por Flamarion Caldeira Ramos
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Merda de existência miserável
(Cioran, Breviário de decomposição)
Para o Thomaz
Para o Thomaz
Numa curiosa passagem da Genealogia da moral, Nietzsche estabelece um vínculo entre o pessimismo filosófico europeu do século XIX e uma certa decadência favorecida pelas “ideias modernas”, nomeadamente, as ideias democráticas e o ideário socialista. Mais do que fruto dessa nova mentalidade europeia, o pessimismo seria consequência de um certo nivelamento de classes: “o Weltschmerz europeu, o ‘pessimismo’ do século XIX, é essencialmente resultado de uma mistura de classes absurdamente súbita”.[1] Na Genealogia podemos encontrar ainda algumas outras referências ao pessimismo. Por exemplo, no §7 da segunda dissertação, após mostrar o vínculo entre crueldade e festividade, diz Nietzsche:
Com tais pensamentos, diga-se de passagem, não pretendo em absoluto fornecer água para os moinhos dissonantes e rangentes dos nossos pessimistas cansados da vida; pelo contrário, deve ser expressamente notado que naquela época, quando a humanidade não se envergonhava ainda de sua crueldade, a vida na terra era mais contente do que agora, que existem pessimistas.[2]
A partir de um fundamento teórico completamente diferente, e com outras intenções, também Lukács vincula o pessimismo com a crise da burguesia alemã. Lukács oferece uma interpretação da ideologia do intelectual burguês rentier, mais especificamente, do burguês do período da reação aos movimentos revolucionários de 1848: “O pessimismo de Schopenhauer é um reflexo ideológico do período da restauração”.[3] O autor reduz o alcance da filosofia schopenhaueriana ao considerá-la meramente como expressão de um ranço de classe: “as atividades do indivíduo aparecem separadas de sua base social e voltadas pura e exclusivamente para dentro, cultivando as próprias peculiaridades e veleidades privadas como valores absolutos”.[4] Schopenhauer seria assim apenas a expressão teórica irracionalista das transformações que necessariamente se efetuaram no Estado prussiano depois de 1848 e do fracasso da revolução. É dessa forma que só a partir de então a própria filosofia de Schopenhauer começa a ser reconhecida e ele se torna o filósofo daquela reação burguesa que a sua filosofia tinha previsto, de modo que a transformação burguesa do Estado semifeudal prussiano deu início ao êxito de sua filosofia, que antes não tinha podido dar-se.
A partir disso, Lukács vê em Schopenhauer a forma histórica, sintomática do “irracionalismo entre as revoluções”, e como o “precursor do cosmopolitismo decadente”.[5] O filósofo teria, segundo Lukács, iniciado o movimento de liberação, através da ética, de todos os instintos negativos, antissociais e anti-humanos do homem, dando-lhes uma sanção moral, e apresentando-os se não como preceitos, pelo menos como “destino” do homem. O pessimismo metafísico aprofundaria a alienação, pois conduz ao quietismo e à passividade social: “enquanto o panteísmo desvia as mentes, objetivamente, da concepção religiosa do mundo, a filosofia de Schopenhauer, que professa ser ateísta, abre de novo o caminho para uma religião que não obriga a nada”.[6] De um ponto de vista dialético, como o de Lukács, o pessimismo schopenhaueriano seria então a justificação filosófica do absurdo de toda atividade política e de todo progresso, através da desvalorização de toda forma de sociedade e historicidade. O egoísmo burguês, outra característica do pessimismo, é antes reforçado que negado, devido à concepção ética que confirma o isolamento do indivíduo. Tanto a teoria do conhecimento quanto a estética do filósofo conduziriam a esse fim.
Ao esvaziar de sentido toda ação política, o pessimismo de Schopenhauer acabaria funcionando, intencionalmente ou não, como uma apologia indireta do capitalismo. Se a apologia direta do capitalismo, desvelada por Marx, consiste na eliminação das contradições sociais existentes ao apresentá-las como aparências superficiais e passageiras, a apologia indireta se apresenta como uma forma bem mais eleva- da e tardia de apologia: enquanto a apologia direta se esforça em eliminar as contradições do sistema capitalista, de refutá-los por sofismas, de escamoteá-los, a apologia indireta, tomando como ponto de partida essas contradições, aceita sua existência como a de fatos inegáveis, mas lhes dando, entretanto, uma interpretação favorável, para manter o próprio capitalismo.
