quarta-feira, 15 de junho de 2022

Marx e Engels contra o romantismo

 
O jovem Marx poeta, criticado por ele mesmo

[...] E, por fim, a arte não igualava nem de longe a beleza da minha Jenny. Ao chegar a Berlim, rompi todas as relações que até então havia cultivado e fiz, enfadado, algumas visitas, tratando de mergulhar a fundo na ciência e na arte.

Dado o meu estado de espírito naqueles dias, tinha que ser a poesia lírica, necessariamente, o primeiro recurso a me acudir ou, ou pelo menos, o mais agradável e imediato, mas, por corresponder à minha evolução anterior, era puramente idealista. Meu céu e minha arte era um mais além tão inacessível como o meu próprio amor. Todo o real se esvai e os contornos apagados não encontram limite algum; ataques à realidade presente, sentimentos que palpitam livremente e de uma maneira disforme, nada natural, tudo construído displicentemente, diametralmente oposto a tudo o que existe e a tudo o que deveria ser; reflexões retóricas em vez de pensamentos poéticos, mas talvez também certo calor sentimental e batalha para alcançar determinada força: aí está tudo o que creio ser o conteúdo dos três primeiros cadernos de poemas que enviei a Jenny[1]. Toda profundidade insondável de um anseio que não guarda fronteiras pulsa aqui sob diferentes formas, fazendo da “poesia” um mundo sem horizontes nem confins.

[...] No final do semestre, voltei a cuidar da dança das musas e da música dos sátiros e já no último caderno que lhes enviei pode-se ver o idealismo debatendo-se com um humorismo forçado (Escorpião e Félix); mediante um fantástico drama fracassado (Oulanem), finalmente esse idealismo sofreu uma viragem completa e se tornou uma arte meramente formal, quase sempre sem nenhum objeto que inflame o entusiasmo e sem qualquer altitude no voo das ideias.

E, contudo, estes últimos poemas são os únicos nos quais, subitamente, como um toque de uma vara de condão — oh, mas este toque foi sufocante desde o início! —, o reino da verdadeira poesia parecia resplandecer bem longe como um palácio de fadas e todas as minhas criações se viram reduzidas a nada.

Karl Marx a Henri Marx (pai), 10 de novembro de 1837.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 296-300.

Censura e romantismo

No novo regulamento[2] da censura vem expressa uma profundidade de vistas muito diferente, a que poderia chamar-se o romantismo do espírito. Enquanto o antigo edital exigia canções externas, prosaicas, que podiam ser definidas por lei, garantias que permitiam até a admissão do redator indesejável, a nova legislação, pelo contrário, retira aos editores de jornais qualquer vontade própria e ordena à prudência preventiva do governo, à grande precaução e à profundidade intelectual das autoridades que baseiem as suas decisões em qualidades interiores, subjetivas, impossíveis de determinar de fora. mas se a imprecisão, a delicadeza íntima e a ênfase subjetiva do romantismo se transformam numa coisa puramente exterior, apenas no sentido em que a contingência externa surge não na sua precisão e nos seus limites prosaicos, mas numa glória ligada ao maravilhoso, numa profundidade e num esplendor imaginários, também o regulamento da censura só dificilmente escapará a esse destino romântico.

Anteriormente, novo regulamento entrava em conflito com o edital sobre a censura devido à sua ortodoxia. Agora, é devido ao seu romantismo, que continua a ser, ao mesmo tempo, poesia tendenciosa. A caução em dinheiro, que é uma garantia propriamente dita, prosaica, transforma-se numa garantia ideal que, por sua vez, redunda numa situação completamente real e individual, mas com um significado mágico e fictício... O edital antigo aguardava os trabalhos do redator, trabalhos por que respondia a caução em dinheiro prestada pelo empresário. O novo regulamento não se preocupa com o trabalho, mas com a pessoa do redator. Exige uma personalidade individual determinada, que o dinheiro do empresário lhe terá de arranjar.

K. Marx, “Observações sobre o novo regulamento prussiano relativo à censura”.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 159-160.

Os inconvenientes do romantismo

Não ficamos surpreendidos por nos encontrarmos perante uma das numerosas aplicações atuais do princípio cristão da cavalaria, do feudalismo ressuscitado em termos de modernidade, numa palavra, do princípio romântico.

Esses senhores, que não querem reconhecer a liberdade como um dom natural derivado da luz geral da razão, mas como uma prenda sobrenatural devida a uma conjugação particularmente favorável dos astros e porque consideram a liberdade apenas como o fato individual de certas pessoas e de certas ordens, são obrigados, para serem coerentes, a subordinar a razão e a liberdade gerais às más intenções e às quimeras de “sistemas logicamente ordenados”. Para salvar as liberdades particulares dos privilegiados rejeitam a liberdade geral da natureza humana. Mas como a má rês que é o século XIX e a própria consciência do cavaleiro moderno, infectada por esse século, não podem compreender o que é incompreensível em si – porque desprovido de qualquer sentido, ou seja, como é que motivações internas, essenciais, gerais podem estar ligadas a certos indivíduos humanos por contingências exteriores, acidentais, particulares, sem estarem ligadas à essência do homem, nem à razão geral, sem, por conseguinte, serem comuns a todos indivíduos – procuram, necessariamente, refúgio no maravilhoso e no místico. Como, além disso, a situação verdadeira desses senhores, dentro do Estado moderno, não corresponde de maneira nenhuma à ideia que fazem dessa situação, porque vivem num mundo situado fora da realidade e porque, em consequência, a imaginação ocupa neles o lugar da cabeça e do coração, esses senhores, não estando satisfeitos com a prática, agarram-se necessariamente à teoria, mas a uma teoria do além, à religião que, no entanto, nas mãos deles, adquire um azedume polêmico, impregnado de tendências políticas e se resume, afinal, de modo mais ou menos consciente, num véu de sagrado para tapar desejos muito profanos, mas, ao mesmo tempo, muito fantásticos.

 K. Marx, “Os debates da 6ª Dieta Renana”.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 160-161.

As lamúrias do socialismo feudal

Por sua situação histórica, as aristocracias francesa e inglesa viram-se chamadas a lançar libelos contra a moderna sociedade burguesa. Na revolução francesa de julho de 1830 e no movimento reformados inglês[3], elas sucumbiram novamente diante do odiado novo rico. A partir daí, não podia tratar-se de uma luta política séria; restavam-lhe apenas a luta literária. Mas, também no campo da literatura, inviabilizara-se a velha fraseologia do tempo da Restauração[4].

