por György Lukács
Admitindo-se como verdade que eu seja
um decadente, sou também o oposto disso.
(Nietzsche, Ecce homo)
I
Não há um único motivo na estética fascista que não proceda, direta ou indiretamente, de Nietzsche; não vale a pena enumerá-los aqui, a começar pela doutrina do mito e pelo antirrealismo. Na análise estética de Nietzsche, o leitor perceberá tão clara e intensamente o parentesco com a estética fascista que nossa exposição deve se concentrar mais na tarefa de mostrar as diferenças entre ambas. Porque há diferenças em quase todos os pontos, apesar da predominância daquele parentesco. Tais diferenças se devem não apenas ao fato de Nietzsche, em toda a sua problemática, ser um pensador que tem importância e interesse, ao passo que seus adeptos fascistas são apologistas ecléticos, sicofantas e demagogos, charlatães a serviço do capitalismo senil, mas também, e principalmente, à radical distinção existente entre os dois períodos da evolução da ideologia burguesa.
O fascismo tem que eliminar da herança burguesa todos os seus elementos progressistas; no caso de Nietzsche, tem que adulterar ou negar todos os momentos nos quais ele formula uma crítica romântica, subjetivamente honesta, da cultura capitalista. Claro que é impossível eliminar por completo da obra de Nietzsche o seu profundo desespero em face da decadência da cultura capitalista; é fato, pois, que a crítica nietzscheana da cultura capitalista fundamenta as tendências liberais da “crítica da cultura” [Kulturkritik] do período imperialista, tão violentamente combatida pelo fascismo. Por isso, Rosenberg, o teórico oficial do fascismo,[1] apesar de toda a sua estima por Nietzsche, deve considerá-lo “criticamente”. Rosenberg vê em Nietzsche uma vítima do período liberal, materialista.
A loucura de Nietzsche é como uma parábola. Uma gigantesca e reprimida vontade criadora certamente conseguiu fazer-se sentir como uma inundação, mas esta mesma vontade, há muito estilhaçada, não tomou um forma criadora.
E Rosenberg considera a anterior influência de Nietzsche como característica do seu “período de loucura”:
Em seu nome, sob os seus ensinamentos, levou-se à frente a infecção da raça por semitas e negros de toda espécie, enquanto ele aspirava ao puro cultivo da raça. Nietzsche aninhou-se nos sonhos de desavergonhados amantes políticos, o que é pior do que cair nas mãos de um bando de delinquentes. O povo alemão só ouviu falar dele em termos de ruptura de todos os vínculos, de subjetivismo e de “personalidade”, nunca em termos de disciplina da raça ou de elevação interior.
Numa palavra: Rosenberg sabe que, no período anterior ao fascismo, Nietzsche foi um filósofo do odiado liberalismo.
A liquidação desta herança liberal em Nietzsche é operada por Rosenberg mediante os insultos mais triviais. Seu companheiro fascista, Alfred Bäumler, professor da Universidade de Berlim, visa aos mesmos objetivos, mas com procedimentos menos toscos. Bäumler polemiza duramente contra o perfil de Nietzsche oferecido pelo seu colega Ernst Bertram, também fascista e discípulo de George.[2] Para Bertram, que continua a reelaboração fascista das tradições nietzscheanas do imperialismo de pré-guerra, Nietzsche é somente um “revolucionário trágico” (nas palavras de Bäumler).
Nunca — afirma Bertram —, de modo tão tragicamente exemplar, a tendência dissolutora dos mistérios própria do meramente individual e de toda a sua crueldade intelectual combateu toda forma de obscuridade sagrada, com a reverência premonitória do iniciado vinculado intimamente à religião, com a mesma veemência que no voltairiano sublimado em Zaratustra.
Esta imagem de Nietzsche, que representa uma continuação fascistizada e exacerbada em sentido místico da interpretação de Nietzsche por Simmel, é objeto da mais contundente recusa por parte de Bäumler. Também este critica as tendências “positivistas” de Nietzsche e, às suas teorias místicas, opõe as “mais profundas” e “autênticas” de Görres, Bachofen[3] etc. Mas, para ele, Nietzsche não é uma figura trágica; ao contrário, é o pensador com o qual se abre um período completamente novo para a humanidade. De acordo com Bäumler, Nietzsche combate em duas frentes: contra o iluminismo e o romantismo, sendo assim o precursor teórico da demagógica luta do fascismo em duas frentes, ou seja, contra o marxismo e a reação. (A tentativa de Moeller van der Bruck[4] de apresentar o conservadorismo como oposição tanto ao liberalismo quanto à reação é o prelúdio da concepção que Bäumler tem de Nietzsche.)
A tragédia da vida de Nietzsche, de acordo com Bäumler, é que o Segundo Reich alemão, o de Bismarck, carecia dos pressupostos necessários à compreensão da sua filosofia, determinando a inutilidade da luta de Nietzsche para convertê-la em fundamento do Segundo Reich. E, por esta razão, o Reich bismarckiano sucumbiu. “O liberalismo nacionalista, que Hegel fundou ideologicamente, era a última forma de síntese do iluminismo e do romantismo, que Nietzsche estava chamando a dissolver”. E Nietzsche vislumbrou o que Bismarck não conseguiu ver:
A história do Reich converteu-se na história da derrota intelectual de Bismarck. [...] O burguês comerciante subordinou o estadista, o liberalismo e o romantismo se alternaram na política e, sobretudo, se fizeram bons negócios [...]. Na guerra mundial, todo o luxuoso edifício romântico-liberal ruiu e, neste mesmo momento, os grandes oponentes do passado retornaram.
Esta contraposição Bismarck-Nietzsche é, segundo a filosofia fascista da história, o motivo mais profundo do naufrágio do Segundo Reich; o Terceiro Reich, finalmente, realiza a reconciliação, a síntese daquelas duas místicas figuras. O escritor fascista Franz Schauwecker afirma sobre o presente: “O encontro obstaculizado, antes impossível, entre Bismarck e Nietzsche será um fato consumado, frente ao qual fracassará qualquer ataque das forças inimigas”. Trata-se do mito fascista da “síntese da interioridade alemã com o poder alemão”.
Tudo o que há de certo neste mito é que Nietzsche, depois da rápida superação do seu entusiasmo juvenil pela fundação do Reich, foi sempre um explícito inimigo de Bismarck e do seu regime e desprezava a ambos. Sobre Bismarck, Nietzsche escreveu: “De filosofia, Bismarck sabe tanto quanto um camponês ou um estudante de qualquer associação de duelistas e tem por ela o mesmo apreço que eles”. Sobre o Reich bismarckiano, afirmou: “ser, em todo o caso, o Império da mais profunda mediocridade e da burocracia mais chinesa”. Nietzsche despreza a solução política bismarckiana porque vê nela um compromisso entre governo e povo. Sua crítica a Bismarck e ao regime bismarckiano opera na mesma linha da crítica a Schopenhauer e Wagner, mesmo após a ultrapassagem da admiração inicial que tinha por eles. Nessas três figuras, Nietzsche combate o que designa por “decadência”. Num aforismo de Morgenröte [Aurora], junta os três: o filósofo alemão, mais lido, Schopenhauer, o músico alemão mais ouvido, Wagner, e o estadista mais admirado, Bismarck. Sabemos — mas teremos que repeti-lo aqui várias vezes — que a luta contra os princípios artísticos de Richard Wagner constitui o núcleo do combate da estética de Nietzsche contra a decadência e em prol de uma “arte sadia”, do mesmo modo como a superação de Schopenhauer está no centro da sua filosofia posterior. A colocação de Bismarck ao lado dessas duas figuras, portanto, mostra muito precisamente a avaliação que Nietzsche faz dele: um representante da decadência no âmbito do Estado e da política.
Quanto a esta decadência política, Nietzsche esclarece o seu significado com brutal clareza: “A democracia moderna é a forma histórica da decadência e da ruína do Estado”. Ele expressou esta ideia em diversas passagens de sua obra e com as mais distintas variações. Limitar-me-ei a recordar um texto característico do seu período tardio:
Atenhamo-nos à realidade: o povo venceu, os “escravos”, o “populacho”, o “rebanho" [...]; foram eliminados os “senhores” [...]. Essa vitória pode ser considerada, ao mesmo tempo, como uma septicemia (ela levou a uma mistura de raças) [...]. A “libertação” da humanidade (em face dos "senhores”) se encontra no bom caminho; tudo se judaíza, ou cristianiza, ou se torna plebeu, a olhos vistos (pouco importam as palavras).
Nietzsche apresenta aqui, tal como antes o fizera Bruno Bauer, a vitória da democracia moderna como a vitória do princípio judaico-cristão sobre a Roma aristocrática. O Renascimento foi um contra-ataque, mas a Reforma propiciou novamente a vitória do princípio judaico-cristão. E o último golpe foi assestado pela Revolução Francesa: “A última distinção política que ocorreu na Europa, a dos séculos XVII-XVIII franceses, submergiu sob os instintos do ressentimento popular”. A vitória dessa democracia do populacho conduz à
[...] abolição do conceito de Estado, à supressão da oposição entre o “privado” e o “público”. Passo a passo, as sociedades privadas absorvem os assuntos do Estado [...]. O florescimento da pessoa privada (cuido bem para não dizer: do indivíduo) é a consequência do conceito democrático de Estado [...].
É supérfluo qualquer comentário para compreender o que Nietzsche pensava daquele Bismarck que firmava um compromisso precisamente com o populacho: para ele, Bismarck é um reacionário insuficientemente enérgico.
II
Não é nosso propósito, aqui, a tarefa de explicitar as evidentes contradições desse mito histórico produzido por Nietzsche. Tivemos de recordá-lo brevemente somente para acessar adequadamente as suas concepções estéticas, uma vez que a luta de Nietzsche contra a decadência contemporânea da arte se concentra num ataque às tendências democrático-plebeias da arte da época, em especial, a de Richard Wagner. A característica básica dessa decadência plebeia da arte, para Nietzsche, é o predomínio do elemento teatral.
Uma época de democracia, tanto em Atenas quanto hoje, eleva o ator. Richard Wagner ultrapassou tudo neste domínio e suscitou um conceito de ator tão alto que provoca calafrios. Música, poesia, religião, cultura, livro, família, pátria, comércio e arte, a arte mais do que tudo, significam atitude cênica.
E, em outro local: “Wagner foi realmente um músico? De qualquer modo, foi algo mais, um histrião incomparável, o ator máximo, o mais assombroso gênio teatral dos alemães, nosso cênico par excellence”.
A partir deste centro de sua crítica da decadência, Nietzsche revela claramente os motivos político-sociais da sua radical aversão em face do ator:
A doutrina da igualdade! Sim, mas há um veneno ainda pior: pois essa doutrina parece predicada pela própria justiça, quando, na realidade, é o fim da justiça. [...] As vicissitudes dessa doutrina da igualdade foram tão espantosas e sangrentas que esta “ideia moderna” par excellence conquistou uma espécie de auréola luminosa, de tal modo que a Revolução como espetáculo tentou até mesmo os espíritos mais nobres. Este, porém, em última instância, não é um motivo para respeitá-la mais. Sei apenas de um — Goethe — que a recebeu como deveria: com asco [...].
