por Henri Lefebvre
Esses metafísicos, portanto, põem o conhecimento como algo acabado (numa
ideia misteriosa, num Deus) antes de ter começado. Põem o conhecimento
antes daquilo de que é conhecimento; o espírito antes da natureza; o
pensamento absoluto (divino) antes do pensamento humano e da experiência
humana. Invertem a ordem real; põem o carro adiante dos bois e
empreendem a análise do conhecimento de cabeça para baixo.
Considerando o conhecimento como algo acabado e previamente produzido,
condenam-se necessariamente a tomar uma pequena parte do conhecimento,
uma parcela da ciência atingida em seu tempo, e a transportá-la no
absoluto. Foi assim que Leibniz, ao inventar o cálculo diferencial,
atribuiu-o ao Deus metafísico que ele imaginava: “Dum deus calculat, fit mundus”.
Chamamos de “metafísica”, por definição, aquele pensamento que separa o que é ligado. Chamaremos de
“idealistas”, por definição, as doutrinas que elevam ao absoluto uma
parte do saber adquirido, fazendo tal parte uma ideia ou um pensamento
misteriosos que, segundo eles, existem antes da natureza e do homem
real.
Essas definições, em seguida, voltarão a aparecer sob novos aspectos.
Mostraremos que elas são adequadas ao uso habitual dessas palavras e,
mais ainda, que são fecundas, permitindo esclarecer numerosas questões
filosóficas e suprimindo problemas “falsos” e mal colocados.
Disso resulta que todo idealismo é metafísica.
(A recíproca não é verdadeira: muitas metafísicas são idealistas, mas
existem outras doutrinas metafísicas não idealistas, ou seja, certos tipos de materialismo.)
Pode-se perguntar: “Como é que uma tal doutrina que separa do real e do
saber uma parcela com o fim de hipertrofiá-la, chegando mesmo a nada
mais ver além dessa parcela e levá-la ao absoluto, como é possível uma
tal doutrina, que divide e estanca a atividade do conhecimento humano?”.
Em outras palavras, a metafísica exigia do conhecimento seus documentos
de identidade, colocando a questão: “Como é possível o conhecimento?
Como é que o sujeito encontra o objeto? Como são possíveis a ciência
matemática e suas aplicações ao real objetivo, como a física, etc.?”
Eram precisamente essas as questões colocadas pelo metafísico Kant.
Nesse momento, em nome do conhecimento considerado como fato prático,
histórico e social, perguntamos o inverso: “Como foi possível
metafísica?”.
Nos tempos primitivos (e mesmo atualmente, entre aquelas populações que,
por estagnação ou degenerescência, não saíram da situação de
“primitivos”), reinam algumas convicções que, até hoje, deixam marcas
entre nós. Sem conhecerem sua própria estrutura física e as leis do
mundo material que os cerca, os primitivos interpretam, a seu modo,
determinados fenômenos psíquicos ou físicos muito simples: a imagem no
espelho, a sombra, o sonho, etc. Acreditam que os seres humanos — em
particular os mortos — surgidos nos sonhos são almas destacadas de seus corpos. O indivíduo que aparece num sonho é considerado responsável e passível de punições pelos atos, ainda que “irreais”, que sua própria aparição cometeu durante o sonho. Também o sonhador se considera responsável pelos atos que comete em sonho.
A imagem no espelho é considerada como o “duplo”
real, vivendo a seu modo, daquele que se olha. A sombra é também vista
como uma parte da alma humana. Em certas regiões rurais, por se supor
que a alma do morto possa “voltar” nos espelhos, estes são cobertos depois de cada falecimento. Conhece-se também o célebre conto de Chamisso, Peter Schlemihl, o homem que perdera sua sombra, ou seja, que vendera a alma ao diabo.
Ao
que parece, primitivamente, o indivíduo humano só tomava conhecimento
de si através de uma espécie de desdobramento material. Mas deve-se
observar que, posteriormente, o desdobramento se aprofunda; a vida
social se diferencia e se aperfeiçoa; surge a divisão social do trabalho
e, notadamente, a separação entre trabalho material e trabalho
intelectual. Um intelectual especializado, matemático ou filósofo,
ignora mais ou menos tudo aquilo que se refere à vida prática; e, quando
age praticamente, na vida cotidiana, encontra-se num outro plano e, por
assim dizer, numa outra região da consciência, diversa daquela em que
se situa quando pensa. Para ele, o desdobramento no interior de si mesmo
torna-se um fato; seu pensamento poderá muito bem esquecer os
ensinamentos de sua vida real, aliás frequentemente mutilada. Mas o
desdobramento material do primitivo, a teoria do duplo e da sombra
errante fora do corpo, vieram fornecer símbolos, uma linguagem, uma
expressão poética a esse desdobramento real interior que tem lugar numa consciência já mais diferenciada. Assim, Goethe — que não acreditava no diabo pessoal — expressou os sofrimentos do intelectual moderno diante de sua vida real incompleta,
mutilada, desamparada pelo pensamento abstrato, através de uma lenda
antiga, segundo a qual um alquimista vendia sua alma ao diabo a fim de
reconquistar a juventude: Fausto.
