segunda-feira, 29 de abril de 2019

Horkheimer leitor de Schopenhauer: uma tradução e um breve comentário


por Flamarion Caldeira Ramos
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O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião, de 1971, foi o último de cinco textos que Horkheimer publicou em vida sobre a filosofia de Schopenhauer. Além dele, Horkheimer pronunciou outras quatro conferências na sede da Schopenhauer Gesellschaft em Frankfurt: Schopenhauer e a sociedade (1955), A atualidade de Schopenhauer (1961), Religião e filosofia (1967) e Pessimismo hoje (1969). Do primeiro ao último texto é possível notar algumas diferenças fundamentais na abordagem de Horkheimer, pois, se fica clara a vinculação entre os primeiros textos e as reflexões críticas sobre a “razão instrumental” e a “sociedade administrada”, marcantes no pensamento do Horkheimer do pós-guerra, nos últimos é evidente o parentesco com os temas da assim chamada filosofia tardia de Horkheimer, que flerta comum a recuperação da teologia por meio da temática do “anseio pelo inteiramente outro”. Para compreender o que está em jogo nesses textos, portanto, temos de ver como o motivo do pessimismo se desenvolve ao longo da obra de Horkheimer.

Seguindo a indicação de F. Werner Veauthier, podemos esboçar ao menos cinco posições ao longo do desenvolvimento intelectual de Horkheimer nas quais o “motivo do pessimismo” se faz presente.[1] Em primeiro lugar, posições fundamentalmente pessimistas formam desde o início um elemento constante no pensamento de Horkheimer, por mais que se queira ver o pessimismo da fase tardia como uma radical mudança em relação às posturas críticas da década de 30. Esse elemento se refere ao caráter infundado da busca da felicidade, do sofrimento da natureza, das dores do passado e da transitoriedade do presente. Por isso, apesar de todo otimismo que possa ter o materialismo com relação à mudança das condições, 

apesar de toda a valorização da felicidade que brota do esforço por mudança e da solidariedade, ele carrega consigo um traço pessimista. A injustiça passada é irremediável. Os sofrimentos das gerações passadas não encontram nenhuma compensação.[2]

O pessimismo aqui não se refere a uma teoria catastrófica, apocalíptica em relação ao presente e ao futuro, mas a fatos do passado, algo que não pode ser mais resgatado. Essa experiência do pessimismo não contradiz a convicção no caráter socialmente condicionado do bem estar humano, pois também o sofrimento é causado por relações sociais e como tal deve ser combatido. Nesse sentido, o pessimismo também se compreende como socialmente condicionado, pois diz respeito a uma sociedade em que a solidariedade com aqueles que ela exclui, com os pobres e injustiçados, é negada: o pessimismo é, portanto, negação da solidariedade negada. Se é assim, então o pessimismo de Horkheimer se distancia, pelo menos em sua fase inicial, de um pessimismo autocomplacente referido ao próprio sujeito, constantemente qualificado de “romântico”, pois tenta unir a convicção de que “o núcleo mesmo da vida é o sofrimento e a morte” com a solidariedade presente na crítica social que visa a emancipação. Seria então essa convicção que justificaria a seguinte afirmação posterior de Horkheimer?

O pessimismo metafísico, momento implícito em todo pensamento genuinamente materialista, me foi familiar desde sempre. À obra de Schopenhauer devo meu primeiro contato com a filosofia: a relação com a doutrina de Hegel e de Marx, o desejo de compreender e de mudar a realidade social não resgataram, apesar do contraste político, minha experiência com a sua filosofia.[3]

