sábado, 13 de abril de 2019

Você não conhece Hannah Arendt


por Emmett Rensin
The Outline

Nós temos que encarar os fatos: um grandessíssimo cretino [Trump] foi eleito. Não era pra ter acabado assim. Que podemos fazer dessa situação? O liberalismo estadunidense de sempre tem gasto os últimos três meses, confuso, incerto do que vem a seguir; pior, incertos de como compreender a razão de milhões de seus concidadãos ter votado em Trump. No rescaldo imediato das eleições, o status dos liberais mudava ao sabor das horas. Eles passaram da classe trabalhadora em revolta, para reacionários clamando pelo novo Reich. Foram hipnotizados pela mídia de massas. Eram inalcançáveis. Podiam se organizar. Deviam ser recrutados. Deviam ser combatidos. Algum tipo de domínio era necessário; os especialistas de sempre estavam equivocados.

De repente, uma voz ressoou do passado, sublinhada em máximas e transmitida por memes. Sua face sisuda se contorce frente à contemplação do profundo. Quem é ela? O que está dizendo? As palavras são difíceis de compreender, a princípio. São lembradas vagamente, se sequer forem lembradas  — Será que eu li o texto da aula dessa semana? Uma pesquisa no Google traz a claridade. Mas, é claro: A mulher é Hannah Arendt, e ela voltou do deserto pra nos trazer uma mensagem: Fascistas são maus.

Os Estados Unidos constantemente redescobrem Hannah Arendt. Nenhum escritor, exceto talvez James Baldwin, teve seu ethos tão canibalizado com tanta voracidade por um público que é, também, tão desinteressado na tarefa de ler, de fato, a sua obra. Nos anos 60, mentores da Guerra Fria como Norman Podhoretz conduziram a narrativa de Arendt do totalitarismo contra a União Soviética, disfarçando uma visão de mundo que encontrou sua total complexidade expressa no Império do Mal de Reagan, sob trajes de uma alta teoria. Ela voltou a cavalo com o 11 de Setembro, ressuscitada por neoconservadores que estavam ansiosos por explicar o terrorismo Islâmico como uma psicose em massa, totalmente desconectada de qualquer atividade suspeita dos EUA em solo do Oriente Médio. Agora, ela volta mais uma vez, finalmente apontada contra os EUA —  Mas não, como poderíamos esperar, para finalmente considerar como sua excelente e obscenamente negligenciada obra sobre o imperialismo pode trazer à luz nossas próprias patologias geopolíticas. Até mesmo a óbvia conexão quase nunca é feita: Arendt escreveu largamente sobre os sem estado e os desajustados  — mas então, nós podemos ser forçados a ir além da mera condenação e considerar como tantos tornaram-se sem estado e desajustados, pra início de conversa.

Ao invés disso, Arendt, que faleceu em 1975, volta a nós como um fantasma dócil: uma das pensadoras mais heterodoxas do século 20 assombra nossas colunas de opinião para defender que você não pode discutir com Nazistas. Quem diria que precisamos de uma acadêmica famosa para dar suporte a tal conclusão? Mas aqui estamos. A intelectualidade não pensa apenas que os apoiadores de Trump são um bando de fascistas irresgatáveis  —  eles têm a densa escrita de Arendt como prova.

Arendt era brilhante, mas também estava constantemente equivocada, mais lamentavelmente a respeito da questão política central a qual se dedicava: por que pessoas ordinárias participam de movimentos fascistas? Ela é condenada pela história a ser lembrada pelas seções menos valiosas de Origens do totalitarismo, um livro que, ao findar do último século, já se reduzia a defesas vagas sobre bases ambíguas — uma “introspecção metafísica”, nas palavras de Irving Howe  —  o valor do qual reside num espaço intuitivo além dos limites de fatos contraditórios. Esta semana, o livro está esgotado no Amazon.

