sexta-feira, 24 de maio de 2019

Indivíduo e instituições: a oposição entre iluministas e românticos


por Domenico Losurdo

Outro importante motivo teórico remete, em Hegel, à tradição de pensamento revolucionário. Referimo-nos à ênfase sobre a objetividade do ético e das instituições políticas que também, estranhamente, mas não muito, foi, em geral, colocada na conta do conservadorismo ou, pior, foi atribuída ao filósofo. Na realidade, um crítico implacável de Hegel dá prova da maior profundidade no momento em que o contrapõe a Wilhelm von Humboldt: “O individualismo, por natureza, não é revolucionário” (R. Haym). O individualismo tinha salvado Wilhelm von Humboldt do entusiasmo da cultura alemã do tempo da Revolução Francesa, que, não por acaso, pretendia impor uma virada à história, não fazendo apelo à mudança in interiore homine do indivíduo, mas transformando radicalmente as instituições políticas objetivas, intervindo com força na objetiva configuração e organização da vida social.

Sim, Haym tinha razão: à absolutização revolucionária das “instituições políticas” (Einrichtungen der Regierungen) e à reivindicação de uma radical transformação delas, mediante “revoluções políticas” (Staatsrevolutionen), Humboldt contrapõe a centralidade do indivíduo. E esse é o terreno sobre o qual, desde o início, na Alemanha, desenvolve-se a luta ou a tomada de distância com relação à Revolução Francesa, responsabilizada por difundir a ilusão, usando as palavras de Schiller, da “regeneração no campo político”, a partir bem mais da “constituição” e das instituições políticas do que do modo de pensar e sentir do indivíduo. E, ao contrário, “o bem dos povos” — reforça Gentz — “não está ligado exclusivamente a nenhuma forma de governo”, a nenhuma “constituição estatal”. Exatamente oposta é a orientação da filosofia que acompanha a preparação e a eclosão da Revolução Francesa. Para Rousseau, “é certo que os povos são, a longo prazo, o que o governo faz com que se tornem”. E mais claramente Kant: “O importante não é um bom governo, mas uma boa maneira de governar”. A atenção — declara em À paz perpétua, em polêmica com contrarrevolucionário Mallet du Pan — deve ser voltada não para a qualidade dos indivíduos que governam, mas para o “modo de governar”, para a “constituição política”. E, de fato, a história demonstra que até mesmo monarcas excelentes têm como sucessores tiranos sanguinários; por exemplo, Marco Aurélio é sucedido por Cômodo. Não diversamente se exprime Hegel: “Que a um povo seja dado pelo destino um nobre monarca deve ser considerado, certamente, uma grande fortuna. Mas, em um grande Estado até mesmo isso tem pouca importância: o Estado tem a sua força na sua razão”.

Ao contrário do teórico liberal celebrado por Haym pelo seu individualismo, ou seja, Wilhelm von Humboldt, Hegel tinha experimentado entusiasmo, e ainda continuava a senti-lo nos anos da maturidade, pela Revolução Francesa e, não por acaso, a ênfase na objetividade do ético e das instituições políticas caracteriza o filósofo em todo o ciclo da sua evolução: “Se deve haver uma mudança [sublinha em um escrito da juventude] alguma coisa deve de qualquer modo também ser mudada”, e eis que a atenção se volta para o “edifício estatal”, para as “instituições, constituições, leis” (Einrichtungen, Verfassungen, Gesetze). E até o fim Hegel salienta o fato de que a realização de uma real mudança pressupõe a intervenção sobre “leis e situações” (Gesetze und Verhältnisse), um recurso não a “meios morais”, e tampouco à “associação dos indivíduos na sua singularidade”, mas à “modificações das instituições”. A luta ideológica e a subsequente mudança de consciência têm certamente grande importância, mas somente na medida em que levam “a modificar leis e instituições da vida política” (ad corrigendas leges er instituta civilia), na medida em que incidem sobre as “leis” e as “instituições da comunidade política” (instituta civitatis). Mesmo a liberdade do indivíduo não pode ser assegurada sem a intervenção sobre a configuração objetiva das instituições.

