (trad. Cinzia Arruzza, Milão, Salani, 2009), p. 255 [ed. bras.: Em defesa das causas perdidas, trad. Maria Beatriz Medina, São Paulo, Boitempo, 2011]; e Un anno sognato pericolosamente (trad. Carlo Salzani, Milão, Salani, 2012), p. 163 [ed. bras.: O ano em que sonhamos perigosamente, trad. Rogério Bettoni, São Paulo, Boitempo, 2012].
[2] Ver, neste volume, cap. 5, § 7.
[3] David Shulman,
“Israel in Peril”, The New York Review of Books, 7 jun. 2012.
[4] Michael Hardt e Antonio Negri, Questo non è un manifesto (Milão, Feltrinelli, 2012), p. 66. 
[5] Slavoj Žižek,
“Mao Tse-ting, the Marxist Lord of Misrule”, em Mao. On Practice and Contradiction (Londres, Verso, 2007), p. 2 e 5.
[6] Idem,
“De la démocratie à la violence divine”, em Giorgio Agamben et al, Démocratie, dans quell état? (Paris, La Fabrique, 2009), p. 131. 
[7] Idem, In difesa delle cause perse, cit., p. 450.
[8] Domenico Losurdo, La lotta di classe: una storia politica e filosofica (Roma/Bari, Laterza, 2011), cap. 9, § 7 [ed. bras.: A luta de classes: uma história política e filosófica, trad. Silvia de Bernardinis, São Paulo, Boitempo, 2015].
[9] Slavoj Žižek, Dalla tragedia alla farsa (trad. Cinzia Arruzza, Florença, Ponte alle Grazie, 2010 [2009]), p. 159 [ed. bras.: Primeiro como tragédia, depois como farsa, trad. Maria Beatriz de Medina, São Paulo, Boitempo, 2009].
[10] Idem, “Mao Tse-tung, the Marxist Lord of Misrule”, cit., p. 10.
[11] Idem, In difesa delle cause perse, cit., p. 212.
[12] Idem, In Defense of Lost Causes (Londres/Nova York, Verso, 2008), p. 169.
[13] Jean-Louis Margolin, “Cina: una lunga marcia nella note” (1997), em Stéphane Courtois et. al., Il libro nero del comunismo. Crimini - terrore - repressione (trad. Luisa Agnese Dalla Fontana, Milão, Mondadori, 1998), p. 456.
[14] Giovanni di Lorenzo, “Verstehen Sie das, Herr Schmidt?” (entrevista a Helmut Schmidt), Die Zeit, 13 set. 2012.
[15] Henry Kissinger, On China, (Nova York, The Penguin Press, 2011), p. 107 e 183-4. 
[16] Domenico Losurdo, Il revisionismo storico: problemi e miti (Roma/Bari, Laterza, 2015), cap. 6, § 10 [ed. bras.: Guerra e revolução: o mundo um século após outubro de 1917, trad. Ana Maria Chiarini e Diego Silva Coelho Ferreira, São Paulo, Boitempo, 2017].
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LOSURDO, D. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. Trad. Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 165-172.
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segunda-feira, 27 de junho de 2022

O aprendiz de feiticeiro: tradição liberal e fascismo


por Guy Lancaster
Marx and Philosophy/2012

No atual discurso político americano, termos como “liberal” e “fascista” — como “comunista” e “socialista” — há muito tempo foram esvaziados de todo significado substantivo, empregados por comentaristas de direita quase de forma intercambiável para significar ideias ou pessoas que eles consideram repreensíveis. De fato, o livro de Jonah Goldberg de 2008, Liberal Fascists: The Secret History of the American Left from Mussolini to the Politics of Meaning, tentou formular uma taxonomia do fascismo para permitir sua ligação com desdobramentos esquerdistas como feminismo, vegetarianismo, direitos dos homossexuais e até neopaganismo. Enquanto isso, o presidente supostamente “liberal” Barack Obama tem sido frequentemente retratado como o fascista Adolf Hitler e o comunista Joseph Stálin, às vezes no mesmo painel raivoso, como se essas figuras representassem anseios ideológicos idênticos. A compreensão popular do fascismo claramente não melhorou desde o momento em que George Orwell, em “Politics and the English Language” (1946), alertou para os efeitos práticos de transformar tais termos em borrões de Rorschach ideológicos: “Desde que você não sabe o que o fascismo é, como você pode lutar contra o fascismo?” (Menos crucial, pode-se colocar a questão: se alguém acredita que o fascismo gerou os movimentos feminista e de casamento gay, como pode alguém entender o apoio do Vaticano a tantos governos fascistas?)

Uma correção muito necessária não só para as concepções populares do fascismo, mas também para um registro acadêmico que há muito tempo deturpou o fascismo como uma “terceira via” política entre o capitalismo e o comunismo, O aprendiz de feiticeiro [The Apprentice’s Sorcerer: Liberal Tradition and Fascism], de Ishay Landa, argumenta convincentemente que o fascismo tem sua origem na tradição liberal ocidental, embora de uma maneira mais de acordo com a observação concisa de Upton Sinclair: “fascismo é capitalismo mais assassinato”. Landa começa identificando como uma precondição histórica para o fascismo “a tensão inerente entre a dimensão política da ordem liberal e sua dimensão econômica” (21). Ou seja, a burguesia europeia do século XVIII exigiu governos representativos para libertar os mercados do protecionismo feudal, mas eles foram seguidos posteriormente pelas classes mais baixas que, por sua vez, exigiram o acesso a franquear eles mesmos na ordem para proteger seus próprios interesses, colocando o liberalismo econômico original contra o liberalismo político emergente. Enquanto John Locke defendia a democracia como escora do capitalismo, Vilfredo Pareto, cujas obras inspiraram Benito Mussolini, atacou a democracia “inteiramente nas premissas do liberalismo econômico”, como “sua restrição do ‘livre movimento de capital’ e sua invasão na propriedade privada por meio de tributação progressiva” (53). Linhas de pensamento similares eram correntes entre os pensadores alemães do período entre guerras, principalmente Oswald Spengler, e a animosidade de Adolf Hitler contra a democracia alemã estava baseada na crença de que “a República [de Weimar] significa[va] a interferência política ilegal e perniciosa no economia” (78).

