segunda-feira, 2 de setembro de 2019

O mundo fetichizado e o fetiche da liberdade



por György Lukács

Construo o universal escolhendo-me.
(J.-P. Sartre, L' existentialisme est un humanisme)


O existencialismo não é somente a filosofia da morte, mas também a da liberdade absoluta. Eis aí uma das razões mais importantes da popularidade do existencialismo de J.-P. Sartre, mas é aí que reside igualmente — por mais absurdo que isso possa parecer à primeira vista — o lado reacionário de sua influência atual. Heidegger, como vimos, considera que o “ser-para-a-morte” é a única possibilidade da existência se realizar. Sartre, por sua vez, destrói essa teoria por meio de raciocínios engenhosos.

Essa divergência, que separa Sartre de Heidegger, atesta não somente uma diferença entre a atitude dos intelectuais franceses e a dos intelectuais alemães frente e às questões mais importantes da vida, mas reflete também a evolução dos acontecimentos. A obra fundamental de Heidegger apareceu em 1927, nas vésperas do advento do fascismo, na atmosfera sufocante que precede a tempestade. Ignoramos quando o livro de J.-P. foi escrito, mas o ano de sua publicação, 1943, situa-se numa época em que era já possível prever o desmoronamento do fascismo e onde — precisamente por causa da tirania que durava há muito tempo — o desejo da liberdade era a experiência mais intensa e mais profunda dos intelectuais europeus, em particular nos países de velhas tradições democráticas. Convém sublinhar que se tratava, para esses intelectuais, de uma liberdade abstrata, isenta de toda diferenciação. Essa imagem de uma liberdade mitificada, desprovida de todo contorno preciso, convinha perfeitamente para atrair todos os inimigos do fascismo, sem a menor distinção de origem ou tendência. Antes de mais nada, somente uma coisa contava para esses homens vindos de todos os horizontes: dizer “não” ao fascismo. Quanto mais seu protesto era vazio de conteúdo, mas se adaptava às suas aspirações inconscientes. Esse protesto abstrato e seu reflexo teórico, a noção abstrata de liberdade, assumiam, para muitos, a função do mito da Resistência. Veremos aliás que a noção de liberdade é perfeitamente abstrata em Sartre. Eis porque o existencialismo, reflexo fiel do clima espiritual dessa época, pôde fazer repentinamente conquistas tão impressionantes.

Mas, depois da queda do fascismo, a edificação e consolidação da democracia encontram-se no centro da preocupação da opinião popular de todos os países. Todas as discussões sérias tendem a determinar a natureza da democracia nova desse regime de liberdade que será edificado sobre as ruínas deixadas pela barbárie fascista e que terá por missão impedir para sempre o retorno do fascismo e da guerra.

O existencialismo conseguiu manter sua popularidade nesse mundo transformado e parece mesmo que está em vias  — o de Sartre, bem entendido, e não o de Heidegger — de partir  para a conquista do mundo. O lugar central que atribui à liberdade é certamente nele muito maior. Somente, a liberdade não é mais um mito: o desejo de liberdade retomou formas concretas e manifesta-se com vigor; a interpretação da noção de liberdade desencadeia debates apaixonados e lutas ferozes. Como explicar então que, nessas condições, o existencialismo e sua liberdade rígida e abstrata possam pretender conquistar o mundo? Mais exatamente: onde o existencialismo recruta hoje seus partidários e qual é a força de persuasão que emana dessa nova filosofia da liberdade? Para responder a essa questão e para melhor compreender o segredo do sucesso do existencialismo, é indispensável examinar de mais perto a noção de liberdade, tal como é definida pela filosofia de Jean-Paul Sartre.

A liberdade é, segundo Sartre, o dado fundamental da existência humana. “De fato, diz Sartre, somos uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos ser livres: somos condenados à liberdade...”[1]. Estamos, diz ele ainda, lançados na liberdade. Sartre aplica aqui à liberdade uma noção criada por Heidegger, a Geworfenheit (derrelição). A liberdade seria então, de alguma maneira, a fatalidade da existência humana.