Enquanto a apologia direta se esforça em apresentar o capitalismo como a melhor ordem de coisas possíveis, como o ponto culminante da humanidade em marcha, atingido de uma vez por todas, a apologia indireta sublinha todos os lados ruins do capitalismo e seus horrores que ela considera não como características do capitalismo, mas de toda vida humana, da existência enquanto tal. Disso resulta que um combate levado a efeito contra esses horrores é por princípio condenado ao fracasso, que ele mesmo é um absurdo, já que ele conduz o homem a suprimir aquilo mesmo que constitui a natureza de seu ser.[7]
Assim, ao invés de se voltar contra o capitalismo, verdadeira origem das contradições, a filosofia de Schopenhauer se volta contra o próprio mundo. Ela repudiaria a vida em todas as suas formas e o que restaria para nós seria apenas o nada. Ora, pergunta-se Lukács, é possível viver uma tal vida de acordo com essa filosofia? Ele responde afirmativamente, pois enquanto essa negação total não é realizada o que se vê é uma vida contemplativa plena de charme. Dessa forma, Lukács conclui fazendo o vínculo entre o pessimismo e o cinismo burguês:
o nada como perspectiva do pessimismo, como horizonte de vida, não pode impedir de modo algum o indivíduo, segundo a ética schopenhaueriana já exposta, de levar uma vida contemplativa plena de gozo (genussreiches). Pelo contrário, o abismo do nada, o fundo sombrio da carência de sentido da existência dá o tempero picante a este gozo da vida. Ademais, o aristocratismo afirmado da filosofia de Schopenhauer permitirá a seus fiéis de se sentir (isto é, de imaginar que eles estão) bem acima de uma plebe lamentável e tão limitada que ela ainda crê dever combater e sofrer para melhorar as condições da sociedade. O sistema de Schopenhauer – sistema engenhoso e harmoniosamente construído do ponto de vista da arquitetônica formal – ergue-se como um belo hotel moderno, dotado de todo conforto, à beira do abismo, do nada, da carência de todo sentido. E a diária contemplação do abismo, entre refeições esplêndidas, prazerosamente degustadas, ou entre obras de arte preciosas, só pode realçar ainda mais o gozo desse conforto refinado.[8]
Se Schopenhauer pode ser considerado o fundador desse “hotel de luxo à beira do abismo”, deve-se lembrar que não foi ele seu único hóspede. O pessimismo filosófico do século XIX se constitui na esteira da filosofia de Schopenhauer, mas nem sempre com uma postura apologética a este último ou ao capitalismo. Os principais autores desse “movimento” são Eduard von Hartmann, Julius Bahnsen e Philipp Mainländer. Eduard von Hartmann, cuja obra principal é a Filosofia do inconsciente, de 1869, procura amalgamar Hegel, Schelling e Schopenhauer ao colocar o “Inconsciente” como princípio alógico do universo. Julius Bahnsen é o filósofo da “dialética do real” (Realdialektik), em que busca transformar a contradição dialética numa espécie de essência de todas as coisas, uma tentativa de desenvolver a idéia de Schopenhauer da “desunião essencial da vontade consigo mesma”. Já Philipp Mainländer se apresenta como o mais radical dos discípulos de Schopenhauer, não apenas em sua obra, mas também em sua vida – e morte. A referência mais conhecida que temos da obra desse filósofo, hoje completamente esquecido, nos é dada por Jorge Luis Borges em Biathanatos:
Ao reler esta nota, penso naquele trágico Philipp Batz, que na história da filosofia é chamado Philipp Mainländer. Ele foi, como eu, leitor apaixonado de Schopenhauer. Sob sua influência (e talvez sob a dos gnósticos) imaginou que somos fragmentos de um Deus que, no princípio dos tempos, destruiu a si mesmo, ávido de não ser. A história universal é a obscura agonia desses fragmentos. Mainländer nasceu em 1841; em 1876, publicou seu livro, Filosofia da redenção. Nesse mesmo ano, ele se matou.[9]
Borges poderia ter acrescentado que Mainländer não apenas morreu no ano de publicação de sua obra como se matou justamente no dia em que recebeu em casa o primeiro exemplar de sua obra principal! A obra, que não apenas por esse motivo causou um certo interesse, não passou despercebida por Nietzsche, que no mesmo ano escreve a Overbeck, em sinal de agradecimento por este tê-lo enviado um exemplar da Philosophie der Erlösung: “Nós já lemos Voltaire demais, agora é a vez de Mainländer”.[10] O nome de Voltaire não representa aí somente o pensamento iluminista em geral, mas será ele o autor para quem Nietzsche dedicará o primeiro volume de Humano demasiado humano (publicado em 1878, ano do primeiro centenário de sua morte).