Para mover melhor o debate para além da visão dominante de “terceira via” do fascismo, Landa conduz uma pesquisa exaustiva do que ele chama de “liberais antiliberais” — Arthur Moeller Van den Bruck, Thomas Carlyle, George Sorel e outros — examinando como tais críticos ostensivos do capitalismo de fato procuram reforçar a ordem liberal. Por exemplo, Landa argumenta categoricamente que a crítica de Carlyle ao laissez faire se baseia precisamente na observação de que ele “conduz, apesar de si mesmo, à democracia e ao domínio da multidão, destruindo o elitismo”, assim como as posteriores injunções fascistas contra o laissez faire foram empregados “não por entusiasmo revolucionário, mas para evitar a revolução; não para desafiar o capitalismo, mas para estabilizar seu navio; não para facilitar a sociedade sem classes, mas para consolidar as divisões de classe” (156, 157). O tema do declínio da civilização ocidental, tão frequentemente expresso pelos pensadores do início do século XX, regularmente se eleva do desespero pelo envolvimento das massas na política, e Landa encontra em Sorel “não tanto um inimigo do capitalismo, como... um inimigo do capitalismo fraco, dado a buscar compromissos com o socialismo parlamentar que foi uma espécie de economia mista e decadente” (197).

Nos dois últimos capítulos do livro, Landa confronta quatro “mitos” sobre o fascismo. Em relação ao primeiro, de que o fascismo constitui a tirania da maioria, Landa ilustra como os supostos defensores liberais da democracia, de Alexis de Tocqueville a Benedetto Croce, se preocupavam principalmente com a supremacia das classes proprietárias, enquanto outros pensadores como Ludwig von Mises propunham que a ditadura pode ser necessária para defender o liberalismo. Em segundo lugar, contra a noção de que o fascismo promoveu o coletivismo enquanto o liberalismo promoveu a individualidade, o autor observa “que tanto o fascismo quanto o liberalismo foram, de fato, atravessados ​​por uma ambivalência insolúvel em sua abordagem do individualismo” (251-2); na verdade, embora o fascismo empregasse regularmente a retórica do coletivismo (elevando ao mais alto a nação, a raça ou a sociedade), também fetichizou o individualismo na forma do “grande homem” e desmantelou a democracia em nome do individualismo. A origem da “grande mentira” vem ao escrutínio em seguida, e Landa a localiza dentro de uma longa tradição liberal de escrita esotérica que visa apoiar as elites enquanto esconde a verdade das massas “vulgares” e “ingênuas”. Finalmente, no que diz respeito às alegações de que o fascismo constituiu um ataque nacionalista ao cosmopolitismo liberal, Landa constata que os fascistas exibiram algumas das mesmas ambivalências sobre a ideia de nação que eles fizeram sobre o individualismo (afinal, é através das nações que as massas têm seus direitos), embora para a Alemanha a nação forneceu “a plataforma necessária, a partir da qual lança uma campanha de expansão capitalista” (319).

A abordagem de Landa garante não apenas uma nova conceituação da tradição liberal, mas também — visto que apresenta uma genealogia do fascismo não utilizada pela maioria dos estudiosos da violência massificada europeia — uma revisitação de análises anteriores do inter-relacionamento entre fascismo e genocídio. Por exemplo, Aristotle Kallis, em Genocide and Fascism: The Eliminationist Drive in Fascist Europe (2009), prontamente emprega a visão da “terceira via” ao explicar como os regimes fascistas desenvolveram visões utópicas de regeneração nacional que buscavam apagar o passado imediato e redimir o estado-nação, mas a tese de Landa oferece um retrato muito mais rico desse desenvolvimento, pois agora o passado a ser expurgado é reconhecido como o avanço democrático do interesse popular, enquanto o estado a renascer é um de ordem hierárquica e contentamento entre as várias classes quanto ao seu lugar nessa ordem. Além disso, a gama de vítimas, que incluía não apenas judeus, mas comunistas e socialistas, bem como não-produtores (os mentalmente e fisicamente inaptos), faz muito mais sentido se o fascismo for entendido como militante do capitalismo em vez de um conceito intelectual genérico ou anti-ideologia.