Consequentemente, Nietzsche degrada Wagner, do ponto de vista da história da arte, colocando-o entre os românticos franceses; para ele, Wagner é “o Victor Hugo da música como linguagem”. De acordo com Nietzsche, o romantismo francês é “uma reação do gosto plebeu”; o próprio Victor Hugo é
[...] superficial e demagógico, sempre com palavras adiposas e grandes gesticulações viscerais, um bajulador do povo que, com a voz de um evangelista, dirige-se a tudo o que é baixo, oprimido, frustrado, desvalido e não sabe absolutamente nada do que significa a seleção e a grandeza do espírito, nada do que seja consciência intelectual; é, em resumo, um ator inconsciente, como quase todos os artistas do movimento democrático. Sua arte influiu sobre a massa como um bebida alcoólica: ao mesmo tempo embriagando e embrutecendo.
Nietzsche encontra essas mesmas características em Michelet, George Stand etc. e. em seguida, resume assim, a hierarquia dos tipos artísticos:
Há 1) uma arte monológica (ou “em diálogo com deus”); 2) uma arte social, que pressupõe a sociedade, um tipo mais refinado de homem; 3) uma arte demagógica, por exemplo: Wagner (para o ”povo” alemão), Victor Hugo.
Esta arte dos “plebeus suados” é uma arte para a massa. Com isto, Nietzsche expressa o seu mais profundo desprezo por toda essa tendência, já que pulchrum est paucorum hominum [o belo é para poucos]. Na arte das massas, o belo é substituído por aquilo que as comove, ou seja, pelo grandioso, pelo sublime, pelo gigantesco, pelo sugestivo, pelo embriagador etc.
Conhecemos as massas, conhecemos o teatro. O que de melhor o frequenta: jovenzinhos alemães, Siegfrieds com chifres e outros wagnerianos, precisam do sublime, do profundo, do aniquilidor [...]. Mas há outros que frequentam o teatro: os cretinos da cultura, os pequenos extenuados, os eternamente femininos, os que têm prazer na digestão — numa palavra, o povo —, que também precisam do sublime, do profundo, do aniquilador. Tudo isso tem uma lógica monótona: “o que nos agita é forte; o que nos eleva é divino; o que nos comove é profundo” [...]. Para elevar os homens há que ser sublime. Portanto, caminhemo-nos acima das nuvens, apostrofemos ao infinito, enfeitemo-nos com grandes símbolos. Sursum! Bum! Bum! — este é o melhor conselho. Que o “peito erguido” seja o nosso argumento e o "belo sofrimento”, o nosso advogado. A virtude continua com a razão sobre o contraponto.
Essa mesma brutal vulgaridade manifesta-se, de acordo com Nietzsche, no naturalismo literário:
Pretende-se obrigar o leitor a ficar atento, “violentá-lo"; daí os numerosos pequenos detalhes sufocantes utilizados pelo naturalisme. Também isto é próprio de uma era democrática: há que excitar os grosseiros intelectos esgotados pelo excesso de trabalho.
Nietzsche relaciona estreitamente essa decadência democrática e plebeia ao desenvolvimento econômico-social do século XIX. Isto não quer dizer que ele tenha compreendido minimamente as específicas determinações econômicas do capitalismo; nem superficialmente se interessou por elas. Mas ele percebe as expressões mais flagrantes da economia capitalista: a introdução da máquina, a crescente divisão do trabalho, a expansão das grandes cidades, a liquidação da pequena produção etc.; e, sem descobrir quaisquer das mediações econômicas e de classe, vincula direta e imediatamente todos esses fenômenos aos sintomas da decadência cultural que constata. A sua atitude diante das consequências culturais do desenvolvimento capitalista é, inicialmente, a do anticapitalismo romântico, a da crítica romântica aos efeitos da “idade da máquina”, destruidores da cultura. Sua crítica de modo algum supera o nível médio daquela corrente; na verdade, no que toca à compreensão dos vínculos reais dos fenômenos, ele fica muito abaixo da crítica dos anticapitalistas românticos ingleses e franceses. Vejamos, por exemplo, suas observações sobre os efeitos envilecedores da máquina:
A máquina é impessoal, anula o orgulho do trabalho feito, retira-lhe a qualidade e os defeitos próprios de todo trabalho não maquinal. Antigamente, comprar algo de um artesão era distinguir uma pessoa, que desfrutava de alguma auréola; assim, o mobiliário e a vestimenta se convertiam em símbolo de estima recíproca e de comunidade pessoal; em troca, hoje parece que vivemos em meio a um mundo anônimo e impessoal de escravos. Não deveria ser necessário pagar tão cara a suavização do trabalho.
Nietzsche dirige seu ataque principal às consequências anticulturas da divisão capitalista do trabalho. Também aqui, ignora tudo o que se refere à própria produção e à luta de classes. Importam-lhe apenas dois momentos do problema. Primeiro, o fato de que a divisão capitalista do trabalho retira de toda ocupação a significação imediata do que desfrutava nas sociedades precedentes: em suma, o fato de que toda ocupação, tanto a do capitalista quanto a do trabalhador, tenha tornado sem sentido na sociedade atual. Segundo, e mais importante, o problema do ócio, do tempo livre. Nietzsche considera, com razão, que o ócio é o pressuposto subjetivo de uma atuação cultural ativa ou passiva e, como conhecedor da história antiga, sabe muito bem o que o ócio significou para o cidadão da cultura antiga. Por isto, analisa, sob este prisma, com raiva e ironia, o ócio na sociedade capitalista, insuficiente quantitativa e qualitativamente. Mas com uma peculiaridade: só coloca a questão para a classe dominante. Na concepção de Nietzsche, os trabalhadores nada têm a ver com a cultura; o seu ócio não interessa ao filósofo. Não é casual, pois, que a escravatura disponha de um papel tão importante na imagem da Antiguidade pintada pela jovem Nietzsche: sem escravidão, não há ócio para a classe dominante; e, sem ócio, não há cultura. Escreve Nietzsche: “Se for verdade que os gregos desapareceram por causa da escravidão, há outra coisa muito mais certa: nós fracassaremos por falta de escravos”.
De ambos estes pontos de vista, Nietzsche — sem se dar conta do substrato econômico da questão — estabelece uma polêmica contra a despersonalização do homem na sociedade capitalista. O “defeito capital dos homens ativos” recebe dele a seguinte crítica:
Geralmente carecem os ativos de atividade superior, ou seja, individual. São homens ativos como funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como seres genéricos, nunca na condição de determinados homens individuais e únicos deste ponto de vista, são inúteis. A desgraça dos ativos consiste em que sua atividade, quase sempre, é um pouco irracional. Assim, por exemplo, não se deve perguntar ao banqueiro que reúne dinheiro a finalidade da sua ininterrupta atividade: é uma finalidade irracional. Os homens ativos se movimentam como se movimentam as pedras, de acordo com a estupidez da mecânica. Como em todos os tempos, também agora os homens se dividem em escravos e livres. Mas aquele que não dispõe de dois terços do dia para si mesmo é um escravo, qualquer que seja a sua qualificação: estadista, comerciante, funcionário, erudito.
É muito interessante e característica a variação romântico-reacionária mediante a qual Nietzsche inverte a crítica do capitalismo feita pelos iluministas. Ferguson[5] já criticara duramente a sociedade capitalista porque a sua divisão do trabalho transforma os homens em ilotas, impedindo a existência de homens livres. Nietzsche, por um lado, reduz essa crítica, ao referi-la apenas à classe dominante, ao passo que Ferguson via sobretudo à degradação dos trabalhadores pelo capitalismo; por outro lado, Nietzsche a limita quase exclusivamente à cultura, entendida num estreito sentido burguês. Consequentemente, a sua crítica leva-o a exigir do capitalismo uma “vida com sentido” apenas para os produtores de cultura e para um público cultivado que, econômica e socialmente, é parasitário. o uso da ideologia da pólis grega, com seu desprezo pelo trabalho (embasado na situação econômica da época) — ideologia tão tragicamente problemática quando da sua renovação na época da grande Revolução Francesa —, torna-se em Nietzsche, às vésperas do imperialismo, uma apologia reacionária do parasitismo.
Este traço parasitário se revela claramente quando Nietzsche analisa as decisivas consequências que, segundo ele, a divisão capitalista do trabalho traz a arte. Também aqui ele parte da quantidade e da qualidade do ócio.
Temos a consciência de um época laboriosa: isto nos impede de dedicar à arte melhores horas e manhãs, embora a arte seja o que há de mais grandioso e digno. A arte nos parece coisa do ócio, do descanso para se recompor: dedicamos a ela as sobras do nosso tempo, das nossas forças. Este é o fato geral que modifica a situação da arte diante da vida: impondo a seus receptores grandes exigências de tempo e energia, ela põe contra si mesma a consciência dos ativos e dos dotados, restando-lhe os inconscientes e néscios. Mas estes, pela sua natureza mesma, não se inclinam à grande arte, interpretando as suas pretensões como soberba. Isto é o fim da grande arte, pois lhe faltarão oxigênio e estímulo; ou, então, a grande arte tentará adaptar-se a essa atmosfera estranha (ou, pelo menos, subsistir nela), atmosfera que é o elemento natural tão somente para a arte menor, a do entretenimento, da diversão agradável. Mas, para adaptar-se assim, a arte tem que se vulgarizar ou se travestir.
Em outra passagem, Nietzsche caracteriza os homens superiores da sociedade capitalista, contrapondo-os aos dos períodos precedentes:
Temos assim o sentimento de uma gigantesca extensão, mas também de um gigantesco vazio; e a intenção de todos os homens superiores consiste, neste século, em vencer este terrível sentimento de vazio. O contrário deste sentimento é a embriaguez. Anotamos, quase como numa contabilidade, em nossos pequenos gozos, como se, com a soma dos muitos pequenos gozos, pudéssemos compensar aquele vazio, pudéssemos preenchê-lo. E como nos enganamos com esta astúcia aritmética!
