por Sergio Lessa
ensaio em PDF/2004
Desde os anos de 1970, muita água passou por baixo da ponte. Do apogeu da Guerra Fria passamos à cada vez mais instável hegemonia estadunidense. Do que parecia ser uma crise momentânea do Estado de Bem-Estar no início de 1970, passamos à crise do Estado neoliberal, seja lá exatamente o que isto signifique; da ilusão de que o pleno emprego estava à vista, passamos à era do desemprego crescente e à precarização das relações trabalhistas. O desaparecimento da URSS, a crescente integração ao mercado capitalista de países como a China e o Vietnam, foi um terremoto ainda mais impactante porque, em larga medida, imprevisto. O pós-modernismo que, com a queda do Muro de Berlim conheceu seus dias mais fulgurantes, hoje vive seu ocaso. No país, as alterações não foram menos intensas. Do “milagre brasileiro” à Constituinte “cidadã” de 1988; da eleição direta a Collor, logo sucedido pelo “despotismo ilustrado” de FHC e, numa ruptura aparente, ao aprofundamento lulista da tragédia neoliberal.
Da crise do fordismo, passamos à ilusão de que o modelo japonês seria o futuro da humanidade. Em seguida convivemos com a fantasia de que os robôs substituiriam o trabalho (que estaria com seus dias contados) e, na sequência, passamos ao elogio da terceirização e da precarização como a forma contemporânea da liberdade.
Várias “verdades” foram afirmadas para serem, logo depois desditas pelo desenvolvimento histórico. O texto The Second Industrial Divide, de Piore e Sabel (1984), apesar de sua rara qualidade, subestimou a capacidade de adaptação da indústria estadunidense aos novos tempos; Habermas (Habermas, 1983 e 1987) “demonstrou” tanto a falência do pressuposto marxiano de que os homens têm no trabalho sua categoria fundante quanto a superioridade da fenomenologia sobre o que ele imagina (incorretamente) ser o materialismo do autor de O capital. Clauss Off (Off, 1982), com o texto “Trabalho: categoria sociológica central?”, parecia fornecer uma pista segura para a investigação da falência do sindicalismo operário: sem emprego a definir a identidade dos “atores sociais”, como seria possível a atuação das organizações tradicionais das classes trabalhadoras? Fukuyama (1992) anuncia o fim da história e Lyotard (Lyotard, 1984) a falência das grandes narrativas. A avalanche rapidamente ganhou momento e se converteu nos “infindáveis fins”: fim do trabalho, fim da fábrica, fim das classes ... fim da revolução, em suma.
Em meio ao pós-modernismo, ao desemprego persistente e crescente, ao fim da URSS, à crise dos EUA e à ascensão relativa da Comunidade Econômica Europeia, a tese da Terceira Via encontrou as condições econômicas, sociais e ideológicas para vicejar. Lembremos da uma de suas pilastras centrais: o desemprego seria resultante da queda da eficiência econômica devido aos programas sociais que diminuíam a concorrência entre trabalhadores por emprego e, entre as empresas, por lucro. Seria necessário, portanto, reavivar a concorrência retirando o Estado da economia e dos programas sociais: o reino de mercado deveria ser afirmado até às últimas consequências. Este o momento em que Anthony Giddens foi festejado como o teórico da nova prosperidade que acompanharia os ajustes imprescindíveis.
Todas estas promessas e ilusões estão sendo desfeitas ao ritmo dos jornais diários: Tony Blair não vai além de um Bush de uma potência ainda mais decadente que os EUA; o Estado mínimo, se aumentou a rentabilidade do capital e possibilitou que grande fortunas fossem amealhadas em períodos recordes de tempo, hoje não consegue mais ser nem a resposta aparente e momentânea para a crise mundial; as teses pós-modernas não foram capazes de constituir uma nova Welstanschauung e vão dissolvendo a si mesmas em meio a críticas intestinas que levam ao paradoxismo da radicalidade última de seus pressupostos; o desemprego dissolve a aparência de realidade das teses que apregoavam o fim do trabalho. E, em todo esse contexto, um pensador volta a se fazer notar: Marx. Surpreendentemente, para alguns, o “velho barbudo” volta a ser considerado como autor de teses interessantes, quando não imprescindíveis, para que compreendamos o mundo em que vivemos.
Nesse vendaval que destrói tudo em seu caminho em que parece ter se convertido a história, se há uma corrente teórica cujas teses fundamentais foram in totum confirmadas nas últimas décadas, esta corrente é o marxismo. A tese do trabalho como categoria fundante do mundo dos homens e que, portanto, qualquer que seja o desenvolvimento das forças produtivas, por mais que se robotize a produção, por mais que se automatize os procedimentos, etc., não pode haver qualquer sociedade sem trabalho; esta tese está sendo confirmada no geral e no particular de muitas de suas consequências. Uma delas, a de que o capital não pode prescindir do trabalho vivo para a sua reprodução. Que o desemprego contemporâneo não é a transição para o reino da liberdade, mas apenas e tão somente o aprofundamento das alienações que brotam do capital, é algo que se evidencia a cada nova demissão. Que as classes sociais não podem desaparecer enquanto houver a exploração do homem pelo homem e que, portanto, nem a robotização, nem o toyotismo, nem a pretensa alteração do tempo e do espaço preconizada pelo pós-modernismo serão capazes de alterar um átomo sequer desta necessária conexão ontológica entre propriedade privada e classes sociais, é uma tese marxista confirmada a cada conflito. Que o problema não está no tamanho ou na forma do Estado, mas na própria necessidade histórica da existência do Estado, vai aos poucos deixando o índex das ideias proibidas. Uma vez mais, o próprio retorno de Marx à cena teórica parece confirmar uma das teses marxistas: a própria crise, mais cedo ou mais tarde, recolocaria o pensamento marxiano como uma referência teórica importante.
As palavras acima não pretendem sugerir qualquer visão exageradamente otimista ou ufanista. Ou eufórica. Queremos apenas chamar a atenção para o caráter mutante e mutável da forma como nos relacionamos cotidianamente com a crise, bem como para a curta “meia vida” das teorias que não enxergam além destas mutações mais fenomênicas. Razões para euforismo, não temos nenhuma! Pelo contrário, vivemos o momento mais contrarrevolucionário desde que a monarquia soçobrou na Bastilha de 1789. Nunca vivemos tantos anos sem sequer uma revolução importante (qual foi a última verdadeiramente grande: a Chinesa? Já lá se vão mais de cinquenta anos!), nem a humanidade conheceu um período histórico em que o capital tivesse colhido vitórias tão significativas a ponto de se tornar uma força aparentemente inquestionável, um Deus absconditus! Mesmo no interior de sua classe historicamente antagônica, o operariado, o horizonte do capital parece ter sido aceito como o limite insuperável da existência humana. Como duvidar deste fato quando greves e lutas econômicas, para não falar de embates mais sérios, praticamente desapareceram da nossa vida cotidiana? Quando mesmo as centrais sindicais se “modernizam” para se tornarem agências do capital financeiro no repasse de empréstimos a seus “associados”?! Com o refluxo da luta operária, a própria identidade ideológica das classes se esvaece, burguesia, pequena burguesia e operários são agora tudo uma só e uma mesma coisa, consumidores quando vão ao shopping, cidadãos quando vão às urnas. Sem a presença política cotidiana das lutas, como não ter um certo pé na realidade as teses do fim das ideologias, das “grandes narrativas” e dos “paradigmas”? O consumismo vai se convertendo na ideologia acriticamente aceita em todas as classes sociais; o que diferencia é o que se consome, mas não a ilusória identificação entre felicidade e consumo. Se parece não mais haver classes nem ideologias, claro que a história não mais pode ser a luta de classes. Duas alternativas, então, se apresentaram no debate teórico-político. A primeira, simplesmente negar que algo como a história exista. A segunda, quanto e onde esta tese pós-moderna não for palatável, afirmará que há “uma outra história” que não a da luta das classes sociais.
O período contrarrevolucionário que vivemos tem sido um solo dos mais férteis para os empreendimentos que buscam recontar a história “para além de Marx”. Uma verdadeira “praga de fantasias”, para roubarmos o título de Slavoj Zizek (Zizek, 1997), assola o exaurido espírito do tempo de nossos dias. Quase sempre fantasia-se partindo de alguns indícios, mais ou menos pontuais, do desenvolvimento social em curso. Logo, contudo, a crise faz a realidade tomar outro rumo e a fantasia termina por não poder cumprir sequer o papel, que está na origem da maior parte delas, de velar as contradições sociais mais importantes. Então, o que era considerado como “a” verdade inquestionável, respaldada até mesmo por sinalizações “bastante fortes" do desenvolvimento socioeconômico, expõe a sua inconsistência teórica e não mais consegue generalizar os fatos dos quais pretende ser a explicação em tendências e leis históricas (mesmo quando, no caso dos pós-modernos, pretendem negar a existência de leis da história). Uma nova “verdade” será, em seguida, postulada e, tal como a anterior, será negada pelo próximo movimento do real. O homo academicus converterá esta dinâmica dos complexos ideológicos, fundada pelo solo histórico da contrarrevolução, no culto teórico da novidade. Faz da necessidade, virtude, e passa a perseguir freneticamente o último novo, como a fábula do burro e da cenoura. A forma e o conteúdo contrarrevolucionários da luta de classe em nossos dias possibilita que esta já longa série de fantasias se repita ad nauseum; há uma capacidade quase infinita de o tecido social contemporâneo exsudar ilusões que atendem à necessidade pelo próximo “falso socialmente necessário”, na expressão Lukács. A contrarrevolução é, ao mesmo tempo, prática e teórica: ao impossibilitar o desenvolvimento pleno da humanidade, faz com que as ideologias adquiram um conteúdo retrógrado e irracional cada vez mais intenso.
Quando as determinações contrarrevolucionárias não haviam ainda se explicitado plenamente, teses que hoje são consideradas “sérias” não passariam de meros absurdos. Hobsbawn, em um texto de 1961(Hobsbawn, 1998:1), condenava sumariamente um autor que se referia à uma “revolução moderada” nos seguintes termos: “Uma revolução moderada é uma contradição em termos...”. Argumentava ele, então, que revolução era um ato necessariamente violento de embate de classes sociais – que uma revolução “moderada” era mero contrassenso. Hoje são considerados autores que falam em revolução cotidiana, como se a vida cotidiana pudesse, em qualquer formação social, ser revolucionária. Comunismo passa a ser compatível com o dinheiro e, a liberdade humana, com o mercado. O que era, há alguns anos, mero contrassenso hoje requer muita tinta e papel para que seja suscitado no leitor ao menos a desconfiança de que algo, talvez, não esteja bem parado na articulação entre revolução e vida cotidiana, entre mercado e liberdade e entre dinheiro e comunismo – para ficar apenas com alguns exemplos de uma longuíssima lista. É nesse contexto que verdadeiras fábulas pretendem substituir a história real. Depois da simplória, porque ideologicamente ineficaz, negação pós- moderna da história, há que falsificá-la para explicar que a crise não é crise, mas a abertura para um novo mundo em que finalmente a humanidade encontrará a felicidade. Para justificar a barbárie em que nos tornamos enquanto gênero humano é imprescindível recontar a história sem qualquer cerimônia para com os fatos. Tomaremos como exemplo desse fenômeno Gilles Lipovetsky e Antonio Negri.
“O amor pelo tempo por se constituir”
Negri, Lazzarato e Hardt, cuja tese mais conhecida é a do trabalho imaterial[2], propõem uma nova teoria da história. Segundo eles, as transformações em curso seriam a afirmação do modo de produção comunista nos “interstícios” do capitalismo. A crise não seria crise, mas sim transição para uma nova sociedade, a comunista. Permitam-me tentar ser mais claro: hoje, nas nossas vidas cotidianas, nós já viveríamos a construção do comunismo.
Em El poder constituyente (Negri, 1994), Negri procura demonstrar que categoria central desta nova concepção de mundo é o “amor do tempo”. Por “amor do tempo” Negri compreende “a alma do poder constituinte quando este faz do mundo da vista uma essência dinâmica, uma síntese sempre renovada de natureza e história”. (Negri, 1994:406-7) Esta tal “síntese sempre renovada de natureza e história” efetivada pelo poder constituinte consubstancia o “político” compreendido “como área de transformação das inter-relações e da comunidade”. Libertado dos constrangimentos objetivistas[3] de Marx e definido como a construção de “subjetividades opostas” (Negri, 1991:93-4), “O político é o horizonte da revolução, não terminada, mas contínua, sempre reaberta pelo amor do tempo. Toda motivação humana na busca do político consiste nisso: em viver uma ética da transformação através de uma ânsia de participação que se faz amor para o tempo por se constituir.” (Negri, 1994:406)
Da crise do fordismo, passamos à ilusão de que o modelo japonês seria o futuro da humanidade. Em seguida convivemos com a fantasia de que os robôs substituiriam o trabalho (que estaria com seus dias contados) e, na sequência, passamos ao elogio da terceirização e da precarização como a forma contemporânea da liberdade.
Várias “verdades” foram afirmadas para serem, logo depois desditas pelo desenvolvimento histórico. O texto The Second Industrial Divide, de Piore e Sabel (1984), apesar de sua rara qualidade, subestimou a capacidade de adaptação da indústria estadunidense aos novos tempos; Habermas (Habermas, 1983 e 1987) “demonstrou” tanto a falência do pressuposto marxiano de que os homens têm no trabalho sua categoria fundante quanto a superioridade da fenomenologia sobre o que ele imagina (incorretamente) ser o materialismo do autor de O capital. Clauss Off (Off, 1982), com o texto “Trabalho: categoria sociológica central?”, parecia fornecer uma pista segura para a investigação da falência do sindicalismo operário: sem emprego a definir a identidade dos “atores sociais”, como seria possível a atuação das organizações tradicionais das classes trabalhadoras? Fukuyama (1992) anuncia o fim da história e Lyotard (Lyotard, 1984) a falência das grandes narrativas. A avalanche rapidamente ganhou momento e se converteu nos “infindáveis fins”: fim do trabalho, fim da fábrica, fim das classes ... fim da revolução, em suma.
Em meio ao pós-modernismo, ao desemprego persistente e crescente, ao fim da URSS, à crise dos EUA e à ascensão relativa da Comunidade Econômica Europeia, a tese da Terceira Via encontrou as condições econômicas, sociais e ideológicas para vicejar. Lembremos da uma de suas pilastras centrais: o desemprego seria resultante da queda da eficiência econômica devido aos programas sociais que diminuíam a concorrência entre trabalhadores por emprego e, entre as empresas, por lucro. Seria necessário, portanto, reavivar a concorrência retirando o Estado da economia e dos programas sociais: o reino de mercado deveria ser afirmado até às últimas consequências. Este o momento em que Anthony Giddens foi festejado como o teórico da nova prosperidade que acompanharia os ajustes imprescindíveis.