Um segundo momento seria aquele caracterizado pelos textos do pós-guerra que se dirigem especialmente a uma crítica da razão: a Dialética do esclarecimento (em parceria com Adorno) e o Eclipse da razão. A ideia do esclarecimento, essencial para o processo emancipatório, é considerada um fracasso, e Horkheimer afirma a posição pessimista de um declínio latente da razão. Trata-se agora do tema da perversão da razão que, em vez de levar à emancipação do homem, conduziu a uma dominação da natureza e a um mundo totalmente administrado que tem como consequências o declínio do indivíduo e a revolta da natureza. Esse novo diagnóstico potencializa o motivo pessimista, pois agora justamente aquela instância que poderia levar o homem à compreensão das injustiças, e assim dar o primeiro passo para a transformação das relações sociais injustas, é posta em cheque. Embora não chegue a afirmar um pessimismo metafísico, que estabeleceria causas a-históricas e intemporais para o mal no mundo – pelo contrário, Horkheimer recusa terminantemente o recurso a tal argumentação –, o autor não deixa de refletir sobre os fundamentos que levaram a uma tal situação. O que toma forma no pensamento de Horkheimer agora não é somente um pessimismo com relação à técnica, uma tecnofobia, mas a ideia segundo a qual a razão subjetiva, que transforma a razão num mero instrumento, corrói de maneira fatal a razão objetiva. Disso é consequência a falência dos sistemas objetivos da razão, que ainda tentavam dar voz às necessidades mais essenciais do homem e da natureza, e em seu lugar entra o mero cálculo e a transformação dos meios em fins. Esse talvez seja o momento mais importante da leitura horkheimiana de Schopenhauer, pois sem dúvida este último serviu de inspiração ao primeiro na medida em que Schopenhauer já considerava a razão, desvinculada de qualquer preocupação com o conhecimento objetivo, como um mero instrumento para servir à vontade de viver.[4]

Como consequência dessa situação e em contraste com o crescimento econômico e o Estado de bem-estar social, é possível notar nos apontamentos tardios (Notizen: 1949-1973) uma expansão do sentimento de desilusão com as promessas emancipadoras da atividade de crítica e transformação da sociedade. Este seria o terceiro momento do pessimismo em Horkheimer. O retrocesso da autonomia do sujeito individual, o desvanecimento da fantasia e da criatividade expressam uma situação social indigna e niveladora. Neste cenário é que se dá uma volta aos textos de Schopenhauer e uma desconfiança com relação ao pensamento dialético de Hegel e Marx. É o que se pode notar nas conferências Schopenhauer e a sociedade (1955) e A atualidade de Schopenhauer (1961). Inicialmente, o autor de Teoria tradicional e teoria crítica prefere ressaltar os aspectos inconformistas da moral schopenhaueriana e seu caráter crítico em relação ao idealismo de Hegel. A atualidade e o valor do radicalismo moral de Schopenhauer, segundo Horkheimer, consistem em sua insistente recusa de qualquer conciliação idealista em que o sofrimento encontre sua justificação.Dessa atitude é sintomática sua concepção nada divina do Estado que, antes de ser uma instituição moral, repousa no “egoísmo esclarecido” dos indivíduos, não sendo mais que uma instituição protetora em relação aos ataques externos e internos. Assim, Schopenhauer não teria

endeusado nada, nem o Estado nem a técnica; o desenvolvimento do intelecto se apoia no desenvolvimento das necessidades; e os promotores máximos das ciências foram a fome, o instinto de poder e a guerra: a fábula idealista acerca da astúcia da razão, mediante a qual o horror do passado se vê tanto embelezado como mitigado graças ao bom final, deixa que se filtre a verdade sobre o sangue e a miséria que acompanham os triunfos da sociedade, e o resto é ideologia.[5]

A revalorização que Horkheimer oferece do pensamento de Schopenhauer se deve ao reconhecimento de que nenhuma construção teórica pode estar acima do sofrimento de cada criatura num mundo que prossegue dominado pela contradição e pela dor. É assim que ele julga Schopenhauer como um “pessimista clarividente” que acabou sendo confirmado pela história no século XX; sua negação do curso do mundo é o reconhecimento da experiência de que nenhuma astúcia da razão pode justificar um mundo absurdo. A violência da história faz o homem recuar diante de qualquer esperança de emancipação, e o que tem lugar então é a experiência do horror histórico:

a doutrina de Schopenhauer põe ante a vista do que se trata: os interesses materiais, a luta pela existência, o bem-estar e o poder formam o motor; a história o resultado. Schopenhauer não racionalizou filosoficamente a experiência do horror e da injustiça que se dá até nos países que são governados do modo mais humano; teve medo da história; lhe repugnavam as mudanças políticas violentas que tentaram levar a cabo na época contemporânea com ajuda de uma exaltação nacionalista.[6]