Esta caracterização nietzschiana da recepção artística na sociedade capitalista nos reconduz à sua anterior e peculiar polêmica com a cultura democrático-plebeia da sua época. Nas últimas considerações que transcrevemos, Nietzsche se limita a indicar as bases sociais que, a seu juízo, promovem o domínio do plebeísmo da arte. Mas ele logo reuniu todos os aspectos desse problema num esboço de filosofia da cultura que vê na barbárie o signo geral da era moderna: “A agitação é tão grande que a cultura superior já não pode florescer [...]; por falta de repouso, a nossa civilização desemboca numa nova barbárie”. De acordo com Nietzsche, porém, esta é uma “barbárie domesticada”: seus traços essenciais são o embrutecimento, a feiura, a intensificação das características servis, o já descrito plebeísmo da arte etc. (Como veremos, essa barbárie deve ser distinguida da barbárie da “besta loira”, dos “Senhores da terra” — que, para Nietzsche, é positiva e, pois, louvada.) Ao longo de toda a sua vida, Nietzsche travou consequentemente essa polêmica. Já no seu trabalho juvenil contra David Friedrich Strauss,[6] Nietzsche zombou do esteta Vischer porque este, em seu discurso sobre Hölderlin, afirmara que o poeta carecia de humor. Por falta de humor, segundo Vischer, Hölderlin “não pôde suportar a ideia de que não se é bárbaro quando se é apenas um filisteu”. Nietzsche despreza como “clichê desdenhoso" essa calúnia contra a memória do “magnífico Hölderlin”. Ele escreve:
Admite-se que alguém seja um filisteu, mas... um bárbaro? De modo algum! Infelizmente o pobre Hölderlin não soube ser tão sutil [...]. É claro que o esteta nos quis dizer o seguinte: é possível ser um filisteu e um homem de cultura; nisto consiste o humor de que Hölderlin carecia e esta carência o condenou.
Não são necessárias mais explicações: verifica-se, já à primeira vista, que Nietzsche, nesta luta contra a cultura, a arte e a teoria artística de seu tempo, é um continuador da crítica romântica anticapitalista. Assim como esta, Nietzsche sempre contrapõe à ausência de cultura do presente a alta cultura de períodos pré-capitalistas ou do capitalismo incipiente. Como todos os críticos românticos da degradação do homem pelo capitalismo, Nietzsche combate a moderna civilização fetichizada, contrapondo a ela a cultura de estágios econômica e socialmente mais primitivos. Ele refere-se explicitamente a um “crepúsculo da arte” e observa, em seus melancólicos comentários a este fato: “O que há de melhor em nós é provavelmente herança de sensações passadas, a que raramente podemos aceder diretamente hoje; o Sol já se pôs, mas o céu da nossa vida ainda arde e é iluminado por ele, embora não o vejamos mais”.
Este elementar traço romântico da crítica cultural é de importância decisiva para a estética de Nietzsche. Toda uma série de motivos das suas avaliações estéticas deriva diretamente dele. E Nietzsche não só exagera a arte dos tempos pré ou protocapitalistas, como todos os críticos românticos da civilização capitalista, mas exagera também a arte daqueles escritores que, em consequência das circunstâncias especiais que envolvem a sua produção, derivadas do atraso capitalista em que atuaram, conservam as tradições culturais pré-capitalistas: estes são os escritores favoritos de Nietzsche. Em um resumo crítico da prosa alemã, ele destaca, junto às conversações de Goethe com Eckermann e os aforismos de Lichtenberg,[7] dois livros de seus contemporâneos: Nachsommer [O verão de São Martinho], de Adalbert Stiffer, e Leute von Seldwyla [O povo de Seldwyla], de Gottfried Keller[8] — e o faz ignorando a fundamental contraditoriedade entre as duas obras. Mais adiante, trataremos das contradições que se produzem entre estes motivos da estética de Nietzsche e as outras razões dos seus juízos artísticos. Por agora, limitamo-nos a sublinhar, por um lado, o fato curioso (embora nada casual) de que, nesta alta valoração do romantismo tardio alemão semirrealista — a cujo nível ele rebaixa o grande realismo de Keller —, Nietzsche coincide com seu desprezado liberal Vischer; e, por outro, que ele jamais foi consequente com esta valoração, mas ao contrário, chega a juízos diametralmente opostos. Assim, critica o músico Brahms — que ocupa na história da música uma posição pós-clássica e romântica tardia, análoga à de Stiffer na literatura, embora mais importante — escrevendo que ele “tem a melancolia da incapacidade: não cria por abundância, mas está sedento de abundância”.
A peculiaridade histórica de Nietzsche, porém, consiste em que não critica a civilização capitalista somente deste ponto de vista romântico. Ele odeia, sem dúvida, a civilização capitalista do seu tempo; e a odeia, como vimos, precisamente porque o seu fundamento é o desenvolvimento do capitalismo (a máquina, a divisão do trabalho etc.). Mas ele também odeia a civilização de seu tempo por um motivo inteiramente contrário: porque o capitalismo ainda não lhe parece suficientemente desenvolvido. Nietzsche, que produziu a sua obra às vésperas do período imperialista, é ao mesmo tempo um elegíaco romântico de épocas culturais europeias passadas e um arauto e “profeta” do desenvolvimento imperialista. É certo que sua “profecia” do imperialismo está longe de ser uma clara previsão das tendências sociais que o geraram e nele se desenvolveram; ao contrário, trata-se também de uma utopia romântica. Nietzsche não oferece nenhuma previsão real do imperialismo real; para fazê-lo, teria que considerar sobretudo o agravamento das contradições de classe. O que ele faz é elaborar, com os traços da ausência de cultura do capitalismo contemporâneo (que ataca por seu atraso), uma imagem utópica de uma situação social que os supera. A ausência de cultura dos capitalistas e a “avidez” dos proletários são os dois polos que odeia no capitalismo do seu tempo.
Se nas questões culturais gerais, Nietzsche recorre sempre à cultura das épocas anteriores e as contrapõe como ideal em face do presente, nestas duas últimas questões — para ele decisivas — não opera do mesmo modo. Ou seja: Nietzsche não manifesta entusiasmo nem com o artesanato corporativo nem com a relação patriarcal entre o capitalista e o trabalhador. Seu ideal é outro: consiste no domínio dos capitalistas desenvolvidos, cultivados e convertidos em soldados romanos, sobre um disciplinado exército de trabalhadores transmudados em soldados ascetas. (Nesta utopia capitalista, Nietzsche é um precursor da concepção de Spengler do domínio de césares capitalistas.)
Soldados e caudilhos sempre têm, entre eles, um comportamento superior ao de trabalhadores e empresários. Pelo menos imediatamente, toda cultura militar está muito acima de toda a chamada cultura industrial; esta. em sua forma atual, é a mais vulgar das formas de existência até hoje conhecida. Nela opera simplesmente a lei da necessidade: quem quiser viver deve vender-se, mas quem o faz é desprezado, e o trabalhador é comprado. [...] Aos industriais e aos grandes empresários do comércio têm faltado largamente, até agora, todas as formas e os signos da raça superior. [...] Se tivessem no olhar e no gestual a distinção da nobreza de sangue, talvez o socialismo das massas não existisse. Pois estas massas estão dispostas a submeter-se a qualquer tipo de escravidão, desde que o superior [...] esteja legitimado para ordenar pelo nascimento [...]. Mas a falta de superioridade e a lamentável vulgaridade do industrial de mãos gorduchas e avermelhadas faz o povo pensar que foram somente o acaso e a sorte que situaram uns acima dos outros [...].
Nesta utopia romântico-reacionária do desejado desenvolvimento capitalista (característica de Nietzsche e importante para a ulterior evolução da ideologia fascista), desempenha certamente um papel o atraso capitalista da Alemanha, objeto de crítica (“a lamentável vulgaridade do industrial de mãos gorduchas e avermelhadas”); mas é significativo que nunca, em nenhum sentido, se tome como modelo o país mais desenvolvido do ponto de vista capitalista, a Inglaterra, a qual, para Nietzsche, representa a quintessência da agitada estupidez da civilização.
Na verdade, o modelo de Nietzsche é a estilização romântica do militarismo, ou seja, uma Prússia que supere seus traços grosseiros, limitados, provincianos e que, conservando seu essencial caráter militar, seja capaz de se europeizar, de se tornar culta e ingressar na política internacional. (Também aqui, a concepção nietzschiana é o paradigma de todas as posteriores teorias sociológicas fascistas do Estado.) E este é o ponto em que Nietzsche se diferencia da maioria dos críticos românticos do capitalismo. Ele não se opõe ao desenvolvimento capitalista enquanto tal e, portanto, não tem nostalgia das velhas relações patriarcais entre capitalista e trabalhador; neste desenvolvimento, o que Nietzsche repudia é o caráter plebeu e democrático, é a destruição da exata hierarquia entre o capitalista e o trabalhador. No que diz respeito ao trabalhador, seu ideal é que “se forme aqui uma espécie modesta e ascética de homem, uma espécie de chinês — o que teria sido razoável e, mais do que isso, necessário”. O que conferiu à evolução do capitalismo uma direção contrária à que seria desejável foram as concessões à democracia, o flerte com a revolução, as tendências culturais judaico-cristãs etc.
Impôs-se ao operário a formação militar, foi-lhe dado o direito de associação e o direito político do voto. Então, por que se assombrar agora se operário sente a sua existência como um constrangimento (dito moralmente: como uma injustiça)? [...] Quem deseja um fim tem que aceitar também os meios; por isso, quem quer ter escravos e os educa como senhores apenas manifesta a sua própria loucura.
Enquanto não se conseguir uma reorientação no sentido da utopia de Nietzsche — cujo símbolo é o super-homem [Übermensch] —, “há que ir avançando, ou seja, atolando-se passo a passo na décadence (esta é a minha definição do progresso moderno)”. Bäumler, o intérprete fascista de Nietzsche, levou às últimas consequências esses motivos ideológicos ao afirmar, muito de acordo com o sentimento do filósofo, que o oposto do super-homem, daquele “último homem” de Zaratustra, é “o funcionário da sociedade democrático-socialista”.
III
Foi preciso detalhar estas duas séries de motivos contraditórios do pensamento de Nietzsche porque a sua existência paralela, nessa contraposição excludente, é a chave para compreender a contraditoriedade de todas as suas concepções. A crítica romântica da civilização capitalista constitui o centro da filosofia de Nietzsche e, portanto, também da sua estética. Porém, como vimos, esta crítica de duas posições contrapostas e que, de fato, excluem-se mutuamente. Nietzsche repudia a civilização capitalista porque ela é demasiado capitalista e porque é pouco capitalista. Ele critica a civilização capitalista simultaneamente a partir do ponto de vista de um pré-capitalista romanticamente idealizado e a partir do ponto de vista de uma utopia imperialista. isto é, desde o ponto de vista do passado e desde o ponto de vista do futuro daquela mesma civilização. A contradição básica dos críticos românticos do capitalismo — ou seja, o fato de, apesar de todos os seus esforços para serem “livres” e “independentes” de todas as categorias capitalistas, só criticarem o capitalismo a partir de um ponto de vista capitalista — aparece exacerbada em Nietzsche, reposta em um nível superior de tensão. As correntes anticapitalistas românticas costumam cair no ecletismo, como resultado da oposição que estabelecem entre os “lados bons” e os “lados maus” do capitalismo. É verdade que Nietzsche recolhe este procedimento e desemboca assim, inevitavelmente, no ecletismo; no entanto, na tentativa de enlaçar essa posição à tendência contrária, consistente na potencialização utópico-romântica do capitalismo plenamente desenvolvido, ele acaba por produzir, com esta unificação de tendências contraditórias, uma síntese meramente mítica. E a dominância desta última tendência acarreta necessariamente a impossibilidade, para Nietzsche, de fixar-se na complacente exposição dos “lados bons” do capitalismo. O seu mito tem que se orientar precisamente para fazer dos “lados maus” do capitalismo o centro da sua construção utópica.