Todas estas promessas e ilusões estão sendo desfeitas ao ritmo dos jornais diários: Tony Blair não vai além de um Bush de uma potência ainda mais decadente que os EUA; o Estado mínimo, se aumentou a rentabilidade do capital e possibilitou que grande fortunas fossem amealhadas em períodos recordes de tempo, hoje não consegue mais ser nem a resposta aparente e momentânea para a crise mundial; as teses pós-modernas não foram capazes de constituir uma nova Welstanschauung e vão dissolvendo a si mesmas em meio a críticas intestinas que levam ao paradoxismo da radicalidade última de seus pressupostos; o desemprego dissolve a aparência de realidade das teses que apregoavam o fim do trabalho. E, em todo esse contexto, um pensador volta a se fazer notar: Marx. Surpreendentemente, para alguns, o “velho barbudo” volta a ser considerado como autor de teses interessantes, quando não imprescindíveis, para que compreendamos o mundo em que vivemos.
Nesse vendaval que destrói tudo em seu caminho em que parece ter se convertido a história, se há uma corrente teórica cujas teses fundamentais foram in totum confirmadas nas últimas décadas, esta corrente é o marxismo. A tese do trabalho como categoria fundante do mundo dos homens e que, portanto, qualquer que seja o desenvolvimento das forças produtivas, por mais que se robotize a produção, por mais que se automatize os procedimentos, etc., não pode haver qualquer sociedade sem trabalho; esta tese está sendo confirmada no geral e no particular de muitas de suas consequências. Uma delas, a de que o capital não pode prescindir do trabalho vivo para a sua reprodução. Que o desemprego contemporâneo não é a transição para o reino da liberdade, mas apenas e tão somente o aprofundamento das alienações que brotam do capital, é algo que se evidencia a cada nova demissão. Que as classes sociais não podem desaparecer enquanto houver a exploração do homem pelo homem e que, portanto, nem a robotização, nem o toyotismo, nem a pretensa alteração do tempo e do espaço preconizada pelo pós-modernismo serão capazes de alterar um átomo sequer desta necessária conexão ontológica entre propriedade privada e classes sociais, é uma tese marxista confirmada a cada conflito. Que o problema não está no tamanho ou na forma do Estado, mas na própria necessidade histórica da existência do Estado, vai aos poucos deixando o índex das ideias proibidas. Uma vez mais, o próprio retorno de Marx à cena teórica parece confirmar uma das teses marxistas: a própria crise, mais cedo ou mais tarde, recolocaria o pensamento marxiano como uma referência teórica importante.
As palavras acima não pretendem sugerir qualquer visão exageradamente otimista ou ufanista. Ou eufórica. Queremos apenas chamar a atenção para o caráter mutante e mutável da forma como nos relacionamos cotidianamente com a crise, bem como para a curta “meia vida” das teorias que não enxergam além destas mutações mais fenomênicas. Razões para euforismo, não temos nenhuma! Pelo contrário, vivemos o momento mais contrarrevolucionário desde que a monarquia soçobrou na Bastilha de 1789. Nunca vivemos tantos anos sem sequer uma revolução importante (qual foi a última verdadeiramente grande: a Chinesa? Já lá se vão mais de cinquenta anos!), nem a humanidade conheceu um período histórico em que o capital tivesse colhido vitórias tão significativas a ponto de se tornar uma força aparentemente inquestionável, um Deus absconditus! Mesmo no interior de sua classe historicamente antagônica, o operariado, o horizonte do capital parece ter sido aceito como o limite insuperável da existência humana. Como duvidar deste fato quando greves e lutas econômicas, para não falar de embates mais sérios, praticamente desapareceram da nossa vida cotidiana? Quando mesmo as centrais sindicais se “modernizam” para se tornarem agências do capital financeiro no repasse de empréstimos a seus “associados”?! Com o refluxo da luta operária, a própria identidade ideológica das classes se esvaece, burguesia, pequena burguesia e operários são agora tudo uma só e uma mesma coisa, consumidores quando vão ao shopping, cidadãos quando vão às urnas. Sem a presença política cotidiana das lutas, como não ter um certo pé na realidade as teses do fim das ideologias, das “grandes narrativas” e dos “paradigmas”? O consumismo vai se convertendo na ideologia acriticamente aceita em todas as classes sociais; o que diferencia é o que se consome, mas não a ilusória identificação entre felicidade e consumo. Se parece não mais haver classes nem ideologias, claro que a história não mais pode ser a luta de classes. Duas alternativas, então, se apresentaram no debate teórico-político. A primeira, simplesmente negar que algo como a história exista. A segunda, quanto e onde esta tese pós-moderna não for palatável, afirmará que há “uma outra história” que não a da luta das classes sociais.
O período contrarrevolucionário que vivemos tem sido um solo dos mais férteis para os empreendimentos que buscam recontar a história “para além de Marx”. Uma verdadeira “praga de fantasias”, para roubarmos o título de Slavoj Zizek (Zizek, 1997), assola o exaurido espírito do tempo de nossos dias. Quase sempre fantasia-se partindo de alguns indícios, mais ou menos pontuais, do desenvolvimento social em curso. Logo, contudo, a crise faz a realidade tomar outro rumo e a fantasia termina por não poder cumprir sequer o papel, que está na origem da maior parte delas, de velar as contradições sociais mais importantes. Então, o que era considerado como “a” verdade inquestionável, respaldada até mesmo por sinalizações “bastante fortes" do desenvolvimento socioeconômico, expõe a sua inconsistência teórica e não mais consegue generalizar os fatos dos quais pretende ser a explicação em tendências e leis históricas (mesmo quando, no caso dos pós-modernos, pretendem negar a existência de leis da história). Uma nova “verdade” será, em seguida, postulada e, tal como a anterior, será negada pelo próximo movimento do real. O homo academicus converterá esta dinâmica dos complexos ideológicos, fundada pelo solo histórico da contrarrevolução, no culto teórico da novidade. Faz da necessidade, virtude, e passa a perseguir freneticamente o último novo, como a fábula do burro e da cenoura. A forma e o conteúdo contrarrevolucionários da luta de classe em nossos dias possibilita que esta já longa série de fantasias se repita ad nauseum; há uma capacidade quase infinita de o tecido social contemporâneo exsudar ilusões que atendem à necessidade pelo próximo “falso socialmente necessário”, na expressão Lukács. A contrarrevolução é, ao mesmo tempo, prática e teórica: ao impossibilitar o desenvolvimento pleno da humanidade, faz com que as ideologias adquiram um conteúdo retrógrado e irracional cada vez mais intenso.
Quando as determinações contrarrevolucionárias não haviam ainda se explicitado plenamente, teses que hoje são consideradas “sérias” não passariam de meros absurdos. Hobsbawn, em um texto de 1961(Hobsbawn, 1998:1), condenava sumariamente um autor que se referia à uma “revolução moderada” nos seguintes termos: “Uma revolução moderada é uma contradição em termos...”. Argumentava ele, então, que revolução era um ato necessariamente violento de embate de classes sociais – que uma revolução “moderada” era mero contrassenso. Hoje são considerados autores que falam em revolução cotidiana, como se a vida cotidiana pudesse, em qualquer formação social, ser revolucionária. Comunismo passa a ser compatível com o dinheiro e, a liberdade humana, com o mercado. O que era, há alguns anos, mero contrassenso hoje requer muita tinta e papel para que seja suscitado no leitor ao menos a desconfiança de que algo, talvez, não esteja bem parado na articulação entre revolução e vida cotidiana, entre mercado e liberdade e entre dinheiro e comunismo – para ficar apenas com alguns exemplos de uma longuíssima lista. É nesse contexto que verdadeiras fábulas pretendem substituir a história real. Depois da simplória, porque ideologicamente ineficaz, negação pós- moderna da história, há que falsificá-la para explicar que a crise não é crise, mas a abertura para um novo mundo em que finalmente a humanidade encontrará a felicidade. Para justificar a barbárie em que nos tornamos enquanto gênero humano é imprescindível recontar a história sem qualquer cerimônia para com os fatos. Tomaremos como exemplo desse fenômeno Gilles Lipovetsky e Antonio Negri.
“O amor pelo tempo por se constituir”
Negri, Lazzarato e Hardt, cuja tese mais conhecida é a do trabalho imaterial[2], propõem uma nova teoria da história. Segundo eles, as transformações em curso seriam a afirmação do modo de produção comunista nos “interstícios” do capitalismo. A crise não seria crise, mas sim transição para uma nova sociedade, a comunista. Permitam-me tentar ser mais claro: hoje, nas nossas vidas cotidianas, nós já viveríamos a construção do comunismo.
Em El poder constituyente (Negri, 1994), Negri procura demonstrar que categoria central desta nova concepção de mundo é o “amor do tempo”. Por “amor do tempo” Negri compreende “a alma do poder constituinte quando este faz do mundo da vista uma essência dinâmica, uma síntese sempre renovada de natureza e história”. (Negri, 1994:406-7) Esta tal “síntese sempre renovada de natureza e história” efetivada pelo poder constituinte consubstancia o “político” compreendido “como área de transformação das inter-relações e da comunidade”. Libertado dos constrangimentos objetivistas[3] de Marx e definido como a construção de “subjetividades opostas” (Negri, 1991:93-4), “O político é o horizonte da revolução, não terminada, mas contínua, sempre reaberta pelo amor do tempo. Toda motivação humana na busca do político consiste nisso: em viver uma ética da transformação através de uma ânsia de participação que se faz amor para o tempo por se constituir.” (Negri, 1994:406)
O fundamento último da história humana desde o Renascimento até hoje seria esta “ânsia de participação”. Qual o fundamento ontológico desta “ânsia de participação” é algo que Negri sequer se pergunta. Basta, para ele, a afirmação de que a presença do poder constituinte na história é um fato inquestionável porque evidente.(Negri, 1994:395) Precisamente o que deveria ser provado é, em Negri, um axioma: em cima deste pressuposto ergue-se o seu castelo de cartas.
Sempre seguindo as palavras de Negri, este “poder constituinte” “luta continuamente para emergir como potência” (Negri, 1994:407): a “multidão” “responde às necessidades de racionalizar o poder, depois do nascimento e desenvolvimento do capitalismo e de sua forma de organização da sociedade” (Negri, 1994:369). Esta resposta da multidão daria origem a uma racionalidade social crescentemente democrática, até se tornar, nos dias em que vivemos, a força que se explicita pela constituição do comunismo. Partindo do Renascimento, passando pelas Revoluções Inglesas do Séc. XVII, Revoluções Francesa e Americana, por Maquiavel e Harrington, esta necessidade de “racionalizar o poder” chega aos bolcheviques, em um “processo de acumulação ontológica” pelo qual “o conceito e as práticas do poder constituinte se ampliam e transmitem ao desenvolvimento do conceito uma espécie de irreversível tendencialidade.” (Negri, 1994:370) Com os “bolcheviques [que] cumprem enfim o salto mortal de exasperar o poder do Estado para afirmar a liberdade da sociedade” (Negri, 1994:370), o poder constituinte se projeta até que “a materialidade metafísica do poder constituinte se mostr[e] /.../ em enormes incêndios que iluminam de multidão as praças dos impérios faustuosos. Entre 1968 e 1989, nossas gerações viram como o amor para o tempo se opõe a todas e cada uma das manifestações do ser para a morte. O movimento das multidões expressou em todos os lugares a sua potência, com aquela extraordinária e sólida força que não indica uma eventual excepcionalidade, mas uma necessidade ontológica”. (Negri, 1994:408)
Sempre seguindo as palavras de Negri, este “poder constituinte” “luta continuamente para emergir como potência” (Negri, 1994:407): a “multidão” “responde às necessidades de racionalizar o poder, depois do nascimento e desenvolvimento do capitalismo e de sua forma de organização da sociedade” (Negri, 1994:369). Esta resposta da multidão daria origem a uma racionalidade social crescentemente democrática, até se tornar, nos dias em que vivemos, a força que se explicita pela constituição do comunismo. Partindo do Renascimento, passando pelas Revoluções Inglesas do Séc. XVII, Revoluções Francesa e Americana, por Maquiavel e Harrington, esta necessidade de “racionalizar o poder” chega aos bolcheviques, em um “processo de acumulação ontológica” pelo qual “o conceito e as práticas do poder constituinte se ampliam e transmitem ao desenvolvimento do conceito uma espécie de irreversível tendencialidade.” (Negri, 1994:370) Com os “bolcheviques [que] cumprem enfim o salto mortal de exasperar o poder do Estado para afirmar a liberdade da sociedade” (Negri, 1994:370), o poder constituinte se projeta até que “a materialidade metafísica do poder constituinte se mostr[e] /.../ em enormes incêndios que iluminam de multidão as praças dos impérios faustuosos. Entre 1968 e 1989, nossas gerações viram como o amor para o tempo se opõe a todas e cada uma das manifestações do ser para a morte. O movimento das multidões expressou em todos os lugares a sua potência, com aquela extraordinária e sólida força que não indica uma eventual excepcionalidade, mas uma necessidade ontológica”. (Negri, 1994:408)
Qual o conteúdo histórico desse movimento histórico? “A democracia[4] é o projeto da multidão, enquanto força criativa, enquanto deus vivente”; e “a história do poder constituinte é a sucessão progressiva da racionalização do sujeito coletivo". (Negri, 1994:373) No poder constituinte, o político torna-se social e, o social, político (Negri, 1994:380), superando assim a oposição Estado/sociedade. O poder constituinte, por explicitar a “ânsia” por uma “vivência ética” que é o seu fundamento — e por fundar e definir a política, como vimos —, permite fundir a “política” e o “social”: o comunismo. Agora, “A potência da multidão torna-se constituição da potência dentro deste processo, ou seja, a tensão que não pode ser detida da multidão a fazer-se atualidade da potência.” (Negri, 1994:392) E, nesta nova sociabilidade em que Estado e sociedade são uma só e mesma coisa, o trabalho abstrato se transmuta em trabalho imaterial em um processo intimamente relacionado com a “recusa ao trabalho” — recusa esta que, por sua vez, está na base da gênese e desenvolvimento das relações comunistas no interior da sociedade capitalista.