É assim que Horkheimer, em especial a partir dos anos 60, insiste, contra Hegel e contra qualquer espécie de idealismo, na inadequação essencial entre o conceito e seu objeto. O espírito deve cobrar consciência de que o mundo vive dominado pela contradição e pela dor, mas, ao chegar a esse ponto, deve sucumbir, e não erigir-se em sistema de pensamento capaz de salvar a positividade do absoluto, nele incluindo a tortura e a morte[7]. Estabelece- se então a tarefa da filosofia, de dar voz ao sofrimento, e a recusa de conciliar a dor com qualquer falsa totalidade. A filosofia deve expressar, portanto, uma experiência, e essa experiência é a do sofrimento, pois somente a contemplação do mal pode fundar a solidariedade e o impulso de pôr-lhe fim. Maurício Chiarello mostra como a obra de Schopenhauer passa a ter um papel fundamental no pensamento de Horkheimer, quando este se desencanta com as promessas emancipadoras da dialética. O materialismo dialético teria falhado ao representar o Bem supremo sobre a face da terra como realização não somente possível no decorrer do processo histórico, mas mesmo logicamente necessária. Chiarello resume a aproximação de Horkheimer a Schopenhauer:

Atual é Schopenhauer, assinala Horkheimer, porque hoje, mais ainda do que em seu tempo, o progresso da civilização demonstrou ser aquilo que, em sua obra, já se desmascarava em sentenças tão inconformadas quanto amargas. Saltava-lhe aos olhos que a marcha triunfal do progresso não passava da manifestação da Vontade inconsciente de si mesma em sua crueza irracional e autodevoradora. Repetirá, incansável, que o processo histórico é uma eterna repetição do mesmo com outros nomes e sob outras roupagens. E contudo, nessa clarividência esteve sozinho. Contra toda sua época, que em uníssono idolatrou a história como contínua e necessária progressão rumo ao melhor, Schopenhauer escreveu como um profeta a maldizer seu tempo, enquanto seus contemporâneos deixavam seu vaticínio cair no vazio. Seu grande valor: o de não ter sucumbido a nenhuma tentativa de racionalizar o horror e a injustiça reinantes na história. Foi lúcido e honesto o bastante para discernir, por trás da apologia do progresso a qualquer preço, mais um ardil da razão a disfarçar o interesse material, o afã da existência, bem-estar e poder que governam a história. Compreendeu melhor do que ninguém em seu tempo que todo progresso pagava-se com novas penas, para cuja realização impunha-se a representação de algo melhor.[8]

Já no final dos anos 60 a leitura de Horkheimer inicia um novo movimento. Se temos agora, por um lado, uma confirmação do processo contínuo de reificação que acarreta a decadência da cultura burguesa e que se expressa na perda de sentido da autoridade, da família e de valores como o amor e o respeito, temos, por outro, uma abertura a temas que escapam da crítica social e se aproximam da filosofia da religião e da teologia. As três últimas conferências de Horkheimer sobre Schopenhauer desenvolverão esses dois temas. E essas são as duas últimas figuras do pessimismo em Horkheimer, embora a última delas pareça flertar com uma simbólica esperança numa ordem diferente de coisas. Essa esperança, entretanto, não se baseia em nenhuma crença sobrenatural, mas no anseio, que permanece mero anseio, de que a injustiça não seja a única a triunfar. Trata-se de uma esperança que surge da experiência do mal, como possibilidade última de sua superação. Em Schopenhauer há realmente algo próximo disso, em sua teoria da negação da vontade de viver. Por isso, para Horkheimer, no quadro do capitalismo tardio e da dissolução da razão substancial, a filosofia de Schopenhauer permanecerá um consolo: “em contraste com a mentalidade atual, sua metafísica oferece a mais profunda fundamentação da moral, sem entrar em contradição com o conhecimento científico”[9]. Segundo Horkheimer, os argumentos da filosofia pessimista de Schopenhauer que apoiam o cristianismo são mais plausíveis que os argumentos da ontoteologia racionalista de autores como Descartes ou Leibniz, ou do criticismo kantiano, que retoma as crenças cristãs na existência de um Deus bondoso e na imortalidade da alma por meio da doutrina dos postulados da razão prática[10]. Aqui Horkheimer parece concordar inteiramente com a tese de Schopenhauer segundo a qual sua filosofia deve ser considerada a autêntica filosofia cristã.[11] Mas qual a interpretação que Schopenhauer tem do cristianismo que o permite julgar que sua filosofia, mesmo ateia e imanente, é a filosofia propriamente cristã?