No entanto, alguns trabalhos recentes no campo dos estudos de genocídio complementam a tese de Landa. Christopher Powell, em Barbaric Civilization: A Critical Sociology of Genocide (2011), argumenta que o próprio discurso da civilização realmente aumenta a capacidade de uma sociedade para a e possibilita o monopólio do estado da — violência, especialmente porque o habitus “civilizado” permite uma fácil “alterização” daquelas populações ou indivíduos que não compartilham tais performances de comportamento civilizado. É claro que um dos marcos da civilização tem sido a economia de livre mercado, e a ausência de tal sistema entre muitos povos do mundo serviu bem para justificar a exploração colonial europeia dos chamados grupos “bárbaros”; muito antes de os líderes europeus do século XIX estarem se preocupando com os feitos dos marxistas, os ingleses na América do Norte condenavam as tendências “comunistas” dos nativos, cuja falta de qualquer conceito de “propriedade privada” os marcava como selvagens. Ainda hoje, entre os herdeiros da tradição liberal ocidental, o capitalismo é equiparado à civilização as forças ocupacionais americanas no Iraque começaram a privatizar grandes setores do governo no momento em que seus pés tocaram o chão em Bagdá, apresentando isso ao mundo como uma “modernização” da sociedade iraquiana.

Em seu epílogo, Landa ilustra brevemente como as elites empresariais e governamentais do Reino Unido e dos Estados Unidos realmente simpatizavam com o fascismo, com Winston Churchill até poupando elogios ocasionais a Hitler: “O verdadeiro Sonderweg, ao que parece, não é um caminho alemão, ou um italiano, ou um espanhol, ou um austríaco, mas o caminho do ocidente” (248). Tal expansão da nossa perspectiva está muito atrasada. Em um trabalho recente, Origins of Political Extremism: Mass Violence in the Twentieth Century and Beyond (2011), o cientista político Manus I. Midlarsky coloca o nacional-socialismo alemão, o imperialismo japonês e o islamismo radical sob o microscópio, mas deixa intocadas tamanhas atrocidades como a brutal ocupação britânica da Índia (o modelo ao qual Hitler aspirava), a colonização belga do Congo ou a guerra genocida dos Estados Unidos contra os nativos americanos; mas então, nenhum desses, apesar do número de mortos que rivalizava com o Holocausto, se encaixa em sua definição de extremismo, pois em vez de serem percebidos como fora do centro político de suas respectivas sociedades, descontínuos com a história anterior, os perpetradores dessas atrocidades incorporavam os ideais de suas respectivas sociedades especialmente a primazia do sistema capitalista. A tese de Landa, portanto, nos permite começar a construir uma estrutura conceitual muito maior de atrocidade massificada e suas origens, revelando a tradição liberal que está não apenas na base do extremismo fascista na Europa, com todas as suas roupagens horríveis, mas também no Destino Manifesto nos Estados Unidos e muito mais. Dentro desse quadro, os ideais e feitos dos fascistas se tornam não tão únicos, nem tão estranhos, mas tudo muito familiar.

Onde Landa ocasionalmente perde o fio de seu argumento é naqueles lugares onde ele traz sua análise para suportar as décadas pós-fascistas (se é que podemos falar de tal). Depois de notar como a retórica fascista sobre o individualismo santificou o sacrifício do indivíduo para o bem maior “‘o indivíduo’ virá primeiro quando confrontado com a sociedade de massa; mas a ‘sociedade’ virá primeiro, quando confrontada com as demandas dos indivíduos de massa” (255) ele salta para a administração de Margaret Thatcher, ilustrando a mesma dinâmica em sua retórica, como sua negação dos sem-tetos como um grupo versus o coletivismo dela em convocar o bem maior da sociedade durante a guerra pelas Ilhas Falkland [Malvinas]. Da mesma forma, ao explicar as origens liberais da “grande mentira” fascista, Landa faz um desvio para a sobreposição de teatro e política, especialmente como manifestada na carreira de Arnold Schwarzenegger, contrastando brevemente tais filmes anti-establishment dele, como The Running Man [1987] e Total Recall [1990], de seu mandato pró-establishment como governador da Califórnia.

Claro, é um subtexto corrente deste livro que se o fascismo se origina não de um impulso antiliberal e irracional confinado no tempo e lugar, mas sim das próprias contradições construídas na tradição liberal, a tradição pela qual nossas vidas continuam a ser governadas, então o fascismo pode emergir outra vez, talvez se reformulando de novo ou pode nunca ter desaparecido inteiramente. Nos Estados Unidos, numerosos políticos, suas carreiras financiadas por capitalistas, trabalham abertamente para limitar o poder de voto dos pobres e não-brancos uma solução clássica para a crise do liberalismo. Na escala global, o Fundo Monetário Internacional demanda que as nações do sul global se satisfaçam com sua parte (o contentamento de classe do passado) à medida que privatiza componentes de suas comunidades e lhes despojam de recursos. Podemos dizer que tais medidas evidenciam elementos de um impulso fascista dentro de nossos sistemas políticos e econômicos? Sim, podemos, pois a obra magistral de Landa responde à reclamação de George Orwell, enchendo a palavra “fascista” de significado e poder mais uma vez, para que ela possa ser empregada não como um insulto genérico, mas como uma descrição adequada de quem destruiria a democracia para o benefício do lucro.

