domingo, 11 de setembro de 2022

Adorno: uma abordagem metafísica da coisificação


por István Mészáros

Certa vez o grande democrata revolucionário russo Belinski declarou que todo o movimento ao qual pertencia nascera de O capote [1842], de Gogol. Poder-se-ia descobrir uma conexão similar entre A teoria do romance [1916] e História e consciência de classe [1923], de Lukács, e os primeiros representantes da Escola de Frankfurt. Entretanto, a principal diferença era igualmente notável. Pois, ao contrário dos democratas revolucionários russos, que representaram uma forte tendência radicalizante na história intelectual da Rússia, vinculando-se, através de Tchernichevski, até com Plekhanov e Lenin, a Escola de Frankfurt moveu-se na direção oposta. À medida que o tempo passava, seus membros (com exceção de Walter Benjamin, que morreu prematuramente, e de Herbert Marcuse durante algum tempo, como veremos na próxima seção) cada vez mais se separavam do agente social da emancipação, optando em vez disso pelos termos mais abstratos e genéricos da oposição e da negação, cujo alvo mal podia ser identificado.

Assim, Lukács pôde observar acertadamente, em seu prefácio de 1962 a A teoria do romance, que a mistura de “ética de esquerda com epistemologia e ontologia de direita”, característica daquela obra (escrita em 1914-15 e muito idealizada, particularmente por Adorno), conduzia a um beco sem saída intelectual e político, produzindo em seus seguidores alemães um “conformismo disfarçado de não-conformismo”.[1]

A teoria do romance foi concebida por Lukács “em estado de ânimo de permanente desespero em relação à situação do mundo”,[2] identificando sua perspectiva com a definição de Fichte do presente como “a era da pecaminosidade consumada”.[3] Este estado de ânimo de intenso pessimismo cultural se mostrou influente no Ocidente. Além disso, quando os principais pontos da teoria da reificação” de Lukács em História e  consciência de classe foram a ele acrescentados, podemos ver o surgimento de alguns dos mais importantes leitmotivs da teoria crítica. No entanto, o problema era que a genuína crítica social da abordagem de Lukács fora diluída até ficar irreconhecível por causa do acréscimo de categorias sem significado, como “mercadoria absoluta”[4] e “reificação absoluta”[5], que substituíram a crítica socialmente tangível pelo radicalismo verbal vazio.

Assim, grande parte da “teoria crítica” se tornou tão “crítica” quanto era “grande” o “grande compromisso histórico” do eurocomunismo. Lukács caracterizou muito bem essa situação, dizendo:

Uma parte considerável da intelligentsia alemã, inclusive Adorno, fixou residência no “Grande Hotel do Abismo”, que descrevi em minha crítica de Schopenhauer como um belo hotel, equipado com todas as comodidades, à beira de um abismo, do nada, do absurdo. E a contemplação diária do abismo entre as excelentes refeições ou os entretenimentos artísticos só pode aumentar o gozo das sutis comodidades oferecidas.[6]

Naturalmente o compromisso político tinha de ser estritamente banido, até retrospectivamente, do Grande Hotel. Nesse sentido, Walter Benjamin foi censurado por sua suposta naïveté com estas palavras:
Em seu íntimo contato com o material que estava à mão, em sua afinidade com ele, seu pensamento, apesar de toda a singularidade e perspicácia, estava sempre acompanhado de um elemento inconsciente característico, de um toque de naïveté. Esta naïveté permitia-lhe simpatizar às vezes com grupos de política de participação, os quais, como ele bem sabia, teriam liquidado sua própria substância, sua experiência intelectual não arregimentada.[7]
O mesmo se podia dizer de Picasso e Sartre,[8] e também de Bertolt Brecht, que segundo Adorno, só se iludia ao pensar que suas intenções políticas poderiam produzir frutos através da literatura:
A obra de Brecht, embora voltada para a mudança desde Santa Joana dos Matadouros (1929), talvez fosse politicamente impotente; [...] Seu impacto pode ser caracterizado como uma forma de pregação aos convertidos.[9]
Na verdade, Adorno elevou sua acomodação ao nível de um princípio filosófico-estético da mais alta ordem — o da política misteriosamente “participatória” do apoliticismo — ao dizer que a arte “participa da política, mesmo que seja apolítica[10] e que “a ênfase no nexo entre arte e sociedade é válida, desde que evite o partidarismo direto, como aquele que encontramos no que hoje em dia se chama de ʽcompromissoʼ”.[11] As tentativas de escritores e artistas de alcançar mudança social por meio de “intervenções políticas” significativas eram condenadas por Adorno como “dúbias” porque, segundo ele, faziam que seus autores se encontrassem regularmente envolvidos em uma falsa consciência social, pois tendem a simplificar excessivamente entregando-se a uma práxis míope para a qual não contribuem com nada além de sua própria cegueira”.[12]