São, ao contrário, o publicismo e a filosofia empenhados na luta contra a revolução e contra o movimento constitucional que procuram deslocar a atenção da esfera das relações e das instituições políticas para a da dimensão interior da consciência. No segundo capítulo do presente trabalho, já se falou de Schelling. Não é o único. Pense-se em Baader, que à “liberdade exterior” garantida pelas leis e instituições, e que pode andar simultaneamente com “a iliberdade interior”, contrapõe a “autolibertação” que cada indivíduo é chamado a realizar a partir, em primeiro lugar, de si mesmo. Mas contra Rehberg, que se opõe à supressão da servidão da gleba com o argumento de que “a liberdade do servo da gleba, do escravo, tem a sua sede somente no espírito”, Hegel responde que “o espírito, enquanto apenas espírito, é uma representação vazia; ele deve ter realidade, existência, deve ser objetivo”. Para Schelling, Baader, Rehberg, a única mudança significativa se desenvolve in interiore homine, reside no melhoramento moral do indivíduo; o resto é exterioridade. Ao afirmar a centralidade do “exterior” ou a configuração objetiva das leis e instituições, Hegel recolhe ainda uma vez a herança da filosofia que remete à preparação ou à defesa da Revolução Francesa. Kant, embora tão atento às razões da moral, escreve: não é da “moralidade interna que se pode esperar a boa constituição do Estado; aliás, é sobretudo de uma boa constituição do Estado que se deve esperar a boa educação moral de um povo”. E, antes dele, Rousseau afirma que “os vícios não pertencem tanto ao homem, mas ao homem mal governado”.

Contrapor à mudança das instituições políticas a mudança da consciência e da interioridade do indivíduo, seja o súdito ou o soberano, significa contrapor a conservação à mudança. Disso está ciente Hegel: “alguma coisa [etwas] deve também ser mudada”. Sobretudo Marx está consciente disso: “Essa exigência de modificar a consciência conduz à outra exigência, a de interpretar diversamente o que existe, ou seja, de reconhecê-lo mediante uma diferente interpretação”, e isso configura o maior conservadorismo. Mas também quando à transformação política se contrapõe não tanto a renovação da consciência individual, mas a substituição de indivíduo por outro, não se chega s resultados substancialmente diversos. Em tal modo — nota o jovem hegeliano Karl Marx — “os defeitos objetivos de uma instituição são imputados a indivíduos, para insinuar, sem melhoramento essencial, a aparência de um melhoramento”. O problema perde a sua dimensão objetiva, a atenção é desviada da coisa para se concentrar na pessoa: “Na análise da situação estatal, se é facilmente tentado a negligenciar a natureza objetiva das relações e explicar tudo a partir da vontade das pessoas agentes”. E, ao contrário, uma correta análise política requer que se identifiquem “relações”, Verhältnisse — o termo, nós já vimos, remete imediatamente a Hegel —, “onde à primeira vista parecem agir somente pessoas”.

Por haver comparado o rei a uma coisa insignificante, por ter desvalorizado o indivíduo mesmo no nível mais alto, na pessoa do monarca, Hegel é considerado por Haym como estando irremediável contraposição com a inspiração de fundo do liberalismo moderno. Mas vem à tona ainda uma vez a inconsistência da alternativa liberal/conservador, pois Haym acaba por ver no individualismo a barreira mais eficaz não contra a conservação, mas contra a “revolução”. É verdade que, por outro lado, o autor de Hegel e o seu tempo denuncia, no pensador por ele investigado, um teórico do absolutismo, mas isso entra novamente no topos liberal, já visto, que busca assimilar, sob o signo do absolutismo, tudo o que não faz parte da tradição liberal propriamente dita.

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LOSURDO, D. Hegel, Marx e a tradição liberal: liberdade, igualdade, estado. Trad. C. A. F. Nicola Dastoli. São Paulo: Editora Unesp, 1998, pp. 201-4.
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