Mas o que era a filosofia de Mainländer, que ao menos num primeiro momento despertou um certo interesse em Nietzsche? O que encontramos em sua obra? Mainländer apresenta sua obra como uma continuação e correção da filosofia de Schopenhauer, a qual ele não apenas radicaliza, mas conduz a uma espécie de ontologia negativa em que o “Não-ser” teria prevalência metafísica sobre o “ser”. Já por meio de sua reflexão sobre teoria do conhecimento, Mainländer chega a uma conclusão oposta ao pós-kantiano Schopenhauer no que se refere à coisa-em-si: esta não é, para ele, a Vontade de vida, universal e atemporal, que se expressa como essência de todas as coisas para além do tempo e espaço. Para Mainländer, a coisa-em-si poderia ser designada como a Vontade de morte individual que está presente em todas as coisas. Essa vontade individual, que por meio de um “campo de forças” age de acordo com outras inumeráveis vontades individuais e é o produto da transição de uma unidade transcendente a uma multiplicidade imanente, a “transformação da essência”.[11] A unidade primordial, pré-mundana, se desagrega e surge o mundo. Cada vontade individual tem um impulso que tem sua origem naquela unidade interna primordial. Através desse movimento surge o mundo. O mundo dos fenômenos é, dessa forma, um mundo da multiplicidade, do movimento e do escoamento incessante dos seres, o mundo do devir. A contraposição entre o mundo dos fenômenos, da multiplicidade, e o terreno da coisa em si una corresponde inteiramente à doutrina schopenhaueriana do mundo da vontade e da representação. Mas Mainländer vai além de seu mestre quando compreende esse mundo transcendente como uma espécie de Deus espinozano, que morre e assim dá vida ao mundo. Daí a sentença: “Deus está morto e sua morte é a vida do mundo”.[12] Longe de nós está a intenção de apresentar Mainländer como um precursor da morte de Deus em Nietzsche, pois Deus aqui, diferentemente do que pensa Nietzsche, não é morto pelos homens, mas ele mesmo segue um impulso interno de autodecomposição, um ímpeto de passar do ser ao não-ser, o que se expressa na lei física do enfraquecimento universal das forças.
Mas seja dito aqui, para quem possa se assustar com um pessimismo aparentemente dogmático e teológico, que Mainländer tenta seguir estritamente a proibição kantiana de ultrapassar o terreno da experiência, e permanece preso à imanência. Sua doutrina se apresenta como um ateísmo científico para o qual a essência de Deus permanece desconhecida em sentido “constitutivo”. Porém, de um ponto de vista “regulativo”, para o “juízo reflexionante”, podemos pensar a origem do mundo como se ele fosse “um ato de vontade motivado”.[13] Isso significa: podemos representar a origem do mundo como um ato da inacessível transcendência pela qual uma unidade primordial e anterior ao mundo se transplanta ao não-ser e se espalha, se dilacera no mundo da imanência: o mundo surge da vontade desse Deus, de passar do ser ao não-ser, uma espécie de “autocadaverização de Deus”. Ou seja, Mainländer reinterpreta e radicaliza o pessimismo de Schopenhauer em uma “metafísica da entropia”, e interpreta toda a história do mundo como uma descontínua, mas inevitável decadência.
