domingo, 10 de julho de 2022

O rei está nu: vanguardice e vigarice



por Gustavo Ramos de Souza 

O termo vanguardice, sem dúvida, é uma forma pejorativa de referir-se às tendências de vanguarda. À primeira vista, pode parecer ressentimento daqueles que foram preteridos pelas novidades ou, até mesmo, assumir uma postura reacionária. Com efeito, essa aversão às novidades é ancestral e pode estar ligada à crença ou superstição do homem de que o novo traz consigo o inesperado, a incerteza e o acaso — como diz Nietzsche ao caracterizar o Mal. Por outro lado, o filósofo e crítico literário húngaro Georg Lukács afirma a tese de que a concepção de mundo subjacente à vanguarda contrapõe-se à do realismo crítico, pois, enquanto a vanguarda concebe o homem como um ser simplesmente dado, um ser-aí-no-mundo (Heidegger), em uma existência contingente, o realismo compreende o homem como um “animal social” (Aristóteles), como um ator histórico comprometido com os problemas de seu tempo. Entusiastas da avant-garde, como Theodor Adorno, enxergam na arte de vanguarda a única saída possível do impasse do desencantamento da arte, isto é, da arte “não-aurática”, enquanto Lukács, por exemplo, vê a vanguarda como uma solução escapista, tal como “a arte pela arte”, de indivíduos incapazes de oferecer quaisquer respostas para resolver essa questão; enfim, trata-se apenas de visões de mundo opostas.

Há um conto de Hans Christian Andersen chamado A nova roupa do rei, que narra a história de um rei muito vaidoso, apaixonado por roupas novas, que é enganado por dois vigaristas que se passam por tecelões e roubam todo o seu ouro. O ludíbrio se dá quando eles dizem ao rei vaidoso que a roupa que lhe fariam, além de ter desenhos magníficos, teria a capacidade de fazer com que o tecido só fosse visível aos olhos de pessoas inteligentes e capazes. Os vigaristas, então, levam dias enredando um tecido que não existe, enquanto roubam o rei. E todos os convidados a olhar o tecido dizem que é belíssimo, sem, na verdade, tê-lo visto. De fato, todos do reino se apercebem da farsa, mas ninguém tem coragem de dizer ao rei que não há roupa nenhuma — pois temem ser considerados tolos e incompetentes. O próprio rei sabe que não há tecido, uma vez que também não consegue enxergá-lo; no entanto, temendo passar por estúpido, deixa a farsa seguir adiante. Finalmente, quando terminada a roupa do tecido imaginário, o rei a apresenta aos seus súditos, sem que ninguém conseguisse enxergá-la, pois “ninguém queria dar a perceber que não podia ver coisa alguma, para não passar por tolo ou por incapaz” — até que um menino diz a famosa frase: O rei está nu! Pois bem, que sentido podemos extrair dessa história para compreendermos os movimentos de vanguarda?

O sentido que emana dessa parábola sobre a estupidez humana corresponde à própria visão de mundo da vanguarda, uma vez que os vanguardistas, sejam eles pintores, compositores, poetas, cineastas ou escultores, criam obras esotéricas e pernósticas, compreensíveis apenas para meia dúzia de iniciados de uma seita “artística” elitista e pretensamente intelectual, sendo considerados verdadeiros gênios, quando, na verdade, a sua “arte cabeça” nada mais é que arte “sem pé nem cabeça”. Mas ninguém tem coragem de dizer que aquilo é vazio, obscuro e sem sentido, pois teme receber a pecha de idiota e incapaz. O próprio Marcel Duchamp, paladino do vanguardismo do início do século XX, afirmou, a propósito de sua famosa Roda de bicicleta: “Essa máquina não tem intenção, a não ser de me livrar da aparência da obra de arte. Era uma fantasia. Eu não a chamava de uma ‘obra de arteʼ. Queria acabar com a vontade de criar obras de arte.” (apud BOURDIEU, In: As regras da arte, 1996) Aqui, temos a prova irrefutável de que a sua “arte” não tinha sequer a presunção de se afirmar como arte. Tratava-se tão somente de uma atitude anárquica contra os valores instituídos (aliás, sintoma típico das épocas de decadência), com o intuito de épater le bourgeois — tal como fazia o gênio louco Antonin Artaud. O problema é que, às vezes, o crítico quer saber mais do que o próprio artista. Buñuel, inclusive, ironizou as interpretações descabidas feitas sobre o seu curta-metragem Un chien andalou, de 1929, dizendo que: “Nada simboliza qualquer coisa”. O artista descobre, ao ler as análises sobre a sua obra, que ele intencionou fazer isto e aquilo, quando não intencionava fazer coisa alguma, como se dissesse: eu não sabia que quis dizer isso! Eu sei que seria ingenuidade considerar uma obra-de-arte como um produto autônomo, fruto da criatividade do seu criador — pois é inegável que arte é, acima de tudo, resultado, ou melhor, expressão, de estruturas sociais, como propõe brilhantemente Lucien Goldmann, em A sociologia do romance. Mas entre a questão social, o grau de abertura de uma obra e as divagações sem nexo do crítico existem fissuras impreenchíveis, pois um significante está ligado a um determinado significado, e não a qualquer significado. É no espaço que se abre entre um e outro que o hermeneuta atuará, mas nunca se esquecendo do gesto semântico proposto pela obra.