Os dois pontos principais que fazem Schopenhauer aproximar sua filosofia da religião cristã são: a ideia do pecado original, da queda do homem que permite interpretar o mundo como um “vale de lágrimas”, e a ideia da redenção do mundo pelo sofrimento, como apresentado na paixão de Cristo. Em sua metafísica, Schopenhauer oferece uma visão da existência carregada de negatividade, o que se fundamenta em sua concepção da vontade como a essência íntima das coisas, o substrato de todos os fenômenos, a coisa em si de Kant. O mundo dos fenômenos, que se apresenta na experiência, é regido pelo princípio de razão que sempre relaciona um efeito a uma causa em todo evento espaço-temporal, e é o que torna esse mundo da representação uma série necessária de acontecimentos determinados. Assim como em Kant, o entendimento, que unifica a multiplicidade sensível, aparece como o princípio que torna a experiência do mundo relativa à nossa capacidade de conhecer. Para além desse mundo dado na intuição empírica deve haver algo mais substancial, pois, se toda a realidade se esgotasse nos fenômenos, o mundo inteiro não se distinguiria dos sonhos e o idealismo absoluto seria justificado. Para além dos fenômenos, porém, Schopenhauer compreende a vontade como a essência permanente das coisas, constituinte da realidade substancial do mundo dado na intuição empírica.

Estabelecida a Vontade como a coisa em si, resta indicar quais as consequências éticas com as quais essa filosofia se de- para. Se este mundo é a objetivação da vontade de viver, ele é então o palco da afirmação de si mesma dessa vontade, e tudo o que acontece neste mundo não pode ser senão a realização desse querer. Quando é afirmada essa vontade de vida, o que se afirma é esta vida que temos diante dos olhos no mundo, e, para saber o que quer essa vontade infinita, basta-nos ver o que o próprio mundo é. Como não existe causa fora do domínio do princípio de razão, apenas se pode dar a razão dos fenômenos, não da própria vontade. “De fato, a ausência de toda finalidade e de todo limite pertence à essência da Vontade em si, que é um sem fim”.[12] Um eterno devir, um escoamento perpétuo é o que caracteriza a vontade de viver. As características perturbadoras que a vida em geral assume são todas decorrentes da essência da vontade. Segundo Schopenhauer, a Vontade, em todos os seus graus de manifestação, tem falta total de uma finalidade última, deseja sempre, sendo o desejo todo o seu ser. É por isso que só podemos conceber os seres do mundo num estado de perpétua dor, sem felicidade durável. Isso porque todo desejo é sofrimento enquanto não é satisfeito, pois nasce duma falta. Como não existe fim último para o esforço, não existe termo para o sofrimento. No reino animal vemos a infinita diversidade de formas, as modificações incessantes às quais elas se submetem para apropriar-se do meio, também a arte inimitável e igualmente perfeita em todos os indivíduos que preside a sua estrutura e seu mecanismo, a inesgotável quantidade de força que eles empregam, tudo isso em favor da conservação de suas respectivas espécies. Mas não vemos como resultado mais que a satisfação da fome e do instinto sexual, e talvez alguns curtos momentos de bem-estar.

Se se considera, de uma parte, a engenhosidade inexprimível do empreendimento, a riqueza indizível dos meios e, de outro, a pobreza do resultado perseguido e obtido, então nos impele a admissão de que a vida é um negócio cujos lucros não cobrem, nem de longe, os gastos.[13]

A vida do homem também não se apresenta de forma alguma como uma dádiva, mas sim como uma tarefa, como uma dívida da qual devemos livrar-nos. No todo ou em detalhe, o que vemos não é senão miséria universal, fadiga sem trégua, atividades força- das, lutas sem fim, mas a finalidade de tudo isso consiste apenas em assegurar durante um curto espaço de tempo a existência de indivíduos efêmeros e atormentados.[14]