Para despertar simpatias, a aristocracia fingiu perder de vista os seus próprios interesses, formulando suas acusações à burguesia aparentemente em defesa do interesse da classe operária explorada. Deu-se ao prazer, assim e ao mesmo tempo, de entoar cantigas de escárnio sobre o seu novo denominador e de sussurrar-lhe ao ouvido profecias mais ou menos prenhes de desgraças.

Deste modo surgiu o socialismo feudal, metade canto lamentoso e metade folhetim mordaz, metade eco do passado e metade ameaça do futuro — por vezes acertando no alvo um juízo amargo, espiritualmente demolidor, sobre a burguesia, mas sempre ridículo nos seus efeitos pela completa incapacidade de compreender o curso da história moderna.

Para juntar atrás de si o povo, a aristocracia desfraldou como estandarte a sacola proletária. Mas todas as vezes em que o povo a seguiu, descobriu-lhe no traseiro os velhos brasões feudais e dispersou-se com gargalhadas sonoras e irreverentes.

Uma parte dos legitimistas franceses[5] e a Jovem Inglaterra[6] foram os melhores neste espetáculo.

Se os feudais demonstram que o seu modo de exploração tinha uma forma diferente do modo burguês de exploração, esquecem-se apenas que exploravam em circunstâncias e condições já ultrapassadas. Se apontam que o proletariado moderno não existia sob o seu domínio, esquecem-se apenas que justamente a burguesia moderna foi um rebento necessário da sua ordem social.

De resto, dissimulam tão mal o caráter reacionário da sua crítica que a sua acusação principal contra a burguesia reside precisamente no fato de que, no regime desta, desenvolveu-se uma classe que fará ir pelos ares toda a velha ordem social.

Censuram mais à burguesia ter dado origem a um proletariado revolucionário do que ter criado um proletariado em geral.

Por isso, na prática política, participam de todas as medidas repressivas contra a classe operária e, na vida cotidiana, a despeito de toda a sua bombástica fraseologia, conformam-se perfeitamente em colher as maçãs de ouro da árvore da indústria e trocar honra, amor e fidelidade pelo comércio de lã, açúcar de beterraba e aguardente[7].

Assim como os padres andaram sempre de braço dado com os senhores feudais, assim também o socialismo clerical marcha lado a lado com o socialismo feudal.

Nada é mais fácil que dar ao ascetismo cristão um verniz de socialismo. Não bradou também o cristianismo contra a propriedade privada, o casamento, o Estado? Não pregou, em seu lugar, a caridade e a pobreza, o celibato e a mortificação da carne, a vida monástica e a Igreja? O socialismo cristão é apenas a água benta com que o padre abençoa a irritação do aristocrata.

K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista (1848)
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 218-219.

Thomas Carlyle (1795-1881)
  •  I – A “Jovem Inglaterra
As intenções da “Jovem Inglaterra” consistem numa restauração da antiga merry England, com os seus aspectos brilhantes e a sua feudalidade romântica. Este objetivo é, bem entendido, irrealizável e até ridículo. Não passa de um desafio a todo o processo histórico, mas as boas intenções, a coragem de protestar contra o que vigora, contra os preconceitos existentes e o reconhecimento da baixeza reinante valem já alguma coisa. Completamente isolado, levanta-se o germano-inglês Thomas Carlyle que, tory de origem, vai mais longe que os seus pares atrás referidos. Atinge, mais profundamente do que qualquer outro burguês britânico, a causa da desordem social e preconiza a organização do trabalho. Espero que Carlyle, que encontrou o bom caminho, esteja em condições de o seguir. Acompanham-no os meus votos e os de muitos alemães!

(Apontamento de 1892): Mas a revolução de fevereiro fez dele um reacionário integral. A sua justa indignação contra os filisteus transformou-se num despeito de filisteu azedo contra a vaga histórica que o atirou para o lado.

F. Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. (1845)
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 160-161.
  • II A concepção de mundo
Uns resíduos de romantismo tory e alguns pontos de vista humanitários de Goethe por um lado, a Inglaterra cética e empírica por outro, constituem os fatores suficientes para interpretar na íntegra a concepção de Carlyle[8].

[...] Carlyle queixa-se do vazio e da vaidade da época, da decomposição interna de todas as instituições sociais. A sua queixa tem fundamento, mas só as queixas não fazem nada. Para remediar o mal é necessário procurar a causa. Se Carlyle o tentasse, teria chegado a conclusão de que essa dissolução e essa vacuidade, essa “carência de alma”, essa falta de religião e esse “ateísmo” têm como causa a própria religião.

[...] Todavia, por sabermos que todas essas mentiras e essa imoralidade têm origem na religião, que a hipocrisia religiosa e a teologia são o protótipo de todas as outras mentiras e hipocrisias, todos temos o direito de englobar na palavra teologia todas as mentiras e hipocrisias do presente, como o fizeram, pela primeira vez, Feuerbach e B. Bauer. Carlyle que leia o que escreveram, se quiser saber donde vem a imoralidade que envenena todas as nossas relações.

Uma nova religião, um culto panteísta dos heróis, um culto do trabalho deverão ser criados ou aguardados [...] É impossível. Todas as possibilidades da religião estão esgotadas.

F. Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. (1845)
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 163-164.
  • IIIO culto dos heróis
Thomas Carlyle é o único escritor inglês sobre o qual a literatura alemã exerceu uma influência direta e muito importante. Mesmo que seja só por delicadeza, um alemão não pode deixar de prestar atenção às suas obras.

Pela última obra de Guizot, vimos  como desaparecem as derradeiras capacidades da burguesia[9]. Nas duas brochuras de Carlyle, que temos na frente, assistimos ao declínio do gênero literário, perante as lutas históricas extremamente agudas, às quais tenta opor as suas inspirações, imediatas, proféticas.[10]

Thomas Carlyle tem o mérito de enfrentar, nas suas obras, a burguesia, numa em que as concepções, os gostos e as ideias dessa mesma burguesia dominavam totalmente a literatura inglesa oficial. Por vezes, até o fez de maneira revolucionária, como na História da Revolução Francesa, na apologia de Cromwell, no panfleto sobre o cartismo, em Passado e presente. Mas em todas essas obras, a crítica da atualidade está muito de perto ligada a uma apologia extraordinariamente pouco histórica da Idade Média, pecha, de resto, frequente nos revolucionários ingleses, por exemplo em Cobbett e numa parte dos cartistas. No passado, admira, pelo menos, as épocas clássicas de uma dada fase social. Mas o presente desespera-o e o futuro aterroriza-o. Nas passagens em que reconhece  e chegar até a glorificar a revolução, esta concentra-se, segundo ele, num indivíduo isolado, num Cromwell ou num Danton. É a eles que volta esse culto dos heróis, preconizado nas Lectures on heroes and hero-worship como o único refúgio fora de um presente saturado de desespero, como a nova religião.