É óbvio que, neste momento, os defensores da dita “arte conceitual” levantar-se-ão contra mim (caso haja algum me lendo), dizendo que o artista tentou exprimir tal ideia, simbolizando isto e aquilo. Ora, se o artista foi incompetente em sua intenção de expressar algo, ele não tem nada que querer impor a sua interpretação sobre a própria obra. Por incrível que possa parecer, tal grau de cabotinismo, em tentar explicar a própria obra aos seus “estúpidos” receptores, é comum: Mário de Andrade, por exemplo, bem como os compositores da tradição da música programática já fizeram isso. Mas o fato é que o esoterismo da vanguarda, paradoxalmente, abre um horizonte de interpretação que os próprios “vanguardeiros” não querem depois admitir. Se a obra quer dizer uma coisa ou outra, expressando um determinado conceito, isso não tem qualquer relevância. A polissemia das obras de vanguarda tem de suportar também uma interpretação que seja capaz de dizer que, na verdade, essas obras não significam nada. Segundo Flávio Kothe, “para salvar a arte ‘auráticaʼ, Adorno defendeu a mímese como não-identidade a ponto de acabar havendo uma identificação às avessas: essa arte é exatamente o contrário do mundo, é igual a ele só que tudo ao contrário.” (In: Literatura e sistemas intersemióticos, 1981) Assim, a arte seria o refúgio do ideal, distorcendo a realidade degradante. Com efeito, o vanguardismo na pintura nasceu como uma reação ao desenvolvimento do daguerreótipo, que captava a realidade com mais precisão do que qualquer pintura realista. Às artes plásticas só coube então escapar da realidade, abstendo-se de tentar representá-la. Nesse sentido, a arte seria o negativo da realidade, o seu avesso. É esta a concepção de mundo da vanguarda: representar a realidade em sua negatividade, ou seja, abolindo-se as noções de causalidade, de dimensão, de percepção ótica, dos modos de ouvir etc., rejeitando-se a sintaxe, a lógica formal, a temporalidade, enfim, representar a realidade em sua negação. Eis que surge o problema da vigarice intelectual: a vanguarda abraça uma visão de mundo e quer torná-la uma verdade eterna, quando, na verdade, não quer admitir a fraqueza e impotência dos próprios homens que fazem. É a diferença, segundo Lukács, em participar e observar a História. O realismo quer forçar a participação, tornar os homens conscientes de seu papel histórico, enquanto a vanguarda concebe o homem dissociado de tudo, ao “Deus dará”, inconformado com o mundo à sua volta, mas incapaz de mover uma palha para mudar alguma coisa. O primeiro tem vontade de mudar o mundo, transformá-lo, reivindicar os seus direitos; já o segundo fica trancado no quarto, sentindo pena de si mesmo. Ora, o pessimismo é apenas uma visão de mundo, não é a verdade última da humanidade. Em relação a isso, a despeito de seu ultraconservadorismo, Monteiro Lobato, em seu notório artigo sobre a Exposição de Anita Malfatti, em 1917, faz uma afirmação que merece nossa atenção:

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos rirmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.

Obviamente, nem tudo quanto Lobato diz corresponde à verdade dos fatos — tanto que ele considera a arte de vanguarda como “anormal”, fazendo-nos lembrar do nazismo e de seu preconceito contra a “arte degenerada”; todavia, fica claro esse impasse entre visões de mundo totalmente distintas. Para nos atermos somente à literatura do século XX: de um lado, temos Roger Martin Du Gard, Romain Rolland e Thomas Mann; do outro, André Gide, James Joyce, William Faulkner, Samuel Beckett e o nouveau roman. Há, sem dúvida, grandeza dos dois lados. Mas o grande problema da vanguarda é que esse pessimismo transgressor, logo, tornou-se institucionalizado, perdendo toda a sua força de outrora. Quando todos se tornam transgressores, a transgressão torna-se, por conseguinte, convencional, isto é, o gesto subversivo, anárquico e demoníaco cai no lugar-comum, tornando-se unanimidade. Do mesmo modo que diziam, no início do século passado, que não fazia mais sentido ser realista; hoje, não faz mais sentido ser vanguardista. Como bem o disse Ferreira Gullar: “o que é institucional não é revolucionário, ou é uma coisa ou é outra”. A vanguarda reduziu a arte ao absurdo, em sua pura negação, porquanto em um mundo onde o não, a negação é a ordem, o underground torna-se mainstream. A consagração da transgressão é uma hipocrisia ideológica que muitos não querem admitir, pois a vanguarda é considerada o último suspiro da arte sobre a terra. Assim, temos observado o declínio da vanguardice e a ascensão da vigarice, haja vista que o ideal de que “tudo é arte” faz com que seja considerado arte qualquer coisa, desde mictórios e rodas de bicicleta até a completa ausência de tudo. Enfim, a vanguarda promove a mistificação da arte, criando falsos gênios e enredando tecidos que ninguém vê, mas finge que vê, porque pega bem gostar de arte pós-moderna, porque é ser cult, também, para não ser rotulado de estúpido e incapaz. Em virtude disso, o rei continua nu, e a arte deixou de ser arte.
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário