por György Lukács
É absurdo que tenhamos nascido, é absurdo que tenhamos que morrer.
(J.-P. Sartre, L'être et le néant)
Seria um erro crer que esse estreitamento abstrato da realidade e essa desfiguração idealista pudessem ser o efeito, num pensador de elite, de uma intenção consciente de enganar seu mundo. Ao contrário: pode-se dizer que as experiências vividas, sobre as quais se funda o comportamento que se manifesta pela intuição da Wesensschau, são tão sinceras e espontâneas quanto possível. É evidente, no entanto, que essa sinceridade não poderia ser a garantia de sua verdade objetiva. Sua espontaneidade atesta mesmo a sujeição absoluta, e desprovida de toda crítica, dessas experiências vividas a esse fenômeno fundamental da sociedade capitalista que é o fetichismo.
A existência humana tornou-se insignificante. Os laços profundos que mantêm a unidade da existência se relaxam, o homem perde sua personalidade e a própria vida obriga-o tomar consciência desse fato. É a história de Peer Gynt que, descascando a cebola, encontra apenas camadas sucessivas, sem poder chegar à “cebola em si mesmo”...
O indivíduo é, portanto, finalmente obrigado a se colocar a seguinte questão: como dar sentido a minha existência? O homem que vive num mundo fetichizado ignora que a riqueza, o valor e o conteúdo verdadeiro de sua existência encontram-se em ramificações numerosas e profundas que o ligam à existência de seus semelhantes e à da sociedade. O indivíduo isolado e egocêntrico que vive só para si, vive num mundo empobrecido. Quanto mais suas experiências pertencem-lhe exclusivamente, mais são exclusivamente interiores e mais correm o risco de perder todo conteúdo e de se perder no nada.
O homem que vive num mundo fetichizado não pode vencer o vazio interior senão por uma espécie de embriaguez contínua, assim o morfinômano não vê saída senão no aumento da dose, quando seria o caso para ele reorganizar sua vida de tal maneira que não tivesse mais necessidade de seu veneno. Eis porque o homem que vive num mundo fetichizado não poderia reconhecer que foi a perda de todo contato com a vida pública, a reificação do processo do trabalho, o desligamento do indivíduo da vida social — consequência da divisão capitalista do trabalho — que lhe inspirou a necessidade dessa embriaguez permanente. Incapaz de reconhecer a realidade, persiste na sua evolução fatal e sua atitude corresponde a uma necessidade subjetiva, porque a sociedade capitalista é necessariamente fetichizada, alienada e desumana. É então somente a atitude revolucionária, frente aos próprios fundamentos dessa sociedade, que pode dar uma clara visão do conjunto da realidade. A fuga para a interioridade leva a um impasse tragicômico.
O indivíduo é, portanto, finalmente obrigado a se colocar a seguinte questão: como dar sentido a minha existência? O homem que vive num mundo fetichizado ignora que a riqueza, o valor e o conteúdo verdadeiro de sua existência encontram-se em ramificações numerosas e profundas que o ligam à existência de seus semelhantes e à da sociedade. O indivíduo isolado e egocêntrico que vive só para si, vive num mundo empobrecido. Quanto mais suas experiências pertencem-lhe exclusivamente, mais são exclusivamente interiores e mais correm o risco de perder todo conteúdo e de se perder no nada.
O homem que vive num mundo fetichizado não pode vencer o vazio interior senão por uma espécie de embriaguez contínua, assim o morfinômano não vê saída senão no aumento da dose, quando seria o caso para ele reorganizar sua vida de tal maneira que não tivesse mais necessidade de seu veneno. Eis porque o homem que vive num mundo fetichizado não poderia reconhecer que foi a perda de todo contato com a vida pública, a reificação do processo do trabalho, o desligamento do indivíduo da vida social — consequência da divisão capitalista do trabalho — que lhe inspirou a necessidade dessa embriaguez permanente. Incapaz de reconhecer a realidade, persiste na sua evolução fatal e sua atitude corresponde a uma necessidade subjetiva, porque a sociedade capitalista é necessariamente fetichizada, alienada e desumana. É então somente a atitude revolucionária, frente aos próprios fundamentos dessa sociedade, que pode dar uma clara visão do conjunto da realidade. A fuga para a interioridade leva a um impasse tragicômico.