Assim como ideologia”, também coletividade” se tornou um palavrão na filosofia de Adorno. A própria época foi definida como “a época da coletividade repressiva”, do que parecia resultar, de acordo com as regras da curiosa lógica de Adorno, que o poder de resistência às maiorias compactas reside no produtor de arte, solitário e exposto.[13] A ideia de que a constituição de coletividades não-repressivas pudesse ser a melhor solução simplesmente não fazia parte do horizonte conceitual de Adorno. Mas, para lhe fazer justiça, se a “época em si era — por definição — identificada com a “coletividade repressiva” como tal, qualquer tentativa de se contrapor a seu poder pela ação de uma “coletividade não-repressiva” seria condenada ao fracasso desde o início, e não passaria de uma manifestação da “falsa consciência social simplificadora”.

Entretanto, o problema era o fato de tanta coisa ter de ser estabelecida por definição e constante redefinição, na ausência de um fundamento viável (dos pseudo-agentes postulados e de suas personificações de entidades abstratas) na própria realidade. Assim, ficamos sabendo que, por definição, as obras de arte são socialmente culpadas.[14] Esta afirmação era imediatamente seguida por outra que dizia; “mas aquelas que têm valor tentam reparar sua culpa; afirmação esta que adquire seu significado, mais uma vez por definição, da primeira definição. Do mesmo modo, declarava-se categoricamente que “uma das características básicas da ideologia é que ninguém jamais acredita inteiramente nela, e que ela passa do autodesprezo à autodestruição;[15] outra afirmação totalmente arbitrária que não apresenta a mínima prova que confirme as várias características supostas — e, para dizer o mínimo, extremamente controvertidas —, simplesmente as impondo, por definição, à ideologia (e ao leitor desavisado).

Naturalmente, depois que o leitor se acostuma com o modo de Adorno resolver tudo com definições que apenas afirmam a si mesmas, já pode aceitar quase tudo, inclusive as proposições mais desconcertantes, como, por exemplo: a realidade empírica como tal [...] tornou-se uma ideologia que duplica a si mesma.[16] Dessa maneira, qualquer coisa que Adorno quisesse rejeitar poderia ser posta de lado em grande escala, por definição, sem levar em conta sequer o contexto histórico. Por isso, não nos surpreendemos ao saber que “com efeito,  a doutrina [aristotélica] da catarse já inaugurava, em princípio [isto é, pela definição característica de Adorno], a dominação manipuladora da arte, que se consumou com o advento da indústria cultural.[17]

O método adorniano de estabelecer as questões por definição se conjugava à busca constante de paradoxos e frases agudas. Isso se ajustava à substância ideológica e à postura sociopolítica evasiva de sua obra. Se era realmente verdade que a época em si estava ligada à “coletividade repressiva; que a realidade empírica como tal se tornara uma ideologia que se duplica a si mesma; que a “estrutura social se tornara total e completamente amalgamada;[18] que a catarse aristotélica já inaugurara “em princípio a sociedade da “reificação total e a concomitantemente dominação manipuladora da arte  pela “indústria cultural; que “no mundo administrado a neutralização se tornou universal;[19] que “a totalidade é a sociedade como uma coisa em si, com toda a culpa da reificação;[20] que “a mutilação do homem que é a atual racionalidade particularizada é o estigma da irracionalidade total;[21] que “o aparato calculado e distributivo da indústria, a comercialização da cultura, culminam no absurdo. Completamente subjugada, administrada, absolutamente ʽcultivadaʼ em certo sentido, ela morre;[22] que “a luta contra a ilusão trabalha a favor do terror puro e simples;[23] que “a vida se transforma na ideologia da reificação uma máscara mortuária;[24] etc., nesse caso não se poderia esperar que “o produtor de arte, solitário e exposto, fosse capaz de produzir o menor arranhão no poder maciço de todas essas negatividades.

Em consequência, as dificuldades e contradições identificadas tiveram de ser metamorfoseadas no curso da articulação da teoria de Adorno, para que o poder das definições (e das redefinições adequadas), em conjunto com paradoxos cuidadosamente formulados e trabalhados, pudesse oferecer a promessa de uma “solução, embora nenhuma pudesse de fato ser indicada em termos dos desenvolvimentos sócio-históricos reais.