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[0] Tradução original da resenha feita por Roberto Lucena e revisão de Paulo Ayres.
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quarta-feira, 6 de abril de 2022

ARTE REALISTA| This is Not America



This is Not America
Lisa-Kainde Diaz / Naomi Diaz / Residente / Trooko

Estamo' aquí
Oye, que estamo' aquí
Mérame, estamo' aquí

Desde hace rato, cuando ustedes llegaron
Ya estaban las huellas de nuestros zapatos
Se robaron hasta la comida'e gato
Y todavía se están lamiendo el plato

Bien encabrona'o con estos ingratos
Hoy le doy duro a los tambores
Hasta que me acusen de maltrato
Si no entiendes el dato
Pues te lo tiro en cumbia
Bossanova, tango o vallenato

A lo calabó y Bambú, bien Frontú
Con sangre caliente como Timbuktu
Estamos dentro del menú
2pac se llama 2pac por Túpac Amaru del Perú

América no es solo USA, papá
Esto es desde Tierra del Fuego hasta Canadá
Hay que ser bien bruto, bien hueco
Es como decir que África es solo Marruecos

A estos canallas
Se les olvidó que el calendario que usan se lo inventaron los Mayas
Con La Valdivia Precolombina
Desde hace tiempo, ah
Este continente camina

Pero ni con toda la marina
Pueden sacar de la vitrina la peste campesina
Esto va pa'l capataz de la empresa
El machete no solo es pa' cortar caña
También es pa’ cortar cabezas

Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde

Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde, ah

Si quieres, mi machete te muerde, ah
Si quieres, mi machete te muerde, ah
Si quieres, mi machete te muerde, ah

Te muerde, ah
Te muerde, ah

Los paramilitares, la guerrilla
Los hijos del conflicto, las pandillas
Las listas negras, los falsos positivos
Los periodistas asesinados, los desaparecidos

Los narcos gobiernos, todo lo que robaron
Los que se manifiestan y los que se olvidaron
Las persecuciones, los golpes de Estado
El país en quiebra, los exiliados
El peso devaluado

El tráfico de droga, los carteles
Las invasiones, los emigrantes sin papeles
Cinco presidentes en once días
Disparo a quema ropa por parte de la policía

Más de cien años de tortura
La nova trova cantando en plena dictadura
Somos la sangre que sopla la presión atmosférica

Gambino, mi hermano
Esto sí es América

Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde

Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde, ah

Si quieres, mi machete te muerde, ah
Si quieres, mi machete te muerde, ah
Si quieres, mi machete te muerde, ah

Te muerde, ah
Te muerde, ah

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Residente (ft. Ibeyi). Videoclipe (2022) dirigido por Gregory Ohrel.
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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Horkheimer, do antiautoritarismo ao filocolonialismo


por Domenico Losurdo

A incompreensão e a negação da questão colonial atingem o ápice numa corrente de pensamento à qual também devemos análises brilhantes e agudas dos problemas sociais, políticos e morais, próprios da sociedade capitalista. Refiro-me à Escola de Frankfurt. Ao publicar O Estado autoritário, em 1942, Horkheimer faz um balanço do capítulo de história iniciado com a Revolução de Outubro. O juízo de condenação é claro e sem meios-termos: na Rússia afirmou-se não o socialismo, mas o “capitalismo de Estado”. Claro, cabe reconhecer que “este fortalece a produção” de maneira extraordinária e isso é de grande vantagem para “os territórios atrasados da terra”, que em pouco tempo podem superar o atraso em relação aos países mais avançados[1]. Ao menos isso poderia ser considerado um resultado positivo? Na realidade, é certo que a Rússia governada com punho de ferro pelos bolcheviques obteve enorme sucesso no desenvolvimento industrial e econômico, a ponto de se tornar um modelo, mas quem se sensibiliza com isso?

Ao invés de se transformar numa democracia participativa e de conselhos, o grupo [o Partido Comunista] pode fixar-se como autoridade. Trabalho, disciplina e ordem podem salvar a república e liquidar a revolução. Apesar de ter afirmado que a supressão dos Estados fazia parte de seu programa, aquele partido transformou sua pátria industrialmente atrasada no modelo secreto daquelas potências industriais que sofriam com seu parlamentarismo e já não podiam viver sem o fascismo.[2]

Enquanto essas linhas eram escritas, o Exército nazista, tendo dominado boa parte da Europa, está às portas de Moscou e Leningrado, cujos habitantes estão ameaçados de morte por uma assustadora máquina de guerra ou por um assédio impiedoso e pela fome por ele infligida. Em tais circunstâncias, que sentido tem invocar a “democracia participativa e de conselhos” e até mesmo o ideal ou a utopia da extinção do Estado? É o momento em que aparece estar ao alcance das mãos a realização do projeto de Hitler, destinado explicitamente a escravizar os povos da Europa oriental de modo a edificar ali um grande império colonial de dimensão continental.

Se, apesar de submetida à colossal pressão exercida por um aparato militar gigantesco e de experimentada eficiência e brutalidade, a União Soviética consegue resistir, é graças ao desenvolvimento industrial a toque de caixa evidenciado pelo próprio Horkheimer. Porém, ele não dá nenhuma importância a tudo isso, considera irrelevante o fato de que o que está em jogo é o conflito entre colonialismo e escravismo, de um lado, e anticolonialismo e antiescravismo do outro. Aos olhos do prestigiado expoente da “teoria crítica”, é justamente o país nascido da Revolução de Outubro – e prestes a ser escravizado (depois que sua população foi dizimada) – que merece um juízo mais severo:

A espécie mais coerente de Estado autoritário que se libertou de toda dependência do capital privado é o estatismo integral ou socialismo de Estado [...]. No estatismo integral é decretada a socialização. Os capitalistas privados são abolidos [...]. O estatismo integral não significa uma diminuição, mas, ao contrário, uma potencialização das energias, pode viver sem ódio racial.[3]

E mais uma vez nos deparamos com a falta de criticidade da teoria crítica: parece irrelevante a diferença entre um país empenhado em impor um Estado racial, decidido a dizimar e a escravizar as “raças inferiores”, bem como a exterminar os grupos políticos e étnicos (bolcheviques e judeus) rotulados como instigadores da revolta das “raças inferiores”, e um país que sabe estar entre as vítimas predestinadas de tal Estado racial e do qual se defende desesperadamente.