Enquanto as bases da sociedade capitalista pareciam inabaláveis, isto é, até a época precedente à Primeira Guerra Mundial, a vanguarda da inteligência burguesa vivia no meio de uma espécie de carnaval permanente da interioridade fetichizada. Certamente, mais de um grande escritor previu claramente a catástrofe inevitável. Pensemos em Ibsen, em Tolstoi, em Thomas Mann e em tantos outros. Esse carnaval deslumbrante, em que se percebia, no entanto, frequentes ecos delirantes, exercia uma fascinação irresistível. As filosofias de Simmel e de Bergson, parte dominante da atividade da época, ilustram claramente o que queremos dizer. O exemplo mais eloquente é talvez o chiste de Oscar Wilde, segundo o qual o nevoeiro de Londres não existiria sem os quadros de Turner.
Mais de um grande escritor da época, mais de um pensador, via claramente que o que sucedia era a perda de substância do eu fetichizado. Mas o reconhecimento dessa verdade só poderia ter como resultado, no máximo, a projeção de certas perspectivas trágicas ou tragicômicas, destinadas a servir de segundo plano à festa cintilante do carnaval. Os fundamentos fetichizados da vida pareciam ser tão naturais e tão inabaláveis, que era impossível submetê-los a uma crítica ou mesmo a um exame pouco sério. A única dúvida que surgia às vezes era comparável à daquele hindu, convencido de que o mundo repousava sobre o dorso de um elefante e que se permitiu um dia colocar a questão de saber sobre o que se apoiava o elefante. Tendo aprendido que era uma tartaruga que servia de pedestal àquele, nosso hindu achou a resposta perfeitamente satisfatória. A consciência individual estava a tal ponto submetida à sugestão do fetichismo social, que quando a Primeira Guerra Mundial problematizou toda possibilidade de existência, quando esse abalo universal transformou todos os objetos possíveis do pensamento humano, revalorizando todos os princípios estabelecidos, quando enfim a grande penitência sucedeu ao carnaval do individualismo puro, a estrutura fundamental dos problemas da filosofia permaneceu quase inalterável.
A orientação e a missão da fenomenologia deviam, entretanto, sofrer uma transformação importante e foi essa transformação que determinou as origens desse existencialismo propriamente dito que é a filosofia de Heidegger e de Jaspers. É relativamente fácil resumir a experiência vivida que serve de base para essa filosofia: o homem encontra-se em face do vazio, do Nada; a relação fundamental entre o homem e o mundo corresponde à situação do vis-à-vis de rien.[1]
Essa situação decorre, segundo o existencialismo, da essência da realidade humana. De fato, corresponde a um estado da consciência individual fetichizada, que reflete a crise do imperialismo.
A originalidade da experiência vivida que acabamos de resumir sumariamente é muito relativa. Depois de Edgar Allan Poe, que foi sem dúvida o primeiro a representar uma tal situação do homem e as atitudes que dela decorrem, a literatura moderna familiarizou-nos com a condição do homem levado à beira do abismo, privado de toda saída, condição que a fenomenologia resume na noção de face ao nada.
A representação dessa condição do homem corresponde nos grandes escritores ao reflexo subjetivo de uma situação objetiva. Mais exatamente, é a representação de uma atitude precisa, ela mesma função das circunstâncias e dos lados do caráter, em uma situação concreta, perfeitamente real e muito bem determinada. Bastará pensar na situação de Raskolnikov após o assassinato, ou em Svidrigailov ou Stavroguin compelidos ao suicídio. Trata-se, em cada um desses casos, de uma forma particular da evolução trágica, forma tomada à vida atual e que permite a um escritor autêntico criar destinos e caracteres especificamente atuais, mas tão vivos e tão trágicos como foram Édipo ou Hamlet na sua época.
São essas mesmas situações, enquanto situações-tipo que servem de ponto de partida para Heidegger. A particularidade de sua filosofia consiste em inscrever, com o auxílio do método extremamente complexo da fenomenologia, o conjunto do problema na estrutura fetichizada da psicologia burguesa, ou mais exatamente, no pessimismo niilista e sem saída da inteligência burguesa do período entre guerras.
Quais são então as operações inspiradas pelo fetichismo da fenomenologia e da ontologia às quais Heidegger submete essa experiência vivida, fundamental, para dela derivar o sistema filosófico autônomo do existencialismo? A primeira fetichização é criação da noção do Nada. Tocamos aqui o problema que se encontra no centro mesmo da ontologia, da exploração da realidade, tanto em Heidegger como em Sartre. No primeiro, o Nada é um dado ontológico tanto quanto a existência. No segundo, o Nada não tem existência independente do ser, é absolutamente inseparável dele.