A partir disso, como não há para o sujeito cognoscente nenhum ser melhor e completo do que a simples unidade, essa unidade não pode ser alcançada por um anseio pelo ser-outro, mas só resta uma livre escolha entre a permanência no ser ou o não-ser (aqui o leitor de Schopenhauer reconhece o tema da afirmação e da negação da vontade). Mas ao se multiplicar no mundo, aquela uno-totalidade já se decidiu pela única ação livre possível, “nomeadamente, mergulhar no nada absoluto, no nihil negativum, isto é, se aniquilar completamente, desistir de ser”.[14]
E essa ação só pode ser pensada como referida àquela unidade, já que nada fora dela pode ser pensada. Dessa forma, a decomposição da unidade no mundo se apresenta como a escolha do ser primordial de nada ser. “O mundo é o meio para a finalidade do não-ser, e na verdade é o mundo o único meio possível”.[15] A consequência lógica desse raciocínio reza que todos os indivíduos desse mundo real realizam também o esforço ou tendência pelo não-ser. Eles lutam uns contra os outros, entram em conflito, se opõem mutuamente e dessa forma enfraquecem sua força. Já que a unidade anterior ao mundo se manifesta no mundo a partir de uma certa quantidade de força, ela só pode atingir sua finalidade por meio de um contínuo declínio da mesma; dessa forma todo indivíduo realiza a tendência ao desaparecimento total por meio do enfraquecimento da força. A castidade e o suicídio, quando conscientemente exercidos através do conhecimento da essência do mundo, são apenas meios de realizar completa e conscientemente aquela finalidade, o nada absoluto para o qual no fim das contas o mundo inevitavelmente aponta.
Se para muitos essa interpretação radical do pessimismo schopenhaueriano parecerá espantosa, o que dizer da tentativa de unir a isso um pensamento socialista? Pois é exatamente o que Mainländer pretende: uma união entre Ferdinand Lassalle e Siddhârtha Gautama Sakyamunis, ou seja, unir movimento operário social-democrata e ética compassiva budista!
Para unir pessimismo e socialismo Mainländer constrói uma ética eudemonista que ao mesmo tempo se baseia e se afasta da ética de Schopenhauer. Para ele toda ação é motivada por um interesse egoísta, e a finalidade de toda e qualquer ação é sempre o bem do agente.[16] Mesmo na compaixão, o que visa o agente é sempre seu próprio bem, não apenas evitar o sofrimento do outro, mas o do próprio agente. O que fundamenta a moral, para Mainländer, não é a compaixão, mas o conhecimento. As virtudes da compaixão, caridade, justiça, ensinadas pelo cristianismo e pelo budismo, são as mais valiosas, pois estão de acordo com o conhecimento metafísico a que o homem chega no fim da história: o conhecimento de que o mundo é um vale de lágrimas e que o não- ser é preferível ao ser. O conhecimento conduz o homem do egoísmo limitado à sua individualidade ao egoísmo que se estende a todos os seres, o que o faz desejar o bem coletivo. O núcleo da questão social está, para Mainländer, na determinação das relações entre o indivíduo e a totalidade, que o conhecimento filosófico esclarece. A filosofia não pode desprezar o indivíduo, pois a unidade não está na totalidade, mas só existe pelo indivíduo, e todo progresso da totalidade está ligado à atividade intelectual, moral e social do indivíduo.
A vontade do todo não é outra que a vontade total do indivíduo. Então, para Mainländer, é uma necessidade tanto prática quanto teórica que o homem seja independente, pois só a partir desse fundamento é possível uma comunidade ética, intelectual e social. Embora o indivíduo seja, por um lado, dependente do todo, por outro ele pode também influenciar esse todo. A autonomia do agir é para Mainländer a primeira “verdade social”, e deve ser assegurada tanto para o indivíduo quanto para a comunidade. A partir disso Mainländer deduz o sufrágio universal e outras conquistas democráticas como progresso para aquilo que ele denominará como a “penúltima finalidade” da história: a implantação do “estado ideal” que para ele coincide com o estado socialista. Se o sentido da história está dado, resta apenas acelerar seu curso.
