quarta-feira, 8 de junho de 2022

Marcuse e a contracultura tupiniquim


por Carlos Nelson Coutinho

A Escola de Frankfurt chegou ao Brasil no final dos anos de 1960. Ao lado de muitos livros de Marcuse, foram então publicados importantes ensaios de Benjamin, Adorno e Horkheimer; na mesma época, Roberto Schwarz empregava com brilho categorias frankfurtianas em suas análises literárias, e José Guilherme Merquior — então heideggeriano — publicava o primeiro estudo brasileiro de conjunto sobre os principais pensadores da Escola[2]. O processo se inseria numa saudável tendência à abertura do pensamento social brasileiro para as mais importantes correntes da cultura universal contemporânea; uma tendência que, apesar do golpe de 1964, manifestou-se com intensidade ao longo de toda a década de 1960. Para falarmos apenas no marxismo, foi este o período em que — quebrando um quase monopólio anterior dos manuais soviéticos — a bibliografia marxista brasileira se enriqueceu não só com os textos frankfurtianos citados, mas também com trabalhos de Lukács, Gramsci, Goldmann, Althusser, Baran e Sweezy, Adam Schaff e muitos outros.

Foi a peculiar situação brasileira dessa agitada segunda metade dos anos de 1960 que determinou, em grande parte, o modo como se deu essa primeira recepção da Escola entre nós. Por exemplo: dependeu dessa situação, e não da eventual superioridade intrínseca dos textos de Marcuse, o fato de que esse autor tenha desfrutado, na vida intelectual brasileira da época, de uma influência incomparavelmente superior à de seus companheiros de Escola. Já conhecido internacionalmente como uma das principais fontes ideológicas das rebeliões estudantis europeias e norte-americanas, Marcuse chegava ao Brasil no momento em que um amplo setor da intelectualidade de esquerda não julgava mais encontrar nas posições do Partido Comunista Brasileiro (e da cultura marxista que lhe era próxima) uma resposta adequada aos desafios da realidade. A “Grande Recusa” proposta por Marcuse parecia contribuir para o encontro de tal resposta, naquele clima de “impaciência revolucionária”[3] em que estava imersa boa parte da nossa intelectualidade. Assim, num primeiro momento, um Marcuse lido apressadamente tornou-se componente não secundário da sopa eclética que formou a bagagem teórica da pretensa “nova esquerda” brasileira: misturado com Mao Tsé-tung, Régis Debray e Louis Althusser, com os quais pouco ou nada tinha em comum, Marcuse parecia fornecer elementos para uma contestação radical que envolvia, ao mesmo tempo, a ditadura (identificada tout court com o capitalismo) e o establishment marxista encarnado pelo “velho” PCB (que, embora em alguns casos buscasse renovar seu patrimônio cultural com autores como Lukács e Gramsci, continuava essencialmente preso às tradições esclerosadas da Terceira Internacional). Se, no plano político, a tática da “acumulação de forças” proposta pelo PCB aparecia a esses intelectuais como reformismo oportunista, o racionalismo humanista de Lukács e o projeto nacional-popular de Gramsci eram vistos, no plano da cultura, como demasiadamente vinculados a propostas estético-ideológicas conservadoras e/ou populistas. Não é assim de surpreender (embora talvez seja de lamentar) que Marcuse, cujas edições se multiplicavam, tenha sido certamente bem mais lido na época do que Lukács ou Gramsci, que tinham suas traduções brasileiras vendidas em estantes de saldo a preço de banana.