A “recusa ao trabalho” é uma tese das mais surpreendentes. Como o ontologicamente central neste novo mundo comunista em que viveríamos seria o “amor para o tempo” (Negri, 1994:406), o que encontramos entre os trabalhadores não seria a luta desesperada por um emprego, mas sim a “recusa ao trabalho”. Esta recusa ao trabalho teria uma dupla face, a acreditarmos em Michael Ryan (in Negri, 1991:XXVIII-XXIX). Por um lado, se apresentaria “empiricamente, enquanto absenteísmo e sabotagem”; por outro lado, se apresentaria como “a negação da lei do valor”. A luta dos trabalhadores por maiores salários teria elevado de tal forma estes últimos que ter-se-ia estabelecido uma “falsa equivalência entre horas trabalhadas e salário pago”, “ao mesmo tempo em que" teria realizado uma "não equivalência real entre salários pagos e valores produzidos”. A lei do valor estaria, deste modo, rompida em seu elo decisivo, a força de trabalho e, com isso, a dominação capitalista teria deixado de ser econômica para ser diretamente política. “Todos os problemas da exploração são agora imediatamente políticos”. E tudo se transforma em política, definida, lembremos, como a constituição de “subjetividades opostas” (Negri, 1991:93-4). Neste preciso sentido, a luta contra a organização capitalista da vida é uma “escolha de estilo de vida. Ser comunista hoje significa viver como um comunista”. (Ryan in Negri, 1991:XV-XVI) Trocando em miúdos: já que tudo é política, o comunismo se resume a uma questão de estilo de vida que, assim, pode ser vivenciado dentro do capitalismo. Como tudo é política, esta pode se antecipar à transformação material da base social, de tal modo que se pode viver como comunista numa sociedade capitalista. O comunismo deixa de ser um para além do capital para se tornar num processo de transformação interno e imanente à ordem do capital.
A dedução por Negri da falência da lei do valor sob a regência do capital é tão típica do seu procedimento metodológico que merece que nos detenhamos sobre ela, ainda que apenas por umas poucas linhas. O seu ponto de partida é uma série de “deves” (must): “O processo de valorização, quanto alcança sua dimensão totalitária [isto é, quando se opera a identidade absoluta entre o capital e a sociedade], deve permitir que apareça a autovalorização proletária. Deve permitir seu próprio antagonismo se desenvolver em todo o seu potencial.” (Negri, 1991:128) Como, para Negri, de tais “deves” segue-se que a realidade é (a conhecida passagem do dever-ser ao ser), pôde ele “descobrir” a “subjetividade da classe trabalhadora” (Negri, 1991:128). A mediação pela qual isso ocorre teria seu fundamento no fato de que “Quanto mais o trabalho se torna abstrato e socializado... mais cresce a esfera da necessidade.” (Negri, 1991:133) Isto significa que “O trabalho cria suas próprias necessidades e força o capital a satisfazê-las.” (Negri, 1991:133) O sujeito trabalho explicita suas necessidades frente ao sujeito capital, com o que o salário — “formado com base nestas necessidades” (Negri, 1991:133) — “deve” (novamente o dever-ser) crescentemente expressar a conexão entre as “necessidades e a individualidade material de sua composição” o que apenas pode ocorrer se “esta individualidade tender a se tornar subjetividade”. (Negri, 1991:133) Aqui a relação com “o capital rompe sua sujeição à necessidade econômica ... [e vem à luz] da única forma que o pode fazer: como comportamento, como poder. Este poder é a subjetividade. É irredutível. ... a luta de classe e a política estão, portanto, no centro da teoria econômica”. (Negri, 1991:133-4) Com isto poderemos “sublinhar a possibilidade teorética (tendencial) da independência proletária no interior do capital”. (Negri, 1991:134)
Como isto é possível? “Independência proletária no interior do capital”?
Assim: nas novas condições, “O dinheiro é subordinado à autovalorização” (Negri, 1991:138), já que “A troca de dinheiro entre proletários é valor de uso” (Negri, 1991:138). Com base nisto, pode Negri se propor a dar o próximo passo: “revisar e fundar as mais importantes categorias da teoria da luta de classe”. (Negri, 1991:139) Continua ele: “Nesta estágio, a apropriação capitalista da sociedade é total. A subjetividade do capital foi violentamente ativada. Máquinas e ciência a constituíram e produziram. Mas a separação no interior da categoria não foi suprimida. O antagonismo deve (sic!) se reproduzir no estágio mais elevado de poder”. (Negri, 1991:143) Como para Negri “dever ser” iguala-se a “ser”, então, este “deve” se transmuta em uma “clivagem” do real: “A clivagem aparece reaparece e o processo avança. A separação se dá no interior do processo”. (Negri, 1991:143) Então, “repentinamente” a “separação é deslocada para fora” do processo e “assume a forma de uma subjetividade independente” (Negri, 1991:143), a qual se expressa pela emergência de “indivíduo social capaz não apenas de produzir, mas também de gozar a riqueza produzida”. A lógica é “ao trabalho excedente, o motor do desenvolvimento, o não-trabalho; ao capitalismo é oposto o comunismo”. (Negri, 1991:145)
Trocando por uma linguagem dos mortais: o capital dominou totalitariamente a sociedade. Repentinamente, desta totalidade capitalista, a subjetividade proletária se constitui “independentemente” da dominação totalitária do capital que a tudo subsume: milagres acontecem. E são “repentinos”! Constituída como repentina subjetividade comunista, ela é a possibilidade da autonomia operária ser um estilo de vida desenvolvido no interior do próprio capital e que materializa, nos interstícios da sociedade burguesa, o comunismo.
Esta longa passagem de “deves” em ser — o mais puro idealismo — é o que possibilita a Negri afirmar que a dissolução de todas as relações sociais “no político”, como obra da presença totalitária do capital na reprodução social, tem como consequência o repentino surgimento da subjetividade comunista e da sua autonomia nos interstícios da sociedade capitalista. Para esta nova subjetividade, o dinheiro deixa de ser valor de troca e se converte em valor de uso: o Estado e a sociedade tornam-se um e o mesmo, e o comunismo, enquanto novo modo de produção, é identificado a um novo estilo de vida.
Temos que reconhecer a coerência de Negri em rever as teses marxianas. O seu comunismo é agora compatível com o capital e com o dinheiro. Nenhuma surpresa, portanto, que seja, também compatível com o próprio empresariado.
No comunismo de Negri “os controles” da produção (“controle”, não livre organização dos trabalhadores associados, note-se bem) não deixam de existir, apenas “são exercidos como momentos ativos do procedimento e não concebidos como momento de imputação externa”. (Negri, 1994:401) É isto que possibilita que um dos seguidores de Negri no Brasil, G. Cocco, em uma coletânea voltada aos empresários cariocas e financiada por empresas como Texaco, Estácio de Sá, Bozanno, Simonsen, Bradesco, O Dia, IBM[6], etc., esclarecer aos leitores que, uma vez realizado o poder constituinte, permanecerá como atribuição dos empresários (agora denominados “políticos”) conferir “sentido, ordenado, coeso e completo” ao processo produtivo. (Cocco, Urani e Galvão, 1999:26) Na mesma coletânea, em um texto intitulado O empresário político, Negri acalma aos empresários afirmando que, no comunismo que ora adentramos, “O empresário político não se envolve diretamente na produção, na sua organização direta, mas determina suas condições”. (Idem :61) E, obviamente, se teremos um comunismo cujas “condições” e “sentido” da produção são determinadas pelos empresários, isto significa que a igualdade não eliminará o “privilégio” — e de fato é assim. Ao invés da “oposição” entre igualdade e privilégio que marca a “racionalidade moderna”, Negri afirma que seremos iguais porque coparticipantes do poder constituinte, mas isto não seria oposto ao privilégio! (Negri, 1994:402-3)
Bem pesadas as coisas, a artimanha lógica não é das mais brilhantes: separa-se economia da política, acusando-se Marx de “objetivista”. Em seguida, redescobre Negri na teoria econômica a presença da dominação política. Feita esta descoberta lapidar — como se Marx houvesse desconhecido a força material da política na reprodução das sociedades de classe — Negri pode, então, reduzir tudo à política. Próximo passo é definir política, sempre a partir da recusa do alegado “objetivismo” de Marx, como constituição de “subjetividades opostas” (Negri, 1991:93-4) e, a transição, como a passagem de uma subjetividade à outra. Neste terreno do mais puro idealismo, para não dizer da fantasia, pôde Negri redefinir o comunismo como um estilo de vida que se afirma nos “interstícios do capital” (Negri, 1991:152). Não é à toa que Cocco pôde afirmar que, nesta transição ao comunismo, “é possível” a “reconciliação entre trabalho e capital”. (Cocco, 2000:160)
A tese de que o motor da história moderna seria a “o amor pelo tempo por se constituir” termina, assim, revelando um dos seus aspectos mais interessantes para a luta ideológica em curso: o desemprego não é o resultado cotidiano e mais perverso da desumanidade do capital, mas uma afirmação da autonomia operária que “recusa o trabalho”. A luta pelo emprego, pela manutenção dos poucos direitos sociais que foram conquistados no passado, não passariam de um anacronismo histórico apenas compatível com uma “esquerda lúgubre, acabrunhada por remorsos, pelas derrotas e falta de imaginação” (Negri, 1992/3:11). Os autênticos revolucionários devem lutar por esta “reconciliação entre o trabalho e capital” imanente ao comunismo nascente. A luta sindical deve dar lugar a uma outra relação, — não de confrontação, certamente — com os patrões, agora denominados de “empresários sociais”. O que nos parece ser um aprofundamento das alienações capitalistas, nada mais seria que o resultado do nosso olhar obtuso incapaz de perceber que, ao invés da crescente desumanidade, vivemos a afirmação do comunismo, a forma máxima da liberdade que, ao mesmo tempo, é compatível com o privilégio e a propriedade privada! Esta é uma das consequências do fantasioso “amor pelo tempo por se constituir”.
Lipovetsky: a efemeridade como essência da democracia
Tal como Negri e seus seguidores, Lipovetsky também procura um novo “modelo” para a história. Diferente do mundo regulado por “mecanismos disciplinadores” do passado, viveríamos hoje uma forma de regulamentação social em que a sedução seria o mecanismo decisivo. E esta passagem da disciplina à sedução, para sermos breves, teria na moda o seu vetor mais importante.
“Em menos de meio século, diz ele, a atratividade e o evanescente se tornaram os princípios organizadores da moderna vida coletiva. Vivemos em sociedades nas quais o trivial predomina, sociedades que constituem o último elo da centenária cadeia do individualismo-capitalista- democrático”. (Lipovetsky, 1994: 6) Esse desenvolvimento histórico teria sido possível, segundo o autor, pela profunda modificação da “matéria-prima humana” sob a ação da moda. A passagem do mundo “do status ao do contrato”, na feliz expressão de J. Laski (1973), nada verdade teria sido a gênese e o desenvolvimento do “império da moda”. Ao “atribuir maior dignidade a fenômenos e funções inferiores, obscurecendo as fronteiras entre a arte nobre e a modesta, o reino da moda ajudou a promover a igualdade.” (Lipovetsky, 1994:72) Além disso, ao substituir a violência e a tradição pela sedução e pela novidade, moldou relações sociais e indivíduos sem os quais seria inimaginável as modernas sociedades democráticas capitalistas. A moda seria, deste modo, o principal vetor do processo que abriu a sociedade “à experimentação acelerada, à era voluntarista moderna de rupturas e revoluções” sem romper com a racionalidade social. (Lipovetsky, 1994:76-7) Nesta nova racionalidade, a moda colocaria em ação “um processo previamente desconhecido de sedução que inaugura uma nova lógica de poder" inteiramente ausente nos mecanismos anteriores de “constrangimentos disciplinadores” (Lipovetsky, 1994:78). Ao invés de um único e obrigatório padrão homogêneo, a “diversificação de estilos enfatiza as personalidades individuais” contra a “padronização, contra a uniformidade da aparência, contra o mimetismo de massa; elevou e glorificou a expressão das diferenças individuais”. Ela “ampliou o escopo da sedução através da aparência” (Lipovetsky, 1994:78), “inaugurou um novo tipo de poder maleável que funcionava sem emitir injunções rígidas e que incorporou ao seu processo o imprevisível e variado gosto do público”. (Lipovetsky, 1994:80)
A regra que todos devem seguir admite agora infinitas variações individuais. O preço para ter acesso a esta liberdade é a aceitação, pelos indivíduos, da norma geral da qual cada variação individual não pode ser senão uma afirmação particular. Os indivíduos, assim, apenas são livres se acatarem previamente as regras do jogo que tornam aceitáveis e valorizam as infinitas formas de expressão das suas personalidades singularidades. Ao possibilitar que “o conformismo aos padrões sociais se coaduna[sse] com o individualismo na expressão de si próprio”, “...a grande originalidade da moda está em que aliou conformidade geral com liberdade pessoal nas pequenas escolhas e variações menores. Isto veio par e passo com o nacionalismo e o individualismo modernos”. (Lipovetsky, 1994:32-33, 34)
Para Lipovetsky, portanto, o todo caótico que aparenta ser a moda seria, na verdade, a expressão condensada da lógica do poder dos nossos tempos. “Após a era da disciplina compulsória, entramos na era da personalização, escolha, liberdade combinatória... Isto não constitui uma abdicação do poder, mas a emergência de um aberto, flexível poder de sedução que prefigura o próprio poder que tornar-se- ia dominante na sociedade de escolhas excessivas”. (Lipovetsky, 1994:80-1)
Com isto ter-se-ia consubstanciado uma “matéria-prima humana” muito “flexível” e que “chegou a um acordo com a legitimidade da mudança pacífica; ela desistiu de concepções de mundo revolucionárias e maniqueístas. Sob o reino da moda, a democracia goza um consenso universal sobre suas instituições políticas; extremos ideológicos estão em declínio e o pragmatismo em ascensão, o espírito do empreendedor e da eficiência substituíram os encantamentos proféticos [das propostas revolucionárias]. ... Conflitos egoístas e de interesses permanecem, mas ... nunca atingem o ponto de ameaçarem a continuidade da república. ...[Desde modo], Temos aqui o primeiro dos paradoxos de nossas sociedades: quanto mais a sedução é usada como instrumento, mais as pessoas encaram a realidade; quanto mais o elemento lúdico se torna triunfante, melhor é reabilitado o ethos econômico; quanto mais progresso faz o efêmero, mais estável, profundamente unificada, e reconciliada com seus princípios pluralistas se torna a democracia”. (Lipovetsky, 1994:7) Para Lipovetsky, portanto, Marx, a Escola de Frankfurt, Heidegger entre outros, falharam miseravelmente em compreender o amplo papel histórico exercido pela moda. Longe de ser expressão da alienação capitalista, ela é o “efetivo” “vetor” “da autonomia humana, ainda que opere via a heteronomia da cultura de massas” (Lipovetsky, 1994:9) e pela sua ação teria sido “instituído” “um espaço público aberto e mold[ado] uma humanidade mais obediente às leis, mais madura...”, isto é, menos afetada por “fundamentalismos” de todos os matizes. (Lipovetsky, 1994:12)
A essência do novo poder da sedução estaria em que, para o indivíduo ser livre, deve ele aceitar as regras do jogo da liberdade nas modernas sociedades democráticas. Ser livre teria como pressuposto acatar os ditames da sociedade de consumo, a única sociabilidade que reconhece as diferenças individuais como um direito e, portanto, que pode valorizar as expressões heterônimas de cada individualidade. Nesta expressão da particularidade do indivíduo, a moda seria a mediação decisiva: cada um se conforma, segundo sua diferença específica, à regra mais geral. A diferença torna-se, assim, não apenas condizente com a regra geral, mas muito mais do que isso: a diferença individual apenas pode se expressar e ter substância social na medida em que se apresentar como expressão particular da regra mais geral. Conformismo e expressão das diferenças estariam, agora, de tal modo articulados nas modernas sociedades democráticas que os projetos revolucionários, “fundamentalistas” como denomina Lipovetsky, estariam definitivamente superados.
