sábado, 3 de janeiro de 2015

A Lebensphilosophie e o sentido da vida


por Paulo Ayres
 
A “filosofia da vida” (Lebensphilosophie) não se trata de uma corrente bem definida, muito menos de uma escola de pensamento que agrupe intelectuais e/ou artistas em torno de uma problemática e proposta (mesmo porque “escolas” de pensamento assim muitas vezes são rebeldes a rótulos, chegando a arrebentar a classificação que as amarra, não deixando outra escolha para o classificador a não ser ver se aquilo que os une ou unia seus representantes é, de fato, objeto de um programa abrangente). Lebensphilosophie é uma tendência geral de um período com uma capacidade de transcorrer por barreiras e abarcar algumas correntes distintas.

De acordo com Lukács (1959), a “filosofia da vida” é a ideologia predominante na Alemanha em todo período imperialista clássico. A Primeira Guerra Mundial é um divisor de águas para essa tendência. Para se ter uma ideia, antes da guerra, o único neokantiano explicitamente filiado à “filosofia da vida” era Simmel; com a guerra, o caminho para essa ladeira teórica se estende, atraindo para esse declínio o neo-hegelianismo e a escola de fenomenologia husserliana.

A “filosofia da vida” é a tônica burguesa no pós-guerra (Primeira Guerra). Ela ultrapassa o campo restrito da filosofia, influenciando diversos campos das ciências humanas e artes, como a sociologia, a psicologia, a historiografia e a literatura. É uma época em que vai aumentando a influência de Nietzsche nos círculos de escritores, mas não apenas dele: Weiniger (influência de Dilthey), Rathenau (influência de Simmel) e a escola poética de Stefan George (influência de ambos). O predomínio dessa tendência na Alemanha imperialista é fruto da situação sócio-histórica em que atravessava o país. A nação que passa pela via prussiana desenvolve um irracionalismo tão potente quanto a potência dos áureos tempos de sua filosofia clássica — com a diferença de que essa decadência subjetivista prepara o espírito alemão rumo ao mais tenebroso fim: o nazifascismo.

Se a “filosofia da vida” é produto da fase imperialista, não significa que é um fenômeno exclusivamente alemão. Bergson, por exemplo, é o grande representante vitalista na França (o vitalismo e a Lebensphilosophie se interpenetram, embora não sejam sinônimos). O que transpassa os territórios nacionais é a função conservadora que essa tendência desempenha: um elo a mais no desenvolvimento da tradição irracionalista, perante o desenvolvimento social e da luta de classes. A posição da burguesia imperialista e sua intelectualidade parasitária é focalizar uma concepção de mundo que tenha como missão essencial explicar uma realidade de crises intensas. A trajetória da “filosofia da vida” anterior à Primeira Guerra começa com Nietzsche, por ele ser o fundador do irracionalismo da etapa imperialista e não necessariamente por ele próprio ser um representante da “filosofia da vida” (aliás, não fica muito claro se ele ou o Dilthey é que é “o pai da criança”). O fato é que tal concepção cai como uma luva para se entender as crises que ocorriam como uma “crise da cultura”.

Isso está vinculado a uma característica marcante da “filosofia da vida”: a filosofia alemã pré-imperialismo foi, majoritariamente, uma filosofia de cátedra (e com caráter antidialético), enquanto a etapa do capital monopolista vai engendrar “pensadores marginais” na tradição irracionalista (Eduard von Hatmann, Nietzsche e Lagarde). São esses filósofos que não podem se dar ao luxo de dar às costas ao movimento histórico como um processo de contradições, como foi feito no período neokantiano posterior à dissolução do hegelianismo. A crise da sociedade capitalista imperialista é o tema abordado por Nietzsche (obviamente não nesses termos, pois sua metodologia empobrecida não poderia diagnosticar precisamente) e é por isso que só depois de dois acontecimentos histórico-mundiais de repercussões fortíssimas (a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa) é que vai aumentando o número de seus leitores e seguidores. Há uma explicação objetiva para que antes da segunda década do século XX a “filosofia da vida” ter um desenvolvimento lento e depois se acelera consideravelmente a sua influência.

Essa explicação precisa que deixemos agora as pinceladas de sua contextualização histórica e prossigamos com o conteúdo do objeto em si. O que já não era sem tempo. Pois o que é essa “filosofia da vida”? É preciso que se diga logo: não tem nada a ver com a filosofia da natureza (marcante até o início do século XIX) ou uma filosofia da biologia — um termo mais recente que, se não é usado de maneira trivial (como falar em filosofia da educação, filosofia da geografia, filosofia do handebol etc.), pode insinuar algo como uma ontologia do ser orgânico (aí sim algo profícuo). Contudo, ao dizer aquilo que não é, se abre o caminho para dizer também que ela está no polo oposto. Oposto à objetividade de uma filosofia do natural e biológico, Lebensphilosophie é filosofia subjetivista. A mira dessa “filosofia da vida” está direcionada para a “vida” significando “vivência”.