Primitivamente, supunha-se que a alma abandonava o corpo com o último respiro — spiritus — devia sobreviver, mas apenas por um certo tempo, durante o período do ritos funerários e pós-funerários que mantinham sua “vida”.
Depois, ela se perdia na sombra amorfa de todas as almas dos
ancestrais, já que era impossível, apesar dos ritos mais minuciosos,
manter todas as almas passadas! Pouco a pouco, foi se atribuindo a essas
almas passadas um resíduo de longínqua existência, inteiramente
abstrata, impessoal e ineficaz, sem relação direta com os vivos; essa
relação era reservada aos mortos recentes, salvo nos casos excepcionais
de heróis, santos, etc. Foi então que se concebeu a existência “espiritual”; deve-se observar, outrossim, que no início, notadamente entre os gregos, essa existência “espiritual”
não aparecia como uma recompensa ou consolação, mas como uma triste
fatalidade, um tédio interminável. Ulteriormente, porém, essa
terminologia — “vida espiritual”, “espírito”, etc. —
forneceu um simbolismo para exprimir a situação das consciências e dos
pensamentos infinitamente distantes da vida real, destacados do real e
da ação.
A questão das relações entre o ser e o pensamento, a natureza e o espírito, o objeto e o sujeito do conhecimento, foi sempre a questão fundamental de toda filosofia. Trata-se de saber qual das duas séries de termos em presença foi primordial: o ser ou o pensamento, a natureza ou o espírito, a matéria ou o conhecimento.
Mas essa questão, enquanto “problema metafísico” do conhecimento, tem suas raízes nas concepções dos primitivos; com efeito, a relação que se busca é algo “dado”; é um fato, o fato do conhecimento. A separação metafísica entre sujeito e objeto — que, ao mesmo tempo, coloca o problema e o torna insolúvel — reproduz e agrava, nas condições da consciência moderna, a separação imaginária, o desdobramento fictício entre a parte lúcida de nosso ser (a alma, o espírito) e a parte “natural” (o corpo, o mundo).
Para eliminar esse problema insolúvel, basta considerar a relação como um fato, tomando-a tal como se apresenta: o sujeito e o objeto, o pensamento e a natureza, são diferentes mas ligados, através de um liame que é uma interação incessante.
O famoso “problema” do conhecimento alcança assim suas verdadeiras proporções. Pode-se examinar os instrumentos do conhecimento com o objetivo de aperfeiçoa-los: e este é o papel, em particular, da lógica. Mas não é admissível pôr em questão o próprio conhecimento.
A questão das relações entre o ser e o pensamento, a natureza e o espírito, o objeto e o sujeito do conhecimento, foi sempre a questão fundamental de toda filosofia. Trata-se de saber qual das duas séries de termos em presença foi primordial: o ser ou o pensamento, a natureza ou o espírito, a matéria ou o conhecimento.
Mas essa questão, enquanto “problema metafísico” do conhecimento, tem suas raízes nas concepções dos primitivos; com efeito, a relação que se busca é algo “dado”; é um fato, o fato do conhecimento. A separação metafísica entre sujeito e objeto — que, ao mesmo tempo, coloca o problema e o torna insolúvel — reproduz e agrava, nas condições da consciência moderna, a separação imaginária, o desdobramento fictício entre a parte lúcida de nosso ser (a alma, o espírito) e a parte “natural” (o corpo, o mundo).
Para eliminar esse problema insolúvel, basta considerar a relação como um fato, tomando-a tal como se apresenta: o sujeito e o objeto, o pensamento e a natureza, são diferentes mas ligados, através de um liame que é uma interação incessante.
O famoso “problema” do conhecimento alcança assim suas verdadeiras proporções. Pode-se examinar os instrumentos do conhecimento com o objetivo de aperfeiçoa-los: e este é o papel, em particular, da lógica. Mas não é admissível pôr em questão o próprio conhecimento.
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LEFEBVRE, H. Lógica formal. Lógica dialética. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, pp. 53-56.
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