A partir desse conciso resumo do projeto político de Mainländer se pode ver o quanto ele se afasta de seu mestre Schopenhauer. Se o primeiro já transformava os conceitos deste último tanto na metafísica quanto na ética, será na teoria política que Mainländer verá sua grande fraqueza. O primeiro volume de sua Filosofia da redenção se encerra com uma “Crítica das doutrinas de Kant e Schopenhauer” e o capítulo final dessa parte, intitulado “Política”, traz o seguinte comentário: “A miséria do povo é descrita [por Schopenhauer] de maneira excelente, mas isso apenas para dar relevo ao pessimismo. Ademais, Schopenhauer só ofereceu palavras de ódio e desprezo para o povo e seu esforço, e devemos nos afastar horrorizados dessa perversidade de disposição (Gesinnung) do grande homem”.[17] Nesse sentido, o filósofo irá elogiar Kant e os idealistas Fichte, Schelling e Hegel (para decepção de Schopenhauer) por terem concebido a história como o movimento da humanidade rumo ao estado ideal.[18] Esse “estado ideal” é concebido por Mainländer praticamente como um “princípio regulativo do socialismo”,[19] algo sobre o qual o movimento operário deve ter consciência para lutar por sua realização, mas que, segundo sua metafísica, será apenas um momento intermediário para a redenção completa.
É dessa forma que Mainländer une, na figura do “sábio herói”, aquele que conduz ao estado ideal com o objetivo de redimir a humanidade de suas dores, um pessimismo quietista com práxis social engajada. Pois quando a humanidade chegar a esse estágio, então chegará a hora da redenção: o conhecimento elevado a sua máxima potência traz consigo a convicção da nulidade da vida e essa convicção prepara um fim total da vida humana. Mainländer compara o processo civilizador com a queda de uma bola no abismo. Mas esse processo só se acelera com a educação, pois a todos deveria ser dada a oportunidade de compreender a essência das coisas e atingir a redenção que, assim como a vontade, só pode ser individual.
A questão social não é outra senão uma questão de educação, mesmo quando superficialmente ela tenha uma aparência bem diferente; pois nela se trata apenas de elevar todos os homens àquele nível de conhecimento a partir do qual somente a vida pode ser corretamente avaliada. Como, porém, o caminho para essa altura está bloqueado por barreiras puramente econômicas e políticas, então a questão social no presente não se apresenta como uma pura questão educacional, mas principalmente uma questão política e então econômica”.[20]
Conforme a isso exige Mainländer algumas reivindicações que estão de acordo com as reivindicações do movimento operário: sufrágio universal, redução do tempo de trabalho, igualdade entre os sexos, aumento de salários, etc. O filósofo ressalta principalmente a necessidade da redução das horas de trabalho para acabar com a divisão social do trabalho que não permite que o trabalhador se forme. O homem deve se tornar consciente de sua situação e de seus companheiros para fazer o caminho da satisfação material ao conhecimento do bem comum:
Saciados de todos os bens que o mundo pode oferecer devem ser todos os homens, para que a humanidade esteja madura para a redenção e, já que sua redenção é sua destinação, então os homens devem ser saciados, e essa saciedade só é possível com a resolução da questão social.[21]
Somente a satisfação das necessidades básicas e mesmo do desejo em geral poderia levar a humanidade ao ponto de compreender a satisfação material como algo que ainda não constitui a finalidade última. Daí a necessidade de dar livre curso a toda tendência da vontade, limitada, entretanto, por todas as outras.[22] Nesse sentido, também o amor livre é defendido e todas as barreiras que impedem o avanço da liberdade e do conhecimento devem ser postas de lado. Mas o socialismo proposto por Mainländer não se baseia na instituição de uma igualdade social meramente material. Ele não se baseia na igualdade de resultados ou bens, mas na igualdade de chances, possibilidades, opções, em suma, de escolha. Pretende-se democrático, sem ser meramente formalista. A educação deve ser livre, não podendo haver uma doutrina oficial de Estado. Mas será papel do filósofo defender a satisfação universal das necessidades do povo e assim apontar para a redenção:
Vocês acreditam que a vida tem valor. Vocês tomam os ricos por felizes, pois eles comem e bebem melhor, porque fazem festa e barulho. Vocês acham que o coração bate mais tranquilamente sob uma seda do que sob uma blusa rudimentar! Mas eles se decepcionam; mas não com discursos, mas pela ação. Deixo-os experimentar, provar por si mesmos que nem riqueza, honra, glória e vida tranquila os tornam felizes. Cortem as limitações que separam os iludidos da pretensa felicidade.[23]