O estilo de Carlyle parece-se com as suas ideias. É uma reação direta, violenta contra o estilo Pecksniff[11] dos burgueses britânicos modernos, cuja banalidade enfática, prolixidade prudente e aborrecimento confuso, sentimental e moralizante passaram dos cockneys instruídos, que o inventaram, para toda a literatura inglesa. Carlyle, pelo contrário, tratou a língua inglesa como se fosse um material em bruto, a modelar de novo e por completo. Deu vida a maneiras de dizer e a palavras envelhecidas; outras inventou-as, de acordo com o modelo alemão, seguindo as pisadas, especialmente, de Jean-Paul Richter. O novo estilo era, por vezes, grandiloquente e de mau gosto, mas, frequentemente, brilhante e sempre original. Também sob aspecto, os Latter-day pamphlets assinalam um recuo singular.

De resto, é significativo que, entre toda a literatura alemã, o homem que exerceu mais influência sobre Carlyle não tenha sido Hegel, mas o farmacêutico literário Jean-Paul.

O culto do gênio, que Carlyle partilha com Strauss, foi, nas brochuras em questão, abandonado pelo gênio. Ficou apenas o culto.

[...] Vê-se que o “nobre” Carlyle parte de uma concepção totalmente panteísta. Todo o processo histórico é nele determinado não pela evolução das próprias massas vivas, que depende, bem entendido, de condições determinadas; é-o sim por uma lei da natureza, eterna, invariável para todos os tempos, uma lei de que esse processo se afasta hoje e se aproxima amanhã e cujo conhecimento exato decide de tudo. Esse conhecimento exato da lei eterna da natureza é a verdade eterna; todo o resto é falso. Essa concepção reduz todas as contradições autênticas entre as classes, por muito diferentes que se sejam segundo as várias épocas, a uma só contradição eterna entre os que descobriram a lei eterna da natureza e agem de acordo com ela, isto é, os sages e os nobres, e os que deformam essa lei e agem contrariamente a ela, isto é, os cretinos e os tratantes. A diferença entre as classes, que se desenvolveu historicamente, transforma-se, assim, numa diferença natural que deve ser aceite e venerada como uma parte da lei eterna da natureza, prestando homenagem aos nobres e aos sages dessa mesma natureza: é o culto do gênio. A concepção do processo histórico reduz-se, por completo, à banal trivialidade da sapiência dos iluminados e dos maçônicos do século passado, à moral simplista da Flauta mágica e a um saint-simonismo decadente e banalizado. E aqui vem ao de cima, naturalmente, a velha questão de quem deve governar. Daí esta conclusão que, espontaneamente, se impõe: deve-se governar muito, mesmo muito. nunca se governará demais, porque o governo é a revelação e a afirmação constante da lei da natureza perante a massa.  Mas como descobrir os nobres e os sages? Não é uma milagre que os revela; é necessário procurá-los. E agora que deparamos com as históricas diferenças de classe transformadas em diferenças meramente naturais. O nobre é nobre porque é sapiente, porque é um iniciado. Portanto, é preciso procurá-lo dentro das classes que detêm o monopólio da instrução, ou seja, entre as classes privilegiadas. E serão essas mesmas classes que terão de o encontrar no seu seio, que terão de se pronunciar sobre as suas pretensões ao título de nobre e de sage. As classes privilegiadas tornam-se, assim, do pé para a mão, se não logo diretamente em nobres e sages, pelo menos, em classes “articuladas”, enquanto que as classes oprimidas são, naturalmente, classes “mudas e inarticuladas”. O domínio de classe acha-se, assim, de novo consagrado. Toda essa indignação barulhenta se transforma num reconhecimento levemente velado do domínio de classe existente. Se se afligem e protestam surdamente, é porque os burgueses não dão aos seus gênios desconhecidos um lugar de chefia na sociedade e, por razões extremamente práticas, não prestam a menor atenção aos propósitos insensatos e quiméricos desses senhores. De resto, Carlyle encarrega-se, neste caso como noutros, de nos ar um exemplo flagrante de como os falatórios pomposos se transformam no seu contrário, como o nobre, o iniciado e o sage se transformam, na prática, num homem grosseiro, num ignorante e num louco.

[...] A nova era, em que domina o gênio, distingue-se, assim, da era antiga principalmente pelo fato de o chicote se ter por genial. O gênio de Carlyle distingue-se de um cérbero de prisão ou de um inspetor dos pobres qualquer pela indignação virtuosa e a consciência moral que o impelem a maltratar os pobres unicamente para os elevar ao seu nível. Vemos aqui como, na sua cólera libertadora, este gênio altamente protestatório justifica e amplia fantasticamente as infâmias do burguês. A burguesia inglesa considerou os pobres como criminosos para desencorajar o pauperismo e, em 1834, publicou contra eles uma lei. Carlyle, por seu lado, acusa os pobres de alta traição, porque o pauperismo produz o pauperismo. Da mesma maneira que, anteriormente, a burguesia industrial — classe de que a história tinha feito uma classe dominante — participava do gênio pela única razão de ser a classe dominante, assim, agora, cada classe oprimida é tanto mais excluída do gênio, tanto mais objeto da cólera fulminante do nosso reformador ignorado, quanto mais oprimida se encontra. Isto  quando se trata dos pobres. Mas quando chega a vez de indivíduos declaradamente infames e ignóbeis, isto é, de “vigaristas" e de criminosos, a sua nobre cólera moral atinge o ponto culminante. É destes últimos que trata a brochura dedicada às prisões-modelo.