O texto de Lipovetsky possui diversos aspectos interessantes, principalmente nos momentos em que analisa os mecanismos sociais de absorção do indivíduo aos ditames da sociedade de consumo. Todavia, pelos seus próprios pressupostos e pelo seu próprio horizonte, não pode o autor considerar o aspecto decisivo desta “nova relação” entre o indivíduo e a sociedade capitalista. Se os indivíduos, para terem acesso à liberdade propiciada pela sedução da moda, devem aceitar as regras gerais da sociedade de consumo, isto implica, também, que todos devem aceitar que suas personalidades, por mais peculiares, serão sempre a expressão singular da norma mais geral: a liberdade é, assim, a expressão fenomênica, efêmera e superficial, pontual, de uma essência que se impõe a todos os indivíduos. Ou, o que dá no mesmo, enquanto essencialmente capitalistas, os indivíduos podem escolher entre infinitas formas fenomênicas, superficiais e efêmeras para expressarem suas personalidades coisificadas pelo capital.
Ao assimilarem como suas próprias essências individuais a essência do mundo regido pelo capital, a “forma elementar” da sociedade burguesa — a mercadoria — se converte na essência das relações sociais. E, como a essência humana é o conjunto das relações sociais, a mercadoria se converte na essência dos próprios homens. Nas relações alienadas da moderna sociedade capitalista, são as mercadorias que passam a se encontrar diretamente; os seres humanos apenas se relacionam mediados por elas. As pessoas também são coisificadas na medida em que as mercadorias são os seus meios de expressão.
Há aqui, uma possível e curiosa analogia. Sabemos, depois de Marx, que há uma relativa autonomia da mercadoria para com seu valor de uso — para com sua substância útil — na precisa medida em que cada proprietário pode introduzir as diferenças que julgar lucrativas naquilo que possui. O capitalismo termina produzindo uma variedade infindável, digamos, de colheres de sopa, em uma escala inimaginável no passado. Enquanto proprietário das colheres, pode-se fazer das colheres o que se quiser, desde que não se rompa os limites do mercado. Esta autonomia relativa da mercadoria para com seu valor de uso é muito semelhante à liberdade do indivíduo na sociedade das “escolhas excessivas” de Lipovetsky. O indivíduo é “plenamente livre” para manifestar a singularidade de sua personalidade desde que o faça reforçando a regência das leis mais gerais da reprodução do capital. A autonomia de cada mercadoria para com o seu valor de uso — para com a sua substância útil — se converte, em Lipovetsky, na forma típica da liberdade dos indivíduos. Ou, posto de outro modo, o autor reduz a liberdade humana à autonomia relativa de cada produto singular para com o caráter universal da mercadoria.
Não é a mercadoria que libertou o homem, mas o homem que se aprisionou na mercadoria: Lipovetsky toma a causa pela consequência. Não foi a moda que configurou a “matéria-prima humana” democrática. Foi o desenvolvimento do capital que aprofundou os fenômenos reificantes de tal modo que o humano foi crescentemente reduzido à mercadoria — e, a liberdade humana, restrita à autonomia relativa da mercadoria em relação ao seu “corpo material”. Ao reduzir as relações humanas à relação entre mercadorias, o capital não pode admitir outro padrão de relação social senão a concorrência, e a democracia é a organização política desta situação. Por isso as relações entre as pessoas devem ser, do ponto de vista afetivo, social, político e humano, crescentemente superficiais já que, enquanto relações de concorrência, são cada vez menos portadoras da autêntica substância humana. A democracia, pela sua própria essência burguesa, apenas e tão somente pode expressar a relação concorrencial entre as “mercadorias tornadas pessoas” ou, o que dá no mesmo, entre as pessoas tornadas mercadorias.
A inversão operada por Lipovetsky entre causas e consequências conduz, em seu texto, ao elogio da alienação pela via de sua identificação à liberdade. Ser alienado pelo capital e ter na mercadoria a principal mediação na expressão da personalidade não é, como quer o autor, a consubstanciação do ser humano liberto — pelo contrário, é a realização mais plena do fetichismo da mercadoria. Lipovetsky, todavia, não pode ignorar que nem tudo são flores. Todavia, ele não tem dúvida do sentido dos sofrimentos de nossos dias. Para ele, apesar do “crescente desemprego, mercado de trabalho precário, débeis taxas de crescimento, economia frouxa”, “Uma era [como a nossa] que opera em termos de informação, do poder sedutor da novidade, tolerância e mobilidade de opiniões, está nos preparando, se pudermos pelo menos aproveitar dos seus pontos fortes, para os desafios do futuro. Estamos em uma passagem difícil, mas não em um impasse. ... Considerado de alguma distância, conduz a uma visão dual do nosso destino: pessimismo acerca do presente, otimismo sobre o futuro”. (Lipovetsky, 1994:8)
Tal como com Negri, aqui também a fantasia cumpre a sua função: a de tornar a crise bem-vinda!
Retorno à história
Para nos contrapormos a estas duas fantasias, seja-nos permitido uma rápida menção à crise contemporânea.
O desenvolvimento capitalista no período entre as duas guerras mundiais evidenciou o caráter explosivo do desenvolvimento das forças produtivas (o surgimento do fordismo se dá neste contexto) no capitalismo monopolista. A crise de 1929 e, de forma ainda mais grave, também a crise contemporânea, são expressões condensadas de como o pleno desenvolvimento das capacidades humanas se tornou incompatível com a manutenção da ordem do capital. A produção muito maior do que a necessidade, a abundância, se converte, nos quadros do capital, em crise de superprodução. Há, então, a necessidade de ampliar o consumo em uma ordem social que concentra a riqueza em um pólo e a miséria em outro e, portanto, é ontologicamente incapaz de colocar toda a riqueza produzida à disposição de toda a humanidade. Esta contradição entre a produção social e apropriação privada, já apontada por Marx, se amplia, se intensifica e se aprofunda até atingir, em nossos dias, tal caráter destrutivo que planejamos, nos mínimos detalhes, sem deixar nada ao acaso, a extinção da humanidade da face da Terra: no apogeu da Guerra Fria, o arsenal nuclear americano e soviético era suficiente para erradicar 99 vezes os seres humanos do planeta. Hoje esta capacidade se mantém em uma ordem de algumas dezenas de vezes!
A essência dos dias que vivemos é esta incapacidade ontológica de o capital converter a superprodução em abundância.
Após 1929, não apenas a intervenção estatal no estilo do New Deal, mas principalmente a II Guerra Mundial retirou o capitalismo da crise. O preço em vidas humanas foi estarrecedor: 46 milhões de mortos, sem falar nos feridos, doentes mentais, órfãos e toda uma longa série de sofrimentos que acompanham tal número. E, apesar disto, o problema chave sequer foi superficialmente tocado, retornando ainda mais agudo terminado o conflito: onde seria alocada toda a produção bélica? Se levarmos em consideração que a metade da produção industrial de todo o mundo se concentrava nos EUA, o único dos países desenvolvidos que não foi campo de batalha, a gravidade da situação fica ainda mais evidente. Os estadunidenses estavam à beira de um colapso provocado pela superprodução, a não ser que medidas urgentes fossem tomadas.
As medidas mais importantes foram, no curto prazo, o financiamento da reconstrução da Europa Ocidental e Japão e a estruturação de um cerco militar à URSS através da OTAN/OTASE. Crises passageiras e pontuais, como a de Berlim, tiveram também seu papel. A médio prazo, as outras duas medidas importantes foram o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar e o do complexo industrial militar.
Ao Estado de Bem-Estar coube a tripla tarefa de ampliar o mercado consumidor através de uma elevação dos níveis salariais em padrões compatíveis com a elevação da lucratividade de todo o sistema; de incorporar à reprodução do capital a exploração não apenas das matérias primas, mas também da mão de obra de vários países do Terceiro Mundo pela implantação das multinacionais (e das ditaduras, muitas vezes militares, que as acompanharam) e, terceira tarefa, a de consolidar ideologicamente o capitalismo frente à ameaça soviética. Não é mero acaso que nos EUA a estruturação dos grandes sindicatos que auxiliaram a ordenar a elevação dos salários é contemporânea com o maccarthismo e que, na França, o gaullismo dominasse o pós-guerra. Nos poucos países que conheceram o Estado de Bem-estar (não mais do que nove, se incluirmos entre eles os EUA, o que é polêmico), ao longo da década de 1950 foi se estruturando um circulo vicioso que operava com velocidade crescente: o aumento da produção propiciado pelas estratégias típicas do fordismo possibilitava baratear o produto final que, então, era comprado por uma fatia maior do mercado. Este aumento do consumo possibilitava ampliar a produção, o que derrubava o preço do produto final e aumentava o consumo. Como a capacidade de aumentar a produção sempre foi maior do que a capacidade de o capitalismo aumentar o consumo, o equilíbrio deste círculo vicioso se tornava a cada volta mais instável, e a principal saída foi intensificar o desperdício da produção e da força de trabalho pela válvula de escape do complexo industrial militar (Mészáros, 2002:685 e ss.). A crise no Oriente Médio, que se inicia com a invasão da Palestina pelos exércitos ingleses para a implantação do Estado de Israel, é o primeiro conflito típico da nova situação. Coreia e Vietnam seriam os conflitos mais importantes na sequência de centenas de “conflitos de baixa intensidade”.
A década de 1960 assistiu ao agravamento da superprodução e gerou os pressupostos da crise que vivemos desde os anos de 1970. Entre eles, o esgotamento da capacidade da economia estadunidense em deslocar as contradições produzidas pela crescente superprodução pela válvula do complexo industrial-militar agravou a situação econômica não apenas no interior dos Estados Unidos, mas também internacionalmente. O “incoformismo social e político” ganhou corpo em manifestações de massa no final da década, ao lado de uma disposição generalizada pela busca de alternativas, como foi o movimento hippie. 1968 é o ano emblemático, ainda que o ano de 1975 seja o economicamente mais significativo: a derrota no Vietnam e a perda do potencial ofensivo do exército estadunidense abre a possibilidade de a OPEP aumentar o petróleo para um preço significativamente acima do vigente: litro por litro, o petróleo era mais barato que a água mineral que o Oriente Médio importava dos EUA. Os aumentos do custo da matriz energética que se seguiram até o final da década foram os sinais mais evidentes do esgotamento do binômio fordismo/Estado de Bem-estar, mas estavam longe de ser os únicos.
Logo a seguir, uma nova instabilidade se introduziu no sistema do capital. As condições de reconstrução do Japão no pós-guerra fizeram com que este país chegasse aos anos de 1970 com uma mão-de-obra mais disciplinada e barata que a dos países mais avançados. No contexto da crise, abriu-se uma possibilidade única para as empresas japonesas: a saturação e contração dos mercados estadunidenses debilitavam a capacidade de investimento das empresas, tornando viável a entrada no ambicionado mercado estadunidense desde que se produzisse melhor e mais barato que as concorrentes da América do Norte. A saída para o aproveitamento desta oportunidade foi o que genericamente denominamos de toyotismo, um fenômeno tão ou mais multifacetado do que o fordismo que vinha para substituir.
Na gênese do toyotismo e da ascensão japonesa estava o esgotamento do padrão taylorista-fordista em ampliar as taxas de extração de mais valia. As novas técnicas e as novas formas gerenciais possibilitaram às empresas japonesas uma lucratividade muito maior e um sucesso surpreendentemente grande, ainda que apenas por alguns anos. O sucesso prosseguiu até que o aprofundamento da crise nos EUA e o consequente desemprego forçaram um rebaixamento do preço da mão-de-obra e uma reestruturação das empresas estadunidenses que, aos poucos, foram recuperando sua competitividade vis-à-vis aos japoneses. Some-se a este fator pelo menos dois outros: a crise estadunidense reduziu a sua capacidade de consumo dos produtos japoneses, o que terminou por ter um efeito negativo sobre as empresas nipônicas que se voltaram prioritariamente ao mercado da América do Norte. E, em segundo lugar, os investimos no complexo industrial-militar continuaram elevados, primeiro com o projeto “Guerra nas Estrelas” de Reagan e, depois, com as seguidas intervenções militares no Terceiro Mundo.
A desestruturação do padrão fordista/Estado de Bem-Estar, principalmente em seus efeitos sobre o mercado mundial e sobre os juros internacionais (1979 foi o ano decisivo neste aspecto), terminaram tendo um forte impacto sobre a economia soviética. Atravessada por contradições estruturais insanáveis no marco de uma economia de mercado que não comportava o mercado da força de trabalho, a crise atinge a URSS de morte (Mészáros, 2002: 701 e ss.). Sua derrocada, contudo, longe de possibilitar o reequilíbrio do sistema do capital, terminou gerando crises nos Bálcãs e na Ásia que estão longe de terem esgotado seu potencial desestabilizador. Afeganistão e Iraque, junto com as ex-repúblicas soviéticas compreendidas entre eles e o Mar Negro, ainda não explicitaram os papéis que jogarão neste início do século XXI.
Depois da crise EUA e do apogeu japonês, por um momento o modelo Mercado Comum Europeu parecia ser a saída para a crise. Esta ilusão, todavia, não perdurou mais que uns poucos anos. Ao longo dos anos de 1990, a crise foi ganhando em momento e em intensidade. As crises nas bolsas, a crise imobiliária no Japão, o fim da bolha da NASDAQ, o acelerado empobrecimento da classe média na Europa e nos Estados Unidos (Ehrenreich, 1989) — preciosa reserva de mercado — se somaram à quase total exclusão da África do circuito do capital internacional, com a consequente generalização da crise social e da AIDS. Nos países industrializados do Terceiro Mundo, a fuga de capitais se tornou um movimento especulativo “normal”, parte das regras cotidianas, e suas já combalidas economias sofrem duros golpes. A Argentina foi destes casos o mais agudo, certamente; mas Brasil, Venezuela e México não permaneceram imunes.