Com o rápido fracasso da luta armada, à qual alguns desses intelectuais “impacientes” aderiram e com a qual muitos simpatizaram, o espírito da “Grande Recusa” sofreu uma alteração profunda. Por um lado, a vertente althusseriana — sob a cobertura de um falso revolucionarismo teórico que se reduzia a decretar “cortes epistemológicos” radicais — refluiu para uma escolástica acadêmica e estéril que, combinada e fundida com a do estruturalismo, passou a dominar uma parte substancial da produção universitária e editorial no campo das ciências humanas. Por outro lado, entre os que mantiveram o espírito da “Grande Recusa”, a “impaciência revolucionária” rapidamente assumiu uma nova feição: de oposição política (ainda que equivocada) a uma opressão concreta, ela se converteu numa rejeição tão global quanto abstrata à “cultura” em geral. O mal já não seria tanto a ditadura ou mesmo o capitalismo enquanto formação econômico-social, mas todo um legado cultural que, baseado na razão e na ciência, funcionaria essencialmente, segundo os defensores dessa corrente, como uma instância repressora da subjetividade humana. E foi então que a obra de Marcuse, lida apressadamente, serviu como ponto de partida para essa passagem do gauchisme [esquerdismo] ao irracionalismo aberto: de estímulo para a contestação armada à ditadura, Marcuse tornou-se fonte de inspiração para os movimentos da chamada contracultura, ou, mais precisamente, daquela versão tropicalista da Kulturkritk romântico-anticapitalista que floresceu e se desenvolveu aqui no início dos anos de 1970.

Não posso me deter na questão de saber até que ponto a obra de Marcuse foi lida corretamente pelos que a transformaram em base ideológica do irracionalismo “contracultural”. Diria apenas, brevemente, que — se tomarmos os ensaios marcusianos dos anos de 1930 (não casualmente inéditos, em sua esmagadora maioria, no Brasil da época) — essa leitura unilateralmente “contracultural” dificilmente se sustenta: apoiado numa interpretação hegeliana do marxismo, Marcuse fornece nesses ensaios importantes contribuições para uma crítica concreta das tendências totalitárias que vê florescer no “capitalismo organizado” da época, indicando com precisão as suas raízes culturais. Contudo, se analisarmos seus textos mais divulgados entre nós, Eros e civilização (1955) e O homem unidimensional (1964), as coisas se complicam: identificando desenvolvimento científico-tecnológico com dominação repressiva, valorizando Orfeu e Narciso contra Prometeu, desqualificando o trabalho produtivo (para ele, necessariamente alienado) em nome de um trabalho lúdico ou libidinal, pregando uma “sexualidade polimórfica” e uma “nova sensibilidade” como antídotos contra a repressora razão instrumental, esses trabalhos de Marcuse — malgrado os seus indiscutíveis pontos de interesse — deitam raízes numa concepção do mundo essencialmente romântica e irracionalista. Não foi assim casual que a contracultura brasileira dos anos de 1970 se tenha valido abertamente de Marcuse (basta pensar nos artigos de Luiz Carlos Maciel, publicados sobretudo em O Pasquim)[4]; e se, no final, essa contracultura terminou por se tornar cada vez mais “orientalista” e abertamente mística em suas formulações teóricas, a ponto de não mais se reconhecer na inegável sofisticação teórica “ocidental” de Marcuse, isso não anula o fato de que o autor de Eros e civilização desempenhou um papel importante no florescimento do irracionalismo brasileiro dos anos de 1970. Um irracionalismo com o qual, diga se de passagem, o dos anos de 1980 — malgrado todas as inovações “pós-modernas” — conserva uma marcante linha de continuidade. Deve ser creditada à lucidez de Marcuse a sua preocupação final, expressa sobretudo em Contrarrevolução e revolta (1972, edição brasileira de 1973), no sentido de denunciar os excessos antirracionalistas que ele agora enxergava nos movimentos contraculturais da outrora “nova esquerda” internacional. Mas, infelizmente, quando esse livro foi publicado no Brasil, a influência marcusiana já entrara aqui em franco declínio (a defesa da razão entre nós, na sombria primeira metade dos anos de 1970, foi em grande parte — embora, decerto, não exclusivamente — obra dos lukacsianos: escolhendo travar uma luta em duas frentes, contra a “miséria da razão” dos estruturalistas e contra o aberto irracionalismo da contracultura, os lukacsianos brasileiros, então ligados ao PCB, terminaram isolados e, nesse isolamento, não foram infrequentes da parte deles manifestações de sectarismo e de intolerância[5]). Por conseguinte. o primeiro momento de Frankfurt no Brasil — um momento ligado essencialmente ao nome de Marcuse — serviu sobretudo ao fortalecimento do irracionalismo. Um analista superficial jamais poderia prever que o seu segundo e atual momento, capitaneado essencialmente pelo brasileiro Sérgio Paulo Rouanet, viesse vinculado a uma radical defesa da razão; e a uma defesa que se manifesta, como veremos, no combate a tendências culturais que, em alguns casos, podem ser apontadas como sequelas da antiga influência marcusiana.