Esta brochura apenas se distingue da primeira por uma indignação ainda mais furiosa, facilitada, aliás, pelo fato de atacar aqueles que a sociedade em viro rejeita oficialmente, por se dirigir contra pessoas mantidas atrás das grades. Essa indignação e furor não respeitam sequer uma débil pudor que arvoram os burgueses vulgares, por uma questão de boas maneiras. Enquanto no seu primeiro panfleto, Carlyle estabelece uma hierarquia completa dos nobres e se opõe à procura do mais nobre entre os nobres, no segundo elabora, tão completa como a primeira, a hierarquia dos tratantes e dos infames e esforça-se por deitar a mão ao pior entre todos os maus, ao maior criminoso da Inglaterra, para ter a volúpia de o enforcar. Suponhamos que consegue deitar-lhe a mão e enforcá-lo. Neste caso, um outro herdaria o rótulo de mau dos maus e teria, por sua vez, de ser enforcado. No título sucederia outro e mais outro até se chegar aos nobres e aos mais nobres de todos os nobres até que, depois de tudo enforcado, só restaria Carlyle, o único entre os nobres quem ao  perseguir os criminosos se tornou o assassino dos nobres e matou também nos criminosos o que eles tinham de nobre. Carlyle seria, então, o mais nobre dos nobres que, de um instante para o outro, se transforma no mais infame dos criminosos e, nessa qualidade terá de enforcar-se a si próprio. Deste modo, ficariam resolvidas todas as questões relativas ao governo, ao Estado à organização do trabalho, à hierarquia dos nobres e a lei eterna da natureza ver-se-ia, enfim, concretizada.

K. Marx e F. Engels, “Thomas Carlyle: panfletos da última hora.
 Nº 1: o tempo presente. Nº 2: prisões-modelo”.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 164-168.

Georg Friedrich Daumer (1800-1875)
  • I – O regresso à natureza
Vemos, neste caso, como a profunda ignorância do fundador especulativo da religião se transforma num tipo de covardia muito acentuada. O Sr. Daumer, perante a tragédia da história que o ameaça e apressa, evade-se para uma suposta natureza, isto é, para o estúpido idílio rural e prega o culto da mulher para esconder a própria resignação mulheril[12].

K. Marx e F. Engels,"Daumer: a religião dos novos tempos”.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 169-170.
  •  II - A impotência literária da pequena burguesia
A “civilização”, cuja ruína provoca as lamúrias do Sr. Daumer, é a civilização do tempo em que Nuremberg florescia como cidade livre, em que a indústria de Nuremberg esse gênero híbrido entre a arte e o ofício — representava um papel considerável. É a civilização da pequena burguesia alemã que desaparece ao mesmo tempo que essa pequena burguesia. Enquanto a queda das classes do passado, por exemplo, a cavalaria, deu matéria para obras grandiosas da arte trágica, a pequena burguesia, por seu lado, não pode, naturalmente, aspirar a mais do que manifestações impotentes da sua malevoência fanática, a compilações de sentenças e de aforismos à Sancho Pança. O Sr. Daumer é a continuação, seca e desprovida de humor, de Hans Sachs. A filosofia alemã torcendo as mãos e lamentando-se à cabeceira do pai que a alimentou — o pequeno-burguês alemão — aqui temos o quadro comovente que nos mostra a religião dos novos tempos.


F. Engels,“Daumer: a religião dos novos tempos”.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 170.

August Adolf Ludwig Follen (1794-1855)

São precisamente também esses jornais, são precisamente também esses raivosos devoradores dos franceses de 1813 que lançam agora contra os italianos os mesmos gritos que lançavam dantes contra os franceses, que cantam louvores à Áustria, à Áustria cristã e germânica, e pregam a cruzada contra a perfídia velche e a frivolidade velche — porque os italianos são velches como os franceses[13].

Os italianos querem saber que simpatia podem encontrar entre esses homens grosseiros, de linguagem, desbragada, que ideia esses fanáticos de cabelos ruivos fazem da nação italiana? Basta-nos citar a bem conhecida canção de A. A. L. Follen:

Cantem, que importa, as maravilhas do país,
Onde se ouvem acordes do bandolim e da guitarra,
Onde a laranja dourada brilha por entre a folhagem sombria.

Eu, por mim, canto a ameixa alemã de púrpura
E a maçã de Borstorf na árvore cheia de folhas.[14]

E este furor poético de um homem que, vendo bem, é quase sempre sóbrio, não para de fugir à razão. A seguir deparam-se-nos as mais cômicas evocações de bandidos, punhais, montanhas a cuspir fogo, a perfídia velche, a infidelidade das mulheres italianas, os percevejos, escorpiões, o veneno, serpentes, assassinatos e tudo o mais que este virtuoso amigo das ameixas vê pupular às dúzias em todos os caminhos da Itália. Por último, este burguês exaltado agradece a deus por se encontrar no país do amor e da amizade, das cenas de pancada com os bancos da cozinha, das filhas de pastor fiéis e de olhos azuis, na terra da lealdade e da íntima doçura, numa palavra, no país da fidelidade alemã. Vejam de que invenções e preconceitos são capazes os heróis de 1813 em relação à Itália, país que, naturalmente, nunca viram.

F. Engels. “Uma palavra ao La Riforma”.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 170.

Jacob Grimm (1785-1863)
  • I Texto em gótico
Estou imerso nos textos de Ulfila[15]; definitivamente, eu precisava estudar este maldito gótico, que sempre tratei espaçadamente, até o fim. Descubro, com surpresa, que sei muito mais do que pensava; se eu receber outro manual, acredito que consiga acabar isso dentro de duas semanas. Depois, passarei ao norueguês antigo e ao anglosaxão, de que também nunca passei da metade. Por enquanto, trabalho sem dicionário e sem outros textos de apoio; tenho apenas o texto em gótico e o Grimm[16] — mas este velho é maravilhoso.

F. Engels a K. Marx, 4 de novembro de 1859.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 220.
  • II Anticapitalismo romântico: aristocrático e esquerdista
Na história do homem acontece o mesmo que na paleontologia. Coisas que passam diante dos olhos não são, por princípio, notadas, mesmo pelos espíritos mais eminentes e isso por causa de a certain judicial blindness[17]. Mais tarde, quando a oportunidade chegar, ficaremos surpreendidos por não termos visto antes o que agora surge por todo o lado. A primeira reação contra a Revolução Francesa e a obra de emancipação a ela ligada foi, naturalmente, a de ver tudo de modo medieval e romântico e até homens como Grimm não escaparam a essa pecha. A segunda reação consiste — o que corresponde à orientação socialista, embora esses homens de ciência não suspeitem sequer que caminho seguem — em olhar para trás da Idade Média de cada povo. Ficam, então, muito surpreendidos por encontrar o mais recente no mais antigo e até egalitarians to a degree[18] que faria tremer Proudhon.

K. Marx a F. Engels, 25 de março de 1868.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 172.

François-René de Chateaubriand (1768-1848)
  • I – Em espanhol
Nas horas vagas, vou aprendendo o espanhol. Comecei por Calderon. Do seu Mágico prodigioso — o Fausto católico — Goethe utilizou não só algumas passagens, mas a disposição de cenas inteiras, para o Fausto. Li a seguir — horribile dictu — em espanhol, o que me teria sido impossível em francês, Atala e René de Chateaubriand e alguns extratos de Bernardin de Saint-Pierre.