Esse caráter fatal da liberdade atravessa, segundo Sartre, toda  a existência humana. O homem não poderia escapar à liberdade de escolha; não escolher é ainda escolher e a renúncia à ação é ainda uma ação livremente escolhida. Desde os fatos mais terra-a-terra da vida cotidiana até às questões últimas da metafísica, Sartre sublinha sempre esse papel essencial da liberdade. Faço uma excursão com alguns amigos. Num dado momento sinto-me fatigado, minha mochila me pesa muito e eis-me na obrigação de uma escolha livre: posso continuar a caminhar ao lado de meus amigos, ou posso escolher desembaraçar-me de meu fardo e sentar-me à margem do caminho. E é assim em Sartre, mesmo nos problemas mais abstratos da existência humana, em todos os projetos onde se manifesta a escolha livre do homem. O projeto é, aliás, uma categoria absolutamente essencial da teoria da liberdade em Sartre. O objeto do projeto mais elevado do homem é nada menos do que Deus. “Assim, pode-se dizer, escreve Sartre, que o que melhor torna concebível o projeto fundamental da realidade humana, é que o homem é o ser que projeta ser Deus... Ser homem é tender a ser Deus”[2]. Esse ideal de divinização de si mesmo significa, traduzido na linguagem da filosofia: atingir ao grau do Ser que a antiga filosofia designava pela expressão causa sui e que significa a autodeterminação soberana do Ser.

Assim como podemos ver, a noção sartreana da liberdade é muito vasta. É aliás o que explica seu caráter pouco flutuante, que torna toda definição exata impossível. Essa impossibilidade é ainda acentuada pelo fato de que Sartre rejeita por princípio todo critério objetivo que possa servir para a definição de liberdade. A essência da liberdade, que é a escolha, reside para Sartre no fato de que o homem escolhe-se a si mesmo como ainda não existente e incognoscível por princípio. Essa atitude está exposta a um perigo permanente que é o de se tornar outro daquilo que se é. Ora, aqui não existe mais em Sartre nenhuma marca moral. A covardia, por exemplo, resulta de uma escolha livre tanto quanto a coragem:

Meu medo é livre — diz ele —, e manifesta minha liberdade; coloquei toda minha liberdade no meu medo e me escolhi medroso em tal ou tal circunstância; numa outra, existiria como voluntário e corajoso e teria colocado toda minha liberdade em minha coragem. Não há, em relação à liberdade, nenhum fenômeno psíquico privilegiado.[3]

Diga-se de passagem que aqui também Sartre “abre um parênteses” e o faz de uma maneira totalmente arbitrária. Coragem e covardia não são, com efeito, somente fenômenos psíquicos, mas também categorias morais. O capricho do filósofo basta para determinar se tal ou tal noção pertence ou não à realidade, pois o sadismo e o masoquismo são em Sartre fatos ontológicos, enquanto que a coragem e a covardia são apenas fenômenos psíquicos subjetivos.

A noção sartreana de liberdade torna-se assim completamente irracional, arbitrária e incontrolável. Sartre esforça-se aliás continuamente para suprimir toda limitação. Em Heidegger, o “ser-para-a-morte” permite ainda uma classificação dos comportamentos humanos que podem ser autênticos ou privados de autenticidade. Esses comportamentos permitem ver se o indivíduo chegou ou não a ultrapassar o plano do “se” e o descrédito que lhe é inerente, para realizar sua existência pessoal. Mas Sartre, como já vimos, rejeita o critério heideggeriano da autenticidade da existência humana, isto é, a morte pessoal. Rejeita também toda definição e toda hierarquia dos valores éticos que Scheler, antes dele esforçara-se por estabelecer pelos meios arbitrários da fenomenologia. Sartre rejeita também toda correlação entre a escolha livre e o passado do ser humano, isto é, o princípio da continuidade do ser humano. E para terminar, rejeita ainda o critério kantiano do imperativo categórico.

É verdade que ele parece ter recuado, um pouco assustado, pelas consequências possíveis de sua atitude. No seu escrito polêmico, declara, com efeito, que “nada pode ser bom para nós sem o ser para todos”[4], e mais adiante: “sou obrigado a querer, ao mesmo tempo que minha liberdade, a liberdade dos outros; não posso tomar minha liberdade por fim, se não tomar igualmente a dos outros por fim”[5]. Isto soa certamente muito bem, mas nada mais é para Sartre do que um compromisso eclético com os princípios da moral kantiana que precedentemente rejeitou. Não podemos deter-nos aqui para demonstrar porque Kant não conseguiu a universalização formal da moral do idealismo subjetivo; certos escritos da juventude de Hegel fornecem aliás uma resposta muito perspicaz a essa questão. Mas, se bem que a universalização objetiva do imperativo categórico seja logicamente indefensável em Kant, é certo que organicamente faz parte dos fundamentos mais profundos da sua filosofia e em particular da sua concepção da sociedade e da história. Quanto a Sartre, essa generalização corresponde apenas a um compromisso eclético com a opinião filosófica adquirida no classicismo, pois semelhante objetivação da sua noção de liberdade contradiz formalmente toda sua ontologia.