Diante de tal quadro a afirmação da vida seria a aceitação desse espetáculo – “belo de se ver”, é verdade. “Mas ser é bem outra coisa”[15]. Já a negação da vontade tem o sentido de uma recusa e, por isso, é uma atitude moral. Aquele que nega é aquele que, ao tomar para si todas as dores do mundo, não pode mais afirmar o sofrimento essencial à vida. Dessa forma, não basta negar o fenômeno, mas a própria essência. A negação da vontade, no entanto, não surge a partir do sofrimento com a necessidade do efeito saído de uma causa, mas a vontade permanece livre. Aqui se trata de uma “conversão transcendental”, já que esse é o único ponto em que a liberdade da vontade se expressa no fenômeno[16]. Daqui em diante, o autor se utiliza de expressões emprestadas da mística e da religião, cristã e oriental, para expressar seu pensamento.

Aquilo a que os místicos cristãos chamam efeito da graça e renascimento é para nós a única manifestação imediata da liberdade da vontade. Ela se produz apenas quando a vontade, após alcançar o conhecimento de sua essência em si, obtém um quietivo e é subtraída da ação dos motivos, ação que depende de um outro modo de conhecimento em que os objetos são apenas fenômenos.[17]

Para entender esse processo, entretanto, falta qualquer conceito, resta apenas a linguagem simbólica das religiões. Schopenhauer opõe o homem natural ao santo, o reino da natureza, regido pela necessidade, ao reino da graça, o reino da liberdade[18]. A identidade de todos os seres só pode se dar no domínio da negação da vontade (Nirvana), pois no domínio da afirmação (Samsara) só há multiplicidade[19]. Segundo a teologia cristã interpretada por Schopenhauer, Adão simbolizaria a natureza e a afirmação da vontade, e Cristo a graça, a negação da vontade, a redenção:

Decididamente, a doutrina do pecado original (afirmação da vontade) e da redenção (negação da vontade) é a grande verdade que forma, por assim dizer, o núcleo do cristianismo; todo o resto é, a maior parte das vezes, apenas vestimentas e invólucro, ou algo acessório.[20]

A partir desse ponto podemos destacar o que seria a “filosofia da religião” de Schopenhauer, ressalvando-se o fato de o filósofo indicar sua desconfiança com relação a essa expressão que reme- te a Hegel, notando, entretanto, uma certa semelhança entre os dois filósofos no que diz respeito à fronteira entre a filosofia e a religião. Para Schopenhauer, o conhecimento metafísico expresso nas religiões sempre apresenta um conteúdo profundo de verdade, mas quase sempre envolto numa linguagem alegórica, simbólica. Nesse sentido, ele diferencia a verdade sensu próprio da metafísica racional da verdade sensu allegorico das religiões. A religião apresenta assim a verdade “sob a roupagem da mentira” e,

quando se compreende a dogmática cristã sensu próprio, então tem razão Voltaire, mas tomada em sentido alegórico ela é um mito sagrado, um veículo pelo qual são trazidas ao povo verdades que de outro modo lhe seriam inacessíveis.[21]

Portanto, é por meio de uma certa aproximação do cristianismo com o budismo e o hinduísmo, e da acentuação do caráter ascético do cristianismo como uma rejeição religiosa da existência mundana, que Schopenhauer procura salvar o conteúdo da fé cristã. A justificação da moral cristã ocorre por meio de tal rejeição e a vida dos santos serve como modelo não por causa dos dogmas religiosos, mas pela visão daquilo que há de mais íntimo no universo que estaria na base de suas ações. O mundo dos fenômenos, a realidade da experiência sensível, não é a obra de uma potência divina, a expressão de um ser bom em si mesmo e eterno, mas da vontade que se afirma identicamente em cada ser finito, e é por isso que cada um pode se identificar com cada um não por meio de motivos particulares, mas por sua experiência comum na vivência do sofrimento. Por isso, conclui Horkheimer, “quem reconhece sua obra como verdadeira não afirma de maneira alguma os dogmas, mas certamente o espírito do evangelho”.[22]