É neste contexto que os verdadeiros objetivos da automatização e da robotização se tornaram evidentes: com o desemprego crescente, a queda no preço da mão de obra tornou mais barato — e flexível — os trabalhadores terceirizados, precarizados, que os próprios robôs. Inicia-se um surpreende movimento inverso, de substituição dos robôs por trabalho vivo (a não ser em situações muito específicas como nas estufas de pintura das automontadoras). O grande argumento “empírico" das teses que anunciavam o fim do trabalho se dissolveu no ar! E uma nova massa de trabalhadores, agora metade do tempo precarizada e o resto do tempo desempregada, vai se somar à crescente camada da população simplesmente desempregada e sem qualquer perspectiva de retorno ao mercado de trabalho. Isto tanto nos países periféricos mais industrializados como nos países centrais, sem querer cancelar as fundamentais diferenças entre estes países.
Sem a possibilidade de abertura de novos mercados e com a saturação dos já existentes, a forma predominante de acumulação de capital passa a ser a fusão entre as empresas e não a aberturas de novos empreendimentos (Teixeira, 2000). A sobrevivência depende da capacidade de as empresas, cada uma por si própria, produzirem mercadorias mais baratas e de melhor qualidade — bem como operarem com mais eficiência a obsolescência planejada — do que suas concorrentes. O que significa, curto e grosso, extrair uma maior taxa de mais valia de seus trabalhadores que as concorrentes. No contexto contemporâneo, isto implica a adoção de técnicas e estratégias gerenciais que ampliam a produção e empregam cada vez menos. Com o fechamento de postos de trabalho, a consequente redução do mercado consumidor apenas agrava a superprodução estrutural, intensificando os efeitos negativos da crise e forçando fusões ainda mais significativas. Sem a possibilidade de investimentos produtivos, o capital acumulado escapa para o circuito financeiro internacional. O que, por sua vez, diminui ainda mais a eficiência geral do sistema do capital no que diz respeito à produção do “conteúdo material da riqueza social”, como diz Marx, e a sociedade em crise apenas pode se reproduzir agudizando cotidianamente cada uma das suas contradições fundamentais.
A existência sob o capital se transformou, assim, em uma contínua deterioração das condições de vida e trabalho da maior parte dos homens. Lembremos que a humanidade, desde o período primitivo, tem no avanço das forças produtivas a expressão mais concentrada do desenvolvimento de suas capacidades. Ser humano, em alguma fundamental dimensão, é desenvolver-nos enquanto seres que gozam de crescente capacidade de produzirem não apenas o que necessitam, mas as suas próprias necessidades. A criação da primeira necessidade é o primeiro ato histórico da humanidade, já diziam Marx e Engels em A ideologia aemã.
Como as tendências históricas mais gerais são sempre sínteses de atos concretos de indivíduos concretos — e como tais atos são teleologicamente postos — , todo desenvolvimento social atua sobre os indivíduos que são os portadores imediatos das consciências que põem teleologias. O desenvolvimento das capacidades humanas é, portanto, também o desenvolvimento das individualidades que compõem o gênero humano a cada momento histórico. E isto é verdadeiro mesmo em se tratando do período histórico caracterizado pelas sociedades de classe, nas quais as vidas de uma parcela dos homens é sacrificada pela exploração do homem pelo homem. Isto é mais evidente no escravismo e no modo de produção asiático, mas com intensidade menor vale também para o feudalismo e o capitalismo. Em todos eles, a exploração do homem pelo homem foi a forma mais eficiente de acumulação do excedente para o desenvolvimento mais acelerado das forças produtivas.
Isto, todavia, deixou de ser verdade após a Revolução Industrial. A capacidade humana em produzir mais do que o necessário para a manutenção da vida dos homens sobre o planeta se transformou não — como seria de se esperar — na solução para todos os problemas de sobrevivência dos homens, mas na superprodução que impulsiona as seguidas crises do capital. Ao atingirmos a década de 1970, a crise deixa de ser uma disfunção temporária do sistema para se converter no modo de existência do próprio sistema — e o seu caráter destrutivo de seres humanos deixa de ter períodos mais atenuados para se converter numa tendência sempre crescente. (Mészáros, 2002: 695 e ss.)
Na esfera da produção, as novas formas de organização e de divisão do trabalho fazem com que, por vezes, um mesmo trabalhador seja obrigado, em um mesmo dia, na mesma planta industrial, a cumprir tarefas típicas do trabalho produtivo e do trabalho improdutivo. Uma enorme massa de precarizados ocupa um espaço intermediário entre o trabalhador formal e o desempregado. O trabalho informal deixa de ser residual para se converter em parte importante da circulação do capital. Tanto a burguesia se altera, como resultado dos novos processos de fusão e das novas formas de concentração e acumulação do capital, como também as classes assalariadas adquirem novos contornos e novas relações. A ordem internacional vai se alterando para atender à necessidade de aumento da velocidade de circulação do capital em escala planetária. A globalização anunciada por Marx enfim conhece sua plenitude: a humanidade se tornou um único mercado.
É esta potencialização do caráter desumano do sistema do capital – da intensificação até o limite de suas alienações[7] — que está na raiz de fenômenos como a Terceira Itália. Pressionados, os trabalhadores foram forçados a comprarem com seus próprios recursos as máquinas e as instalarem em suas residências. Passam, então, a produzir domesticamente o que as grandes empresas precisam. Como estas peças que fabricam apenas servem para a produção de um determinado produto, tais trabalhadores agora domésticos não terão outro comprador senão, muitas vezes, a própria empresa que os demitiu. Passam, então, a trabalhar por peça, algo já analisado por Marx em O capital. Com uma diferença significativa, contudo, em relação ao século XIX. Como eles são donos da máquina, serão eles seus próprios capatazes. Trabalharão até mesmo tuberculosos, pois agora são eles próprios os exploradores imediatos de suas forças-de-trabalho. Vigiarão cada um de seus atos buscando uma melhor produtividade, em um envolvimento do trabalhador com as metas da produção que jamais foi antecipado sequer pelo teórico burguês mais otimista. Por serem donos de seus instrumentos de trabalho, por assumirem com suas as necessidades de aumento da produção, por serem proprietários do produto final, aparentemente os trabalhadores da Terceira Itália representariam o fim do capitalismo, a superação da alienação e o início do comunismo. Esta foi a base empírica para o equívoco de Negri: tomou a aparência e deixou de lado a essência do processo real. Mas, para fazer isso, teve que se converter ao idealismo — e a função de sua crítica ao pretenso “objetivismo” de Marx foi a de legitimar esta transição.
Lipovetsky, por sua vez, também parte de uma constatação real: a relação dos indivíduos com a sociedade, principalmente, mas não apenas, nas classes mais abastadas, é crescentemente mediada pelo consumo; o shopping-center se converteu em um templo mais comum sobre o planeta do que o de qualquer outra religião. “Esqueceu-se”, todavia, que isso só foi possível porque as relações sociais são cada vez mais mediadas pela mercadoria e os seres humanos, por isso, se encontram diretamente cada vez menos. Ou, dito de outro modo, as interações entre as pessoas é crescentemente coisificada; tentamos fazer com que as mercadorias expressem o que somos enquanto pessoas, ao mesmo tempo em que temos que coisificar o que temos de humano para que o possamos expressar pela mercadoria. A moda, neste contexto histórico de crise e superprodução, reúne condições para ser expressão muito fiel desta contradição que atravessa cada um dos nossos processos de individuação. Pretendemos que nossas roupas expressem o que somos enquanto individualidades — determinações de classe inclusas, mas não apenas —, ao mesmo tempo em que o que somos apenas poderia ser adequadamente expresso em relações sociais ricas e multifacéticas, omnilaterais na expressão de Marx. Sem outra alternativa no aqui e agora, a compra termina se convertendo no momento de consolo para a crise existencial que inevitavelmente brota desta situação histórica: tentamos nos expressar pelas mercadorias mas, antes, são as mercadorias que se expressam por nós. Portanto, ao contrário do que propõe Lipovetsky, a moda não representa um patamar superior de liberdade dos indivíduos é apenas a expressão da subsunção ainda maior dos indivíduos à mercadoria.
De fato, a liberdade de que fala Lipovetsky não é mais que a autonomia relativa de cada mercadoria no contexto da circulação do capital. Cada proprietário pode fazer o que quiser com sua mercadoria, desde que o que ele faça aumente a lucratividade do que ele tem a vender. A mercadoria, assim, é portadora de uma curiosa forma de “liberdade”: pode assumir infinitas formas, desde que todas estas formas sejam apenas expressões de uma mesma essência, o caráter de mercadoria. Do mesmo modo a pretensa liberdade do indivíduo pela moda: ele pode vestir o que quiser, deste que o faça de modo aceitável ao mercado e à sociedade de consumo. E, tal como o operário da Terceira Itália incorporou à sua personalidade as exigências da produção, se tornando seu próprio capataz – também os indivíduos apenas podem livremente escolher o que vestir se antes houverem incorporado os ditames do mercado como se tais ditames correspondessem às necessidades mais autênticas que brotam de suas próprias individualidades.
O que é o máximo da alienação se converte, em Lipovetsky, na esfera da liberdade e, em Negri, na gênese do comunismo nos “interstícios” do capitalismo. Apesar de suas evidentes diferenças, as fábulas de Lipovetsky e Negri têm uma função social muito específica: vender a ideia de que nossos dias são já a consubstanciação da liberdade. As facetas mais destrutivas, desumanas, alienadas enfim do capitalismo de nossos dias, são transmutadas em positividades, pois signos da liberdade. Para Lipovetsky, a era do “império da moda” ainda contém desafios, mas está muito próxima do sucesso completo. Para Negri, esta era de liberdade já está presente no nosso dia a dia e ele a denomina de comunismo.
Nada mais falso, todavia. Vivemos um momento no qual possibilidades históricas revolucionárias e muito generosas talvez estejam no horizonte. Mas apenas potencialmente, não enquanto ato. Passamos por um período contrarrevolucionário tão intenso que não é um contrassenso postular que sua prossecução redunde na própria destruição da humanidade. Entre as potencialidades revolucionárias e a construção da sociedade emancipada há uma longa luta, também política e ideológica, de convencimento e de despertar das consciências. E, para isso, nada mais danoso que a “praga de fantasias” que nos assola. Não apenas fantasias mais elaboradas como as de Negri e Lipovetsky, mas também fantasias como as de Paulo Coelho, as crenças em duendes ou no poder mágico das pirâmides[8], cumprem hoje a função de amortecer a capacidade crítica de todos nós.
É também por isso que não temos mais o direito histórico de alimentarmos ilusões. Nosso problema se concentra em uma única e decisiva contradição: o antagonismo entre a produção social e a apropriação individual da riqueza. O problema, portanto, tem nome e endereço: a propriedade privada e o sistema do capital. É à esta contradição, e a este problema, que devem estar voltados todos os nossos esforços críticos e de investigação.
Nosso desafio, hoje, não está em repensar um novo Estado de Bem-Estar, ou uma economia solidária de base cooperativista, nem sequer novas fórmulas de políticas sociais, como as que envolvem o assim denominado Terceiro Setor (Montaño, 2002), pois não há medida parcial capaz de minorar significativamente a sorte dos milhões — sequer de milhares. O reformismo não foi eficaz para a construção de uma sociedade “mais justa” nem mesmo nos países capitalistas mais avançados e em um momento histórico em que o sistema do capital necessitava da ampliação dos seus mercados consumidores. Hoje em dia, e em um país como o Brasil, tais propostas não vão além de meras fantasias. Postular a possibilidade de serem germes do socialismo agrupamentos cooperativos de trabalhadores que, não apenas se relacionam com o restante da sociedade pela mediação do mercado, como ainda estruturam seus direitos e deveres tendo por referência última o tempo de trabalho socialmente necessário, é uma ilusão que apenas pode ter alguma aparência de realidade para aqueles que abastardam o comunismo a ponto de o tornar compatível com a propriedade privada. Pregar que seria possível uma distribuição de renda mais justa e igualitária se a “solidariedade” fosse despertada nas pessoas, não vai além do absurdo de imaginar que elas são egoístas e mesquinhas por assim o desejarem — e que o egoísmo e a mesquinharia são as causas da miséria dos milhões. O fato de os indivíduos, no capitalismo, não poderem ser nada mais que “guardiões” das mercadorias (Marx, 1983:79), é uma determinação ontológica que essas ilusões sequer são capazes de imaginar que exista, quanto mais compreender.
Quem sabe as verdadeiras desilusões do governo Lula, ainda por vir (quem acha que o pior já passou, não perde por esperar!) criem um clima um pouco mais favorável para discutirmos o que verdadeiramente importa: como passar desta miséria em abundância para uma sociedade abundantemente comunista. E, então, seremos todos finalmente vacinados contra essa “praga de fantasias”.
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Notas
Bibliografia
A “recusa ao trabalho” é uma tese das mais surpreendentes. Como o ontologicamente central neste novo mundo comunista em que viveríamos seria o “amor para o tempo” (Negri, 1994:406), o que encontramos entre os trabalhadores não seria a luta desesperada por um emprego, mas sim a “recusa ao trabalho”. Esta recusa ao trabalho teria uma dupla face, a acreditarmos em Michael Ryan (in Negri, 1991:XXVIII-XXIX). Por um lado, se apresentaria “empiricamente, enquanto absenteísmo e sabotagem”; por outro lado, se apresentaria como “a negação da lei do valor”. A luta dos trabalhadores por maiores salários teria elevado de tal forma estes últimos que ter-se-ia estabelecido uma “falsa equivalência entre horas trabalhadas e salário pago”, “ao mesmo tempo em que" teria realizado uma "não equivalência real entre salários pagos e valores produzidos”. A lei do valor estaria, deste modo, rompida em seu elo decisivo, a força de trabalho e, com isso, a dominação capitalista teria deixado de ser econômica para ser diretamente política. “Todos os problemas da exploração são agora imediatamente políticos”. E tudo se transforma em política, definida, lembremos, como a constituição de “subjetividades opostas” (Negri, 1991:93-4). Neste preciso sentido, a luta contra a organização capitalista da vida é uma “escolha de estilo de vida. Ser comunista hoje significa viver como um comunista”. (Ryan in Negri, 1991:XV-XVI) Trocando em miúdos: já que tudo é política, o comunismo se resume a uma questão de estilo de vida que, assim, pode ser vivenciado dentro do capitalismo. Como tudo é política, esta pode se antecipar à transformação material da base social, de tal modo que se pode viver como comunista numa sociedade capitalista. O comunismo deixa de ser um para além do capital para se tornar num processo de transformação interno e imanente à ordem do capital.