A “vivência” é enaltecida como objeto filosófico central. “Vivência” objetivada como vida e vida subjetivada como “vivência”. A velha pergunta filosófica, mais manjada que paletó de evangélico, sobre “qual é o sentido da vida?” ganha destaque em época em que predomina a angústia como sentimento generalizado perante períodos de crises violentas. Coutinho (2010), explica esse oscilar do espírito predominante de uma época com base no próprio chão onde se erguem essas tendências: quando o predomínio é do sentimento de angústia perante catástrofes ou crises intensas há uma tendência para alguma expressão do irracionalismo moderno falar mais alto, quando o sentimento é de uma aparente segurança no sistema (e consequentemente na vida cotidiana), a tendência é o “racionalismo” formal (o miserável intelectualismo) ditar uma concepção de mundo que se sobressai.

Por isso a Lebensphilosophie é uma dupla resposta ao racionalismo. Tanto ao legítimo (o pensamento racional dialético e revolucionário, assumido pelo novo agente histórico transformador: a perspectiva da classe operária e do conjunto dos trabalhadores) quanto, aquele que é ilegítimo (a miséria da razão do reducionismo científico), Esse último corresponde à onda pseudorracional do positivismo (e suas ramificações) e contra ela o “qual é o sentido da vida?” aparece como oposição (oposição nas aparências, pois apesar de extremos nos seus conteúdos, as duas formas de decadência ideológica são complementares).

Da autoanálise de ótica ascética de Schopenhauer, recebendo contribuições importantes do pai do existencialismo (existencialismo primário e solitário do século XIX), Kierkegaard, mais os aforismos de proto-autoajuda de Nietzsche, a Lebensphilosophie, que vem em seguida, continua a linha em que a “vida” (vivência) é o campo no qual giram as preocupações filosóficas, Em vez de explicar o indivíduo (moderno e alienado) através de sua interação e posicionamento numa sociabilidade, vira-se o indivíduo do avesso para expor o que há dentro dele como condição de entender porque o mundo vivenciado é assim. Se o ponto de partida é o sujeito do individualismo metodológico não há o que fazer a não ser deixar a captação do real de lado como mera “representação" (no pior sentido schopenhaueriano, e, se abusar, no pior sentido berkeleyano).

E como é explícito que situações sócio-históricas concretas se refletem no plano das ideias, é possível perceber na trajetória da Lebensphilosophie uma caída considerável no seu nível filosófico a medida que as duas primeiras décadas do século XX se mostram de perturbações enfáticas no solo europeu. Não que o “subjetivismo do homem ilhado” perderia o fôlego, mas mudaria de roupagem (e nome) e ganharia a sua expressão mais forte no existencialismo heideggeriano. Antes disso o que houve foi o esgotamento de apenas uma maneira desse subjetivismo. A figura emblemática dessa situação é Oswald Spengler, que, segundo Lukács, possui um nível filosófico mais baixo que os outros pensadores que se destacam na “filosofia da vida”. Sua obra mais famosa, de caráter historiográfico-filosófico, permite até o duplo trocadilho de seu título revelador. A decadência [declínio] do Ocidente faz parte da decadência ideológica burguesa, obviamente, mas, além disso, ironicamente o que ela revela é a decadência dessa própria decadência: a Lebensphilosophie descendo a ribanceira.

O caminho da “filosofia da vida” é o atrofiamento. Até sobrar apenas referências apologéticas para ser usadas por algum demagogo oficialmente nazista. O que não significa que seja Heidegger o “algum demagogo” citado. Não é espaço aqui para debater a relação de Heidegger com o nazismo, pois, independente disso, ele e Jaspers marcam uma nova viragem na tradição irracionalista, em especial, no caso alemão, e inauguram o existencialismo do século XX (recuperando elementos de Kierkegaard). E não tem como negar que o autor irracionalista de Ser e tempo, apesar de todos os problemas, é um ponto alto, um “clássico”... um “clássico da decadência ideológica burguesa”, melhor dizendo

Mas o presente texto não tem por objetivo o existencialismo, por isso nem vamos entrar propriamente nesse assunto. Há apenas a sinalização de que um substitui o outro no fio condutor do irracionalismo moderno. E essa passagem de bastão não é uma divergência profunda de posições filosóficas, mas uma dupla característica: um novo estado de ânimo com a “tônica do desespero” (assinalada por Lukács) e a envergadura que Heidegger (principalmente) e Jaspers (e depois os existencialistas franceses) colocam esse subjetivismo num patamar mais enriquecido, apesar de lotado de mistificações (essa outra característica que marca a viragem é explícita). A diferença terminológica, por sua vez, não ocorre sem razão: a “filosofia da vida” com o emblema da “vida” se substitui pelo emblema da “existência”. O adjetivo “existencial”, por exemplo, será saturado de significação angustiante e solitária (sentido que ecoa até hoje).