K. Marx a F. Engels, 30 de novembro de 1873.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 173.
  • II Vanité
No mais, li o livro de Saint-Beuve sobre Chateaubriand[19], escritor que sempre me pareceu repugnante. Se esse homem se tornou tão célebre na França é por ele ser, em todos os sentidos, a clássica encarnação da vanité[20] francesa — e não dessa vanité com o traje fugaz e frívolo do século XVIII, mas de uma vanité que se vangloria sob um disfarce romântico e com um novo tipo de fraseologia: a falsa profundidade, o exagero bizantino, o flerte com os sentimentos, a miscelânea artificiosa de Schiller, o verbo floreado, a teatralidade, o sublime, em uma palavra, um enredo de mentiras jamais superado na forma e no conteúdo.

K. Marx a F. Engels, 30 de novembro de 1873.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 220.
  • III Diplomata e historiador
Ao estudar o lixo espanhol, deparei-me com o digno Chateaubriand, esse escritor grandiloquente que reúne da maneira mais repugnante o ceticismo aristocrático e o voltaireanismo do século XVIII ao sentimentalismo aristocrático e ao romantismo do século XIX. Essa união, naturalmente, no que toca ao estilo, devia fazer época na França, embora no próprio estilo, frequentemente, salte à vista a falsidade, não obstante os seus rebuscamentos artísticos[21]. Com relação à política, este senhor mostrou a sua verdadeira face em seu Congrès de Vérone[22]; a única pergunta a ser feita é se ele recebeu “dinheiro vivo” de Alexandre Pavlovich [Alexandre I] ou se foi comprado com simples flatteries[23], às quais o vaidoso trapaceiro está mais suscetível que qualquer outro [...].

K. Marx a F. Engels, 26 de outubro de 1854.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 219.

Pierre-Jean de Béranger (1780-1857)

O que aclamamos na França de 1848 é o exemplo para os outros povos e não o seu poderio. Hoje, a França não pode esperar outras honras.

Contemplamos esta grande nação, cujos destinos vós atualmente governais investidos do único poder que a confiança geral outorga; contemplamos, cidadãos, como até se articula uma aliança com povos tidos como rivais durante um longo tempo, uma aliança só frustrada anteriormente por conta da infame política de alguns indivíduos. A Inglaterra e a Alemanha novamente estendem a mão ao vosso grande país. A Espanha, a Itália, a Suíça e a Bélgica de novo levantarão ou se pacificação, livres sob vossa proteção. A Polônia ressuscitará como Lázaro, respondendo ao chamado repetido por três vezes.

É impossível acreditar que a Rússia também não engrosse o coro com sua voz pouco conhecida pelos povos ocidentais e meridionais. A vós, franceses, vos pertence a honra e a glória de terem sedimentado essa aliança dos povos, tão profeticamente cantada pelo vosso imortal Béranger[24].

K. Marx e F. Engels “Mensagem do Comitê da Associação Democrática
(Bruxelas, 28 de fevereiro de 1848).
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 228-229.

Alexandre Dumas (1802-1870)

No que toca a seus [de Louis Blanc] trabalhos históricos, ele os fazia da mesma forma que A. Dumas escrevia os seus romances de folhetim. Ele sempre estuda somente o material necessário para o capítulo seguinte. Daí resultaram livros como Histoire de dix ans [História de dez anos]. Por um lado, isso dá certo frescor às suas descrições, pois o que ele informa é algo tão novo para ele quanto para o leitor; por outro lado, o conjunto se torna inconsistente.

K. Marx a F. Engels, 23 de fevereiro de 1851.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 229.

Alphonse de Lamartine (1790-1869)
  • I – Democrata
Por fim, a presença de Lamartine no governo provisório[25] não representava, propriamente, nenhum interesse real, nenhuma classe determinada: era a própria revolução de fevereiro, o seu levante comum com as suas ilusões, a sua poesia, o seu conteúdo imaginário, as suas frases. No mais, esse porta-voz da revolução de fevereiro, tanto pela sua posição quanto pelas suas opiniões, pertencia à burguesia.

Se Paris, em consequência da centralização política, domina a França, em momentos de convulsões revolucionárias são os operários que dominam Paris. O primeiro ato do governo provisório foi a tentativa de escapar a essa influência predominante com um apelo à França sóbria contra a Paris embriagada. Lamartine contestou o direito dos combatentes das barricadas de proclamar a república, alegando que só a maioria dos franceses tinha tal direito; haveria que esperar que ela se manifestasse pelo voto e o proletariado parisiense não deveria manchar a sua vitória com uma usurpação. A burguesia permite ao proletariado uma única usurpação: a luta.

K. Marx, As lutas de classes na França de 1848-1850.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 229-230.
  • II – Fraternité
Todos os realistas [Royalisten] se converteram então em republicanos e todos os milionários de Paris em operários. A frase que  correspondia a essa imaginária abolição das relações entre classes era fraternité, confraternização e fraternidade universais. Esta idílica abstração de antagonismos de classes, esta conciliação sentimental dos interesses de classe contraditórios, esta visionária elevação acima da luta de classes, esta fraternité era, na verdade, a palavra-chave da revolução de fevereiro. As classes estavam divididas por um simples “mal-entendido". Em 24 de fevereiro, Lamartine batizou assim o governo provisório: “un gouvernement qui suspend ce malentendu terrible qui existe entre les différentes classes"[26]. O proletariado de Paris regalou-se nessa generosa embriaguez da fraternidade.