Mesmo com o olhar voltado para o passado e para o plano da filosofia da história em geral, Horkheimer presta pouca ou nenhuma atenção à questão colonial (e racial): “A Revolução Francesa era tendencialmente totalitária”[4]. Assim, torna-se alvo a revolução que, no início da era contemporânea, em São Domingos, estimulava a grande sublevação dos escravos negros e, em Paris, forçava a Convenção jacobina a decretar a abolição da escravidão nas colônias. Imunes às suspeitas de totalitarismo ou autoritarismo restam as duas revoluções inglesas do século XVI e a revolução americana do século XVIII, que impulsionavam a instituição da escravidão e que, no caso da República norte-americana, comportavam a primeira aparição do Estado racial (não por acaso, nas suas primeiras décadas de vida, presidido quase sempre por proprietários de escravos).

A condenação da Revolução Francesa não conhece limites. “O ‘sans-cullote Jesus’ anuncia o Cristo nórdico”[5]. A figura evocada pelas correntes mais radicais da Revolução Francesa, com a finalidade de derrubar de uma vez por todas a barreira quase naturalista que no Antigo Regime separava as classe populares das elites, é equiparada à figura elaborada pela cultura reacionária que desemboca no nazismo e está empenhada em restabelecer a barreira natural entre povos e “raças”, a barreira que fora varrida pela épica rebelião dos jacobinos negros de São Domingos/Haiti e pela abolição da escravidão negra em Paris, sancionada por Robespierre.

Uma vez liquidadas a Revolução Francesa e a Revolução de Outubro, só resta se curvar ao liberalismo miticamente transfigurado e, portanto, identificado com a afirmação e a defesa da “autonomia do indivíduo”[6]. É uma transfiguração que envolve também a figura de Locke, lido como o defensor do princípio segundo o qual todos os homens seriam “livres, iguais e independentes”[7]. E, novamente, como por encanto, desaparecem a escravidão e a defesa da escravidão negra graças a um filósofo que é beneficiário de tal instituição no plano material, por ser acionista da Royal African Company, ou seja, da sociedade que gerenciava o tráfico de gado humano.

Dados esses pressupostos, não surpreendem a desatenção , a desconfiança ou a hostilidade com que Horkheimer observa a revolução anticolonial mundial em curso na sua época. Ele lê a história de seu tempo como o conflito entre “Estados civis” e “Estados totalitários”. Isso vale também para os anos da Guerra Fria: “Devo dizer que se os Estados civis também não gastassem somas enormes com armamentos, há muito já estaríamos sob o domínio dessas potências totalitárias. Se criticamos, temos também de saber que os criticados eventualmente não podem se comportar de outra maneira”[8]. Estamos em 1970: a guerra do Vietnã torna-se mais violenta que nunca, e o seu caráter colonial e as práticas genocidas nela utilizadas são públicos. Entretanto, o maior expoente da teoria crítica não tem dúvidas: o Ocidente “civil’ precisa se defender dos bárbaros do Oriente!

Nem a luta dos afro-americanos contra o persistente regime da white supremacy no Sul dos Estados Unidos põe em xeque as certezas de Horkheimer. Sem dúvida, ele alude à “atual situação difícil das race relations do outro lado do Atlântico”, mas acentua o “terrorismo dos ativistas negros em relação aos outros negros [...], que é muito mais forte do que se pensa”; “o negro médio tem mais medo dos negros”[9] do que dos brancos. No conjunto, a revolução anticolonialista mundial é, para dizer o mínimo, inútil: “a questão dos negros americanos” poderia ser rapidamente resolvida “se não existissem os contrastes entre o Oriente e o Ocidente” e os conflitos com “as partes atrasadas do mundo”[10]. As discriminações contra as quais os afro-americanos combatiam eram atribuídas à Guerra Fria e à própria revolução anticolonial, como se percebe pela referência crítica ao “terrorismo dos ativistas negros” nos Estados Unidos e ao papel do Terceiro Mundo.

Na verdade, aconteceu exatamente o contrário. Em dezembro de 1952, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas, somente depois de ter sido alertada pelo Ministro da Justiça: uma sentença diferente teria radicalizado as “raças de cor” e favorecido o movimento comunista no Terceiro Mundo, bem como nos Estados Unidos[11]. A passagem da desconfiança à hostilidade é rápida:

Nossa teoria crítica mais recente não lutou mais pela revolução porque, após a queda do nazismo nos países do Ocidente, a revolução conduziria a um novo terrorismo, a uma situação terrível. Trata-se, ao contrário, de preservar aquilo que tem um valor positivo, por exemplo, a autonomia, a importância do indivíduo, sua psicologia diferenciada, certos momentos da cultura, sem interromper o progresso.[12]

Essa declaração não parece distinguir Ocidente e Terceiro Mundo, de modo que também a revolução anticolonial então em curso no Vietnã (ou, alguns anos antes, aquela que obteve a vitória na Argélia) são comparadas ou equiparadas a um “novo terrorismo”.