O próprio Heidegger (apud Inwood, 2002) conclui:

Lebensphilosophie, “filosofia de vida”, é, intrinsecamente uma tautologia, pois a filosofia não lida com coisa alguma, exceto com o próprio Dasein. A expressão “filosofia de vida” é, portanto, quase tão inteligente quanto botânica das plantas”.

A roda do irracionalismo gira e a pergunta “qual é o sentido da vida?” continua como aquilo que é: uma pergunta sem sentido, que só faz sentido quando surge aqueles comentados momentos de angústia. Ou seja, quando se raciocina de forma rarefeita e entramos numa crise psicológica — e não uma “crise existencial” (mas isso já é assunto para quando for abordado o existencialismo).

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Bibliografia:
COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
INWOOD M. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 198.
LUKÁCS, G. El asalto a la razón: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Trad. de Wenceslao Roces. México/Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1959.
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3 comentários:

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    1. Ah, sim Sr. Rasa Erudição. Apenas Stalin e sua cartilha estão certos, pois não? Só há uma Verdade: aquela do materialismo dialético. Parece pregação seus textos. Bom, o povo não vai entender mesmo essa enxurrada de citações vazias. Já os pseudo-intelectuais e deslumbrados pelo brilho da erudição de vento, aqueles que sofrem carência de sentido para suas vidas políticas inexistentes ou vazias, talvez se convertam a essa cartilha aguada de certezas dialéticas absolutas. Você, quem sabe, tornar-se-á o Cardeal da estupidez douta.

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  2. Seria interessante ter acesso ao perfil da Irani Sabini. Quando é o caso, é assim que a gente desmascara místicos, reacionários e progressistas pesquisando e explicitando a prática cotidiana deles, o por e o posto. Foi assim com o blogueiro do PCB. É assim com os seus críticos. Com qualquer posto e por, com qualquer crítica e crítica da crítica. É possível desmascarar laicofalsários e os críticos confessionais, ambos fiéis à contrarrevolução laicoburguesa. Basta examinar sua prática cotidiana e historiografia. Sobre o artigo contra a filosofia da vida, é excelente, extremamente necessário e bastante preciso. Sobre alguém que crítica linearmente a dialética assim, sem conhecer o quão reacionária e violenta é a filosofia da vivência/vida, não espero muito mais que ingênuo-danosidade. De certo, o perfil da que critica tiraria as dúvidas facilmente sobre o que há por trás desse posicionamento no mínimo suspeito, que tenta bloquear à crítica precisa à algo tão reacionário: a filosofia da vivência. Entretanto, só temos/tive acesso aqui, extensamente, ao conteúdo do blogueiro, de vasto conteúdo,
    aqui específico à filosofia da vida, mas relativizado pela crítica de outra coisa, distinta do artigo, ou seja, nítida fuga do tema, puxando um stalinismo que nada tem a ver com o texto e o contexto da crítica, sendo menos que uma retórica a ser considerada, mero relativismo, por sinal, extremamente comum nos iludidos pela filosofia da vivência posta pela academia burguesa. Não pudemos examinar mais profundamente a prática da que critica, que "eleva" alguém com o termo Cardeal, já dando forte indício de onde vem gnosiológica e epistemologicamente, mas não ainda a prova cabal, a prática destrinchada, pós pesquisa do suspeito defensor da hiperreacionária filosofia da vivência. A filosofia da vivência/vida é uma das filosofias mais reacionárias que existem, entre tantas opções do rol burguês, fonte principal do lumpemproletário diplomado. Agora, o ludibriado entender isso, o alto grau de reacionarismo da filosofia da vivência, não é muito fácil. O que mais tem na academia burguesa é doutor falsário respaldando idealismo subjetivo pela filosofia da vivência/vida e pelos vitalismos e naturalismo. Alguns até com reik, ocultismo, "bio"dança, religião e mística, danificando gravemente seu entorno, de professores ingênuos a alunos inexperientes, reféns do traçado teórico-vivencial reacionário posto pela academia burguesa, reproduzido pelo lumpemproletário diplomado.

    Quando o autor explica vida subjetivada como vivência e vivência objetivada como vida, ele precisamente pulveriza a filosofia da vida. É exatamente isso que ela é. Encobrimento do mundo aprioristicamente, violência mascarada, com cara de sentimento, sutileza, afetividade e beleza. O lumpemproletário cotidisnamente tautológico não vai ver que foi ludibriado nem aceitar que é violento por usar essa filosofia da vida. Não é a toa que anticlassistas centristas escondem-se atrás da palavra ou conceito povo, da laicidade ou da crítica linear de líderes políticos, como se não fossem elevados da base de cada tempo e local histórico, de cada totalidade histórica.

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