Mas é esta mesma intuição que explica a nova vida de Arendt como um meme. Ela é a sábia que é citada em tweets a partir de enormes recortes descontextualizados a serviço de sugerir que Trump e seus asseclas não se importam em ser checados, um pouco como alguns Nazistas que você pode ter ouvido falar. Quer dizer: Arendt, nesse uso moderno, não tem provido os liberais contemporâneos, de fato, com uma descrição do fascismo que eles não já possuíam, pois o ambiente liberal profissional já decidiu que dar cabo das condições materiais que produzem figuras como Trump é inútil. Seus seguidores são todos cínicos ignorantes, definidos por sua psicologia de massa. Arendt vem apenas para imbuir essa crença de uma sofisticação própria do cânone filosófico, uma reacionária para o conforto dos liberais em sua espiral descendente rumo à reação.

Para Arendt, movimentos totalitários brotam das ruínas de nações-estados, uma consequência do deslocamento e da dissolução das normas liberais. Aquele que adere ao totalitarismo, na visão dela, não tinha ideologia, nem interesses políticos racionais além de uma ansiedade trazida à tona pela vida moderna. Eles desejam ter suas identidades individuais obliteradas. O totalitário não elege um ditador porque ele possui preocupações econômicas genuínas, nem por querer um conjunto particular de políticas aplicadas em seu país. Na verdade, diz ela, é a ordem em si que os compele  — uma necessidade de propósito e poder em uma sociedade que os deixou pra trás. Não se pode raciocinar com eles pois eles não são, por natureza, razoáveis. Não são sequer indivíduos e, sim, uma parte do “homem de massa”, tipificado pela “perda radical de autointeresse, a cínica ou entediada indiferença frente à morte ou outras catástrofes pessoais, a inclinação apaixonada pelas mais abstratas noções como guias de vida, e o desprezo geral até pelas regras mais comuns do senso comum”, como ela descreve em Origens do totalitarismo, uma “psicologia” nascida na “atmosfera do colapso da sociedade de classes”. Movimentos autoritários “recrutam seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes, as quais todos outros partidos desprezaram por serem apáticas ou estúpidas demais para sua atenção” e os dava coesão “não (…) por uma consciência de um interesse em comum (…) expressa em objetivos determinados, delimitados e tangíveis”, mas por um desejo de ser organizada em sua totalidade e aniquilada em sua individualidade. Para Arendt, totalitarismo não é política. É uma patologia de massas.

Não é coincidência que, quando despido de sua nuance e reduzido a essa síntese, essa visão corresponde perfeitamente às incompreensões liberais sobre Trump. Mais que isso, dá reafirmação àqueles que desejam acreditar que o fracasso do liberalismo internacional não são efeito das condições presentes: desigualdade econômica, livre comércio, guerra às drogas e guerras. Não foram essas políticas que levaram tantos estadunidenses a se revoltarem contra sua própria sociedade e, portanto, não são os autores dessas políticas, os responsáveis por essa revolta. A coalizão Trump está apenas reagindo mal a um mundo mais progressista, e não há nada que os progressistas poderiam ter feito a respeito, nada menos do que trair fundamentalmente sua obrigação para com os oprimidos.

“A descrição de Arendt dissolve conflitos de poder, interesses e ideias num banho de análise psicológica, permitindo a seus leitores evadir questões difíceis sobre política e economia”, escreve o teórico político Corey Robin, há cerca de 10 anos. “Precisamos, não sondar o conteúdo de uma ideologia em particular  —  o que importa não é o que ela diz, mas o que faz  —  ou a que interesses serve (eles não existem). Podemos ignorar a distribuição de poder: na sociedade de massas, há apenas um deserto de anomia. Nós podemos desconsiderar afirmações de agravo: eles apenas encobrem uma veia mais profunda de desgosto psíquico”. Condensado no limite de caracteres do Twitter, essa afirmação traduz-se “lol ansiedade econômica” e uma hashtag #resistência. Lhe resta Era uma vez um sonho, best-seller publicado ano passado [2016], ao qual os liberais se conduziram para entender os brancos pobres do campo, sentindo pena deles, enquanto insistia que sua degradação material poderia ser resolvida com um abraço forçado da cultura moderna. Lhe resta Cory Booker [político do partido democrata] em 2020. Lhe resta “ficar feliz pelos mineiros de carvão perdendo o seguro de saúde. Eles estão recebendo o que merecem por como votaram”.