De caráter mais geral é esta outra declaração:
 
A teoria crítica tem a função de expressar aquilo que, em geral, não é expresso. Deve, portanto, ressaltar os custos do progresso, o perigo de que, a partir dele, acabe por desaparecer até mesmo a ideia do sujeito autônomo, a ideia de alma, pois ela parece irrelevante em relação ao universo [...]. Agora queremos que o mundo seja unificado, queremos que o Terceiro Mundo não sofra mais com a fome, ou que não seja mais forçado a viver no limite da fome. Mas, para alcançarmos esse objetivo, teremos de pagar o preço de uma sociedade que se configura exatamente como um mundo administrado [...]. Aquilo que Marx imaginou ser o socialismo, na realidade, é o mundo administrado.[13]
 
Juntamente com o socialismo e com a revolução anticolonial propriamente dita, aqui se condena também o desenvolvimento econômico dos povos que se libertaram ou estão prestes a se libertar do jugo colonial. Somos colocados diante de uma alternativa terrível: conformar-se com a miséria de massa dominante fora do Ocidente ou mergulhar no horror do mundo administrado. E, ao menos para a teoria crítica, a segunda opção é bem pior que a primeira.

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Notas:
[1] Max Horkheimer, “Lo Stato autoritario” [1942], em La società di transizione (org. Werner Brede, Turim, Einaudi, 1979), p. 4, 11 e 22.
[2] Ibidem, p. 8.
[3] Ibidem, p. 11.
[4] Ibidem, p. 9.
[5] Ibidem, p. 10.
[6] Max Horkheimer, “La teoria critica ieri e oggi” [1970], em La società di transizione, cit, p. 175.
[7] Idem, Iclissi della ragione. Critica della ragione strumentale [1967] (trad. E. Vaccari Spaganol, Turim, Einaudi, 1969), p. 30.
[8] Idem, “La teoria critica ieri e oggi” [1970], em La società di transizione, cit, p. 172.
[9] Ibidem, p. 138 e 178.
[10] Ibidem, p. 159.
[11] Ver, neste volume, cap. 6, § 2.
[12] Max Horkheimer, “Lo Stato autoritario”,cit., p. 168-9.
[13] Ibidem, p. 174-5.
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LOSURDO, D. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. Tradução de Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 89-93.
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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Não há mais como negar o apartheid israelense



A Anistia Internacional, uma das maiores ONGs de direitos humanos do mundo, publicou no último dia 1º de fevereiro o relatório “O apartheid israelense contra a população palestina”.

O documento de 280 páginas analisa em detalhes o cruel sistema de opressão e dominação imposto pelo governo israelense contra a população árabe palestina, em benefício da população judaica da região.

Segundo o relatório, os principais componentes deste crime contra a humanidade são: a fragmentação territorial, segregação e controle, desapropriação de terras e propriedades e a negação de direitos econômicos e sociais.

Tudo isso feito sistematicamente, sob controle do Estado.

Para a Anistia Internacional, e para esta Federação Árabe Palestina do Brasil e todo o movimento global pela libertação da Palestina, está na hora de Israel desmantelar este sistema!

Está na hora de a comunidade internacional pressionar Israel pelo fim do apartheid!

Pilha de provas e denúncias

O relatório da Anistia Internacional soma-se a uma extensa lista de publicações, convenções e resoluções feitas nas últimas décadas sobre os crimes de apartheid e limpeza étnica cometidos por Israel.

“O relatório coroa o acúmulo de provas sobre o apartheid, comprovado e denunciado já há décadas por inúmeras organizações, estudos independentes de observadores internacionais e até mesmo entidades e intelectuais israelenses”, avalia o presidente da FEPAL, Ualid Rabah.

“Mesmo que não seja uma novidade, é de extrema relevância para a opinião pública em geral e para a comunidade internacional ver agora este pronunciamento oficial por parte da maior organização civil de direitos humanos do mundo”, completa.

Em julho do ano passado, a ONG Human Rights Watch, outra gigante global na defesa dos direitos humanos, denunciou os crimes de Israel num relatório de 213 páginas chamado “Um limite ultrapassado: autoridades israelenses e os crimes de apartheid e perseguição”.

Em 2020, a ONG israelense B’Tselem foi outra a admitir, após resistir por anos a esta classificação, que há “Um regime de supremacia judaica do Rio Jordão ao Mediterrâneo: o apartheid” em todo o território da Palestina histórica.

O texto original traduzido foi publicado neste site da FEPAL (leia).

Este são apenas exemplos recentes. Em 2004, a Corte Internacional de Justiça de Haia, na Holanda, declarou que o muro construído por Israel na Cisjordânia viola as leis internacionais e promove o apartheid, exortando a ONU a tomar medidas para interromper a construção.

A barreira de 760 km, que em alguns pontos chega a 8 metros de altura, está em constante expansão e é mundialmente conhecido como o “muro do apartheid”.

Richard Falk, professor emérito de direito internacional na Universidade de Princeton e ex-relator especial da ONU sobre a situação dos territórios palestinos ocupados, também classificou como apartheid, em 2014, a opressão sistemática do povo palestino por Israel.

Durante seis anos ele coordenou um relatório independente sobre o tema para o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que posteriormente seria descartado pelo órgão por pressão de Israel e seus aliados.

Ainda antes, em 2008, Falk, um judeu estadunidense, comparou as ações das forças israelenses na Faixa de Gaza à dos nazistas na Europa durante a Segunda Guerra.

Até mesmo um escritor brasileiro, também judeu, já denunciara este crime.