Em L'êntre et le néant, onde toda concessão análoga está ausente, encontra-se o ponto de vista integral do solipsismo ontológico. Aí, o objeto e a finalidade da escolha livre só podem ser interpretados e só têm sentido pelo próprio sujeito que escolhe. Assim, é fácil constatar uma contradição formal entre L'être et le néant e L' existentialisme est un humanisme. Em L'être et le néant notamos, com efeito, a seguinte passagem:

Assim, o respeito à liberdade de outrem é uma palavra vã: mesmo se projetássemos respeitar essa liberdade, cada atitude que tomássemos para com outrem seria uma violação dessa liberdade que pretendíamos respeitar.[6]

E, algumas linhas acima, um exemplo paradoxal mas muito preciso vem esclarecer essa concepção:

Realizar a tolerância em torno de Outrem é fazer com que Outrem seja atirado à força num mundo tolerante. É tirar-lhe por princípio suas livres possibilidades de resistência corajosa, de perseverança, de afirmação de si que teria ocasião de desenvolver num mundo intolerante.[7]

A contradição é evidente. Certamente não nos compete controlar a ortodoxia do existencialismo e se houvesse aí apenas uma concessão feita para facilitar a expansão da doutrina, não insistiríamos. Mas, parece-nos, essa contradição é inerente ao fundamento mesmo do existencialismo. Pensamos no solipsismo ontológico e no irracionalismo. O primeiro ensina-nos que somente a liberdade individual existe, isto é, da escolha que adota, e todo o resto é apenas objeto inerte em relação a esse único ato real. O segundo nos diz nos diz que é absolutamente impossível saber o que quer que seja a respeito dessa única realidade, que não tem passado e cujo futuro, desde que se realize, torna-se um passado imediatamente aniquilado. Estamos portanto a cada instante em uma situação radicalmente nova, necessitando uma decisão radicalmente nova, um novo ato de nossa liberdade.

Para evitar esse niilismo vizinho da loucura, Sartre é obrigado a violar a lógica. É apenas assim que lhe é possível aportar num mundo que existe efetivamente e que não poderia dispensar. O instrumento dessa passe de mágica é a lógica formal, a generalização rígida de uma ideia. O procedimento é comum a todas as escolas do irracionalismo moderno. É ele que permite a Sartre construir sua concepção fatalista da liberdade.

Aceitemo-la por um instante, nem que seja para tentar a experiência. Ela nos conduzirá a novas contradições insolúveis. Com efeito, se todo ato é liberdade (subo no trem, acendo um cigarro ou deixo de fazê-lo), o mundo onde vivo será exatamente o determinismo extremo. Heidegger sabe muito bem que não poderia falar de um ato livre a não ser que reconhecêssemos que existe igualmente atos que não são livres. A nivelação sartreana de todas as manifestações da existência humana assemelha-se à concepção determinista, salvo que, para o determinismo, essas manifestações inscrevem-se em sistemas racionalmente construídos, enquanto que, em Sartre, são, a priori, privados de todo sentido. A hipótese sartreana da noção de liberdade esvazia todo sentido da própria liberdade.

Guardemo-nos entretanto de ver aqui um defeito fortuito do sistema de Sartre. Estamos, ao contrário, em presença de um ponto essencial da metodologia de todas as filosofia modernas. O pensamento irracionalista descobre, na existência humana, fatos de natureza dialética. Mas, ao invés de examiná-los à luz do método dialético, tenta tratá-los por um irracionalismo impedido de cair aos pedaços pelo colete de ferro da lógica formal. O que só pode ter sentido enquanto elemento de uma relação dialética, torna-se assim absurdo. Toda verdade hipostasiada torna-se fatalmente absurda.

Vejamos agora onde se encontra em Sartre esse elemento de verdade. Na nossa opinião, consiste na acentuação da importância da decisão individual, que o determinismo burguês e o marxismo vulgar subestimam habitualmente. Toda atividade social compõe-se atos individuais e a influência que as condições materiais exercem, por  importante que seja, não se realiza, como disse Engels, senão em “última instância”. Isso significa que no momento de tomar uma decisão, o indivíduo encontra sempre diante dele uma certa margem de liberdade, no interior da qual a necessidade histórica determina, cedo ou tarde, a decisão a tomar. O simples fato da existência de partido políticos demonstra a realidade dessa margem de liberdade. As tendências essenciais da evolução social são perfeitamente previsíveis, mas — como já disse Engels — seria um pedantismo ridículo querer deduzir delas exatamente como Pedro e Paulo decidirão em tal ou tal circunstância dada. A necessidade histórica faz-se sempre valer através de uma multidão de acasos interiores e exteriores. Reconhecer a importância destes, analisar sua função, constituiria uma tarefa científica muito séria.