A partir dessa recepção de Schopenhauer, Horkheimer irá desenvolver, em seus últimos escritos, uma recuperação da teologia que, em parte, se inspira no pensamento do autor do Mundo como vontade e representação e, por outro lado, dele se afasta. O autor transforma positivamente o anseio pelo inteiramente outro, que em Schopenhauer tinha apenas um caráter negativo, numa esperança efetiva de que o mal do mundo não seja a última palavra da realidade. É verdade, porém, que essa esperança permanece um sentimento com sentido prático e jamais dá lugar a um conhecimento efetivo. Nesse sentido, o pensamento de Schopenhauer, apesar de marcado pelo pessimismo, constitui um consolo positivo, pois ainda representa a tentativa de buscar um significado moral do mundo para além do positivismo e em contraste com a completa socialização levada a cabo pela sociedade totalmente administrada. Sua teoria, apesar de antecipar e justificar o pessimismo dos dias de hoje, “não é, de modo algum, tão pessimista quanto a absolutização da ciência”.[23] Ela pode “fundar uma solidariedade que, de maneira não dogmática, contém em si momentos teológicos”[24], pois o “pessimismo une experiências histórico-filosóficas com a herança da grande teologia. Sua difusão poderia ocasionar muito mais o bem do que a formação cada vez mais, e em toda parte, exclusivamente profissional”.[25]