No seu livro-reportagem “O apartheid de Israel” (Editora Alfa Omega, 2001), Nathaniel Braia remonta a violenta história da ocupação colonial da Palestina e da expulsão de sua população autóctone da região, reconhecida até mesmo pelos tribunais locais e cofinanciada pela maior potência militar e econômica do mundo, os EUA.

Braia, que hoje é redator para questões internacionais no jornal Hora do Povo, viveu em Israel e militou em grupos antissionistas. Ele foi preso seis vezes, todas por se recusar a servir ao exército israelense.
 
A reação previsível de Israel

Antes mesmo de o relatório ser publicado, Israel já havia o classificado como antissemita, numa estratégia cada vez mais batida de tentar desviar o foco das acusações.

Em comunicado à imprensa, o chefe da diplomacia israelense, Yair Lapid, pediu que a AI não publicasse o relatório, acusando a ONG de “não ser uma organização de direitos humanos, mas uma organização radical”.

De Jerusalém, a secretária-geral da ONG, Agnès Callamard, respondeu as acusações, mantendo a publicação do relatório.

“O relatório é resultado de quatro anos de trabalho, pesquisa e comprometimento com a base do movimento Anistia. Temos 70 seções no mundo representando 10 milhões de pessoas que apoiam este relatório e estão prontas para sua publicação”, afirmou.

Para o presidente da FEPAL, a banalização do “antissemitismo”, usado reiteradamente por Israel como um escudo para ocultar seus crimes, desmoraliza o termo e coloca em risco seu próprio significado.

“Esta alegação indiscriminada e indevida de ‘antissemitismo’ já soa quase como uma fake news quando é proferida pelas autoridades israelenses”, avalia Ualid.

“Essa banalização tem de ser combatida por todos, inclusive para preservar o seu valor simbólico, para que as pessoas de fé judaica jamais voltem a sofrer os crimes e perseguições que sofreram, e que hoje nós palestinos sofremos justamente nas mãos daqueles que instrumentalizam esse conceito”, conclui.

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  • Baixe aqui o relatório completo: em espanhol | em inglês
  • E leia no site da Anistia Internacional (em espanhol) o excelente texto de lançamento da campanha contra o apartheid israelense
  • Assista o vídeo oficial de lançamento da campanha da Anistia Internacional, legendado e publicado pela FEPAL em suas redes
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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Herança e transfiguração do liberalismo em Ernst Bloch

 
por Domenico Losurdo

Apesar da apaixonada denúncia do universalismo e do humanismo, ou melhor, exatamente graças a ela, recalcando significativamente a questão colonial, Tronti e Althusser, paradoxalmente, acabam por convergir para as posições de Bloch, que desde o início também corrobora sem problemas o universalismo e o humanismo de que o Ocidente liberal adora se vangloriar. Ao longo da Primeira Guerra Mundial, vimos o filósofo alemão subscrever a ideologia da Entente, que proclamava querer realizar nos impérios centrais e em todo o mundo a democracia por ela obstinadamente negada aos povos coloniais.

E desde o primeiro Bloch o Ocidente liberal é contraposto positivamente não apenas à Alemanha de Guilherme II, mas também ao país que nasce com a Revolução de Outubro. Em relação a ele, o jovem filósofo expressa um juízo severo antes mesmo da retirada do Exército alemão ou do fim da guerra civil: “Os proletários do mundo não combateram por quatro anos e meio contra a Prússia em nome da democracia mundial para depois abandonar a liberdade e a linha democrática (o orgulho das culturas ocidentais) em nome da conquista da democracia econômico-social” a que remete a Rússia soviética. Como parece miserável esta última quando comparada com a República norte-americana:

Com toda a admiração por Wilson, jamais se poderia pensar, enquanto socialistas, que o sol de Washington um dia pudesse superar o esperado sol de Moscou, que a liberdade e a pureza pudessem vir da América capitalista.[1]

Está em curso um duplo recalque. Ignora-se o fato de que a guerra provocou um clima de terror e caça às bruxas também nos países de tradição liberal mais consolidada e que, graças a sua localização geográfica, se encontram a uma distância segura dos campos de batalha e do perigo de invasão. O recalque mais grave diz respeito, entretanto, à questão colonial. Apenas alguns anos antes, recorrendo a uma repressão impiedosa e até a práticas genocidas, os Estados Unidos celebrados por Bloch haviam conseguido domar a revolução independentista das Filipinas. No próprio território metropolitano, entre os séculos XIX e XX, um regime de white supremacy terrorista atacava os negros, repetidamente submetidos a linchamentos, isto é, a tortura e execução lentas e intermináveis, encenadas como espetáculos de massa para uma festiva comunidade branca.

A segunda Guerra Mundial assiste à irrupção da questão colonial bem além do mundo colonial propriamente dito. Hitler pretende edificar as “Índias alemãs” na Europa oriental, por vezes comparada a uma espécie de Oeste ou Faroeste: da mesma forma que os pele-vermelhas, os “indígenas” que faziam fronteira com o Terceiro Reich precisam ser deportados e dizimados, a fim de que sejam conquistados novos territórios para a raça branca e germânica; os sobreviventes estão destinados a trabalhar como escravos negros a serviço da raça dos senhores. O Império japonês também não se comporta de maneira diferente na Ásia. No entanto, a centralidade assumida pela questão colonial não induz Bloch a nenhum tipo de reanálise.