A dedução por Negri da falência da lei do valor sob a regência do capital é tão típica do seu procedimento metodológico que merece que nos detenhamos sobre ela, ainda que apenas por umas poucas linhas. O seu ponto de partida é uma série de “deves” (must): “O processo de valorização, quanto alcança sua dimensão totalitária [isto é, quando se opera a identidade absoluta entre o capital e a sociedade], deve permitir que apareça a autovalorização proletária. Deve permitir seu próprio antagonismo se desenvolver em todo o seu potencial.” (Negri, 1991:128) Como, para Negri, de tais “deves” segue-se que a realidade é (a conhecida passagem do dever-ser ao ser), pôde ele “descobrir” a “subjetividade da classe trabalhadora” (Negri, 1991:128). A mediação pela qual isso ocorre teria seu fundamento no fato de que “Quanto mais o trabalho se torna abstrato e socializado... mais cresce a esfera da necessidade.” (Negri, 1991:133) Isto significa que “O trabalho cria suas próprias necessidades e força o capital a satisfazê-las.” (Negri, 1991:133) O sujeito trabalho explicita suas necessidades frente ao sujeito capital, com o que o salário — “formado com base nestas necessidades” (Negri, 1991:133) — “deve” (novamente o dever-ser) crescentemente expressar a conexão entre as “necessidades e a individualidade material de sua composição” o que apenas pode ocorrer se “esta individualidade tender a se tornar subjetividade”. (Negri, 1991:133) Aqui a relação com “o capital rompe sua sujeição à necessidade econômica ... [e vem à luz] da única forma que o pode fazer: como comportamento, como poder. Este poder é a subjetividade. É irredutível. ... a luta de classe e a política estão, portanto, no centro da teoria econômica”. (Negri, 1991:133-4) Com isto poderemos “sublinhar a possibilidade teorética (tendencial) da independência proletária no interior do capital”. (Negri, 1991:134)
Como isto é possível? “Independência proletária no interior do capital”?
Assim: nas novas condições, “O dinheiro é subordinado à autovalorização” (Negri, 1991:138), já que “A troca de dinheiro entre proletários é valor de uso” (Negri, 1991:138). Com base nisto, pode Negri se propor a dar o próximo passo: “revisar e fundar as mais importantes categorias da teoria da luta de classe”. (Negri, 1991:139) Continua ele: “Nesta estágio, a apropriação capitalista da sociedade é total. A subjetividade do capital foi violentamente ativada. Máquinas e ciência a constituíram e produziram. Mas a separação no interior da categoria não foi suprimida. O antagonismo deve (sic!) se reproduzir no estágio mais elevado de poder”. (Negri, 1991:143) Como para Negri “dever ser” iguala-se a “ser”, então, este “deve” se transmuta em uma “clivagem” do real: “A clivagem aparece reaparece e o processo avança. A separação se dá no interior do processo”. (Negri, 1991:143) Então, “repentinamente” a “separação é deslocada para fora” do processo e “assume a forma de uma subjetividade independente” (Negri, 1991:143), a qual se expressa pela emergência de “indivíduo social capaz não apenas de produzir, mas também de gozar a riqueza produzida”. A lógica é “ao trabalho excedente, o motor do desenvolvimento, o não-trabalho; ao capitalismo é oposto o comunismo”. (Negri, 1991:145)
Trocando por uma linguagem dos mortais: o capital dominou totalitariamente a sociedade. Repentinamente, desta totalidade capitalista, a subjetividade proletária se constitui “independentemente” da dominação totalitária do capital que a tudo subsume: milagres acontecem. E são “repentinos”! Constituída como repentina subjetividade comunista, ela é a possibilidade da autonomia operária ser um estilo de vida desenvolvido no interior do próprio capital e que materializa, nos interstícios da sociedade burguesa, o comunismo.
Esta longa passagem de “deves” em ser — o mais puro idealismo — é o que possibilita a Negri afirmar que a dissolução de todas as relações sociais “no político”, como obra da presença totalitária do capital na reprodução social, tem como consequência o repentino surgimento da subjetividade comunista e da sua autonomia nos interstícios da sociedade capitalista. Para esta nova subjetividade, o dinheiro deixa de ser valor de troca e se converte em valor de uso: o Estado e a sociedade tornam-se um e o mesmo, e o comunismo, enquanto novo modo de produção, é identificado a um novo estilo de vida.
Temos que reconhecer a coerência de Negri em rever as teses marxianas. O seu comunismo é agora compatível com o capital e com o dinheiro. Nenhuma surpresa, portanto, que seja, também compatível com o próprio empresariado.
No comunismo de Negri “os controles” da produção (“controle”, não livre organização dos trabalhadores associados, note-se bem) não deixam de existir, apenas “são exercidos como momentos ativos do procedimento e não concebidos como momento de imputação externa”. (Negri, 1994:401) É isto que possibilita que um dos seguidores de Negri no Brasil, G. Cocco, em uma coletânea voltada aos empresários cariocas e financiada por empresas como Texaco, Estácio de Sá, Bozanno, Simonsen, Bradesco, O Dia, IBM[6], etc., esclarecer aos leitores que, uma vez realizado o poder constituinte, permanecerá como atribuição dos empresários (agora denominados “políticos”) conferir “sentido, ordenado, coeso e completo” ao processo produtivo. (Cocco, Urani e Galvão, 1999:26) Na mesma coletânea, em um texto intitulado O empresário político, Negri acalma aos empresários afirmando que, no comunismo que ora adentramos, “O empresário político não se envolve diretamente na produção, na sua organização direta, mas determina suas condições”. (Idem :61) E, obviamente, se teremos um comunismo cujas “condições” e “sentido” da produção são determinadas pelos empresários, isto significa que a igualdade não eliminará o “privilégio” — e de fato é assim. Ao invés da “oposição” entre igualdade e privilégio que marca a “racionalidade moderna”, Negri afirma que seremos iguais porque coparticipantes do poder constituinte, mas isto não seria oposto ao privilégio! (Negri, 1994:402-3)
Bem pesadas as coisas, a artimanha lógica não é das mais brilhantes: separa-se economia da política, acusando-se Marx de “objetivista”. Em seguida, redescobre Negri na teoria econômica a presença da dominação política. Feita esta descoberta lapidar — como se Marx houvesse desconhecido a força material da política na reprodução das sociedades de classe — Negri pode, então, reduzir tudo à política. Próximo passo é definir política, sempre a partir da recusa do alegado “objetivismo” de Marx, como constituição de “subjetividades opostas” (Negri, 1991:93-4) e, a transição, como a passagem de uma subjetividade à outra. Neste terreno do mais puro idealismo, para não dizer da fantasia, pôde Negri redefinir o comunismo como um estilo de vida que se afirma nos “interstícios do capital” (Negri, 1991:152). Não é à toa que Cocco pôde afirmar que, nesta transição ao comunismo, “é possível” a “reconciliação entre trabalho e capital”. (Cocco, 2000:160)
A tese de que o motor da história moderna seria a “o amor pelo tempo por se constituir” termina, assim, revelando um dos seus aspectos mais interessantes para a luta ideológica em curso: o desemprego não é o resultado cotidiano e mais perverso da desumanidade do capital, mas uma afirmação da autonomia operária que “recusa o trabalho”. A luta pelo emprego, pela manutenção dos poucos direitos sociais que foram conquistados no passado, não passariam de um anacronismo histórico apenas compatível com uma “esquerda lúgubre, acabrunhada por remorsos, pelas derrotas e falta de imaginação” (Negri, 1992/3:11). Os autênticos revolucionários devem lutar por esta “reconciliação entre o trabalho e capital” imanente ao comunismo nascente. A luta sindical deve dar lugar a uma outra relação, — não de confrontação, certamente — com os patrões, agora denominados de “empresários sociais”. O que nos parece ser um aprofundamento das alienações capitalistas, nada mais seria que o resultado do nosso olhar obtuso incapaz de perceber que, ao invés da crescente desumanidade, vivemos a afirmação do comunismo, a forma máxima da liberdade que, ao mesmo tempo, é compatível com o privilégio e a propriedade privada! Esta é uma das consequências do fantasioso “amor pelo tempo por se constituir”.
Lipovetsky: a efemeridade como essência da democracia
Tal como Negri e seus seguidores, Lipovetsky também procura um novo “modelo” para a história. Diferente do mundo regulado por “mecanismos disciplinadores” do passado, viveríamos hoje uma forma de regulamentação social em que a sedução seria o mecanismo decisivo. E esta passagem da disciplina à sedução, para sermos breves, teria na moda o seu vetor mais importante.
“Em menos de meio século, diz ele, a atratividade e o evanescente se tornaram os princípios organizadores da moderna vida coletiva. Vivemos em sociedades nas quais o trivial predomina, sociedades que constituem o último elo da centenária cadeia do individualismo-capitalista- democrático”. (Lipovetsky, 1994: 6) Esse desenvolvimento histórico teria sido possível, segundo o autor, pela profunda modificação da “matéria-prima humana” sob a ação da moda. A passagem do mundo “do status ao do contrato”, na feliz expressão de J. Laski (1973), nada verdade teria sido a gênese e o desenvolvimento do “império da moda”. Ao “atribuir maior dignidade a fenômenos e funções inferiores, obscurecendo as fronteiras entre a arte nobre e a modesta, o reino da moda ajudou a promover a igualdade.” (Lipovetsky, 1994:72) Além disso, ao substituir a violência e a tradição pela sedução e pela novidade, moldou relações sociais e indivíduos sem os quais seria inimaginável as modernas sociedades democráticas capitalistas. A moda seria, deste modo, o principal vetor do processo que abriu a sociedade “à experimentação acelerada, à era voluntarista moderna de rupturas e revoluções” sem romper com a racionalidade social. (Lipovetsky, 1994:76-7) Nesta nova racionalidade, a moda colocaria em ação “um processo previamente desconhecido de sedução que inaugura uma nova lógica de poder" inteiramente ausente nos mecanismos anteriores de “constrangimentos disciplinadores” (Lipovetsky, 1994:78). Ao invés de um único e obrigatório padrão homogêneo, a “diversificação de estilos enfatiza as personalidades individuais” contra a “padronização, contra a uniformidade da aparência, contra o mimetismo de massa; elevou e glorificou a expressão das diferenças individuais”. Ela “ampliou o escopo da sedução através da aparência” (Lipovetsky, 1994:78), “inaugurou um novo tipo de poder maleável que funcionava sem emitir injunções rígidas e que incorporou ao seu processo o imprevisível e variado gosto do público”. (Lipovetsky, 1994:80)
A regra que todos devem seguir admite agora infinitas variações individuais. O preço para ter acesso a esta liberdade é a aceitação, pelos indivíduos, da norma geral da qual cada variação individual não pode ser senão uma afirmação particular. Os indivíduos, assim, apenas são livres se acatarem previamente as regras do jogo que tornam aceitáveis e valorizam as infinitas formas de expressão das suas personalidades singularidades. Ao possibilitar que “o conformismo aos padrões sociais se coaduna[sse] com o individualismo na expressão de si próprio”, “...a grande originalidade da moda está em que aliou conformidade geral com liberdade pessoal nas pequenas escolhas e variações menores. Isto veio par e passo com o nacionalismo e o individualismo modernos”. (Lipovetsky, 1994:32-33, 34)
Para Lipovetsky, portanto, o todo caótico que aparenta ser a moda seria, na verdade, a expressão condensada da lógica do poder dos nossos tempos. “Após a era da disciplina compulsória, entramos na era da personalização, escolha, liberdade combinatória... Isto não constitui uma abdicação do poder, mas a emergência de um aberto, flexível poder de sedução que prefigura o próprio poder que tornar-se- ia dominante na sociedade de escolhas excessivas”. (Lipovetsky, 1994:80-1)
Com isto ter-se-ia consubstanciado uma “matéria-prima humana” muito “flexível” e que “chegou a um acordo com a legitimidade da mudança pacífica; ela desistiu de concepções de mundo revolucionárias e maniqueístas. Sob o reino da moda, a democracia goza um consenso universal sobre suas instituições políticas; extremos ideológicos estão em declínio e o pragmatismo em ascensão, o espírito do empreendedor e da eficiência substituíram os encantamentos proféticos [das propostas revolucionárias]. ... Conflitos egoístas e de interesses permanecem, mas ... nunca atingem o ponto de ameaçarem a continuidade da república. ...[Desde modo], Temos aqui o primeiro dos paradoxos de nossas sociedades: quanto mais a sedução é usada como instrumento, mais as pessoas encaram a realidade; quanto mais o elemento lúdico se torna triunfante, melhor é reabilitado o ethos econômico; quanto mais progresso faz o efêmero, mais estável, profundamente unificada, e reconciliada com seus princípios pluralistas se torna a democracia”. (Lipovetsky, 1994:7) Para Lipovetsky, portanto, Marx, a Escola de Frankfurt, Heidegger entre outros, falharam miseravelmente em compreender o amplo papel histórico exercido pela moda. Longe de ser expressão da alienação capitalista, ela é o “efetivo” “vetor” “da autonomia humana, ainda que opere via a heteronomia da cultura de massas” (Lipovetsky, 1994:9) e pela sua ação teria sido “instituído” “um espaço público aberto e mold[ado] uma humanidade mais obediente às leis, mais madura...”, isto é, menos afetada por “fundamentalismos” de todos os matizes. (Lipovetsky, 1994:12)
A essência do novo poder da sedução estaria em que, para o indivíduo ser livre, deve ele aceitar as regras do jogo da liberdade nas modernas sociedades democráticas. Ser livre teria como pressuposto acatar os ditames da sociedade de consumo, a única sociabilidade que reconhece as diferenças individuais como um direito e, portanto, que pode valorizar as expressões heterônimas de cada individualidade. Nesta expressão da particularidade do indivíduo, a moda seria a mediação decisiva: cada um se conforma, segundo sua diferença específica, à regra mais geral. A diferença torna-se, assim, não apenas condizente com a regra geral, mas muito mais do que isso: a diferença individual apenas pode se expressar e ter substância social na medida em que se apresentar como expressão particular da regra mais geral. Conformismo e expressão das diferenças estariam, agora, de tal modo articulados nas modernas sociedades democráticas que os projetos revolucionários, “fundamentalistas” como denomina Lipovetsky, estariam definitivamente superados.
O texto de Lipovetsky possui diversos aspectos interessantes, principalmente nos momentos em que analisa os mecanismos sociais de absorção do indivíduo aos ditames da sociedade de consumo. Todavia, pelos seus próprios pressupostos e pelo seu próprio horizonte, não pode o autor considerar o aspecto decisivo desta “nova relação” entre o indivíduo e a sociedade capitalista. Se os indivíduos, para terem acesso à liberdade propiciada pela sedução da moda, devem aceitar as regras gerais da sociedade de consumo, isto implica, também, que todos devem aceitar que suas personalidades, por mais peculiares, serão sempre a expressão singular da norma mais geral: a liberdade é, assim, a expressão fenomênica, efêmera e superficial, pontual, de uma essência que se impõe a todos os indivíduos. Ou, o que dá no mesmo, enquanto essencialmente capitalistas, os indivíduos podem escolher entre infinitas formas fenomênicas, superficiais e efêmeras para expressarem suas personalidades coisificadas pelo capital.