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Notas:
[1] Cf. Veauthier, F. W. “Zur Transformation der Pessimismus-Motive im Denken Max Horkheimers”. In: Schopenhauer Jahrbuch, nº 73. Frankfurt am Main, 1988, pp. 593-607. Para Veauthier, o “motivo pessimista” ou “motivo schopenhaueriano”, efetivamente presente em todas as fases do pensa- mento de Horkheimer, é “o interesse no sofrimento humano, em sua causa e na possibilidade de sua supressão. ‘Pois, que milhares tenham vivido na felicidade e no bem-estar, isso não suprime a angústia e o martírio de um único’. Essa convicção de Schopenhauer ficou profundamente impregnada na filosofia social de Horkheimer, mesmo se ele não pudesse compartilhar de sua suposição metafísica fundamental de um querer existir que causa o sofrimento”. Idem, p. 593. Deve-se entender aqui por motivo, segundo Veauthier, algo diferente de “argumento”, o que não quer dizer que ele seja irredutível a qualquer verificação racional. Ele é, ao mesmo tempo, ponto de partida (Beweg-Grund) do pensamento, mas também causa real do desenvolvimento social. Cf. Idem, p. 595.
[2] Horkheimer, M.
Materialismo e metafísica. In:______. Teoria Crítica I. Trad. de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 43. Cf. Post, W. Kritische Theorie und metaphysischer Pessimismus. Zum Spätwerk Max Horkheimers. München: 1971, p. 37.
[3] Horkheimer, M. “Prefácio para a reedição de Teoria crítica I” (1968). In:______. Teoria crítica I, p. 4. Este prefácio, escrito em 1968, já indica, porém, algumas diferenças fundamentais sobre a questão da relação entre teoria e prática no pensamento de Horkheimer. Assim, diz o autor na sequência do texto citado: “A sociedade melhor, a sociedade justa, é uma meta que se mistura com a ideia de culpa. Desde o fim da guerra, porém, a meta mu- dou. A sociedade se encontra em nova fase. Característicos da estrutura da camada superior já não são os capitalistas concorrentes, mas o empresaria- do, as associações, os comitês; a situação material dos dependentes suscita tendências políticas e psicológicas diferentes das do antigo proletariado”. (Idem, Ibidem). Essa passagem revela claramente o quanto as mudanças fundamentais entre as abordagens sobre a relação entre a teoria e a prática no pensamento de Horkheimer dependem de sua visão do capitalismo e da democracia no pós-guerra. Evidentemente, esse não será o tema deste breve comentário, que visa apenas esboçar um quadro sobre os pontos principais da leitura de Horkheimer sobre Schopenhauer ao longo de sua obra.
[4] Cf. Chiarello, M. G. Das Lágrimas das coisas. Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer. Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p. 261 e ss.
[5] Horkheimer, M.
Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973. In:______. Gesammelte Schriften. vol. 7. Org. de A. Schmidt. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1985, pp. 124-5. Edição espanhola: Horkheimer, M. “Schopenhauer y la Sociedad”. In: Adorno, T. W.;______. Sociologica. Madrid: Taurus, 1971, p. 168.
[6] Horkheimer, M.
Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973. In:______.Gesammelte Schriften, p. 125. Edição Espanhola: Horkheimer, M. “Schopenhauer y la Sociedad”. In: Adorno, T. W.;______. Sociologica, p. 169.
[7] Cf. Schmidt, A. Drei Studien über Materialismus. Schopenhauer, Horkheimer, Glücksproblem. Munique: Carl Hanser Verlag, 1977, pp. 8-9.
[8] Chiarello, M. G. Das Lágrimas das coisas. Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer, p. 195-6.
[9] Horkheimer, M.
Schopenhauers Denken im Verhältnis zu Wissenschaft und Religion. In:______. Gesammelte Schriften, vol. 7 (Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973), pp. 251-2.
[10] Horkheimer, M.
Religion und Philosophie. In:______. Gesammelte Schriften, vol. 7, p. 193.
[11] Idem, ibidem. Cf. Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, § 163, In: Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 229.
[12] Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação. In:______. Sämtliche Werke. Editadas e comentadas criticamente por Arthur Hübscher. Wiesbaden: F. A. Brockhaus, 1972, vol II. § 28, p. 195. Edição brasileira: Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação. Trad. de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005, p. 230.
[13] Schopenhauer, A.
O mundo como vontade e representação. Complementos, Cap. 28. In:______. Sämtliche Werke, vol. III, p. 403.
[14] Idem, p. 407.
[15] Idem, p. 665.
[16] Cf. Schopenhauer, A.
O mundo como vontade e representação, § 68. In:______.Sämtliche Werke.vol. II, p. 467.
[17] Schopenhauer, A.
O mundo como vontade e representação, § 70. In:______. Sämtliche Werke.vol. II, p. 478. Edição brasileira: Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação, p. 510.
[18] Cf. Idem, ibidem.
[19] Cf. Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação, E, cap. 48. In:______. Sämtliche Werke.vol. III, p. 700. Isso não nos deve levar a ver a negação da vontade como uma reabsorção do indivíduo no todo do mundo, como se bastasse restabelecer a unidade que a multiplicidade do mundo fenomênico desfez para alcançar a redenção. Essa interpretação, porém, está presente em uma série de comentadores da obra de Schopenhauer, e mesmo Horkheimer parece interpretá-lo assim num texto dos Notizen (que permaneceu póstumo) intitulado “Schopenhauer als Optimist”. Segundo Horkheimer, mesmo Schopenhauer, com a teoria da negação da vontade de viver, recairia no dogmatismo otimista ao considerar a possibilidade do fim do sofrimento como uma realidade metafísica. Para ele, ainda que Schopenhauer não argumente contra a realidade da miséria, como fazem os outros sistemas, ainda assim ele incorreria no erro de considerar possível uma reconciliação