Existe um debate sobre se Arendt sequer acreditava ou não em democracia. Ela se compromete com certas normas do liberalismo; é essencial, na visão dela, que os cidadãos sejam capazes de se engajar totalmente e sem medo no debate da vida pública. Mas sua descrição do que propriamente constitui um cidadão e que questões pertencem ao domínio de sua política revela algo bem distante de nosso senso ordinário de deliberação de massas. Em 1963, Arendt publicou Sobre a revolução, uma comparação entre as revoluções do século 18 na França e Estados Unidos. Nele, ela argumenta por meio de Aristóteles, que, apesar das objeções da esquerda pelo contrário, a revolução francesa foi um desastre. Na França, ela escreve, o compromisso original dos revolucionários ao constitucionalismo liberal foi abandonado em favor de questões como: “Deveriam os trabalhadores morrer de fome”? E essas questões estavam além do reino da política, pois diziam respeito à “compaixão” pelas massas, não à adequada organização da sociedade civil. “A Revolução chega ao seu ponto de virada quando os jacobinos, sob liderança de Robespierre, tomam o poder”, escreve Arendt, “não porque eles eram mais radicais, mas porque eles não partilhavam da preocupação dos Girondinos com a forma de governo, pois eles acreditavam no povo mais do que na República”. A guilhotina  —  ou o gulag  —  sempre vem a seguir.

A Revolução Americana se arranja melhor precisamente em virtude de sua resistência à compaixão, Arendt escreve. Esta foi dominada por uma elite fundiária, focada exclusivamente no estabelecimento de direitos civis e políticos, dedicada às formas de governo, não uma preocupação, fadada ao fracasso, pelos empobrecidos. Foi isto que fez seu legado ser tão duradouro e a separou das falidas revoluções europeias.

Só por esse resumo, duas coisas deveriam estar claras sobre Arendt. Primeiro: Ela é uma reacionária. Que mais pode ser dito de alguém que crê explicitamente que a libertação material dos trabalhadores é, não apenas equivocada, mas ativamente nociva? Segundo: em 1963, Arendt articulou o princípio inspirador dos tecnocratas liberais estadunidenses: a adequada formulação da sociedade consiste de elites deliberando dentro de limites de normas de civilidade estabelecidas, a salvo dos inconfiáveis e violentos impulsos das massas. Se o partido democrata melhorou nessa posição, é apenas em reconhecimento de que, às massas devem, às vezes, ser dadas migalhas de pão e remédio para amansar uma possível revolta total. Não é de se admirar que Arendt atraia aos tecnocratas-peritos de hoje  — ninguém mais desenvolveu uma teoria tão robusta do porquê a solidariedade de classes não pode ser conduzida ao combate da intolerância e reacionarismo, porque tal reacionarismo, a birra psicológica das massas desarmadas, é a consequência inevitável das elites se preocupando com as condições do cidadão comum.

Não é que os liberais não sintam pena dos despossuídos. Não é que eles não gostariam de ajudar. É apenas que esses despossuídos são perigosos, e qualquer esforço pra levar a política além da questão de direitos teóricos e uma oligarquia benevolente abriria caminho para as origens do totalitarismo. Os eleitores de Trump não tem reivindicações econômicas legítimas. São apenas fascistas, e os socialistas, com seus tweets rudes e seu desinteresse pela representatividade em Harvard, são tão ruins quanto. Apenas os boçais podem nos salvar. Que a grande maioria dos novos entusiastas de Arendt não tenham lido sua obra de fato, apenas mostra a ironia amarga em tudo isso. Ao menos Arendt não sentia vergonha de reconhecer a verdade de sua própria ideologia.

Aqui, porém, está a maior piada: estes liberais profissionais, aqueles que se sustentam nas colinhas da internet sobre Arendt enquanto a ordem do seu mundo desaba? Eles lembram ninguém mais, ninguém menos que Adolf Eichmann, um dos discípulos mais leais de Hitler e um personagem central na obra de Arendt. No entendimento comum, Eichmann era culpado de algo chamado de “banalidade do mal”, uma condição frequentemente interpretada como consistindo de uma covardia irreflexiva em face da ditadura, atribuída a Arendt. Eichmann se tornou a representação de um zangão  —  um burocrata empurrador de caneta que dirigiu um genocídio com a incompreensão aborrecida de um gerente intermediário, e a lição, nesse conto, é que boas pessoas devem permanecer profundamente cientes do que acontece à sua volta. Elas devem recusar normalizar o que está acontecendo, devem estar atentas às fake news; do contrário, acordarão um dia com a descoberta de que Soylent Green é feito de gente [referência à cena de No mundo de 2020, em que o personagem principal descobre que a comida sintética é feita de carne humana], chocados por terem sido preguiçosos ou ignorantes demais pra ter percebido antes.