Portanto, ao contrário do que acreditaram muitos professores universitários do período imperialista — que viram nele um pensador “arguto", mas que não possuía nenhuma inclinação à sistematicidade —, o fato de Nietzsche manifestar-se de modo formalmente contraditório sobre quase todas as questões da cultura em geral e da estética em particular não é casual nem, tampouco, uma inconsequência do seu pensamento, no sentido trivial dessa expressão. As contradições do pensamento de Nietzsche se devem, antes, ao fato de que o filósofo, que buscou uma síntese mítica das suas tendências ideológicas, claramente contrapostas e mutuamente excludentes, explorou — como pensador de qualidade e categoria — o motivo que lhe interessava em cada caso até o limite, levando-o, com firme valentia intelectual, até a inconsequência e, confiado no poder sintético do seu mito, até o paradoxo. É evidente que, desse modo, o choque entre as tendências contraditórias já assinaladas se exacerba; e também é evidente que nenhum mito conseguiria unificar as contradições a não ser de um modo eclético, ainda que literalmente magnífico. De qualquer forma, o ecletismo patético e paradoxal de Nietzsche é muito superior ao ecletismo vulgar dos professores universitários do período imperialista, que, por razões apologéticas, suavizaram todas as contradições a ponto de apagá-las, procurando elaborar um sistema “unitário”. A contraditoriedade do pensamento de Nietzsche expressa, ainda que de modo distorcido, as contradições reais da cultura da Europa capitalista às vésperas do período imperialista e, pois, não é casual que ele tenha chegado, inclusive internacionalmente, a ser o mais influente pensador do imperialismo.
Para efetuar uma análise concreta das principais contradições da teoria estética de Nietzsche, devemos começar recordando ao leitor o que já se disse sobre a barbárie do presente. Em suas obras, Nietzsche contrapõe a essa teoria da barbárie uma teoria completamente contrária, ou seja, uma teoria da aprovação da barbárie. Do ponto de vista social, esta teoria parte da afirmação da guerra. Desta afirmação, o que nos importa são as motivações e as consequências no âmbito da filosofia da cultura e de estética. Em favor da guerra, Nietzsche escreve: “Ela barbariza os dois efeitos recém-mencionados [estupidez e perversidade] e, assim, torna-os mais naturais; a guerra é, para a cultura, época de sono ou hibernação; o homem sai dela mais forte para o bem e para o mal”. E resume: “A cultura não pode prescindir das paixões, dos vícios e das perversidades”; são necessárias “recaídas temporárias na barbárie para que a cultura e sua existência não se percam por culpa dos meios da cultura”. E, na justificação dessas teses, Nietzsche oferece uma imagem clara do que significam tais vícios e paixões necessários à cultura: “aquele ódio impessoal, aquele sangue-frio de assassino com boa consciência, aquele fogo comum e organizador no extermínio do inimigo, aquela orgulhosa indiferença ante as grandes, ante a própria existência e a do amigo [...]”. Estes são os imprescindíveis traços da barbárie que a guerra oferece em favor da cultura, que, sem ela, perde vitalidade.
Esta teoria da barbárie está consequentemente aplicada na estética de Nietzsche. Ele polemiza contra a humanitas da estética de Kant e de Schopenhauer e formula o seu próprio ponto de vista com a radicalidade paradoxal que lhe é peculiar: “O refinamento da crueldade é uma das fontes da arte”. Mas a elaboração desta ideia conduz necessariamente Nietzsche a uma conclusão inesperada: a característica da arte que antes nos era apresentada como um traço da barbárie plebeia da idade democrática, dos românticos franceses e de Richard Wagner — isto é, a violentação do receptor da arte —, aparece agora com um traço, por ele aceito, de toda arte. Nietzsche escreve contra o “desinteresse” da estética kantiana:
Um arranjo extremamente interessado, inescrupulosamente interessado, das coisas [...]. Gozo na violentação mediante a introdução de um sentido [...]. O contemplador estético permite a sua violentação e faz o contrário do que costuma fazer diante do que chega do exterior [...].
Vale dizer: o mesmo princípio artístico que Nietzsche recusara contundentemente como característico da “barbárie domesticada” da civilização moderna se converte agora num princípio básico central de toda a sua estética.
A mesma antinomia se apresenta, mais exacerbada, quando examinamos o problema nuclear da estética de Nietzsche: o problema da decadência. Nietzsche considerava que o tema central da sua atividade filosófica era a luta contra a decadência em todos os terrenos; estava convencido de que o seu mérito principal era ter assumido a luta contra a enfermidade avassaladora da civilização capitalista. Quando contrapõe a Carmen de Bizet a Wagner, parece-lhe justificação suficiente a seguinte frase: “Volta à natureza, à saúde, à alegria, à juventude!” E a crítica de Wagner concentra-se na tese segundo a qual ele é um “doente”. O filósofo da decadência, Schopenhauer, atraiu Wagner e fez dele um artista típico da decadência: “E aqui começo a ficar severo. Pois estou longe de contemplar tranquilamente como este decadente nos faz mal à saúde e à música. Wagner é pelo menos um homem? Ele não é, antes, uma doença? Wagner faz adoecer tudo o que toca e pôs doente a música”. E, do mesmo modo como antes queria desmascarar o plebeísmo de Wagner alinhando-o com os românticos franceses (Victor Hugo etc.), agora o desmascara como decadente procurando encontrar traços comuns a ele e à decadência europeia (Baudelaire, os Goncourt, Flaubert). Assim, por exemplo, propõe o seguinte método para estudar o “conteúdo mítico” dos textos de Wagner:
Traduza-se Wagner ao real, ao moderno ou, mais cruelmente ainda, ao burguês. Então, em que ele se converte? Que grandes surpresas nos esperam! Você acreditaria que as heroínas de Wagner, todas e cada uma delas, quando lhe arrancamos a heroica pele, se parecem, até se confundirem, com a Madame Bovary? Compreende-se mais ou menos, então, que também Flaubert poderia traduzir suas heroínas ao escandinavo ou ao cartaginês e oferecê-las a Wagner como libreto mitologizado. Em geral, Wagner parece interessar-se somente pelos problemas que hoje interessam aos pequenos decadentes de Paris. E nunca a mais cinco passos do hospital [...].
A influência europeia de Wagner deve-se precisamente à sua essência decadente.
Quão assemelhado Wagner deve estar a toda a decadência europeia para que esta não o sinta como decadente! Wagner pertence a ela, é seu protagonista, seu nome maior [...]. A decadência presta homenagem a si mesma ao homenageá-lo. Não se defender dele é mais um sinal de decadência. O instinto está debilitado e atrai o que deveria evitar. Leve aos lábios o que mais rapidamente o precipita no abismo.
Neste marco, e partindo de uma crítica ao estilo wagneriano, Nietzsche oferece uma detalhada análise crítica dos modos de manifestação estética da decadência, uma caracterização do estilo geral do doentio. Ele pergunta:
Como se caracteriza toda decadência literária? [E logo responde]: Pelo fato de a vida já não habitar o todo. A palavra se torna soberana e salta da frase, a frase se expande e obscurece o sentido da página, a página ganha vida à custa do todo e todo perde o seu caráter de todo. Mas este é o símbolo de todo estilo da decadência: sempre anarquia dos átomos, desagregação da vontade, “liberdade do indivíduo” no charlatanismo moral, e tudo isso ampliado até uma teoria política: “direitos iguais para todos”. A vida, a própria vitalidade, a vibração e a exuberância da vida reprimida nas criações mais minúsculas; o resto pobre da vida. Em todas as partes, enrijecimento, fadiga, fossilização ou hostilidade e caos — e ambas tanto mais manifestas quanto mais altas as formas de organização. O todo deixou de viver: é composto, calculado e artificial, é um artefato.
E, partindo dessa crítica destruidora da decadência, Nietzsche tributa a Wagner o único elogio, a sua definição como decadente: “Wagner é admirável e amável somente na invenção do mínimo, na composição do detalhe; quanto a isto, é de justiça proclamá-lo um mestre de primeiro nível, o nosso maior miniaturista em música [...]”.
Esta aniquiladora crítica da decadência artística, que contém certamente muitas observações corretas e acertadas, tem também um outro lado muito interessante, em especial sob dois aspectos. Por uma parte, Ernst Bertram, o biógrafo fascista de Nietzsche, demonstrou que esta crítica procede, nas suas linhas essenciais, de um ensaio de Paul Bourget,[9] escritor que o próprio Nietzsche considera como um representante típico da decadência moderna. E, por outra, quem conhece um pouco de Nietzsche notou, ao ler as linhas que reproduzimos acima, que nelas não há apenas uma crítica da falta de estilo peculiar à decadência e da decomposição decadente do estilo de Wagner, mas, também e ao mesmo tempo, uma caracterização muito correta do estilo mental e literário do próprio Nietzsche.
Como indica a frase que tomamos como epígrafe, é claro que Nietzsche não ignorou o seu íntimo parentesco com a decadência literária e artística. Ele sabia bem quanto era profundo o seu vínculo com tudo o que condenava cem como decadente, quanto o seu pensamento — por suas intenções e aspirações — era a autossuperação da decadência. E é característico de Nietzsche que, no mesmo período em que opõe o “sadio” Bizet ao “doente” Wagner, oponha polemicamente a “doente” decadência de Paris à vitalidade e à “saúde” alemãs. “Na Europa, como artista, a única pátria que se tem é Paris [...]. Não vejo, em nenhum outro século da história, um lugar, como a Paris atual, onde se possam encontrar juntos tantos curiosos e delicados psicólogos — como exemplo, citarei os senhores Paul Bourget, Pierre Loti, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lemaître[10] [...]. Cá para nós, prefiro esta geração inclusive aos seus grandes mestres [...]”. Mas esta avaliação da “doença” contra a “saúde” se aplica ao próprio Wagner. Se, em Nietzsche contra Wagner, de 1888, ele censura Wagner por deslizar da “sadia sensualidade” feuerbachiana à decadência cristã patológica do Parsifal, já em Ecce homo, também de 1888, combate Wagner de um ponto de vista completamente oposto. Eis a impressão que lhe produziu o Tristão: “O mundo é pobre para quem nunca foi o bastante doente para sentir esta ʽvoluptuosidade e infernoʼ [...]”. Esta obra é o non plus ultra de Wagner, que descansou depois com Os mestres e O anel. “Para uma natureza como a de Wagner, fazer-se sadio é uma recaída [...]”. Assim, o Nietzsche do último período já se crê “sadio” e crê que pode contemplar a “doença” da sua anterior decadência como um estágio de transição; porém, do mesmo modo que a sua crítica do estilo wagneriano é sua autocrítica estética como escritor, a frase que acabamos de citar pode valer para ele mesmo — é verdade (como também para Wagner) que apenas hipoteticamente, pois Nietzsche jamais se curou, mesmo no sentido das suas próprias definições.