da vontade consigo mesma. Esta se daria com o retorno da vontade individual à vontade una: “no fundo, [ele] pensa que a dor e o tédio só correspondem à vontade individual, não à vontade lisa e plana”. Disso se segue, para Horkheimer, que Schopenhauer expressaria um otimismo metafísico ainda mais decisivo ao aceitar o mito da trans- migração das almas, que estaria pressuposto na ideia de que apenas alguns indivíduos podem alcançar uma saída redentora do mundo como vontade. Assim, conclui Horkheimer, “a boa infinitude é um consolo duvidosamente filosófico. Dessa maneira, em última instância, Schopenhauer conserva a razão contra si mesmo. O quarto livro de sua obra principal se revela como um descarrilamento, como um lapsus que os outros três conseguem refutar”. Horkheimer, M. Notizen. In:______. Gesammelte Werke, vol. 6, p. 388. Já na conferência Pessimismus Heute (1969), essa mesma interpretação de Schopenhauer é o ponto de partida para vincular o pessimismo teórico com uma “práxis não não-otimista” (nicht unoptmistische Praxis), pois representaria uma via de superação do pessimismo por meio de uma solidariedade que contém em si momentos teológicos. Essa interpretação, porém, nos parece questionável, pois Schopenhauer não fala em nenhum momento de um retorno, a não ser o retorno ao estado anterior ao delito do nascimento, o que só pode ser caracterizado negativamente como “nada”. O inteiramente outro, em Schopenhauer, se apresenta como algo simples- mente inteiramente diferente do mundo fenomênico. Cf. Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação. Complementos, Cap. 48. In:______. Sämtliche Werke, vol. III, p. 691.
[20] Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação, § 70. In:______.Sämtliche Werk, vol. II, p. 480.
[21] Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, § 177. In:______. Sämtliche Werk, vol. VI, p. 394. Na conferência Religião e filosofia, Horkheimer aponta a concordância dessa concepção de Schopenhauer com o pensamento do teólogo protestante Paul Tillich. A semelhança com Hegel estaria na consideração do momento de verdade da religião pelo qual um conteúdo verdadeiro estaria expresso na forma inadequada da alegoria ou da representação. Cf. Schmidt, A. Die Wahrheit im Gewande der Lüge: Schopenhauers Religionsphilosophie. München, Zürich: Piper, 1986.
[22] Horkheimer, M.
Religion und Philosophie. In:______. Gesammelte Schriften, vol. 7, p. 193.
[23] Horkheimer, M.
Schopenhauers Denken im Verhältnis zu Wissenschaft und Religion. In:______. Gesammelte Schriften, vol. 7 (Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973), pp. 252.
[24] Horkheimer, M.
Pessimismus Heute. In:______. Gesammelte Schriften, vol 7, p. 232. O texto continua: “Com sua postura no final negativa vincula-se àquilo que aqui em Frankfurt é conhecido como ‘teoria crítica’”.
[25] Idem, Ibidem.
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Bibliografia:
CHIARELLO, M. G. Das Lágrimas das coisas. Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
HORKHEIMER, M.“La actualidad de Schopenhauer”. In: ADORNO, T. W.;______. Sociologica, Madrid: Taurus, 1966.
______. “Schopenhauer y la Sociedad”. In: ADORNO, T. W.;______. Sociologica, Madrid: Taurus, 1966.
______. Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973. In:______. Gesammelte Schriften. vol. 7. Org. de A. Schmidt. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1985.
______. Eclipse da razão. Trad. de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2001.
______. Teoria crítica I. Trad. de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2006.
POST, W. Kritische Theorie und metaphysischer Pessimismus. Zum Spätwerk Max Horkheimers. München: Kösel-Verlag, 1971.
SCHMIDT, A. Drei Studien über Materialismus. Schopenhauer, Horkheimer, Glücksproblem. Munique: Carl Hanser Verlag, 1977.
______. Die Wahrheit im Gewande der Lüge: Schopenhauers Religionsphilosophie. München, Zürich: Piper, 1986.
______. Max Horkheimer heute: Werk und Wirkung. Frankfurt am Main: Fischer, 1986.
SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Editadas e comentadas criti- camente por Arthur Hübscher. Wiesbaden: F. A. Brockhaus, 1972.
______. Parerga e paralipomena. Trad. de Wolfgang Leo Maar. In: Coleção “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural, 1980.
______. O mundo como vontade e representação. Trad. de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.
VEAUTHIER, F. W. “Zur Transformation der Pessimismus-Motive im Denken Max Horkheimers”. In: Schopenhauer Jahrbuch, nº 73, Frankfurt am Main, 1988, pp. 593-607.
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Resumo: Apresenta-se aqui um breve comentário introdutório à tradução de O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião (1971) de Horkheimer. Trata-se apenas de indicar o lugar e a importância desse texto na filosofia tardia de Horkheimer e mostrar, com isso, as diferentes abordagens que o fundador da Teoria Crítica oferece do pensamento de Schopenhauer e do pessimismo.

Palavras-chave: Horkheimer, Schopenhauer, pessimismo, filosofia, ciência, religião

Abstract: This paper presents a brief introduction to Horkheimer’s The thought of Schopenhauer Concerning Science and Religion (1971) by indicating the role and the importance of this text in Horkheimer’s late philosophy, as well as the several approaches of Schopenhauer’s thought throughout his work.

Key-Words: Horkheimer, Schopenhauer, pessimism, philosophy, science, religion
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RAMOS, F. C. “Horkheimer leitor de Schopenhauer: uma tradução e um breve comentário”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, n. 12 – p. 99-113 – jul.-dez. 2008.
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