Voltemos agora à nossa análise metodológica. Examinando, à luz da fenomenologia, a personalidade de Stavroguin e sua atitude na situação de “face ao nada” em que se encontra ao fim do livro de Dostoievsky e, encerrando, conforme as prescrições do método fenomenológico, o problema da realidade objetiva num parênteses para examinar somente os atos psíquicos de Stavroguin e seus objetos intencionais, veremos que o objeto intencional da experiência vivida de Stavroguin é um vazio sem saída. Feito isso, resta-nos apenas seguir o procedimento de Scheler no caso do Diabo, isto é, suprimir o parênteses, para nos encontrar diante do Nada, valor central da nova ontologia. Assim, teremos compreendido o passe de mágica da fenomenologia que faz até o fim abstrato de toda realidade objetiva e concreta, de que a experiência vivida, que é a de Stavroguin, numa situação objetiva dada, torna-se, para a fenomenologia, um objeto isolado e autônomo: um fetiche. Quanto à situação que deu lugar a essa experiência vivida, perde todo caráter de realidade. É assim que se constitui a categoria do Nada, provido de uma existência real.
O Nada é um mito; é o mito da sociedade capitalista condenada à morte pela história. Há algumas décadas, a situação de “face ao nada” pôde ser vivida por indivíduos-tipos como Stavroguin ou Svidrigailov. Agora, é toda uma sociedade, e classes sociais inteiras que se encontram nessa situação.
Mas o processo de fetichização não termina aí. Com efeito, se o Nada fosse apenas o precipício qual vou (talvez, ou mesmo fatalmente) cair, o existencialismo não seria ainda um sistema filosófico universal, capaz de fornecer a solução para todos dos problemas da existência. Heidegger, Jaspers e Sartre estendem com efeito o mito do Nada a toda existência. Para Heidegger, a própria vida é o estado de derrelição — Geworfenheit — no Nada e todos os instantes dessa vida manifestam a interação pseudodialética dessa origem e dessa perspectiva final.
Por essa mesma razão, o existencialismo obstina-se em ensinar que é totalmente impossível saber o que quer seja sobre o homem. Não que negue a ciência em geral. O existencialismo reconhece o valor prático do conhecimento científico. Mas contesta a todas as ciências o direito de ter acesso a um conhecimento essencial em relação ao único problema de importância: a relação entre a pessoa humana e a vida. Afirma, para empregar sua própria linguagem, que o homem é sua própria realidade-humana. A assim superioridade do existencialismo sobre as filosofias antigas consiste precisamente no abandono radical da pesquisa de um tal conhecimento. “O existencialismo, disse Jaspers, estaria perdido no momento em que pretendesse saber de novo o que é o homem”. Essa ignorância voluntária, radical e fundamental está sublinhada tanto em Heidegger como em Sartre. Ora, — e isto está longe de ser uma anedota — é precisamente esse niilismo radical, esse abandono consequente do conhecimento mais importante, que é a explicação do enorme sucesso do existencialismo. A doutrina que ensina que a vida está por excelência privada de toda perspectiva e que o sentido da existência é inacessível a todo conhecimento é bem acolhida por todos aqueles que acham que sua existência está privada de toda perspectiva e que sua vida não tem nenhum sentido.
É aqui que o existencialismo encontra o irracionalismo moderno, essa vasta corrente espiritual de nosso tempo que se propõe destronar a razão. À primeira vista, a fenomenologia e a ontologia são, entretanto, absolutamente incompatíveis com as tendências correntes do irracionalismo, por causa de seu caráter rigorosamente científico. Husserl era mesmo discípulo da escola logística mais intransigente (Bolzano e Brentano). Basta no entanto examinar, mesmo não atentamente, seu método, para descobrir sua ligações íntimas com Dilthey e Bergson, mestres do irracionalismo moderno. Mais tarde, quando Heidegger tomou para si certas ideias mestras de Kierkegaard, essas ligações tornaram-se ainda mais evidentes.
Estamos aqui em presença de um fato que é mais importante que uma simples coincidência metodológica. À medida que o existencialismo faz da fenomenologia seu método, toma por seu principal objeto a irracionalidade fundamental do indivíduo e, consequentemente, do conjunto da existência. Seu paralelismo com as outras correntes espirituais antirracionalistas torna-se, então, cada vez mais evidente. “O ser é irracional, sem causa e sem necessidade; a própria definição do ser nos mostra sua contingência original”[2], diz Sartre.