Já vimos que, em sua maturidade, Nietzsche combateu tanto Wagner, como artista da decadência, quanto Schopenhauer, como filósofo da decadência. Para o Nietzsche desse período, o pessimismo é um dos sintomas característicos da decadência. A evolução de Richard Wagner para o pessimismo, seu trânsito da influência de Feuerbach para Schopenhauer, de Siegfried a Parsifal, é, para Nietzsche, o sintoma típico do caráter decadente da arte wagneriana. E Schopenhauer, com sua filosofia pessimista, converte-se para ele condutor da decadência europeia.
Tudo isso depreende, claramente, das observações analíticas feitas até agora. Mas, na sequência, devemos considerar com maior atenção o reverso da luta de Nietzsche contra o pessimismo. Já sublinhamos, como peculiaridade da atitude filosófica de Nietzsche, que ele tenta justificar o capitalismo precisamente mediante a aceitação do seu “lado mau”, posição filosófica da qual deriva, consequentemente, a sua afirmação da barbárie. A ambiguidade da filosofia nietzschiana acarreta, necessariamente, que essa vital afirmação do “lado mau” da vida culmine na tendência filosófica paradoxal e contraditória que consiste em afirmar e aceitar a vida desde o ponto de vista do pessimismo. Não nos é possível analisar aqui, detalhadamente, as contradições filosóficas que decorrem desta posição de Nietzsche; basta, para nosso problema, compreender que, como Schopenhauer, ele vê a essência da arte no fato de que ela transfigura e torna digna de aceitação a existência recusável em si mesma e diante da qual só se pode ser, filosoficamente, pessimista. A diferença entre os dois pensadores consiste em que Schopenhauer, como pessimista consequente e integral, considera a arte como uma forma de afastamento da vida, ao passo que Nietzsche leva a termo a paradoxal tentativa de converter aquela função da arte em veículo da sua pessimista aceitação afirmativa da vida. (Esta pessimista aceitação afirmativa da vida é a base daquele “realismo heroico” de Nietzsche, exatamente o que mais admiram nele os seus atuais adoradores fascistas.)
Já está voltada para este problema a sua obra juvenil Die Geburt der Tragödie [O nascimento da tragédia], escrita ainda sob intensa influência de Schopenhauer. Num projeto posterior para um novo prólogo a esta obra, Nietzsche caracteriza o que era, à época, o seu problema básico:
O primeiro problema que me atormentou seriamente foi o da relação da arte com a verdade e, ainda hoje, sinto-me tomado por uma santa cólera diante dessa cisão. Meu primeiro livo foi dedicado a esta questão; O nascimento da tragédia acredita na arte com base numa outra crença; a de que não é possível viver com a verdade, que a “vontade de verdade" já é um sintoma de degeneração.
Este problema básico permanece no centro da concepção nietzschiana de arte. Em seu último período, o filósofo ainda afirma, de modo schopenhaueriano: “Só esteticamente é possível uma justificação do mundo”. E, de acordo com esta concepção de base, Nietzsche determina assim a essência da arte:
A força motriz é a transformação do mundo para poder suportá-lo; consequentemente, um imenso sentimento da contradição [...]. O “estar livre do interesse e do ego” é um absurdo, fruto da observação insuficiente. Trata-se, antes, da delícia de estar agora em nosso mundo, livres do medo do desconhecido.
A fundamentação filosófica da essência da arte continua sendo, pois, em Nietzsche como Schopenhauer, de estilo pessimista, mesmo quando o filósofo acreditava ter superado completamente a filosofia schopenhaueriana e seu pessimismo decadente; o pressuposto ideológico da arte, com efeito, permanece sendo a concepção do mundo como caos, absurda confusão de forças irracionais e hostis, que são, em si mesmas, recusáveis e insuportáveis, e cuja visão só se pode tolerar graças à estilização operada pela arte, que as encobre e as mimetiza ao deformá-las. Com esta concepção básica, Nietzsche, assim como Schopenhauer, encontra-se em frontal oposição a todas as tendências do período revolucionário burguês e à estética alemã de Kant a Hegel, que, apesar de toda a diversidade na fundamentação ideológica, partiu sempre da ideia segundo a qual a tarefa da arte consiste em reproduzir a essência (em si mesma, racional) do mundo, sustentando que a estilização própria da arte reside em liberar esta essência dos detalhes obnubiladores do puramente empírico.
É verdade que também se pode localizar, em Nietzsche, uma tendência significativa a aproximar-se dessa linha da estética clássica. Em sua polêmica contra a decadência representada por Wagner, Schopenhauer e Bismark, Nietzsche chega mesmo a estabelecer, em comparação com as posições da sua juventude, uma relação mais aberta e sem preconceitos com a filosofia de Hegel. Todavia, em função dos fundamentos histórico-sociais do seu pensamento, essa tendência não tem condições de propiciar uma verdadeira superação das contradições da sua atividade filosófica, mas, ao contrário, exacerba o caráter antinômico da sua estética e das sua avaliações de artistas e obras de arte. Na luta contra Wagner e contra a decadência artística, Nietzsche vê-se obrigado a defender, em face do “monumentalismo” plebeu de Wagner, um grande estilo, verdadeiro e clássico; para justificar esta exigência, vê-se, em seguida, obrigado a defender o princípio da racionalidade da obra de arte, a importância da lógica na estrutura da grande obra de arte: “Há muito de tentador no ilógico ou no semilógico: Wagner sabia-o bem [...]. A virilidade e o rigor do desenvolvimento lógico não eram acessíveis a ele; então, descobriu ʽalgo mais eficazʼ”. E, noutro lugar: “O drama exige uma lógica rigorosa — mas o que a lógica importava a Wagner?”.
Esta polêmica de princípio, dirigida contra todo o desenvolvimento irracionalista do drama alemão depois dos clássicos e, mais geralmente, contra toda a moderna evolução literária, requer naturalmente, também em Nietzsche, além da proclamação estética do princípio da razão na estilização artística, uma fundamentação histórica. Nas argumentações que se seguem às últimas frases citadas, o filósofo sublinha, reiteradas vezes, que o público de Wagner não é o de Corneille. A afinidade de Nietzsche com a literatura e a arte francesas, a sua consigna contra Wagner — il faut méditerraniser la musique —, concentram-se agora na tendência a glorificar a literatura clássica francesa por seu caráter rigorosamente lógico e construtivo. Em algumas passagens, Nietzsche chega mesmo a dizer que “meu gosto de artista defende, com alguma contrariedade, os nomes de Molière, Corneille e Racine contra um gênio selvagem como Shakespeare”. Noutro lugar, alude à polêmica anti-shakespeariana de Byron e o cita: “Seguimos um sistema revolucionário internamente falso [...]; considero Shakespeare o pior modelo, embora seja o poeta mais extraordinário”. E Nietzsche convoca a verdadeira arte a afastar-se das ruínas e restos dessa falsa evolução operada pelo século XIX:
Não indivíduos, porém máscaras mais ou menos ideais; não realidade, mas uma universalidade alegórica; os caracteres temporais e as cores locais reprimidos e tornados quase invisíveis e míticos; a sensibilidade atual e os problemas da sociedade contemporânea reduzidos à forma mais simples, despojados de suas propriedades estimulantes, excitantes, patológicas, para que percam todo efeito exceto o do sentido artístico; não materiais e caracteres novos, mas os velhos e desde muito conhecidos, com uma animação sempre nova que os transforme — esta é a arte, tal como a compreendeu tardiamente Goethe, tal como a cultivaram os gregos e os franceses.
E resume as suas ideias sobre o exemplar estilo grande e verdadeiro: “O grande estilo surge quando o belo triunfa sobre o incomensurável”.
Esta tendência da estética e da crítica estética de Nietzsche — apesar de estar em contradição com seus juízos artísticos — não é, para ele, em absoluto, algo secundário. Nietzsche não é apenas um adorador da tragédie classique: também o é do seu último grande continuador, Voltaire. Em seu livro Menschliches, allzu Menschliches [Humano, demasiadamente humano], inicialmente dedicado à memória de Voltaire, elogia reiteradamente a extraordinária sabedoria artística das suas tragédias, especialmente Maomé. A oposição entre Voltaire e o desenvolvimento característico do século XIX, bem como entre Voltaire e Rousseau — em que Nietzsche vê o pai espiritual de todas essas falsas tendências democráticas —, não é, a seu ver, somente uma oposição artística, mas também ideológica e política. Sobre esta “loucura da doutrina da subversão”, Nietzsche escreveu:
Não foi a natureza de Voltaire, comedida, inclinada à ordenação, à purificação e à reconstrução, mas as apaixonadas loucuras e semimentiras de Rousseau que despertaram o espírito otimista da Revolução, contra a qual eu clamo Écrasez l'infame! Este espírito, por muito tempo, afastou o espírito do iluminismo e do desenvolvimento progressista; vejamos se é possível convocá-lo novamente.
A linha estética básica desta tendência de Nietzsche é, portanto, a salvação da lógica e da razão contra a avalanche sentimental irracionalista do século XIX, a salvação do caráter aristocrático tradicional da arte contra a sua infecção democrático-plebeia. Mas esta tendência acarreta, em Nietzsche, uma contradição insolúvel com as suas tendências gerais, que são pessimistas-irracionalistas; acabamos de ver que, para ele, o otimismo de Rousseau é uma expressão do seu caráter revolucionário e plebeu. A tendência “lógica” aristocrática e tradicional, encontra-se vinculada, em Nietzsche, a um profundo pessimismo, a um ceticismo dissolutor, em especial no que toca à possibilidade e ao valor do conhecimento do mundo externo. É impossível, nesta oportunidade, analisar em detalhe a epistemologia agnóstica de Nietzsche, muito aparentada às teses de Mach[11] e muito influente na nova versão fascista dessas doutrinas. Limitar-nos-emos a ilustrar seu ponto de vista com uma passagem muito característica para, em seguida, cuidar das suas consequências estéticas. “Não o mundo como coisa em si — que não tem sentido e é digno de uma gargalhada homérica —, mas o mundo como erro, tão rico em significação, tão profundo, tão cheio de milagres, de felicidade e de desgraça”. E, sem contemplação, Nietzsche infere desse agnosticismo todas as consequências pertinentes à avaliação da ciência e do cientista: “Dados esses pressupostos, o que deve acontecer com a ciência? Qual a sua posição? Num sentido importante a de inimiga da verdade, já que é otimista, acredita na lógica”.