Esse novo profeta, que une pessimismo e pensamento histórico, pode ser vítima, entretanto, da crítica da ideologia que poderá retrucar, desconfiada: “‘Tu queres me enganar, tu mentes, tu trabalhas pelo soldo da burguesia!’, reclama o ‘homem comum’ dialeticamente formado ao filósofo pessimista. ‘Muito bem’, diz este, ‘tu verás isso’. E ele deve experimentar isso numa nova ordem de coisas”.[24]
A relação entre o pessimismo e a prática já aparecia em Schopenhauer, mesmo que abafada por um pensamento a-histórico e anti-utópico. Mas tal relação só aparece claramente em seu discípulo Mainländer e em sua filosofia crítico-social da redenção. Por isso ele pode ser considerado um schopenhaueriano de esquerda.[25] Vê-se assim que Mainländer não deduz de sua metafísica pessimista nenhuma consequência conservadora, mas desenvolve, ainda que como estágio intermediário, a representação de um estado ideal social-democrata. O cidadão de um tal estado será o indivíduo que a história tenta efetivar desde seu início: “um homem inteiramente livre. Ele estará completamente livre do cultor das leis e formas históricas, e estará livre de todos os grilhões políticos, econômicos e espirituais, para além da lei. Dissipadas serão todas as formas externas: o homem estará completamente emancipado”.[26] Somente a realização de um tal ideal poderia mostrar ao próprio homem sua verdadeira face:
Minha filosofia olha para além do estado ideal, para além do comunismo e do amor livre, e ensina, depois de uma humanidade livre e sem sofrimento, a morte da humanidade. No estado ideal, isto é, na forma do comunismo e do amor livre, a humanidade mostrará sua “face hipocrática”: ela está votada ao declínio e não somente ela, mas todo o vale de lágrimas.[27]
Embora não nos tenha legado nenhum comentário mais completo da filosofia de Mainländer, não é difícil imaginar o que Nietzsche deve ter pensado dessa desconcertante combinação de metafísica da decadência e socialismo. O comentário mais completo de Nietzsche sobre o pessimismo filosófico do século XIX nos dá uma indicação. Ele está no §357 da Gaia ciência, num contexto de discussão sobre a filosofia alemã, sobre o problema do que é alemão na filosofia alemã. Nietzsche se refere à inabilidade do pessimismo pós-schopenhaueriano como prova de que o pessimismo era na verdade um fato europeu, não alemão. Após zombar de E. von Hartmann e J. Bahnsen, é a vez de Mainländer:
Ou deveríamos considerar alemães autênticos os diletantes e velhas solteironas como Mainländer, o adocicado apóstolo da virgindade? Ele terá sido judeu, afinal (– todos os judeus se tornam adocicados ao moralizar). Nem Bahnsen nem Mainländer, menos ainda E. von Hartmannm, fornecem dados seguros para a questão de saber se o pessimismo de Schopenhauer, seu olhar de horror a um mundo desdivinizado, que se tornara estúpido, cego, louco e questionável, seu honesto horror... seria não um mero acaso excepcional entre os alemães mas um evento alemão (...) Não, os alemães de hoje não são pessimistas! E Schopenhauer era pessimista, repito, como bom europeu e não como alemão.[28]
Essa passagem indica não apenas a aversão de Nietzsche ao pessimismo filosófico pós-schopenhaueriano, mas sugere também a existência de um outro pessimismo, o pessimismo dos fortes. É o que Nietzsche desenvolve, por exemplo, no § 114 da Aurora (“Do conhecimento que caracteriza o ser sofredor”). O forte recusa todas as tentações do sofrimento e o “depor contra a vida”, ele considera sempre que “é altamente desejável continuar a viver”. Recusando-se a depreciar a vida, o forte recusa também os valores decadentes, “sintomas” de um “hedonismo de base mórbida”, e recusa associar-se ao sofrimento vendo nele um sentido ou finalidade superior (como no pessimismo). Daí a necessidade de um verdadeiro pessimismo: aquele que afirma inteiramente este mundo tal como é, sem ordem ou finalidade, e que, por isso mesmo, conduz à mais completa afirmação, o niilismo ativo como transvaloração dos valores, o amor fati e a superação do niilismo pelo pensamento do eterno retorno. Daí a crítica aos valores civilizatórios na Genealogia da moral, valores que não são senão o desenvolvimento dessa interpretação decadente da existência que de Sócrates a Schopenhauer não teve outra finalidade que a “obsessiva necessidade de domesticar o sofrimento”.
Ora, colocando Nietzsche dentro desse contexto do pessimismo filosófico do século XIX, e ao contrapor a seu pensamento a crítica completamente diferente que Mainländer desenvolve da filosofia de Schopenhauer, seria possível lançar uma nova luz sobre seu projeto filosófico. Se podemos afirmar que sua filosofia oferece uma resposta original ao “problema da existência” colocado por Schopenhauer (que por isso é elogiado em todas as fases do pensamento de Nietzsche), ela se coloca no extremo oposto à resposta oferecida pelos outros pessimistas, e especialmente Mainländer. Embora seu pensamento transcenda de longe o quadro estreito e teoricamente fraco do pessimismo filosófico, Nietzsche não apenas reflete sobre os mesmos temas como se utiliza da mesma terminologia e dos mesmos referenciais teóricos (“científicos”) da escola schopenhaueriana. É verdade que o caráter antimetafísico, perspectivista, antidogmático de seu pensamento pouco tem a ver com as metafísicas fantásticas pós-schopenhauerianas, mas é inevitável o paralelismo. Assim temos, a partir da metafísica da Vontade de vida de Schopenhauer, de um lado, em Mainländer, Vontade de morte, teoria do enfraquecimento das forças (Entropia), ética compassiva e política socialista; de outro lado, em Nietzsche, Vontade de potência, doutrina do eterno retorno, ética da nobreza e política da hierarquia de forças. Se notarmos que em ambos se encontra tanto um certo biologismo (fruto da influência da ciência da época) como a tentativa de se expressar por outros meios que não somente os tratados filosóficos, então o paralelo parecerá ainda mais plausível. Se pudemos ver acima que a teoria socialista de Mainländer de certa forma encontra uma justificativa na metafísica de Schopenhauer (ética da compaixão, unidade da vontade, etc), também é possível notar que o “aristocratismo” de Nietzsche pode ser visto como um reflexo das ideias políticas schopenhauerianas, um misto de conservadorismo burguês e moral solipsista. Para verificar isso valeria a pena seguir então o conselho de Nietzsche de 1876, mas agora dirigindo a referência contra ele próprio: talvez já tenhamos lido Nietzsche demais, é a vez de Mainländer!
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Notas:
[1] Nietzsche, F. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 120.= = =
[2] Idem, p. 56.
[3] Lukács, G. El asalto a la razón. México, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1959, p. 169. Nessa mesma direção, Löwith afirma que a acolhida da obra de Schopenhauer só foi possível a partir da apatia em que se encontrava a inteligentsia alemã depois da derrota da Revolução de 1848. Cf. Löwith, K. De Hegel à Nietzsche. Paris: Gallimard, 1969.
[4] Idem, p. 166.
[5] Idem, p. 169.
[6] Idem, p. 177. É nessa direção que Lukács sublinha o abismo que separa Schopenhauer e Hegel e contrapõe a lógica dialética do último à lógica metafísico-irracionalista do primeiro. Cf. Idem, p. 195-99.
[7] Idem, p. 167.
[8] Idem, p. 201.
[9] Borges, J. L. Outras Inquisições. In:______. Obras Completas de Jorge Luis Borges. São Paulo: Globo, 1999, vol. II, p. 88.
[10] Nietzsche, F. Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe. Zweite Abteilung, Fünfter Band. Giorgio Colli u. Mazzino Montinari (orgs.). Januar 1875 – Dezember 1879. Berlim, Nova York: Walter de Gruyter, 1980, p. 202.
[11] Mainländer, P. Die Philosophie der Erlösung. In: Schriften, vol. I. Editado por Winfried H. Müller-Seyfarth. Hildesheim, Zurique, Nova York: Olms, 1996, p. 89.
[12] Idem, p. 108.
[13] Idem, p. 322.
[14] Idem, p. 323.
[15] Idem, p. 325.
[16] Idem, p. 180.