Falamos até o presente somente do Nada. Apenas afloramos o próprio ser e sua pretensa impermeabilidade ao conhecimento. É, portanto, com justiça, parece, que poderiam perguntar-nos: onde está então a existência no existencialismo? A resposta deve ser procurada no sentido da negação. A existência, segundo o existencialismo, é o que falta à realidade humana. O ser humano, diz Heidegger, “só pode definir-se a partir de sua existência, isto é, de sua possibilidade de ser ou não ser o que ele é”.
Encontramos aqui o problema da perda da substância contínua da existência humana, da qual já falamos. Vimos o sentido antissocial e associal que as correntes dominantes do pensamento moderno dão a esse problema. Ainda aqui a obra de Heidegger situa-se no topo dessa evolução. E existência cotidiana do homem nela está submetida a uma análise muito detalhada, com a ajuda do método que já conhecemos. Em Heidegger, a vida do homem, a “realidade-humana” é o “ser-com-outro” (Miteinandersein) e, ao mesmo tempo, “ser-no-mundo” (In-der-Welt-sein). Este “ser” está construído em torno da figura central mitificada do “se” (das Man). Esse pronome impessoal, que se tornou uma categoria mitificada da ontologia heideggeriana, representa o símbolo de todas as funções da vida social; é tudo o que distancia o homem de sua própria existência, desvia sua atenção da essência, priva a vida humana de seu sentido profundo. As diversas manifestações do “se” são, segundo Heidegger, o palavrório, a curiosidade, o equívoco, o descrédito. O que pretende viver sua própria vida, deve, segundo Heidegger, viver para sua própria morte: viver de tal maneira que a morte não seja uma ruptura inesperada, em relação à sua existência, mas antes “sua própria morte”. A existência digna desse nome não encontra sua realização verdadeira, para Heidegger, senão nessa morte pessoal.
Aqui ainda o arbitrário total, o subjetivismo sem limite e mascarado por uma pseudo-objetividade, da “ontologia fundamental” são evidentes. A obra de Heidegger, “essa confissão de um burguês do período entre guerras”, é plena de interesse. Sein und Zeit (1927) é uma leitura, ao menos, tão interessante quanto o grande romance de Céline, Voyage au bout de la nuit (1932), mas — assim como o romance de Céline — não constitui a “revelação ontológica” de qualquer “realidade última”. É simplesmente um documento revelador do universo intelectual e sentimental de uma classe social de uma época. Convém demasiado bem ao clima psicológico da intelligentzia atual, para que o arbitrário dos pseudo-raciocínios sobre os quais se funda possa tornar-se facilmente evidente. O absurdo da vida e a imagem abstrata da morte que lhe é oposta são para um grande número de nossos contemporâneos uma experiência pessoal. Constituem, por assim dizer, a base inconsciente de sua concepção de mundo. Basta, no entanto, olhar para trás, no universo filosófico de uma época que estava ainda isenta dos germes da decomposição, para ver que essa atitude face à morte não corresponde a uma categoria ontológica do “ser”, mas simplesmente a um sintoma da época. Spinoza disse: “O homem livre pensa muito mais em qualquer outra coisa do que na morte; sua sabedoria é meditação não sobre a morte, mas sobre a vida”.
Jaspers e Sartre estão, no que concerne ao problema da morte, bem longe do extremismo de Heidegger, sem que essa divergência possa modificar, no entanto, o caráter fundamental de sua filosofia, função de sua classe social e de seu tempo. Sartre até mesmo recusou-se a dar noção de morte pessoal, no sentido heideggeriano do termo, um lugar no existencialismo. Quanto a Jaspers, no qual o fantasma do “se” apresenta-se sob uma forma menos profundamente mitificada que em Heidegger, contenta-se em orientar o homem que encontrou o sentido de sua existência, em direção a uma vida estritamente privada e voltada para si mesma. A ação política e social não poderia jamais levar a resultados essenciais, dizia Jaspers ultimamente nos Encontros de Genebra, e a humanidade não pode ser salva a não ser que cada um se consagre apaixonadamente à sua própria existência, para cultivar somente relações “existenciais” com alguns indivíduos isolados e animados de paixões semelhantes.