A análise nietzschiana da arte tem sempre como pressuposto a tese da incognoscibilidade do mundo externo. O artista, diz Nietzsche, “tem, em relação ao conhecimento da verdade, uma moralidade inferior à do pensador”. No que toca à grande arte do passado, Nietzsche afirma que sua grandeza depende intimamente da fé dos artistas em falsas “verdades eternas”. Mas não se limita a esta indicação histórica: sempre se esforça por provar, a propósito de concretos problemas estéticos, que o método artístico criador tem como fundamento objetivo a incognoscibilidade do mundo e a ausência de valor de um tal conhecimento. É assim que analisa, de maneira muito interessante, a criação de figuras humanas pelo artista:
Quando se diz que o dramaturgo (e o artista em geral) cria caracteres reais, presta-se tributo a uma bela ilusão [...]. De fato, não compreendemos muito um homem vivo, real, e generalizamos bem superficialmente quando lhe atribuímos tal ou qual caráter; ora, a esta nossa atitude em face do homem, tão imperfeita, corresponde a do poeta, construindo (“criando", neste sentido) esboços de homens tão superficiais quanto o nosso conhecimento do homem [...]. A arte tem como ponto de partida a ignorância do homem acerca da sua interioridade (física e de caráter) [...].
Sob este ponto de vista, Nietzsche é muito coerente quando, como vimos, descobre a essência da arte numa “manipulação sem escrúpulos das coisas”. Em polêmica com a estética clássica alemã, escreve: “Na contemplação estética, o objeto está profundamente falseado”. E esta concepção, por mais que contradiga o seu “classicismo lógico”, é consequência necessária da tendência pessimista básica do seu pensamento. Em face de um mundo tal como o vê Nietzsche, a arte só pode ter como tarefa “a ficção e a manipulação de um mundo no qual possamos nos aceitar em nossas necessidades profundas”. A antinomia insolúvel da filosofia e da estética de Nietzsche leva-o, com paradoxal consequência, a só alcançar esta aceitação afirmativa mediante a falsificação do homem e do mundo, já que o homem não pode viver com a verdade, na verdade. Assim, pois, ao mesmo tempo em que combate sem reservas a falsidade da arte decadente moderna, Nietzsche é inevitavelmente o fundador da tese de uma falsidade de princípio como base da estética. Nietzsche se torna o fundador do antirrealismo moderno.
As mesmas antinomias se apresentam, naturalmente, na determinação da posição geral da arte no desenvolvimento da civilização. A obra de Nietzsche foi produzida na época de maior intensidade das tendências da arte pela arte [l'art pour l'art] na literatura europeia. Não surpreende que o filósofo tenha sido, simultaneamente, o mais acerbo inimigo e propugnador mais extremo daquelas tendências que tentavam reduzir a arte ao puro formalismo artístico. Por nossa exposição até aqui, o leitor certamente já terá observado em Nietzsche a presença destas tendências. A posição filosófica de Nietzsche, pessimista e agnóstica, compele-o a diluir, na estética, todas as questões de conteúdo para acentuar — como em todas as tendências da arte pela arte — exclusivamente a forma. Ainda que as considerações que o fizeram simpatizar com o classicismo tenham sido de natureza claramente política, os seus padrões de avaliação são, no entanto, puramente formais. Nietzsche considera a limitação da forma, a constrição, a dificuldade, como os momentos dos quais pode emergir uma sadia evolução da arte. Seu ideal é “dançar acorrentado”. “A questão que se coloca a todo artista, poeta ou escritor grego é a seguinte: que nova constrição se impõe? [...] ʽDançar acorrentadoʼ, dificultar tudo e difundir a ilusão da facilidade: este é o jogo de prestidigitação que querem nos ensinar”. E Nietzsche considera que a rigorosa constrição do drama clássico, a exigência de unidade de lugar e de tempo, a limitação do verso e da estrutura da frase, a constrição da música pelo contraponto e a fuga, a constrição da eloquência grega pelas figuras gorgianas etc., são outros tantos meios para alcançar aquela perfeição formal. “Assim, paulatinamente, aprende-se a caminhar com graça por estreitas pontes, cruzando abismos, e se adquire como butim a suprema flexibilidade de movimento”. Nem Flaubert nem Baudelaire, em Paris, poderiam formular mais categoricamente a exigência da arte pela arte.
Mas esta tendência estética básica de Nietzsche se encontra em irreconciliável contradição com a conceituação da arte em sua filosofia da cultura. Nela, o filósofo toma posição, energicamente, “contra a arte das obras de arte”.
Acima de tudo e imediatamente, a arte tem que embelezar a vida, fazer-nos suportáveis aos outros e, se possível, até agradáveis [...]. Logo, a arte tem que ocultar ou reinterpretar tudo o que é feio [...]. Junto a esta grande, até excessiva, tarefa que a arte tem, a propriamente chamada arte das obras de arte não é mais do que um apêndice.
Deste ponto de vista da filosofia da cultura, Nietzsche condena a arte moderna, porque os poetas já não são os mestres da humanidade. Os artistas antigos eram
[...] domadores da vontade, transformadores de animais, criadores de homens e, acima de tudo, formadores, transformadores e performadores da vida, ao passo que a glória dos artistas atuais está talvez, em libertar os homens, romper cadeias, destruir.
Conforme esta tendência do pensamento de Nietzsche, portanto, a arte não existe por si mesma e o importante nela não é o ofício ou o caráter do artista, a solução perfeita dos problemas formais; ao contrário, a arte é apenas um meio para o desenvolvimento superior da humanidade no sentido da teoria nietzschiana, ou seja, no sentido da ulterior seleção biológica. Por isso, os poetas — segundo esta exigência de Nietzsche — são “indicadores do futuro” e sua tarefa consiste em “continuar compondo a bela imagem humana”; o autêntico fim da poesia “não é a reprodução do presente nem a reanimação e composição do passado: é a indicação do futuro”. Esta função da arte, nesse contexto, determina, para Nietzsche, o seu valor, do mesmo modo que, em outros contextos, como vimos, a perfeição formal constituía o único critério de valor das obras de arte e dos artistas.
IV
Todas essas antinomias, que poderiam ser multiplicadas (uma vez que a filosofia de Nietzsche praticamente apresenta, para cada questão, essa mesma estrutura antinômica), remetem a seu fundamento: a posição histórico-social de Nietzsche. Já caracterizamos esta posição ao dizer que Nietzsche critica — inconscientemente — a evolução capitalista, em particular sua cultura, a partir de dois ângulos: do ponto de vista de um passado pré-capitalista e a partir da utopia de um desenvolvimento imperialista mais avançado. Como para todo crítico romântico do capitalismo, também para Nietzsche a experiência central é a degradação e a depravação do homem pela coisificação capitalista. Em comparação com o tempo dos principais representantes do anticapitalismo romântico, Nietzsche vive um período do capitalismo e da luta de classes muito mais desenvolvido e ampliado; por isso, sua crítica é muito mais ideológica e, em comparação com a crítica daqueles representantes, é muito mais meramente cultural, uma vez que ele não sabe nem entende praticamente nada dos problemas econômicos do capitalismo, que não lhe interessam em absoluto. Ademais, os efeitos degradantes do capitalismo se manifestam muito mais na época de Nietzsche do que nos tempos de florescimento do anticapitalismo romântico. Por isto, ainda que Nietzsche critique a cultura capitalista somente na perspectiva das suas consequências e sintomas na vida espiritual e na atividade dos homens, ele pôde ver essas contradições num nível de maior explicitação e insolubilidade do que a maioria dos seus predecessores românticos. E a estrutura antinômica do pensamento de Nietzsche se manifesta muito claramente na constatação destes sintomas. Poder-se-ia resumir do modo mais breve possível a sua crítica da degradação do homem dizendo-se que o desenvolvimento capitalista deforma e perverte o homem tanto em sua vida afetiva quanto em seu entendimento. Na vida emocional, este processo produz uma superabundância de sentimentos inúteis e vivências “superiores”, sem raízes nem sentido, bem como a fossilização, o empobrecimento e a esterilidade da vida emotiva, da capacidade de o homem ter experiências. O mesmo se passa no domínio do entendimento humano: nele se produz uma exagerada intelectualização do homem, um predomínio do entendimento que torna árida qualquer originalidade da experiência e, ao mesmo tempo, uma cretinização geral dos homens, uma redução da sua capacidade de reconhecer o que lhes é essencial, de distinguir entre o útil e o deletério.
Esta rica visão da fossilização do homem moderno confere interesse à polêmica de Nietzsche contra a decadência: ainda que considerem inteiramente falsos o seu ponto de partida, as suas conclusões, a sua intenção etc., o fato é que, em várias observações sobre aqueles sintomas, ele realmente descobre uma série de importantes formas de manifestação da ideologia da decadência capitalista. É verdade que o acerto relativo dessas observações polêmicas está estreitamente ligado ao aspecto absolutamente reacionário da sua posição filosófica. Já assinalamos, como peculiaridade do pensamento de Nietzsche e à diferença da maioria dos anticapitalistas românticos, que o filósofo não é um utopista dos “lados bons” do capitalismo, mas, ao contrário, ele defende e engrandece o capitalismo partindo, precisamente, dos seus “lados maus”. A crescente impossibilidade de transfigurar em harmonia as contradições do capitalismo e assim suprimi-las apologeticamente, bem como a inviabilidade de retornar a situações patriarcais, foi transformando o velho liberalismo e romantismo à moda antiga numa ladainha estéril e vazia. Schopenhauer já inicia o novo curso da apologia do capitalismo, que é o da apologia indireta, sob a forma de uma crítica global da existência como tal. Nietzsche — e, antes dele, Jacob Burckhardt — oferece uma orientação histórica à filosofia de Schopenhauer. Para este, toda a existência se apresenta como um caos sem sentido, com o que se degradava ao nível de mesquinharia ridícula qualquer crítica específica à economia capitalista; já Nietzsche concentra seu pessimismo no problema da história. Ele conserva, sem dúvida, como fundamento metafísico, a ideia da insensatez universal da existência; mas, apesar disto, constata que, em alguns períodos, a humanidade conseguiu arrancar dessa insensatez objetiva um sentido subjetivo (Grécia, Renascimento etc.). Somente no último século, a partir da Revolução Francesa, a decadência impregna inteiramente a humanidade. Contra esta decadência, segundo Nietzsche, há que lutar. A historicização do pessimismo significa, portanto, em Nietzsche, a sua ativação, em contraste com a tendência de afastamento passivo do mundo, própria a Schopenhauer.