Ao assimilarem como suas próprias essências individuais a essência do mundo regido pelo capital, a “forma elementar” da sociedade burguesa — a mercadoria — se converte na essência das relações sociais. E, como a essência humana é o conjunto das relações sociais, a mercadoria se converte na essência dos próprios homens. Nas relações alienadas da moderna sociedade capitalista, são as mercadorias que passam a se encontrar diretamente; os seres humanos apenas se relacionam mediados por elas. As pessoas também são coisificadas na medida em que as mercadorias são os seus meios de expressão.
Há aqui, uma possível e curiosa analogia. Sabemos, depois de Marx, que há uma relativa autonomia da mercadoria para com seu valor de uso — para com sua substância útil — na precisa medida em que cada proprietário pode introduzir as diferenças que julgar lucrativas naquilo que possui. O capitalismo termina produzindo uma variedade infindável, digamos, de colheres de sopa, em uma escala inimaginável no passado. Enquanto proprietário das colheres, pode-se fazer das colheres o que se quiser, desde que não se rompa os limites do mercado. Esta autonomia relativa da mercadoria para com seu valor de uso é muito semelhante à liberdade do indivíduo na sociedade das “escolhas excessivas” de Lipovetsky. O indivíduo é “plenamente livre” para manifestar a singularidade de sua personalidade desde que o faça reforçando a regência das leis mais gerais da reprodução do capital. A autonomia de cada mercadoria para com o seu valor de uso — para com a sua substância útil — se converte, em Lipovetsky, na forma típica da liberdade dos indivíduos. Ou, posto de outro modo, o autor reduz a liberdade humana à autonomia relativa de cada produto singular para com o caráter universal da mercadoria.
Não é a mercadoria que libertou o homem, mas o homem que se aprisionou na mercadoria: Lipovetsky toma a causa pela consequência. Não foi a moda que configurou a “matéria-prima humana” democrática. Foi o desenvolvimento do capital que aprofundou os fenômenos reificantes de tal modo que o humano foi crescentemente reduzido à mercadoria — e, a liberdade humana, restrita à autonomia relativa da mercadoria em relação ao seu “corpo material”. Ao reduzir as relações humanas à relação entre mercadorias, o capital não pode admitir outro padrão de relação social senão a concorrência, e a democracia é a organização política desta situação. Por isso as relações entre as pessoas devem ser, do ponto de vista afetivo, social, político e humano, crescentemente superficiais já que, enquanto relações de concorrência, são cada vez menos portadoras da autêntica substância humana. A democracia, pela sua própria essência burguesa, apenas e tão somente pode expressar a relação concorrencial entre as “mercadorias tornadas pessoas” ou, o que dá no mesmo, entre as pessoas tornadas mercadorias.
A inversão operada por Lipovetsky entre causas e consequências conduz, em seu texto, ao elogio da alienação pela via de sua identificação à liberdade. Ser alienado pelo capital e ter na mercadoria a principal mediação na expressão da personalidade não é, como quer o autor, a consubstanciação do ser humano liberto — pelo contrário, é a realização mais plena do fetichismo da mercadoria. Lipovetsky, todavia, não pode ignorar que nem tudo são flores. Todavia, ele não tem dúvida do sentido dos sofrimentos de nossos dias. Para ele, apesar do “crescente desemprego, mercado de trabalho precário, débeis taxas de crescimento, economia frouxa”, “Uma era [como a nossa] que opera em termos de informação, do poder sedutor da novidade, tolerância e mobilidade de opiniões, está nos preparando, se pudermos pelo menos aproveitar dos seus pontos fortes, para os desafios do futuro. Estamos em uma passagem difícil, mas não em um impasse. ... Considerado de alguma distância, conduz a uma visão dual do nosso destino: pessimismo acerca do presente, otimismo sobre o futuro”. (Lipovetsky, 1994:8)
Tal como com Negri, aqui também a fantasia cumpre a sua função: a de tornar a crise bem-vinda!
Retorno à história
Para nos contrapormos a estas duas fantasias, seja-nos permitido uma rápida menção à crise contemporânea.
O desenvolvimento capitalista no período entre as duas guerras mundiais evidenciou o caráter explosivo do desenvolvimento das forças produtivas (o surgimento do fordismo se dá neste contexto) no capitalismo monopolista. A crise de 1929 e, de forma ainda mais grave, também a crise contemporânea, são expressões condensadas de como o pleno desenvolvimento das capacidades humanas se tornou incompatível com a manutenção da ordem do capital. A produção muito maior do que a necessidade, a abundância, se converte, nos quadros do capital, em crise de superprodução. Há, então, a necessidade de ampliar o consumo em uma ordem social que concentra a riqueza em um pólo e a miséria em outro e, portanto, é ontologicamente incapaz de colocar toda a riqueza produzida à disposição de toda a humanidade. Esta contradição entre a produção social e apropriação privada, já apontada por Marx, se amplia, se intensifica e se aprofunda até atingir, em nossos dias, tal caráter destrutivo que planejamos, nos mínimos detalhes, sem deixar nada ao acaso, a extinção da humanidade da face da Terra: no apogeu da Guerra Fria, o arsenal nuclear americano e soviético era suficiente para erradicar 99 vezes os seres humanos do planeta. Hoje esta capacidade se mantém em uma ordem de algumas dezenas de vezes!
A essência dos dias que vivemos é esta incapacidade ontológica de o capital converter a superprodução em abundância.
Após 1929, não apenas a intervenção estatal no estilo do New Deal, mas principalmente a II Guerra Mundial retirou o capitalismo da crise. O preço em vidas humanas foi estarrecedor: 46 milhões de mortos, sem falar nos feridos, doentes mentais, órfãos e toda uma longa série de sofrimentos que acompanham tal número. E, apesar disto, o problema chave sequer foi superficialmente tocado, retornando ainda mais agudo terminado o conflito: onde seria alocada toda a produção bélica? Se levarmos em consideração que a metade da produção industrial de todo o mundo se concentrava nos EUA, o único dos países desenvolvidos que não foi campo de batalha, a gravidade da situação fica ainda mais evidente. Os estadunidenses estavam à beira de um colapso provocado pela superprodução, a não ser que medidas urgentes fossem tomadas.
As medidas mais importantes foram, no curto prazo, o financiamento da reconstrução da Europa Ocidental e Japão e a estruturação de um cerco militar à URSS através da OTAN/OTASE. Crises passageiras e pontuais, como a de Berlim, tiveram também seu papel. A médio prazo, as outras duas medidas importantes foram o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar e o do complexo industrial militar.
Ao Estado de Bem-Estar coube a tripla tarefa de ampliar o mercado consumidor através de uma elevação dos níveis salariais em padrões compatíveis com a elevação da lucratividade de todo o sistema; de incorporar à reprodução do capital a exploração não apenas das matérias primas, mas também da mão de obra de vários países do Terceiro Mundo pela implantação das multinacionais (e das ditaduras, muitas vezes militares, que as acompanharam) e, terceira tarefa, a de consolidar ideologicamente o capitalismo frente à ameaça soviética. Não é mero acaso que nos EUA a estruturação dos grandes sindicatos que auxiliaram a ordenar a elevação dos salários é contemporânea com o maccarthismo e que, na França, o gaullismo dominasse o pós-guerra. Nos poucos países que conheceram o Estado de Bem-estar (não mais do que nove, se incluirmos entre eles os EUA, o que é polêmico), ao longo da década de 1950 foi se estruturando um circulo vicioso que operava com velocidade crescente: o aumento da produção propiciado pelas estratégias típicas do fordismo possibilitava baratear o produto final que, então, era comprado por uma fatia maior do mercado. Este aumento do consumo possibilitava ampliar a produção, o que derrubava o preço do produto final e aumentava o consumo. Como a capacidade de aumentar a produção sempre foi maior do que a capacidade de o capitalismo aumentar o consumo, o equilíbrio deste círculo vicioso se tornava a cada volta mais instável, e a principal saída foi intensificar o desperdício da produção e da força de trabalho pela válvula de escape do complexo industrial militar (Mészáros, 2002:685 e ss.). A crise no Oriente Médio, que se inicia com a invasão da Palestina pelos exércitos ingleses para a implantação do Estado de Israel, é o primeiro conflito típico da nova situação. Coreia e Vietnam seriam os conflitos mais importantes na sequência de centenas de “conflitos de baixa intensidade”.
A década de 1960 assistiu ao agravamento da superprodução e gerou os pressupostos da crise que vivemos desde os anos de 1970. Entre eles, o esgotamento da capacidade da economia estadunidense em deslocar as contradições produzidas pela crescente superprodução pela válvula do complexo industrial-militar agravou a situação econômica não apenas no interior dos Estados Unidos, mas também internacionalmente. O “incoformismo social e político” ganhou corpo em manifestações de massa no final da década, ao lado de uma disposição generalizada pela busca de alternativas, como foi o movimento hippie. 1968 é o ano emblemático, ainda que o ano de 1975 seja o economicamente mais significativo: a derrota no Vietnam e a perda do potencial ofensivo do exército estadunidense abre a possibilidade de a OPEP aumentar o petróleo para um preço significativamente acima do vigente: litro por litro, o petróleo era mais barato que a água mineral que o Oriente Médio importava dos EUA. Os aumentos do custo da matriz energética que se seguiram até o final da década foram os sinais mais evidentes do esgotamento do binômio fordismo/Estado de Bem-estar, mas estavam longe de ser os únicos.
Logo a seguir, uma nova instabilidade se introduziu no sistema do capital. As condições de reconstrução do Japão no pós-guerra fizeram com que este país chegasse aos anos de 1970 com uma mão-de-obra mais disciplinada e barata que a dos países mais avançados. No contexto da crise, abriu-se uma possibilidade única para as empresas japonesas: a saturação e contração dos mercados estadunidenses debilitavam a capacidade de investimento das empresas, tornando viável a entrada no ambicionado mercado estadunidense desde que se produzisse melhor e mais barato que as concorrentes da América do Norte. A saída para o aproveitamento desta oportunidade foi o que genericamente denominamos de toyotismo, um fenômeno tão ou mais multifacetado do que o fordismo que vinha para substituir.
Na gênese do toyotismo e da ascensão japonesa estava o esgotamento do padrão taylorista-fordista em ampliar as taxas de extração de mais valia. As novas técnicas e as novas formas gerenciais possibilitaram às empresas japonesas uma lucratividade muito maior e um sucesso surpreendentemente grande, ainda que apenas por alguns anos. O sucesso prosseguiu até que o aprofundamento da crise nos EUA e o consequente desemprego forçaram um rebaixamento do preço da mão-de-obra e uma reestruturação das empresas estadunidenses que, aos poucos, foram recuperando sua competitividade vis-à-vis aos japoneses. Some-se a este fator pelo menos dois outros: a crise estadunidense reduziu a sua capacidade de consumo dos produtos japoneses, o que terminou por ter um efeito negativo sobre as empresas nipônicas que se voltaram prioritariamente ao mercado da América do Norte. E, em segundo lugar, os investimos no complexo industrial-militar continuaram elevados, primeiro com o projeto “Guerra nas Estrelas” de Reagan e, depois, com as seguidas intervenções militares no Terceiro Mundo.
A desestruturação do padrão fordista/Estado de Bem-Estar, principalmente em seus efeitos sobre o mercado mundial e sobre os juros internacionais (1979 foi o ano decisivo neste aspecto), terminaram tendo um forte impacto sobre a economia soviética. Atravessada por contradições estruturais insanáveis no marco de uma economia de mercado que não comportava o mercado da força de trabalho, a crise atinge a URSS de morte (Mészáros, 2002: 701 e ss.). Sua derrocada, contudo, longe de possibilitar o reequilíbrio do sistema do capital, terminou gerando crises nos Bálcãs e na Ásia que estão longe de terem esgotado seu potencial desestabilizador. Afeganistão e Iraque, junto com as ex-repúblicas soviéticas compreendidas entre eles e o Mar Negro, ainda não explicitaram os papéis que jogarão neste início do século XXI.
Depois da crise EUA e do apogeu japonês, por um momento o modelo Mercado Comum Europeu parecia ser a saída para a crise. Esta ilusão, todavia, não perdurou mais que uns poucos anos. Ao longo dos anos de 1990, a crise foi ganhando em momento e em intensidade. As crises nas bolsas, a crise imobiliária no Japão, o fim da bolha da NASDAQ, o acelerado empobrecimento da classe média na Europa e nos Estados Unidos (Ehrenreich, 1989) — preciosa reserva de mercado — se somaram à quase total exclusão da África do circuito do capital internacional, com a consequente generalização da crise social e da AIDS. Nos países industrializados do Terceiro Mundo, a fuga de capitais se tornou um movimento especulativo “normal”, parte das regras cotidianas, e suas já combalidas economias sofrem duros golpes. A Argentina foi destes casos o mais agudo, certamente; mas Brasil, Venezuela e México não permaneceram imunes.
É neste contexto que os verdadeiros objetivos da automatização e da robotização se tornaram evidentes: com o desemprego crescente, a queda no preço da mão de obra tornou mais barato — e flexível — os trabalhadores terceirizados, precarizados, que os próprios robôs. Inicia-se um surpreende movimento inverso, de substituição dos robôs por trabalho vivo (a não ser em situações muito específicas como nas estufas de pintura das automontadoras). O grande argumento “empírico" das teses que anunciavam o fim do trabalho se dissolveu no ar! E uma nova massa de trabalhadores, agora metade do tempo precarizada e o resto do tempo desempregada, vai se somar à crescente camada da população simplesmente desempregada e sem qualquer perspectiva de retorno ao mercado de trabalho. Isto tanto nos países periféricos mais industrializados como nos países centrais, sem querer cancelar as fundamentais diferenças entre estes países.
Sem a possibilidade de abertura de novos mercados e com a saturação dos já existentes, a forma predominante de acumulação de capital passa a ser a fusão entre as empresas e não a aberturas de novos empreendimentos (Teixeira, 2000). A sobrevivência depende da capacidade de as empresas, cada uma por si própria, produzirem mercadorias mais baratas e de melhor qualidade — bem como operarem com mais eficiência a obsolescência planejada — do que suas concorrentes. O que significa, curto e grosso, extrair uma maior taxa de mais valia de seus trabalhadores que as concorrentes. No contexto contemporâneo, isto implica a adoção de técnicas e estratégias gerenciais que ampliam a produção e empregam cada vez menos. Com o fechamento de postos de trabalho, a consequente redução do mercado consumidor apenas agrava a superprodução estrutural, intensificando os efeitos negativos da crise e forçando fusões ainda mais significativas. Sem a possibilidade de investimentos produtivos, o capital acumulado escapa para o circuito financeiro internacional. O que, por sua vez, diminui ainda mais a eficiência geral do sistema do capital no que diz respeito à produção do “conteúdo material da riqueza social”, como diz Marx, e a sociedade em crise apenas pode se reproduzir agudizando cotidianamente cada uma das suas contradições fundamentais.