Aqui, também, as montanhas filosóficas terminaram por originar, com um sorriso cinzento, uma mentalidade pequeno-burguesa. E o grande escritor antifascista alemão, Ernst Bloch, tinha bastante razão quando escreveu, a propósito da teoria heideggeriana da morte, da qual a moral individualista de Jaspers é apenas diluição insípida, as linhas seguintes:
A representação dessa condição do homem corresponde nos grandes escritores ao reflexo subjetivo de uma situação objetiva. Mais exatamente, é a representação de uma atitude precisa, ela mesma função das circunstâncias e dos lados do caráter, em uma situação concreta, perfeitamente real e muito bem determinada. Bastará pensar na situação de Raskolnikov após o assassinato, ou em Svidrigailov ou Stavroguin compelidos ao suicídio. Trata-se, em cada um desses casos, de uma forma particular da evolução trágica, forma tomada à vida atual e que permite a um escritor autêntico criar destinos e caracteres especificamente atuais, mas tão vivos e tão trágicos como foram Édipo ou Hamlet na sua época.
São essas mesmas situações, enquanto situações-tipo que servem de ponto de partida para Heidegger. A particularidade de sua filosofia consiste em inscrever, com o auxílio do método extremamente complexo da fenomenologia, o conjunto do problema na estrutura fetichizada da psicologia burguesa, ou mais exatamente, no pessimismo niilista e sem saída da inteligência burguesa do período entre guerras.
Quais são então as operações inspiradas pelo fetichismo da fenomenologia e da ontologia às quais Heidegger submete essa experiência vivida, fundamental, para dela derivar o sistema filosófico autônomo do existencialismo? A primeira fetichização é criação da noção do Nada. Tocamos aqui o problema que se encontra no centro mesmo da ontologia, da exploração da realidade, tanto em Heidegger como em Sartre. No primeiro, o Nada é um dado ontológico tanto quanto a existência. No segundo, o Nada não tem existência independente do ser, é absolutamente inseparável dele.
Voltemos agora à nossa análise metodológica. Examinando, à luz da fenomenologia, a personalidade de Stavroguin e sua atitude na situação de “face ao nada” em que se encontra ao fim do livro de Dostoievsky e, encerrando, conforme as prescrições do método fenomenológico, o problema da realidade objetiva num parênteses para examinar somente os atos psíquicos de Stavroguin e seus objetos intencionais, veremos que o objeto intencional da experiência vivida de Stavroguin é um vazio sem saída. Feito isso, resta-nos apenas seguir o procedimento de Scheler no caso do Diabo, isto é, suprimir o parênteses, para nos encontrar diante do Nada, valor central da nova ontologia. Assim, teremos compreendido o passe de mágica da fenomenologia que faz até o fim abstrato de toda realidade objetiva e concreta, de que a experiência vivida, que é a de Stavroguin, numa situação objetiva dada, torna-se, para a fenomenologia, um objeto isolado e autônomo: um fetiche. Quanto à situação que deu lugar a essa experiência vivida, perde todo caráter de realidade. É assim que se constitui a categoria do Nada, provido de uma existência real.
É evidente que não pretendemos ter reproduzido fielmente a marcha do raciocínio existencialista. Seria necessário, com efeito, um estudo volumoso para citar as demonstrações, às vezes simplesmente erradas e às vezes manifestamente sofísticas, que apoiam Sartre na teoria fenomenológica da interrogação e do juízo negativo, sobre a qual repousa a construção ontológica do Nada. Basta constatar que cada “não” expresso por um juízo encerra tanto concreta quanto um “sim” e que somente a fetichização do comportamento subjetivo pode adotar essa negatividade de um “ser” autônomo e real. Quando coloco, por exemplo, a questão de saber quais são as leis que governam o sistema solar, não ponho nenhum “ser negativo”, nenhum vazio, nenhuma solução de continuidade na realidade objetiva, como o imagina Sartre. Minha questão indica tão-somente um vazio nos meus próprios conhecimentos, uma lacuna da minha erudição e não um vazio na realidade. Quanto à resposta, pode ser negativa ou positiva, tanto gramatical como logicamente. Que eu diga: “A Terra gira em torno do Sol”, ou: “O Sol não gira em torno da Terra”, as duas sentenças exprimirão a mesma realidade concreta e positiva e tudo o que se poderá dizer é que a frase negativa é menos precisa que a outra. Em todo caso, é impossível construir, a partir dessas considerações, o ser ontológico do Nada, sem recorrer a sofismas. A necessidade deste explica-se pelo fato de que Sartre pressentiu a experiência vivida fetichizada do Nada antes de construir sua justificação lógica e metodológica.