Em 1961, ele publica Direito natural e dignidade humana. Como se depreende já do título, estamos bem distantes da subestimação da libertas minor, cara a Della Volpe; ao contrário, a reivindicação da herança da tradição liberal é alta e forte. A crítica dirigida a ela continua a ser a que já conhecemos e que o jovem Bloch expressava com palavras de Anatole France: no mundo liberal-capitalista “a igualdade perante a lei significa proibir em igual medida, aos ricos e aos pobres, roubar lenha e dormir sob as pontes”[2]. Em Direito natural e dignidade humana, o filósofo afirma que o liberalismo erra ao propor uma “igualdade formal e apenas formal”. E acrescenta: “Para se impor, o capitalismo visa apenas à realização de uma universalidade da regulamentação jurídica que tudo abarca de igual modo”[3].
 
Essa afirmação pode ser lida num livro publicado no mesmo ano em que, em Paris, a polícia desencadeia uma impiedosa caça aos argelinos, afogados no Sena ou mortos a golpes de cassetete; e tudo isso à luz do sol, ou melhor, na presença de cidadãos franceses que, sob a proteção do governo da lei, assistem divertidos ao espetáculo. Quanta “igualdade formal”! Na mesma capital de um país capitalista e liberal, vemos em curso uma dupla legislação que entrega ao arbítrio e ao terror policial um grupo étnico bem definido[4]. Se, além disso, considerarmos as colônias e semicolônias e voltarmos o olhar, por exemplo, para a Argélia, para o Quênia ou para a Guatemala (país formalmente livre, mas de fato sob o protetorado estadunidense), vemos o Estado dominante, capitalista e liberal recorrendo em larga escala e sistematicamente às torturas, aos campos de concentração e às práticas genocidas tendo como alvo os indígenas. Não há vestígio de nada disso em Bloch.

E os povos coloniais ou de origem colonial continuam ausentes quando o autor de Direito natural e dignidade humana procede à reconstrução histórica da modernidade e do liberalismo. Ele aprecia a orientação jusnaturalista de Grotius e Locke, mas não faz nenhuma menção ao empenho de ambos em justificar a escravidão dos negros; com referência à guerra de independência americana, louva a luta dos “jovens Estados livres”, que mais tarde fundam os Estados Unidos, mas silencia sobre o peso da escravidão na realidade político-social e na própria Constituição federal norte-americana[5].

Tal silêncio é ainda mais singular devido ao fato de que precisamente naqueles anos se desenvolve na república do outro lado do Atlântico a luta dos afro-americanos pela liquidação definitiva do regime de supremacia branca. É um episódio que atrai a atenção de Mao Tsé-tung em Pequim, e pode ser interessante comparar os posicionamentos de duas personalidades tão diferentes uma da outra. O filósofo alemão denuncia o caráter meramente “formal” da igualdade liberal e capitalista; o dirigente comunista ressalta o vínculo entre a desigualdade social e a desigualdade racial: os negros sofrem uma taxa de desemprego muito mais alta que os brancos. são confinados nos segmentos inferiores do mercado de trabalho e forçados a se contentar com salários mais baixos. Mao não se restringe a isso: também ressalta a violência racista desencadeada pela autoridades do Sul e pelos grupos por ela tolerados ou encorajados e saúda “a luta do povo negro americano contra a discriminação racial e pela liberdade e igualdade de direitos”[6]. Bloch critica a revolução burguesa por ter limitado “a igualdade à igualdade política”[7]; em relação aos afro-americanos, Mao ressalta que “a maior parte deles não tem direito de voto”[8]. Reduzidos a mercadoria e desumanizados por seus opressores, por séculos, os povos coloniais conduziram batalhas memoráveis pelo reconhecimento, mas em Bloch podemos ler: “O princípio segundo o qual os homens nascem livres e iguais já está presente no direito romano; agora deve estar presente também na realidade”[9]. Em contrapartida, vemos na conclusão do artigo do líder comunista chinês dedicado à luta dos afro-americanos pela emancipação: “O cruel sistema colonialista-imperialista se desenvolveu com a escravização e com o tráfico dos negros, e certamente chegará ao fim com a completa libertação deles”[10].

Como se vê, nos textos aqui citados de Mao (assim como naqueles já conhecidos de Ho Chi Mihn), não existem nem a subestimação da libertas minor, cara a Della Volpe, nem a ilusão, comum sob diversas formas em Della Volpe e Bloch (e Bobbio), segundo a qual capitalismo e liberalismo garantiriam, de qualquer maneira, a “igualdade formal” ou até a “igualdade política”.
 
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Notas:
[1] Ernst Bloch, Kampft, nicht Krieg. Politische Schriften, 1917-1919 (Frankfurt, Suhrkamp, 1985 [1918], p. 399-400.
[2] Ver, neste volume, cap. 1, § 7.
[3] Ernst Bloch, Naturrecht und menschliche Würde (Frankfurt, Suhrkamp, 1961, p. 157.
[4] Domenico Losurdo, Il linguaggio dell'Impero, cit., cap. 6,§ 2.
[5] Ernst Bloch, Naturrecht und menschliche Würd, cit., p. 80.
[6] Mao Tsé-tung, On Diplomacy (Pequim, Foreign Languages Press, 1998 [1963]), p. 377.
[7] Ernst Bloch, Naturrecht und menschliche Würde, cit., p. 7.
[8] Mao Tsé-tung, On Diplomacy, cit., p. 377.
[9] Ernst Bloch, Naturrecht und menschliche Würde, cit., p. 79.
[10] Mao Tsé-tung, On Diplomacy, cit., p. 379.
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LOSURDO, D. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. Tradução de Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 86-89.
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