Introdução e parte II: Rouanet e a defesa da razão

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Notas:
[1] Uma visão fortemente crítica da Escola de Frankfurt, apontada como manifestação de Kulturkritik romântica, pode ser encontrada em J. G. Merquior, Western marxism, Londres, Paladin, 1986, p. 111-138, 155-185. Embora concorde em muitos pontos com a análise de Merquior, não sou tão cético quanto ele sobre o valor analítico positivo de muitas formulações “crítico-culturais” da Escola de Frankfurt, como se verá em seguida.
[2] De Herbert Marcuse, foram publicados no Brasil, entre 1968 e 1973, os seguintes livros: O homem unidimensional, Eros e civilização, Ideias sobre uma teoria crítica da sociedade, Contrarrevolução e revolta (todos pela Zahar), O fim da utopia (Paz e Terra), O marxismo soviético e Razão e revolução (pela Saga, depois Paz e Terra). De Walter Benjamim, apareceram pelo menos três versões do ensaio:
“A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” e, em 1975, uma coletânea, A modernidade e os modernos (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro), que contém um importante estudo sobre Baudelaire. De Horkheimer e Adorno, foi publicado um capítulo da Dialektik der Aufklärung sobre “A indústria cultural”; e, do último, além de versões do ensaio “Moda sem tempo: sobre o Jazz” e de uma do texto “Ideias para uma sociologia da música”, apareceu em 1975 uma coletânea. Os ensaios de Roberto Schwarz estão em A sereia e o desconfiado, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965; e o estudo de Merquior é Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamim, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969. Essa bibliografia não pretende ser exaustiva.
[3] O termo foi cunhado pelo lukacsiano alemão Wolfgang Harich, Critica dell'impazienza rivoluzionaria, Milão, Feltrinelli, 1972.
[4] Os artigos de Luiz Carlos Maciel foram depois recolhidos em Nova consciência. Jornalismo contracultural 1970/1972, Rio de Janeiro, Eldorado, 1973. lendo-se essa coletânea pode-se facilmente perceber a
“evolução” da contracultura brasileira de Marcuse e Reich para Heidegger e o orientalismo.
[5] O grupo lukacsiano brasileiro era formado na época por Leandro Konder, Luiz Sérgio Henriques, José Paulo Netto, Gilvan P. Ribeiro e por mim. O leitor perceberá que, se a observação acima comporta um autoelogio, comporta também uma autocrítica.
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COUTINHO, C. N. “Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt” [1986]. In: Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 4ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 73-88.
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Um comentário:

  1. As velhas virgens da ontologia do trabalho "racional" do capitalismo, com medo de movimento anticapitalista hedonista, estudantil e de base popular e ateísta, antipatriarcal, anticolonialista e antirracista, que promoveu a crítica da razão patriarcal do valor e do capital.

    Elas chamam isso de "panssexualismo" ou "irracionalismo", pois têm medo do que é inconsciente em si próprios ou simplesmente ignoram porque não estudam e desconhecem tudo a respeito.

    Vocês são apóstolos da repressão e da mais-repressão. Fazem coro com empresários e o Estado que quer mais domínio de si e repressão em cima dos trabalhadores e povo em geral.

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