A existência sob o capital se transformou, assim, em uma contínua deterioração das condições de vida e trabalho da maior parte dos homens. Lembremos que a humanidade, desde o período primitivo, tem no avanço das forças produtivas a expressão mais concentrada do desenvolvimento de suas capacidades. Ser humano, em alguma fundamental dimensão, é desenvolver-nos enquanto seres que gozam de crescente capacidade de produzirem não apenas o que necessitam, mas as suas próprias necessidades. A criação da primeira necessidade é o primeiro ato histórico da humanidade, já diziam Marx e Engels em A ideologia aemã.
Como as tendências históricas mais gerais são sempre sínteses de atos concretos de indivíduos concretos — e como tais atos são teleologicamente postos — , todo desenvolvimento social atua sobre os indivíduos que são os portadores imediatos das consciências que põem teleologias. O desenvolvimento das capacidades humanas é, portanto, também o desenvolvimento das individualidades que compõem o gênero humano a cada momento histórico. E isto é verdadeiro mesmo em se tratando do período histórico caracterizado pelas sociedades de classe, nas quais as vidas de uma parcela dos homens é sacrificada pela exploração do homem pelo homem. Isto é mais evidente no escravismo e no modo de produção asiático, mas com intensidade menor vale também para o feudalismo e o capitalismo. Em todos eles, a exploração do homem pelo homem foi a forma mais eficiente de acumulação do excedente para o desenvolvimento mais acelerado das forças produtivas.
Isto, todavia, deixou de ser verdade após a Revolução Industrial. A capacidade humana em produzir mais do que o necessário para a manutenção da vida dos homens sobre o planeta se transformou não — como seria de se esperar — na solução para todos os problemas de sobrevivência dos homens, mas na superprodução que impulsiona as seguidas crises do capital. Ao atingirmos a década de 1970, a crise deixa de ser uma disfunção temporária do sistema para se converter no modo de existência do próprio sistema — e o seu caráter destrutivo de seres humanos deixa de ter períodos mais atenuados para se converter numa tendência sempre crescente. (Mészáros, 2002: 695 e ss.)
Na esfera da produção, as novas formas de organização e de divisão do trabalho fazem com que, por vezes, um mesmo trabalhador seja obrigado, em um mesmo dia, na mesma planta industrial, a cumprir tarefas típicas do trabalho produtivo e do trabalho improdutivo. Uma enorme massa de precarizados ocupa um espaço intermediário entre o trabalhador formal e o desempregado. O trabalho informal deixa de ser residual para se converter em parte importante da circulação do capital. Tanto a burguesia se altera, como resultado dos novos processos de fusão e das novas formas de concentração e acumulação do capital, como também as classes assalariadas adquirem novos contornos e novas relações. A ordem internacional vai se alterando para atender à necessidade de aumento da velocidade de circulação do capital em escala planetária. A globalização anunciada por Marx enfim conhece sua plenitude: a humanidade se tornou um único mercado.
É esta potencialização do caráter desumano do sistema do capital – da intensificação até o limite de suas alienações[7] — que está na raiz de fenômenos como a Terceira Itália. Pressionados, os trabalhadores foram forçados a comprarem com seus próprios recursos as máquinas e as instalarem em suas residências. Passam, então, a produzir domesticamente o que as grandes empresas precisam. Como estas peças que fabricam apenas servem para a produção de um determinado produto, tais trabalhadores agora domésticos não terão outro comprador senão, muitas vezes, a própria empresa que os demitiu. Passam, então, a trabalhar por peça, algo já analisado por Marx em O capital. Com uma diferença significativa, contudo, em relação ao século XIX. Como eles são donos da máquina, serão eles seus próprios capatazes. Trabalharão até mesmo tuberculosos, pois agora são eles próprios os exploradores imediatos de suas forças-de-trabalho. Vigiarão cada um de seus atos buscando uma melhor produtividade, em um envolvimento do trabalhador com as metas da produção que jamais foi antecipado sequer pelo teórico burguês mais otimista. Por serem donos de seus instrumentos de trabalho, por assumirem com suas as necessidades de aumento da produção, por serem proprietários do produto final, aparentemente os trabalhadores da Terceira Itália representariam o fim do capitalismo, a superação da alienação e o início do comunismo. Esta foi a base empírica para o equívoco de Negri: tomou a aparência e deixou de lado a essência do processo real. Mas, para fazer isso, teve que se converter ao idealismo — e a função de sua crítica ao pretenso “objetivismo” de Marx foi a de legitimar esta transição.
Lipovetsky, por sua vez, também parte de uma constatação real: a relação dos indivíduos com a sociedade, principalmente, mas não apenas, nas classes mais abastadas, é crescentemente mediada pelo consumo; o shopping-center se converteu em um templo mais comum sobre o planeta do que o de qualquer outra religião. “Esqueceu-se”, todavia, que isso só foi possível porque as relações sociais são cada vez mais mediadas pela mercadoria e os seres humanos, por isso, se encontram diretamente cada vez menos. Ou, dito de outro modo, as interações entre as pessoas é crescentemente coisificada; tentamos fazer com que as mercadorias expressem o que somos enquanto pessoas, ao mesmo tempo em que temos que coisificar o que temos de humano para que o possamos expressar pela mercadoria. A moda, neste contexto histórico de crise e superprodução, reúne condições para ser expressão muito fiel desta contradição que atravessa cada um dos nossos processos de individuação. Pretendemos que nossas roupas expressem o que somos enquanto individualidades — determinações de classe inclusas, mas não apenas —, ao mesmo tempo em que o que somos apenas poderia ser adequadamente expresso em relações sociais ricas e multifacéticas, omnilaterais na expressão de Marx. Sem outra alternativa no aqui e agora, a compra termina se convertendo no momento de consolo para a crise existencial que inevitavelmente brota desta situação histórica: tentamos nos expressar pelas mercadorias mas, antes, são as mercadorias que se expressam por nós. Portanto, ao contrário do que propõe Lipovetsky, a moda não representa um patamar superior de liberdade dos indivíduos é apenas a expressão da subsunção ainda maior dos indivíduos à mercadoria.
De fato, a liberdade de que fala Lipovetsky não é mais que a autonomia relativa de cada mercadoria no contexto da circulação do capital. Cada proprietário pode fazer o que quiser com sua mercadoria, desde que o que ele faça aumente a lucratividade do que ele tem a vender. A mercadoria, assim, é portadora de uma curiosa forma de “liberdade”: pode assumir infinitas formas, desde que todas estas formas sejam apenas expressões de uma mesma essência, o caráter de mercadoria. Do mesmo modo a pretensa liberdade do indivíduo pela moda: ele pode vestir o que quiser, deste que o faça de modo aceitável ao mercado e à sociedade de consumo. E, tal como o operário da Terceira Itália incorporou à sua personalidade as exigências da produção, se tornando seu próprio capataz – também os indivíduos apenas podem livremente escolher o que vestir se antes houverem incorporado os ditames do mercado como se tais ditames correspondessem às necessidades mais autênticas que brotam de suas próprias individualidades.
O que é o máximo da alienação se converte, em Lipovetsky, na esfera da liberdade e, em Negri, na gênese do comunismo nos “interstícios” do capitalismo. Apesar de suas evidentes diferenças, as fábulas de Lipovetsky e Negri têm uma função social muito específica: vender a ideia de que nossos dias são já a consubstanciação da liberdade. As facetas mais destrutivas, desumanas, alienadas enfim do capitalismo de nossos dias, são transmutadas em positividades, pois signos da liberdade. Para Lipovetsky, a era do “império da moda” ainda contém desafios, mas está muito próxima do sucesso completo. Para Negri, esta era de liberdade já está presente no nosso dia a dia e ele a denomina de comunismo.
Nada mais falso, todavia. Vivemos um momento no qual possibilidades históricas revolucionárias e muito generosas talvez estejam no horizonte. Mas apenas potencialmente, não enquanto ato. Passamos por um período contrarrevolucionário tão intenso que não é um contrassenso postular que sua prossecução redunde na própria destruição da humanidade. Entre as potencialidades revolucionárias e a construção da sociedade emancipada há uma longa luta, também política e ideológica, de convencimento e de despertar das consciências. E, para isso, nada mais danoso que a “praga de fantasias” que nos assola. Não apenas fantasias mais elaboradas como as de Negri e Lipovetsky, mas também fantasias como as de Paulo Coelho, as crenças em duendes ou no poder mágico das pirâmides[8], cumprem hoje a função de amortecer a capacidade crítica de todos nós.
É também por isso que não temos mais o direito histórico de alimentarmos ilusões. Nosso problema se concentra em uma única e decisiva contradição: o antagonismo entre a produção social e a apropriação individual da riqueza. O problema, portanto, tem nome e endereço: a propriedade privada e o sistema do capital. É à esta contradição, e a este problema, que devem estar voltados todos os nossos esforços críticos e de investigação.
Nosso desafio, hoje, não está em repensar um novo Estado de Bem-Estar, ou uma economia solidária de base cooperativista, nem sequer novas fórmulas de políticas sociais, como as que envolvem o assim denominado Terceiro Setor (Montaño, 2002), pois não há medida parcial capaz de minorar significativamente a sorte dos milhões — sequer de milhares. O reformismo não foi eficaz para a construção de uma sociedade “mais justa” nem mesmo nos países capitalistas mais avançados e em um momento histórico em que o sistema do capital necessitava da ampliação dos seus mercados consumidores. Hoje em dia, e em um país como o Brasil, tais propostas não vão além de meras fantasias. Postular a possibilidade de serem germes do socialismo agrupamentos cooperativos de trabalhadores que, não apenas se relacionam com o restante da sociedade pela mediação do mercado, como ainda estruturam seus direitos e deveres tendo por referência última o tempo de trabalho socialmente necessário, é uma ilusão que apenas pode ter alguma aparência de realidade para aqueles que abastardam o comunismo a ponto de o tornar compatível com a propriedade privada. Pregar que seria possível uma distribuição de renda mais justa e igualitária se a “solidariedade” fosse despertada nas pessoas, não vai além do absurdo de imaginar que elas são egoístas e mesquinhas por assim o desejarem — e que o egoísmo e a mesquinharia são as causas da miséria dos milhões. O fato de os indivíduos, no capitalismo, não poderem ser nada mais que “guardiões” das mercadorias (Marx, 1983:79), é uma determinação ontológica que essas ilusões sequer são capazes de imaginar que exista, quanto mais compreender.
Quem sabe as verdadeiras desilusões do governo Lula, ainda por vir (quem acha que o pior já passou, não perde por esperar!) criem um clima um pouco mais favorável para discutirmos o que verdadeiramente importa: como passar desta miséria em abundância para uma sociedade abundantemente comunista. E, então, seremos todos finalmente vacinados contra essa “praga de fantasias”.
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Notas
[1] Publicado em Praia Vermelha, PósGrad. Serviço Social, UFRJ, v.10, p. 84-111, 2004.= = =
[2] Há que se lembrar que, da perspectiva marxiana, a ideia de um trabalho “imaterial”, ou da imaterialidade do trabalho, é um absoluto contrassenso: um trabalho sem objetivação é um absurdo em termos. Trabalho, em Marx, é sempre a transformação teleologicamente posta da natureza, transformação essa que é a própria objetivação. Tanto quanto conseguimos localizar, mesmo nas Teorias da mais-valia, Marx jamais empregou o conceito de “trabalho imaterial”. O que encontramos é o termo geistiger Arbeit, no sentido de trabalho intelectual ou espiritual que se contrapõe ao trabalho manual. É também nesse sentido que o encontramos na Ideologia alemã: trabalho intelectual (ou espiritual) que se distingue do trabalho material (materiallen und gestigen Arbeiten) mantendo, todavia, a objetivação como o momento essencial da articulação entre teleologia e causalidade — ainda que seja aqui uma objetivação sobre uma causalidade que pode ser distinta da matéria natural. Sobre isso já nos debruçamos em alguns artigos (Lessa, 2002, 2003, 2001) que deverão ser publicados como parte de uma coletânea a sair pela editora Xamã.
[3] Sobre o conceito de “objetivismo” nesses autores, cf. Cleaver, H. Translator's Introduction, Parte I, in Negri, 1991:XIX-XX. E, ainda, Negri, 1991: 8-9, 18-19, 29, 31,83,61,64 e 65.
[4] “...esta forma política do poder constituinte... podemos chamá-la também 'democracia'. Entendamo-nos: porque aqui democracia significa expressão multilateral da multidão, radical imanência da potência, exclusão de todo signo de definição externa, seja transcendente ou transcendental, de todo o modo externo a este radical absoluto do terreno da imanência.”
[5] Para que não reste dúvidas acerca da posição que tal tese ocupa no debate acerca do trabalho, é útil citar as palavras de Maurizio Viano: “Não podemos encontrar qualquer conceito de trabalho em Marx que não seja aquele do trabalho assalariado, de trabalho que é socialmente necessário à reprodução do capital, portanto não há qualquer conceito de qualquer trabalho a ser restaurado, liberado, sublimado, apenas um conceito e uma realidade a ser suprimida.” (in Negri, 1994:10)
[6] Em uma nota divulgada pela Internet, fui acusado de caluniador e estalinista por apontar este fato. Se os autores da coletânea citada não veem qualquer problema em ter o nome de tais empresas na página de crédito do seu livro, não deveriam se importar com a menção ao fato.
[7] No sentido de Entfremdung.
[8] Carl Sagan escreveu o bem humorado O mundo assombrado por demônios (Cia. das Letras), um maravilhoso compêndio das alucinações que se espalham cotidianamente.
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Resumo: o texto procura discutir a função ideológica conservadora de teses como as G. Lipovetsky (a difusão da moda seria a causa fundamental da transformação do Antigo Regime à sociedade contemporânea) ou de A. Negri e M. Hardt (o “amor pelo tempo por se constituir” seria o principal fator na passagem da sociedade moderna ao mundo contemporâneo) que substituem a história por “fantasias” e, a partir delas, propõem que a crise contemporânea não seria o aprofundamento das alienações, mas a superação das mesmas.= = =
Palavras chave: ideologia, trabalho imaterial, trabalho, crise do capital
LESSA, S. “Uma praga de fantasias”. In: Praia Vermelha, PósGrad. Serviço Social, UFRJ, v.10, p. 84-111, 2004.
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