[17] Idem, p. 585.
[18] Cf. idem, p. 587.
[19] Antes de se suicidar, Mainländer escreveu um segundo volume da “Filosofia da redenção”, que foi publicado em 1886 por sua irmã Minna Batz. Nele se encontra um texto intitulado “Três discursos aos trabalhadores alemães”, que também foi entregue ao movimento operário social democrata em forma de panfleto. Cf. Mainländer, P. Die Philosophie der Erlösung. Zweiter Band. Zwölf philosophische Essays. In:______. Schriften, vol. II. Editado por Winfried H. Müller-Seyfarth. Hildesheim, Zurique, Nova York: Olms. 1996, p. 339 e ss.
[20] Mainländer, P. Die Philosophie der Erlösung, vol. I, p. 295.
[21] Idem, p. 308.
[22] Apesar de defender o comunismo, Mainländer concebe a origem da sociedade de um ponto de vista contratualista hobbesiano (assim como Schopenhauer). O egoísmo violento do estado de natureza é deixado de lado em vista da segurança, escolhida como o “mal menor”. Cf. idem, p. 199 e ss.
[23] Idem, p. 301.
[24] Idem, p. 594.
[25] Cf. Lütkehaus, L. “Pessimismus und Práxis. Umrisse einer kritischen Philosophie des Elends”. In: Ebeling, H.; ______. (orgs.). Schopenhauer und Marx. Philosophie des Elends: Elend der Philosophie? Königstein: Hein, 1980.
[26] Mainländer, P. Die Philosophie der Erlösung, vol. I, p. 311.
[27] Mainländer, P. Die Philosophie der Erlösung, vol. II, p. 334.
[28] Nietzsche, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 257. Aqui deve-se dizer que Nietzsche ofereceu uma de suas mais irrefletidas boutades, pois Mainländer não era judeu (seu verdadeiro nome era Philipp Batz), o que o próprio Nietzsche confessa ter descoberto mais tarde. Cf. Seyfarth, W. “Mainländer und Nietzsche: Ein Nachtrag zu Max Seilings Replik auf eine der‚ unüberlegtesten Boutaden Nietzsches”. In: Nietzsche-Studien, vol. 28. Berlim, Nova York: 1999, p. 323-35.
Bibliografia de apoio:
GERHARD, M. “Politik des Pessimismus, Pessimismus der Politik oder Philipp Mainländer und die sociale Aufgabe der Gegenwart.” Conferência pronunciada no colóquio “Politik und Gesellschaft im Umkreis der Philosophie Schopenhauers”. Mainz, 2005.
MÜLLER-SEYFARTH, W. (org). Die modernen Pessimisten als décadents. Texte zur Rezeptionsgeschichte von Philipp Mainländers Philosophie der Erlösung. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1993.
______. Metaphysik der Entropie. Berlin: Van Brenen Verlagsbuchhandlung, 2000.
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Resumo: Trata-se apenas, neste artigo, de apresentar em suas linhas gerais o pensamento de Philipp Mainländer (1841-1876), filósofo hoje completamente esquecido, mas que já teve leitores como Nietzsche, Borges e Cioran, e que a história da filosofia reconhece apenas como defensor e praticante do suicídio. Mais desconcertante, porém, que as consequências extremas que Mainländer retira da filosofia de Schopenhauer, é a sua intenção de conciliar o mais extremo pessimismo metafísico com um pensamento político socialista.= = =
Palavras-chave: Mainländer, Schopenhauer, pessimismo, socialismo, redenção.
Abstract: This paper aims at presenting, in it's genral lines, the thought of Philipp Mainländer (1841-1876), today a completely forgotten philopher, but who was rea by authors like Nietzsche, Borges and Cioran, and who the history of history of philosophy knows only as a defender and practitioner of suicide. The article tries to show the strange intention of Mainländer to conciliate the most extreme metaphysical pessimism with a socialist political thought.
Keywords: Mailänder, Schopenhauer, pessimism, socialism, redemption.
RAMOS, F. C. “O pessimismo e a questão social em Philipp Mainländer”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, n. 10, p. 35-50, jul-dez/2007.
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Muito bom. Tenho o texto publicado. Grande, Flamarion! E grande Philipp Batz!
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