K. Marx, As lutas de classes na França de 1848-1850.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 230.
  • III Fogos de artifício
O último resíduo oficial da revolução de fevereiro, a Comissão Executiva[27], se dissipou como um fantasma ante a gravidade dos acontecimentos. Os fogos de artifício de Lamartine transformaram-se nas granadas incendiárias de Cavaignac. Aí está a fraternité, a fraternidade das classes antagônicas, em que uma explora a outra, esta fraternité proclamada em fevereiro e escrita em letras garrafais nas fachadas de Paris, em cada prisão, em cada quartel. Sua verdadeira, autência e prosaica expressão é a guerra civil; a guerra civil em sua forma mais terrível: a guerra entre o trabalho e o capital. Esta fraternidade resplandecia diante de todas as janelas de Paris na noite de 25 de junho, quando a Paris da burguesia se iluminava, enquanto a Paris do proletariado ardia em fogo, gemia e se esvaía em sangue. A fraternidade durou precisamente o tempo em que o interesse da burguesia esteve irmando ao do proletariado.[28]

K. Marx, As lutas de classes na França de 1848-1850.
 In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 231.
  • IV – A traição poética
Nós frequentemente destacamos que as ilusões românticas surgidas após as revoluções de fevereiro e março — por exemplo, os sonhos ardentes sobre a fraternidade dos povos, sobre a república federativa da Europa e sobre a paz eterna — só ocultavam, em essência, as infinitas debilidade e passividade dos chefes ideológicos deste período. As pessoas não viam ou não queriam ver o que devia ser feito para assegurar a revolução; não podiam ou não queriam colocar em prática nenhuma medida efetivamente revolucionária; a mediocridade de alguns e as intrigas contrarrevolucionárias de outros, tomadas em conjunto, foram as causas de o povo ter apenas frases sentimentais em vez de ações revolucionárias. Lamartine, esse miserável grandiloquente, foi o clássico herói dessa época de traição ao povo, que ficou escondido sob as flores da poesia e sob o ouropel da retórica.

K. Marx e F. Engels, “O paneslavismo democrático
(Nova Gazeta Renana, n. 22, 15 de fevereiro de 1849). 
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 231.

Victor Hugo (1802-1885)

Entre as obras que trataram, na mesma época, do mesmo tema[29], somente duas são dignas de nota: Napoléon, le Petit, de Victor Hugo, e Coup d 'État, de Proudhon.

Victor Hugo se limita a uma amarga e engenhosa inventiva contra o responsável pelo golpe de Estado. O acontecimento propriamente dito aparece, em sua obra, como um clarão de raio em céu sereno. Enxerga nele apenas um ato de força de um só indivíduo. Ele não percebe que engrandece este indivíduo, em vez de diminuí-lo, ao lhe atribuir um pode pessoal de iniciativa sem paralelo na história universal. Proudhon, por sua vez, busca apresentar o golpe de Estado como resultado do desenvolvimento histórico anterior. Porém, inadvertidamente, sua construção histórica do golpe de Estado se transforma numa apologia histórica do herói do golpe de Estado. Com isso, ele cai no erro dos nossos pretensos historiadores objetivos. Eu, ao contrário, demonstro como a luta de classes criou, na França, as circunstâncias e as condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco representar papel de herói.

K. Marx. Prefácio à segunda edição de O 18 brumário de Luis Bonaparte.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 232.

George Sand (1804-1876)

Somente em uma ordem de coisas em que já não existam classes e antagonismos entre as classes, as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas. Até lá, às vésperas de cada reorganização geral da sociedade, a última palavra da ciência social será sempre:

“O combate ou a morte: a luta sanguinária ou o nada. É assim que a questão está irresistivelmente  posta” (George Sand).

K. Marx, Miséria da filosofia.
 In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 232.

Eugène Sue (1804-1857)
  • I – As camadas populares
O famoso romance de Eugène Sue, Os mistérios de Paris, causou um grande impacto na opinião pública, especialmente na Alemanha. O vigor com que o livro descreve a miséria e desmoralização que, por sorte do acaso, coube às "camadas baixas" das grandes cidades não podia deixar de chamar a atenção da sociedade para a situação dos pobres em geral. Os alemães passaram a perceber, como disse o Allgemeine Zeitung — O Times alemão —, que as características do romance sofreram uma revolução total na última década; que o lugar dos reis e dos príncipes, antes protagonistas deste tipo de obra, é agora ocupado pelos pobres, pela classe desprezada, cuja vida, destino, alegrias e sofrimentos constituem a trama dos romances; descobriram, enfim, que essa nova tendência dos escritores, entre os quais se encontram Georg Sand, Eugène Sue e Boz[30], é, sem dúvida alguma, um símbolo de época.

F. Engels, “O movimento no continente”.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 233.
  • II – Curiosité
Quando Eugène Sue descreve as tabernas, os esconderijos e a linguagem dos criminosos, o Sr. Szeliga descobre o “mistério” de que o interesse do autor não é descrever nem esta linguagem e nem este esconderijo, mas é “conseguir conhecer o mistério dos mecanismos que impelem o criminoso à maldade etc. Nos lugares mais movimentados [...] os criminosos se sentem como se estivessem em casa” (Szeliga).

O que diria um naturalista se lhe fosse demonstrado que o alvéolo da abelha não lhe interessa como alvéolo da abelha e que isto não é mistério para quem não o estudou, porque a abelha “está em sua casa” ao ar livre e sobre uma flor? Os esconderijos  a a linguagem dos criminosos refletem o seu caráter, eles são uma parte de sua existência e sua descrição faz parte da descrição do próprio criminoso, do mesmo modo que a descrição da petite maison faz parte da descrição da femme galante[31].

Os esconderijos dos criminosos são um tão grande “mistério” não apenas para os parisienses em geral, mas também para a polícia de Paris, que ainda nos dias de hoje se abrem ruas largas e iluminadas na Cité[32] para a polícia ter acesso a esses esconderijos.

Finalmente, o mesmo Eugène Sue declara que, nas descrições mencionadas anteriormente, ele conta com “la curiosité craintive[33] de seus leitores. Em todos os seus romances, o Sr. Eugène Sue conta com essa curiosidade medrosa do leitor.

K. Marx. A sagrada família.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 234.

Joseph de Maistre (1753-1821)

Marx, durante a sua permanência em Bona e em Berlim, ficou a conhecer Adam Müller e a Restauração do Senhor de Haller. Falava com certo desprezo dessas requentadas, enfáticas e adiposas contrafacções dos românticos franceses Joseph de Maistre e Bonald.[34]

F. Engels a F. Mehring, 28 de setembro de 1892.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 234.

Richard Wagner (1813-1883)
  • I A história primitiva
Em uma carta escrita na primavera de 1882, Marx condena nos termos mais ásperos a total falsificação dos tempos primitivos nos Nibelungos, de Wagner[35]. “Aonde já se viu que irmão abrace a irmã como o faz o esposo?” A esses “deuses da luxúria” de Wagner, que, ao estilo moderno, tornam suas aventuras amorosas mais picantes com  certa dose de incesto, Marx responde: “Nos tempos primitivos. a irmã era a esposa, e isso era moral”.

F. Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 261.
  • II Ouvindo um trecho
[...] Pieper tocou para mim um trecho da música do futuro[36]. C'est affreux[37] e te faz sentir medo do “futuro” com toda sua música e poesia.