Mas onde este ativismo deve ser aplicado? Uma vez que Nietzsche não pode nem quer saber nada das causas objetivas da degradação do homem que ele constata, tem que fazer do homem abstraído de suas bases sociais uma figura mítica. Ao homem decadente hoje predominante, ao homem corrompido pelo cristianismo, por Sócrates, por Rousseau etc., há que contrapor um “homem novo”. Não é por acaso que Nietzsche, orgulhosamente, se qualifica como “psicólogo”. Toda a sua filosofia pode realmente reduzir-se a uma psicologia (inflada até a mitificação) da sua própria evolução: a evolução de um homem inicialmente vítima da decadência contemporânea (veneração por Schopenhauer e Wagner, ilusões sobre o Reich bismarckiano), mas que depois experimenta a falsidade dessas tendências e, graças a isso, torna-se “sadio”, “supera” a decadência. Esta própria vivência de superação psicológica da decadência é então generalizada, convertida numa filosofia da história e da cultura. Este fundamento vivido é o que dá à filosofia de Nietzsche — que, objetivamente, é uma apologética — o tom subjetivo da experiência real, da autenticidade e da sinceridade. Objetivamente, por trás da experiência nietzschiana, não existe mais do que a ilusão de poder superar as contradições do capitalismo mediante o mito de um capitalismo mais desenvolvido, criado de modo fantástico, o mito do imperialismo.
O núcleo do método mitificador de Nietzsche consiste, portanto, em converter os princípios históricos em confronto em tipos humanos em luta, cabendo ao filósofo o aprofundamento psicológico desses tipos. Essa psicologia mítica dissimula, para o próprio Nietzsche, as contradições da sua concepção e da sua avaliação das contradições objetivas do capitalismo. E também lhe permite, com base em seu agnosticismo que se faz misticismo, obter certa “cientificidade", certa aparência de captação da realidade. (Mitificação do darwinismo, biologismo etc.). Ao mesmo tempo, essa mitificação possibilita a Nietzsche ocultar o caráter capitalista das utopias que contrapõe ao capitalismo real. Quando condena a concorrência capitalista para, ao mesmo tempo, fazer da luta pela existência um princípio mítico e do agonismo grego a mitologia de toda sociedade sadia, Nietzsche ignora que está seguindo o velho costume romântico de contrapor a “boa” à “má concorrência”. E o mesmo se passa com o super-homem [Übermensch] e as demais figuras dos seus mitos. Mas a ocultação vai além, já que o mito, que continua sendo capitalista, não se apresenta apenas como algo diverso do capitalismo, mas, ao mesmo tempo, como uma radical novidade histórica: a defesa dos princípios do capitalismo aparece assim como um assalto radical contra a sociedade atual, ou seja, converte-se numa atitude pseudorrevolucionária.
É com base neste fundamento psicológico-mítico que tem lugar a “superação” nietzschiana da decadência. Assim como Nietzsche alimenta, no terreno pessoal, a ilusão de ter superado a decadência em sua própria vida, do mesmo modo acredita poder superar intimamente, psicologicamente, a decadência na psicologia mitificada das suas figuras histórico-mitológicas. Este método determina a sua peculiar atitude em face do problema da decadência: Nietzsche não condena em bloco, como fazem os limitados defensores de antigos estágios de desenvolvimento, nem, tampouco, se refestela com prazer narcisista no pântano da decadência, como os literatos degenerados vulgares. Na decadência, Nietzsche vê sobretudo um estágio de transição necessário no rumo de uma “cura” [Gesundung] do homem. Percorrendo esse caminho, ele leva consequentemente até o extremo a contraditoriedade dos fundamentos de sua filosofia. Nietzsche quer escapar da decadência precisamente por meio da sua exacerbação. O que na decadência vulgar dissolve a vida, inibe a vida, pode metamorfosear-se em seu contrário, em contrário da decadência, mediante a sua intensificação, mediante a intensificação da energia que contém.
Em última instância, trata-se de uma questão de força: toda essa arte romântica poderia ser plasmada por um artista exagerado e de vontade poderosa justamente em algo antirromântico ou — para usar a minha fórmula — em algo dionisíaco; do mesmo modo, todo tipo de pessimismo e de niilismo, posto em mãos mais fortes, converte-se num martelo ou numa ferramenta com a qual se constrói um novo degrau rumo à felicidade.
Em tudo isso se constata claramente a profunda vinculação de Nietzsche às tradições da crítica romântica ao capitalismo: ele combate o romantismo, mas de tal forma que ao “mau" romantismo decadente se contraponha um romantismo “bom", ou seja, o “dionisíaco”. Como vimos, do ponto de vista do conteúdo, Nietzsche inverte o método dos velhos críticos românticos do capitalismo. Ele faz a apologia dos “lados maus” do capitalismo, o que lhe permite uma crítica cultural de extremo radicalismo, um desmascaramento à primeira vista sem reservas das contradições culturais do capitalismo. Neste ponto, Nietzsche aparentemente se assemelha aos críticos “cínicos” do capitalismo nascente. Mas tal semelhança não passa de mera aparência, pois aqueles críticos (como, por exemplo, Mandeville[12]) percebem com nitidez o caráter objetivamente revolucionário da evolução capitalista; e, precisamente do impulso revolucionário do papel histórico objetivo de sua classe, retiram a coragem e a capacidade para anunciar, com cínica lucidez, que o caminho que tem de ser percorrido por essa evolução é necessariamente um caminho de sangue e baixeza. Nietzsche, ao contrário, faz a apologia do capitalismo tomado em seus “lados maus”; e isto porque é muito clarividente para não perceber que todos os argumentos diretamente apologéticos há muito perderam força e vitalidade e que o capitalismo só pode ser salvo por meio de uma crítica aparentemente sem reservas dos seus efeitos degradantes, ou seja, por meio de um credo quia absurdum. Precisamente para salvar intelectualmente o capitalismo, Nietzsche desmascara toda a abjeta mesquinhez das suas formas de manifestação sociais e culturais; e lhes contrapõe, como apologia do sistema tomado em sua totalidade, a gigantesca abjeção de seu mito histórico, da sua “besta loira”, do seu “César Bórgia como papa”. Desse modo, o mito da barbárie do capitalismo decadente torna-se o núcleo do mito histórico de Nietzsche.
Esta apologia da barbárie se apresenta, em Nietzsche, como um grande mito estético-histórico-filosófico: é a “transmutação dos valores” como contexto substancialmente novo do cânone anterior da beleza, ou seja, do Renascimento e, sobretudo, da Grécia clássica. A concepção da Antiguidade na trilha de Winckelmann e Lessing foi um reflexo da preparação da revolução democrática; foi o brado que pretendia redespertar o cidadão da pólis, o citoyen, o homem novo, livre e harmônico, da sociedade a construir ex novo. Já o classicismo de Schiller e de Goethe leva a um debilitamento do pathos social, embora, sem dúvida, com base num aprofundamento interior, numa penetração na problemática do homem europeu realmente novo, inserido na sociedade efetivamente nova que surgiu das tormentas da Revolução Francesa. Os supostos herdeiros de Goethe, depois da derrota da Revolução de 1848, eliminam completamente esse fundamento social da exemplaridade da Antiguidade clássica; surge assim o “classicismo” de uma justeza formalista, vazia e pedante, que necessariamente perde toda relação com as correntes principais da literatura e da vida.
O contragolpe não se faz esperar: a hostilidade reacionária alemã à Revolução Francesa engendra uma nova imagem pseudorrealista do mundo grego. A Penthesilea de Kleist é o prólogo artístico dessa tendência: uma explosão da moderna vida do instinto decadente e reprimido, do ódio espontâneo contra o equilíbrio e a razão, mas apresentada sob uma veste clássica. O gigantesco ímpeto poético de Kleist se impõe progressivamente na nova concepção da Antiguidade clássica presente na historiografia e na filosofia românticas (Schelling, Görres, Creuzer etc.). Bachofen, salvo pelo seu modo mítico de se expressar, nada tem a ver com essa tendência; na verdade, ele descobre a profunda revolução social que esclarece a história real da Antiguidade, ou seja, ruína do comunismo primitivo, o trânsito do matriarcado ao patriarcado.
Alfred Bäumler, o historiador fascista deste desenvolvimento, percebeu a vinculação que Nietzsche mantém com ele. Mas, falsificando Bachofen no sentido místico e reacionário, Bäumler censura Nietzsche por ter abordado o problema de um modo ainda demasiadamente positivista, racionalista. A censura não se justifica. É verdade que Nietzsche é mais simples, mais “retilíneo” e menos nebuloso do que muitos de seus predecessores. Mas sua tendência básica é a mesma. Em primeiro lugar, também ele elimina a conexão entre a liberdade democrática do antigo cidadão da pólis e a beleza da arte grega; em segundo, também ele suprime a beleza e a harmonia como categorias centrais da estética; e, em terceiro, também nele a “transmutação” da exemplaridade dos antigos é apresentada como se os gregos tivessem transformado todos os instintos do caos bárbaro num poder opressor e conquistador, exercido tiranicamente. O ideal grego de Nietzsche, assim como sua imagem ideal do Renascimento, mostra estes dois períodos como a coroação daquela barbárie que, segundo ele, é a única força capaz de apontar a saída — uma saída militarista e imperialista — para a crise cultural da sua época, a época das dores do parto do imperialismo alemão e internacional.
V
Com todas essas tendências básicas da sua filosofia, Nietzsche abre caminho para o processo de desenvolvimento da ideologia burguesa que, na época do imperialismo do pós-guerra, deságua na ideologia fascista. Não há um único motivo da filosofia e da estética fascistas cuja fonte não se possa buscar diretamente em Nietzsche. E, aqui, importa menos a similitude imediata de diversas afirmações ou juízos singulares do que o método geral de abordagem da cultura e da arte. A demagogia social do fascismo é uma elaboração da apologia indireta nietzschiana ao capitalismo, assim como toda a concepção fascista de "elite" procede da contraposição nietzschiana entre homem superior e homem inferior, da sua teoria do ressentimento etc. Portanto, o fascismo considera com razão que Nietzsche é um dos seus antepassados mais insignes. Mas, ao mesmo tempo, como vimos, o fascismo suspeita muito de certos traços do método de Nietzsche e de seus resultados. É que, entre Nietzsche e o fascismo, há o espaço de uma geração, durante o qual se desenvolveu ainda mais a decadência ideológica do capitalismo. O utópico sonho imperialista de Nietzsche já se tornou uma terrível realidade. A paradoxal falta de preconceitos de Nietzsche é, por isto, dificilmente suportável para o fascismo. O ecletismo fascista — que se apresenta externamente pomposo, mas que é na verdade radicalmente paupérrimo e mentiroso — tem que encaminhar as contradições de Nietzsche para uma grosseira, superficial e demagógica “síntese”. O fascismo não pode prescindir das “grandes figuras” de Bismark e de Wagner e tem de “reconciliá-las” com Nietzsche. Tampouco pode suportar o livre reconhecimento por Nietzsche da civilização românica, a exigência nietzschiana de um modo de expressão latino claro e preciso (exigência em função da qual Nietzsche viu em Heine o único escritor alemão realmente grande depois de Goethe). O fascismo vulgariza a tendência estética antirrealista de Nietzsche, sua exigência da “falsificação” do objeto estético, de “manipulação interessada e inescrupulosa das coisas”, transformando-as numa exaltação toscamente apologética da barbárie do capitalismo monopolista em putrefação, obtida através de mitos jornalísticos superficialmente ecléticos.