Mas Eichmann não era um desleixado. Por todo sua aversão aos movimentos populares, Arendt também se preocupava legitimamente com a facilidade com que a classe profissional se tornou colaboradora de tiranos. O Eichmann de Arendt não era um zangão sem cérebro. Isso era como ele queria ser visto, como ele se defendeu em Jerusalém. Na realidade ele era um carreirista. Seu pecado não era falhar em ver as condições à sua volta, mas a exploração ativa dessas condições em sua busca por sua própria glória trivial. “Esse aspecto do tratamento reservado a Eichmann por Arendt é geralmente ignorado em favor de sua descrição do burocrata, o seguidor cego das regras que poderia citar de cor o imperativo categórico de Kant sem apreender seu espírito”, escreve Corey Robin. Mas “o burocrata é um instrumento passivo, o carreirista é um arquiteto de seu próprio progresso. O primeiro se perde em papeis, o segundo ergue para si uma escada. O primeiro é como Eichmann se enxergava; o segundo é como Arendt insistia que ele fosse visto”. A banalidade do mal não é quando bons homens não fazem nada. É quando homens capazes fazem o que é melhor pelo seu próprio acesso ao poder, porque poder e a sua busca são as maiores banalidades de todas. Quem tem o poder, não importa  —  se você quer estar à frente, faça seu trabalho. E faça-o bem. Ganhe a estima de seus pares e se promova. Dirija genocídios, em boa parte, por um convite para as melhores festas.

Os liberais profissionais estão resistindo, agora, mas nos anos futuros, eu tenho mais medo deles do que de qualquer pobre intolerante do interior dos Estados Unidos. Por anos, os peritos e picaretas de partido que compõem o baixo-clero do poder nos Estados Unidos se dedicaram à manutenção de um império, rindo e bebendo na cantina dos correspondentes da Casa Branca enquanto a pobreza e o terror da reação fermentava no país. Eles se dedicaram à manutenção da hierarquia e da veneração do poder, não porque são moralmente dedicados ao liberalismo internacional, mas porque dedicação aos limites prescritos do politicamente possível são como você consegue um cargo comissionado no Congresso, um programa de TV, como você ganha respeito e dinheiro e umas migalhas de poder. Eles debateram, sob a presidência de um liberal  —  e com aparente sinceridade  —  se incinerar civis e matar nossos pobres de fome são um lamentável, mas razoável preço a se pagar por crescimento robusto do PIB e “segurança global”. É tão difícil de imaginar como eles tratarão a depravação da administração Trump com a mesma circunspecção insensível? Eles protestam, hoje. Uivam contra a normalização do fascismo e o enfraquecimento das normas; viram seus olhos para a Rússia pois não podem olhar uns para os outros na hora de procurar um culpado. Mas a normalização é inevitável; está imbuída na própria estrutura de nossa política. Carreiras são feitas na órbita do poder e Donald Trump é, agora, o centro de gravidade. A “Resistência” tem um prazo de validade.

Para Arendt, grandes males desovam do pântano dos vícios comuns. Ela estava equivocada sobre a sociedade de massas, preocupada demais com psicologia existencial e cega demais para a simplicidade política da pobreza e do medo. Mas ela entendia o batalhador. Entendia que atrocidades são cometidas por gerentes, não ignorantes ou maliciosos, mas treinados para procurar alcançar seus objetivos mesquinhos acima de tudo. Nosso ambiente profissional tem sido uma horda de Eichmann por toda sua vida. Hoje, eles disparam citações de Arendt, ansiando mostrar que sabem que fascistas são maus. Mas amanhã? Vocês ficariam enojados se soubessem o quão rápido a assustadora labuta do império se torna banal.

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[0] Tradução: Gabriel Carvalho, Ontologia e Emancipação.
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