K. Marx a F. Engels, 12 de fevereiro de 1856.
In: K. Marx e F. Engels, 2010, p. 262.
  • III A “música do futuro"
A questão do Oriente (que terminará pela revolução na Rússia, seja qual for o resultado da guerra na Turquia) e a avaliação pormenorizada das forças de combate da social-democracia deveriam bastar para convencer o filisteu alemão culto de que há coisas mais importantes neste mundo do que Richard Wagner e a sua música do futuro[38].

K. Marx a W. A. Freund, 21 de janeiro de 1877.
In: K. Marx e F. Engels, 1971, p. 177-178.
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Notas:
[1] Em dezembro de 1836, três meses depois de sua entrada para a Universidade de Berlim, Marx enviou à Jenny von Westphalen, com quem secretamente noivara durante as férias de 1836 em Treves, três cadernos de poesias. No fim do semestre universitário (fevereiro-março de 1837), enche um novo caderno de versos e o manda para seu pai em comemoração de seu 55° aniversário. Algum tempo depois, Marx, que conta dezenove anos, julga severamente, numa carta escrita a seu pai a 10 de novembro de 1837, esses ensaios de mocidade, impregnados de um romantismo então na moda, contra o qual se levantará tão asperamente mais tarde. Os três primeiros cadernos de poesias de Marx perderam-se. O Instituto Marx-Engels-Lenin conseguiu encontrar o caderno de 1837 que contém, além disso, uma parte dos poemas incluídos nos primeiros manuscritos. (Nota do editor, cf. Marxists.org)
[2] Enquanto que o antigo edital sobre a censura, de 18 de outubro de 1819, ponha em causa não o redator, mas os seus escritos pelos quais respondia a caução em dinheiro, depositada pelo editor do jornal, o regulamento de 24 de dezembro de 1841 preocupa-se não com os escritos, mas com a pessoa do redator. Além da caução em dinheiro entregue pelo editor, exigia do redator uma tripla garantia: capacidade literária, caráter e situação social. De fato, o censor guiava-se apenas pela situação social. Marx observa, com toda a justiça, que a
“a garantia ideal redunda numa situação inteiramente real e individual”. (nota do editor in: MARX; ENGELS, 1971, p. 159)
[3] Referência ao movimento por uma reforma da lei eleitoral, que, sob pressão do povo, a Câmara dos Comuns aprovou em 1831 e que acabou por ser ratificada pela Câmara dos Lordes, em junho de 1832. Esta reforma dirigia-se contra o monopólio político da aristocracia rural e financeira e permitiu o acesso ao parlamento de representantes da burguesia industrial. O proletariado e a pequena burguesia, que constituíram a principal força na luta, foram ludibriados pela burguesia liberal e não lhes foram concedidos direitos eleitorais. (nota do editor in: MARX; ENGELS, 2010, p. 324)
[4] Não se trata da Restauração inglesa, de 1660 a 1689, mas sim da Restauração francesa, de 1814 a 1830. (Nota de F. Engels à edição inglesa de 1888)
[5] Partidários da dinastia dos Bourbons, destituída em 1830; representavam os interesses do latifúndio hereditário. Em luta contra a dinastia reinante dos Orléans, no poder de 1830 a 1848, que se apoiava na aristocracia financeira e na grande burguesia, um setor dos legitimistas enveredou pela demagogia social e pretendeu passar por protetor dos trabalhadores contra a exploração burguesa. (nota do editor in: MARX; ENGELS, 2010, p. 324)
[6] Ao analisar, no fim do livro (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra), a atitude impiedosa da burguesia perante o proletariado, Engels fala das críticas que se manifestaram no seio da classe dominante contra as desumanas condições de vida impostas aos trabalhadores. Esta
“Fronde” anticapitalista de elementos aristocráticos e reacionários, designada no Manifesto do partido comunista por “socialismo feudal” reunia um certo número de tories humanitários, entre os quais B. Disraeli, constituídos em partido com o nome de “Jovem Inglaterra”. (Nota do editor, in: idem, 1971, p. 161-162)
[7] Isto diz respeito sobretudo à Alemanha, onde a aristocracia e a fidalguia rurais fazem cultivar uma grande parte de suas propriedades por conta própria, com a ajuda de administradores, e são, além disso, grandes produtores de açúcar de beterraba e de aguardente de batata. A aristocracia britânica mais abastada ainda não desceu a tanto; mas também ela sabe compensar o declínio das rendas emprestando o seu nome a fundadores mais ou menos suspeitos de sociedades por ações. (Nota de F. Engels à edição inglesa de 1888)
[8] Thomas Carlyle, escritor inglês, conhecido, sobretudo, pela obra Os heróis e o culto dos heróis e pela sua História da Revolução Francesa, denunciou o capitalismo, mas de um ponto de vista reacionário. À burguesia ávida e à aristocracia ociosa opõe
a verdadeira aristocracia” e o “culto dos heróis”. A sua concepção idealista da história, concebida como “uma mina inesgotável de biografias", visa a substituir a análise objetiva dos fatos pelo facciosismo e a apologia, pela exaltação da Idade Média e o elogio das virtudes feudais. O romantismo pequeno-burguês de Carlyle contém elementos de crítica revolucionária que Engels põe em destaque, principalmente na Situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Mas, como demonstra Engels nos seus artigos, ele é, acima de tudo e cada vez mais, uma reacionário. “O homem forte” de Carlyle tem por função destruir o movimento revolucionário das massas.
Engels consagrou dois artigos ao escritor inglês. O primeiro, publicado nos Anais franco-alemães (Paris, 1844) foi escrito acerca do livro de Carlyle, Passado e presente, dado à estampa em Londres, no ano de 1843 (Nota do editor, in: idem, 1971, p. 162-163).
[9] Trata-se do livro do Guizot, Discurso sobre a história da Revolução Inglesa (Paris, 1850), que Marx e Engels analisaram na Nova Gazeta Renana. (Nota do editor, in: idem, 1971, p. 164)
[10] A Revolução de 1848 e Jornadas de Junho precipitaram a evolução de numerosos ideólogos burgueses. Foi desse modo que as tendências reacionárias de Carlyle se acentuaram ainda mais. Regressando a Carlyle, que acabava de publicar os seus Panfletos de última hora, o Tempo presente e Prisões-modelo, Engels escreveu em 1850, um estudo para a Nova Gazeta Renana, editada em Hamburgo. O trabalho foi publicado com a assinatura de Marx e Engels. (Nota do editor, in: idem, 1971, p. 164)
[11] Personagem do romance de Dickens, Martin Chuzzlewit. Tipo do pequeno-burguês da época vitoriana, cujos traços mais salientes são a hipocrisia, o egoísmo e a covardia. (ibidem, p. 165)
[12] Num artigo publicado pela Nova Gazeta Renana (1850), Marx e Engels criticam o romantismo pequeno-burguês de Daumer que, na obra intitulada A religião dos novos tempos, se inssurge contra a religião tradicional e propõe o regresso à natureza e o culto da mulher. De resto, este adversário do cristianismo viria a transformar-se num clerical militante.
“Seria de todo necessário — alertam Marx e Engels, no artigo da Nova Gazeta Renana — que a indolente economia rural da Baviera e esse solo, que tanto faz crescer os párocos da aldeia como os Daumer, fossem removidos de alto a baixo pela nova agricultura e pelas máquinas modernas!. (ibidem, p. 169)
[13] Os revolucionários italianos de 1848 invocavam, a propósito das suas lutas contra a Áustria, as
“guerras de libertação dos alemães contra Napoleão, em 1813-1815. Engels, num artigo publicado pela Deutsche Brüsseler Zeitung, lembra ao jornal italiano La Riforma que não se pode comparar a luta emancipadora da Itália contra a Áustria às guerras reacionárias que conduziram aos infames tratados de 1813. Essas guerras, que Engels acusou no The Northern Star (25 de outubro de 1845), não fizeram outra senão reforçar, na Alemanha, a ideologia dos germanófilos e exasperar o nacionalismo dos poetas “patriotas" (Körner, Arndt, Schenkendorf, Eichendorff, etc.) e das associações de estudantes (Burschenschaften). (ibidem, p. 171)
[14]
“Mag Alles Wunder von dem Lande singen
Wo Mandoline und Guitarre klingen,
Im dunkein Laub die Goldorange glüht;
Ich lobe mir die deutsche Purpurpflaume,
Und Borstorfs Apfel am belaubten Baume.

[15] A referência é à tradução gótica da Bíblia, feita por Ulfila, um monumento transcendental do idioma gótico. (nota do editor in: MARX; ENGELS, 2010, p. 324)
[16] Referência à Deutsche Grammatik [Gramática alemã], de J. Grimm.(ibidem)
[17] Uma certa cegueira devida a preconceitos.
[18] Homens iguais numa escala.
[19] Trata-se do livro de Saint-Beuve, Chateaubriand et son groupe littéraire sous l'Empire [Chateaubriand e seu grupo literário sob o Império], vol. 2, Paris, 1861. (ibidem)
[20] Vaidade.
[21] Marx e Engels viam no romantismo reacionário, que exaltava o passado por ódio ao presente, a expressão dos interesses da nobreza, abatida e desapontada pela Revolução Francesa de 1789. Chateaubriand é o representante mais qualificado desse romantismo reacionário, ilustrado pela sua vida e pela sua obra. (nota do editor in: MARX; ENGELS, 1971, p. 173)
[22] Obra de Chateaubriand (publicada em 1838) sobre o Congresso de Verona, o último congresso internacional da Santa Aliança, convocado por conta do desenvolvimento do movimento revolucionário na Espanha. Chateaubriand participou deste congresso como representante diplomático da França. (nota do editor in: MARX; ENGELS, 2010, p. 324)
[23] Lisonjas.
[24] Cf. a canção de Béranger La sainte alliance des peuples [A santa aliança dos povos]. 
[25] Depois da revolução de fevereiro de 1848, Lamartine ocupou o cargo de ministro das Relações Exteriores do governo provisório republicano. (ibidem, p. 325)
[26] Um governo que acaba com esse mal-entendido terrível que existe entre as diferentes classes.
[27] Governo da república francesa, criado pela Assembleia Constituinte em 10 de maio de 1848, em substituição do governo provisório que apresentara a sua renúncia. A Comissão Executiva exerceu o poder até 24 de junho de 1848, quando se implantou a ditadura de Cavaignac para derrotar a insurreição do proletariado parisiense. (ibidem)
[28] Explicam-se as aspas no conjunto deste parágrafo: Marx o reproduziu de seu artigo
“A insurreição de junho, publicado na Nova Gazeta Renana, ed. de 29 de junho de 1848. (ibidem)
[29] O golpe contrarrevolucionário de 2 de dezembro de 1851, a cuja história Marx dedicou sua obra O 18 de brumário de Luís Bonaparte. (ibidem)
[30] Charles Dickens. 
[31] Casa de encontro e dama galante.
[32] Parte antiga de Paris.
[33] A curiosidade medrosa. 
[34] O romantismo feudal na sua polêmica com a burguesia liberal, servia-se, por vezes, de argumentos que pareciam mais
“materialistas que os utilizados pelos liberais. Lavergne-Peguilhen, no livro intitulado As leis do movimento e da produção (1838), escrevia que “a forma da economia representava a base da organização da sociedade e do Estado. O que Lavergne-Peguilhen e, com ele, toda a escola romântica — Haller, Adam Müller, Marwits, etc. — pretendiam demonstrar era que, sendo a forma feudal a forma verdadeira e natural da economia, era necessário que o regime político lhe correspondesse. Seria, portanto, necessário regressar ao Estado feudal dos séculos XIII e XIV!
Na carta a Mehring, datada de 28 de setembro de 1892, Engels salienta que o materialismo histórico de Marx nada tem de comum com o pseudo-materialismo da escola histórico-romântica, que esconde, debaixo da fraseologia com pretensões científicas, concepções espiritualistas e retrógradas. (nota do editor in: MARX; ENGELS, 1971, p. 176)
[35] O livreto do compositor alemão R. Wagner para a tetralogia O anel dos Nibelungos se baseia na mitologia e nas poesias germânicas antigas.
[36] Marx denomina-se assim, ironicamente, a música de Wagner (utilizando a definição do compositor).
[37] É horrível.
[38] Marx e Engels criticaram severamente R. Wagner,
“o músico imperial de Bismarck, que acusam de, com fins de apologética nacionalista, ter falsificado a realidade. Engels chama a E. Dühring um “Richard Wagner filosófico — tão vaidoso um como o outro. (nota do editor in: MARX; ENGELS, 1971, p. 177)
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MARX, K.; ENGELS, F. Sobre a literatura e a arte. Trad. Albano Lima. Lisboa: Estampa, 1971.
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MARX, K.; ENGELS, F. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Trad. José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
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