Esta atitude do fascismo em relação a Nietzsche contribui para tornar mais clara a posição por ele ocupada no desenvolvimento da ideologia burguesa alemã. Nietzsche é, por um lado, o primeiro pensador alemão de ampla ressonância, no qual se expressam abertamente as tendências claramente reacionárias da incipiente putrefação do capitalismo; é o primeiro arauto filosófico da barbárie imperialista. Por outro lado, Nietzsche é o último pensador do desenvolvimento burguês alemão no qual ainda estão presentes, com certo grau de vitalidade e eficácia, as tradições do período clássico, ainda que, sem dúvida, de modo deformado e deformador. Entre o desenvolvimento clássico-burguês e Nietzsche, situam-se o obscurecimento romântico das tradições clássicas durante o período da Santa Aliança, a traição da burguesia alemã à sua própria revolução em 1848 e posteriormente, bem como a sua capitulação diante da “monarquia bonapartista” (Engels) dos Hohenzollern, respeitada por Bismarck. Nietzsche, portanto, recolhe a herança do período clássico já hipotecada a todas essas mediações reacionárias. E, embora seja o último grande pensador alemão que mantém uma relação viva com aquela herança, precisamente por isso, pela paixão subjetiva com que se apropria de tal herança, Nietzsche se converte no coveiro das tradições clássicas alemãs. Sua polêmica destrói o academicismo vazio da trivialização liberal das tradições gregas dos clássicos, assim como o faz com a estreita veneração da Idade Média, com a retórica cristã-obscurantista dos românticos. Ao mesmo tempo, porém, transforma a herança clássica, o mundo grego, o Renascimento, os séculos XVII e XVIII franceses e o classicismo alemão num mito da barbárie decadente.
E esta transformação conteudística da herança das tradições clássicas se acompanha, em Nietzsche, da destruição metodológica dos caminhos que possibilitariam a reelaboração da própria herança. Nietzsche liquidou metodologicamente o modo filológico, tedioso e pedante desta apropriação da herança, o historicismo dos liberais e dos românticos tardios. No seu lugar, todavia, coloca o método da construção arbitrária, a fantasiosa transformação da história em mitos, a “engenhosa” manipulação da história, dos homens e das épocas. Em Nietzsche, a conexão real das grandes figuras da história com as lutas reais de suas respectivas épocas desaparece ainda mais resolutamente do que em seus vulgares e superficiais opositores. Para Nietzsche, cada figura histórica de decompõe em traços psicológicos isolados, com os quais se pode construir, à vontade, qualquer mito de que se careça. Como pensador subjetivamente honesto, Nietzsche tinha clareza sobre esse seu método: “Só o pessoal é eternamente irrefutável. É possível, com três pinceladas, dar a imagem de um homem; eu procuro extrair de cada sistema três pinceladas e prescindo do resto". É assim que Nietzsche se constitui no grande antepassado de todas as construções históricas arbitrárias e de todas as míticas fabulações do período imperialista — do impressionismo ao expressionismo, de Simmel a Gundolf etc., e, mais tarde, de Spengler a Moeller van der Bruck e a Jünger,[13] e, ainda mais tarde, a Rosenberg e Goebbels, estende-se um mesmo e único caminho que, na Alemanha, Nietzsche foi o primeiro a percorrer.
No fascismo, os resultados a que se chega por este caminho são tão grosseiros que toda a herança cultural não passa aqui de pretextos para slogans demagógicos. A forma e o conteúdo da herança progressista da evolução da humanidade estão, sob o fascismo, perdidos para a burguesia. Mas o fascismo, por sua vez, herda um longo processo evolutivo, em cujo ponto de inflexão se encontra Nietzsche; para este processo contribuíram também, sem o saber nem querer, muitos inimigos burgueses do fascismo. Em suma: o mais claro reconhecimento da diferença entre o nível ideológico de Nietzsche e o de seus herdeiros fascistas não pode eliminar o fato histórico básico de que Nietzsche é, efetivamente, um dos mais importantes precursores do fascismo.
Esta atitude do fascismo em relação a Nietzsche contribui para tornar mais clara a posição por ele ocupada no desenvolvimento da ideologia burguesa alemã. Nietzsche é, por um lado, o primeiro pensador alemão de ampla ressonância, no qual se expressam abertamente as tendências claramente reacionárias da incipiente putrefação do capitalismo; é o primeiro arauto filosófico da barbárie imperialista. Por outro lado, Nietzsche é o último pensador do desenvolvimento burguês alemão no qual ainda estão presentes, com certo grau de vitalidade e eficácia, as tradições do período clássico, ainda que, sem dúvida, de modo deformado e deformador. Entre o desenvolvimento clássico-burguês e Nietzsche, situam-se o obscurecimento romântico das tradições clássicas durante o período da Santa Aliança, a traição da burguesia alemã à sua própria revolução em 1848 e posteriormente, bem como a sua capitulação diante da “monarquia bonapartista” (Engels) dos Hohenzollern, respeitada por Bismarck. Nietzsche, portanto, recolhe a herança do período clássico já hipotecada a todas essas mediações reacionárias. E, embora seja o último grande pensador alemão que mantém uma relação viva com aquela herança, precisamente por isso, pela paixão subjetiva com que se apropria de tal herança, Nietzsche se converte no coveiro das tradições clássicas alemãs. Sua polêmica destrói o academicismo vazio da trivialização liberal das tradições gregas dos clássicos, assim como o faz com a estreita veneração da Idade Média, com a retórica cristã-obscurantista dos românticos. Ao mesmo tempo, porém, transforma a herança clássica, o mundo grego, o Renascimento, os séculos XVII e XVIII franceses e o classicismo alemão num mito da barbárie decadente.
E esta transformação conteudística da herança das tradições clássicas se acompanha, em Nietzsche, da destruição metodológica dos caminhos que possibilitariam a reelaboração da própria herança. Nietzsche liquidou metodologicamente o modo filológico, tedioso e pedante desta apropriação da herança, o historicismo dos liberais e dos românticos tardios. No seu lugar, todavia, coloca o método da construção arbitrária, a fantasiosa transformação da história em mitos, a “engenhosa” manipulação da história, dos homens e das épocas. Em Nietzsche, a conexão real das grandes figuras da história com as lutas reais de suas respectivas épocas desaparece ainda mais resolutamente do que em seus vulgares e superficiais opositores. Para Nietzsche, cada figura histórica de decompõe em traços psicológicos isolados, com os quais se pode construir, à vontade, qualquer mito de que se careça. Como pensador subjetivamente honesto, Nietzsche tinha clareza sobre esse seu método: “Só o pessoal é eternamente irrefutável. É possível, com três pinceladas, dar a imagem de um homem; eu procuro extrair de cada sistema três pinceladas e prescindo do resto". É assim que Nietzsche se constitui no grande antepassado de todas as construções históricas arbitrárias e de todas as míticas fabulações do período imperialista — do impressionismo ao expressionismo, de Simmel a Gundolf etc., e, mais tarde, de Spengler a Moeller van der Bruck e a Jünger,[13] e, ainda mais tarde, a Rosenberg e Goebbels, estende-se um mesmo e único caminho que, na Alemanha, Nietzsche foi o primeiro a percorrer.
No fascismo, os resultados a que se chega por este caminho são tão grosseiros que toda a herança cultural não passa aqui de pretextos para slogans demagógicos. A forma e o conteúdo da herança progressista da evolução da humanidade estão, sob o fascismo, perdidos para a burguesia. Mas o fascismo, por sua vez, herda um longo processo evolutivo, em cujo ponto de inflexão se encontra Nietzsche; para este processo contribuíram também, sem o saber nem querer, muitos inimigos burgueses do fascismo. Em suma: o mais claro reconhecimento da diferença entre o nível ideológico de Nietzsche e o de seus herdeiros fascistas não pode eliminar o fato histórico básico de que Nietzsche é, efetivamente, um dos mais importantes precursores do fascismo.
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Notas:
[1] Alfred Rosenberg (1893-1946), nascido na Estônia, discípulo do racista inglês H. S. Chamberlain (1855-1927), foi também responsável pelos territórios orientais ocupados pelo exército nazista. Condenado à morte pelo Tribunal de Nuremberg.[2] Stefan George (1868-1933), influente poeta que reuniu em torno de si (“Círculo de George") importantes membros da intelectualidade de língua alemã. Apesar de protofascista, seu aristocratismo afastou-o dos nazistas. Logo depois da chegada destes ao poder, autoexilou-se na Suíça.[3] Joseph von Görres (1776-1848), publicista inicialmente adepto da Revolução Francesa, depois abertamente conservador. Johann J. Bachofen (1815-1887), professor da Universidade de Basileia, estudioso da evolução da família.[4] Arthur Moeller van der Bruck (1876-1925), escritor, influente na formação dos primeiros círculos fascistas.[5] Adam Ferguson (1723-1816), professor em Edimburgo, autor de vasta obra, o maior iluminista escocês.[6] D. F. Strauss (1808-1874), membro da “esquerda hegeliana”, foi autor da célebre Vida de Jesus (1835-1836) que, na Alemanha, abriu a via ao materialismo.[7] George C. Lichtenberg (1742-1799), filósofo e escritor.[8] Adalbert Stifter (1805-1868), austríaco, poeta e pedagogo. Gottfried Keller (1819-1890), suíço, romancista muito admirado por Lukács.[9] Paul Charles Joseph Bourget (1852-1935), poeta, dramaturgo, célebre por seus “romances psicológicos”, era membro da Action Française, um movimento político monarquista e de ultradireita.[10] Pierre Loti (pseudônimo de Louis-Marie Julien Viaud, 1850-1923), romancista, membro da Academia Francesa desde 1891; Gyp (pseudônimo de Sybelle Gabriele Mirabeau, condessa de Janville Martel, 1849-1932), escritora de romances em série, antissemita; Henri Meilhac (1831-1897), escritor de libretos de ópera, membro da Academia Francesa desde 1888; Anatole France (pseudônimo de Jacques Anatole François Thibault, 1844-1924), Prêmio Nobel de Literatura de 1921; Jules Lemaïtre (1853-1914), escritor, membro da Action Française.[11] Ernst Mach (1838-1916), austríaco, físico e filósofo, que exerceu grande influência também na Rússia e foi criticado por Lenin em Materialismo e empiriocriticismo.
[12] Bernard de Mandeville (1670-1733), médico holandês radicado na Inglaterra, autor satírico da Fábula das abelhas (1714), na qual, registrando o fato de que a produção de bens de luxo gera empregos, ironiza dizendo que, na sociedade presente, "os vícios privados tornam-se virtudes públicas".
[13] Ernst Jünger (1895-1998), entomologista e escritor. Depois de 1934 — ano em que Lukács escreveu este ensaio —, afastou-se dos fascistas.
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LUKÁCS, G. “Nietzsche como precursor da estética fascista”. In: Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. 2 ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 121-159.
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Muito bom e de total acordo!
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