É preciso dizer que Sartre não se dedicou a essa tarefa? É evidente, porque nega a necessidade da evolução assim como a própria evolução, tanto no plano social como no indivíduo, sendo dado que a escolha é independente, para ele, de todo o passado. Nega as relações reais que unem o indivíduo à sociedade; faz um mundo à parte das relações objetivas que envolvem o homem, e as  relações humanas que enriquecem a existência são para ele apenas relações entre indivíduos isolados. A noção de liberdade fatalista e mecânica, construída nessa base, só pode aniquilar-se a si mesma. Para dizer a verdade, quase não se assemelha à categoria moral da verdadeira liberdade e não vai mais longe que essa constatação ocasional de Engels, segundo a qual não há ato humano onde a consciência não desempenhe um papel mediador.

Tudo nos leva a crer que Sartre dá-se perfeitamente conta daquilo que sua noção de liberdade pode ter de problemática. Recusa entretanto abandonar seu método e escolhe antes a solução que consiste em salvaguardar o equilíbrio do seu sistema, opondo à sua concepção sobrecarregada e absurda da liberdade uma outra concepção da mesma natureza: a de responsabilidade. A noção de responsabilidade é com efeito tão absoluta e ilimitada em Sartre quanto a de liberdade. “Se preferi a guerra à morte ou à desonra — diz ele —, tudo se passa como se eu carregasse toda a responsabilidade dessa guerra”[8].

Uma vez mais, uma verdade relativa é levada por Sartre ao absurdo, por meio da lógica formal. A noção de responsabilidade tem a mesma sorte que a de liberdade, isto é, perde seu sentido, porque uma concepção assim rígida da responsabilidade nada mais quer dizer teoricamente e equivale à irresponsabilidade total do ponto de vista da ação prática. Dostoievsky, esse mestre inigualável da psicologia, demonstrou várias vezes que os preceitos morais hipertensos não exercem nenhum influência sobre as ações de seus autores e que em consequência os homens que os professam são moralmente muito mais oscilantes do que aqueles que não têm princípios tão rígidos. Nada é mais fácil que cometer traição sobre traição, como o cinismo mais frívolo, sob a cobertura de um sentimento de responsabilidade completamente verbal, levada ao extremo no plano teórico.

É preciso reconhecer aliás que esse problema não é absolutamente estranho a Sartre. Ele o entrevê, sem querer tirar dele a menor consequência e o mitifica, até esvaziá-lo de todo sentido. “Aquele que realiza na angústia sua condição de ser lançado numa responsabilidade que se volta sobre seu abandono, não tem nem remorso, nem queixa, nem desculpa...”[9]. Da mesma forma que o sublime e o ridículo estão frequentemente separados apenas por um passo, a grandeza moral, em certos casos, pode roçar o cinismo e a frivolidade.

Se acreditamos útil insistir a tal ponto na falência filosófica da noção de liberdade em Sartre, é porque vemos aí o segredo do sucesso do existencialismo em certos meios. O nobre desprezo das considerações sociais e da vida pública, a interpretação abstrata, irracional e absurda das noções de liberdade e de responsabilidade na defesa da integridade ontológica do indivíduo: eis em que se constitui toda a atração do mito do Nada aos olhos dos esnobes. O que pode haver de mais atraente, com efeito, do que esse estranho casamento de um extremismo completamente verbal dos princípios com o niilismo absoluto da moral?

A concepção sartreana da liberdade fornece, além disso, uma excelente base ideológica aos intelectuais sempre presos a um individualismo extremo para motivar sua recusa em participar na obra de construção e de consolidação da democracia. Todos os que aceitam a liberdade absoluta, todos os que defendem a liberdade metafísica, mesmo quando é praticamente a dos inimigos da liberdade, saudarão com alegria o existencialismo.

A obra de J.-P. Sartre não é certamente fascista nem pró-fascista. Entre seus adeptos, estamos convencidos, há democratas sinceros. Somente, as grandes correntes espirituais desdenham, na sua orientação, as intenções subjetivas dos pensadores. Para parafrasear Molière, essas grandes correntes tiram vantagem de onde querem, e o existencialismo ameaça tornar-se um dia — se bem que involuntariamente — a ideologia da reação.

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Notas:
[1] L' être et le néant, p. 565.
[2] Ibid., p. 653.
[3] Ibid., p. 521.
[4] L'existentialisme est un humanisme, p. 25-26.
[5] Ibid., p. 83.
[6] Ibid., p. 480. 
[7] Idem. 
[8] Ibid., 640. 
[9] Ibid., p. 642.
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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências humanas, 1979, p. 89-100
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