Adorno presenteava constantemente o leitor com lampejos verbais e uma espécie de “malabarismo conceitual que davam a ilusão de uma solução depois de insistir — em virtude da negação vaga e genérica das várias “totalidades (irracionalidade, reificação, administração, cálculo, integração totais, etc.) e “absolutos — que era impossível encontrar uma solução; e que, na verdade, a própria tentativa de buscá-la seria desesperadamente ideológica: manifestação da “falsa consciência social, digna apenas de condenação. Assim, o leitor era falsamente tranquilizado com afirmações como: rejeitando a realidade [...] a arte vinga a realidade;[25] a irracionalidade da arte está se tornando racional, [...] a arte internaliza o  princípio repressor, isto é, a condição irredimível (Unheil) do mundo, em vez de apenas expor inúteis protestos contra ela;[26] “obras de arte são mercadorias absolutas; [...] Uma mercadoria absoluta liberta-se da ideologia inerente à forma de mercadoria;[27] a arte “participa da política mesmo quando é apolítica;[28] é este fetichismo — a cegueira da obra de arte em relação à realidade de que faz parte — que permite a obra de arte romper o encanto do princípio da realidade e se transformar em uma essência espiritual;[29] a arte é semelhança, mesmo em seus picos mais elevados; mas sua semelhança [...] lhe é proporcionada pelo que não é semelhante. [...] A semelhança é uma promessa de não semelhança,[30] etc. etc. Adorno chega a encontrar um modo de resgatar parcialmente a ideologia (embora via de regra ele a rejeite categoricamente) sob a forma de um “dever ser, dizendo, no contexto que lhe convém, que “a ideologia é uma ilusão socialmente necessária, o que significa que, se ela é necessária, deve ser uma forma de verdade, por mais distorcida que seja.[31].

Frequentemente tem-se dito que “não há como negar que uma longa viagem pela mata cerrada da prosa de Adorno dá a impressão de se estar passando pelos mesmos lugares com incômoda frequência [...] vemo-nos aparentemente andando em círculos, repassando os contornos de um sistema latente, apesar dos protestos de Adorno em contrário.[32] Entretanto, a tentativa de justificar esta situação dizendo que a “uniformidade repetitiva que Adorno tanto detestava no mundo moderno não deixou de permear seu próprio pensamento[33] é bem pouco convincente. Afinal, muitos outros intelectuais viveram no mesmo mundo sem se tornarem vítimas de sua suposta “uniformidade repetitiva. Além disso, havia uma boa razão para Adorno proceder desta maneira. Pois o que era de fato característico, e altamente revelador, do método apolítico de Adorno de produzir definições paradoxais, articuladas por variações intermináveis e não cumulativas sobre temas recorrentes, com significado convenientemente mutável — o que constituía o princípio estruturador fundamental e mais ou menos consciente do seu método —, era que (em contraposição a Marcuse) a “fatia social tinha de ser sistematicamente retirada das questões que ele examinava, mesmo quando suas “negações soavam “totais, “absolutas e “categóricas.

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Notas:
[1] Lukács, The Theory of the Novel, Londres, Merlin Press, 1978, p. 22.
[2] Ibid., p. 12.
[3] Ibid., p. 18.
[4] Ver, por exemplo, Adorno, Aesthetic Theory, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1984, p. 336.
[5] Cf. Adorno, Prisms, p. 34.
[6] Lukács, The Theory of the Novel, p. 22.
[7] Adorno, Prisms (ensaio A Portrait of Walter Benjamin”, p. 227-42), p. 237. E Adorno acrescentou em outro contexto:
No que diz respeito ao próprio Benjamin, sua recusa em levar a sério a vanguarda estética, a menos que esta estivesse de acordo com o programa do Partido Comunista, talvez tenha sido influenciada pela hostilidade de Brecht aos intelectuais Tui. A segregação elitista da vanguarda não é culpa da arte, mas da sociedade. Os padrões estéticos inconscientes das massas são precisamente aqueles de que a sociedade necessita para se perpetuar e perpetuar seu domínio sobre as massas" (Aesthetic Theory, p. 360).
[8] Ibid., p. 362.
[9] Ibid., p. 344.
[10] Ibid., p. 362.
[11] Ibid., p. 440.
[12] Ibid., p. 324.
[13] Ibid., p. 328.
[14] Ibid., p. 333.
[15] Ibid., p. 334.
[16] Ibid., p. 362.
[17] Ibid., p. 339.
[18] Ibid., p. 362.
[19] Ibid., p. 325.
[20] Adorno, Introdução a The Positivist Dispute in German Sociology, Londres, Heinemann, 1976, p. 12.
[21] Adorno, Prisms (ensaio "Cultural Criticism and Society", p. 17-34), p. 24.
[22] Ibid., p. 25.
[23] Ibid., p. 26.
[24] Ibid., p. 30.
[25] Ibid., p. 34.
[26] Adorno, Aesthetic Theory, p. 2.
[27] Ibid., p. 27.
[28] Ibid., p. 336.
[29] Ibid., p. 362.
[30] Ibid., p. 468.
[31] Adorno, Negative Dialectics, Nova York, The Seabury Press, 1973, p. 404-5.
[32] Adorno, Aesthetic Theory, p. 331.
[33] Martin Jay, Adorno, Londres, Fontana Paperbacks, 1984, p. 162.
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MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 156-160.
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