O Nada é um mito; é o mito da sociedade capitalista condenada à morte pela história. Há algumas décadas, a situação de “face ao nada” pôde ser vivida por indivíduos-tipos como Stavroguin ou Svidrigailov. Agora, é toda uma sociedade, e classes sociais inteiras que se encontram nessa situação.
O próprio capitalismo pode muito bem passar sem ideias filosóficas, considerações ideológicas e visões históricas. Não sucede o mesmo ao intelectual, ao qual, por toda sua maneira de viver, se impõe o aparelho ideológico que falamos. Ora, quando a situação histórica concreta na qual nos encontramos e a atitude de espírito — que é igualmente um produto dessa situação histórica e social — levam a um impasse total onde qualquer orientação é impossível, as consciências individuais sofrem o processo de fetichização. Os intelectuais, cuja existência individual está privada de toda perspectiva, veem a situação da seguinte forma: o Nada é a perspectiva objetiva à qual toda existência é conduzida. Esse mito é perfeitamente compreensível, mesmo para aqueles que não têm nem o desejo nem o tempo necessário para ler as volumosas obras de Heidegger ou de Sartre. É compreensível porque é o reflexo de situações efetivamente vividas.
Mas o processo de fetichização não termina aí. Com efeito, se o Nada fosse apenas o precipício qual vou (talvez, ou mesmo fatalmente) cair, o existencialismo não seria ainda um sistema filosófico universal, capaz de fornecer a solução para todos dos problemas da existência. Heidegger, Jaspers e Sartre estendem com efeito o mito do Nada a toda existência. Para Heidegger, a própria vida é o estado de derrelição — Geworfenheit — no Nada e todos os instantes dessa vida manifestam a interação pseudodialética dessa origem e dessa perspectiva final.
Por essa mesma razão, o existencialismo obstina-se em ensinar que é totalmente impossível saber o que quer seja sobre o homem. Não que negue a ciência em geral. O existencialismo reconhece o valor prático do conhecimento científico. Mas contesta a todas as ciências o direito de ter acesso a um conhecimento essencial em relação ao único problema de importância: a relação entre a pessoa humana e a vida. Afirma, para empregar sua própria linguagem, que o homem é sua própria realidade-humana. A assim superioridade do existencialismo sobre as filosofias antigas consiste precisamente no abandono radical da pesquisa de um tal conhecimento. “O existencialismo, disse Jaspers, estaria perdido no momento em que pretendesse saber de novo o que é o homem”. Essa ignorância voluntária, radical e fundamental está sublinhada tanto em Heidegger como em Sartre. Ora, — e isto está longe de ser uma anedota — é precisamente esse niilismo radical, esse abandono consequente do conhecimento mais importante, que é a explicação do enorme sucesso do existencialismo. A doutrina que ensina que a vida está por excelência privada de toda perspectiva e que o sentido da existência é inacessível a todo conhecimento é bem acolhida por todos aqueles que acham que sua existência está privada de toda perspectiva e que sua vida não tem nenhum sentido.
É aqui que o existencialismo encontra o irracionalismo moderno, essa vasta corrente espiritual de nosso tempo que se propõe destronar a razão. À primeira vista, a fenomenologia e a ontologia são, entretanto, absolutamente incompatíveis com as tendências correntes do irracionalismo, por causa de seu caráter rigorosamente científico. Husserl era mesmo discípulo da escola logística mais intransigente (Bolzano e Brentano). Basta no entanto examinar, mesmo não atentamente, seu método, para descobrir sua ligações íntimas com Dilthey e Bergson, mestres do irracionalismo moderno. Mais tarde, quando Heidegger tomou para si certas ideias mestras de Kierkegaard, essas ligações tornaram-se ainda mais evidentes.
Estamos aqui em presença de um fato que é mais importante que uma simples coincidência metodológica. À medida que o existencialismo faz da fenomenologia seu método, toma por seu principal objeto a irracionalidade fundamental do indivíduo e, consequentemente, do conjunto da existência. Seu paralelismo com as outras correntes espirituais antirracionalistas torna-se, então, cada vez mais evidente. “O ser é irracional, sem causa e sem necessidade; a própria definição do ser nos mostra sua contingência original”[2], diz Sartre.
Falamos até o presente somente do Nada. Apenas afloramos o próprio ser e sua pretensa impermeabilidade ao conhecimento. É, portanto, com justiça, parece, que poderiam perguntar-nos: onde está então a existência no existencialismo? A resposta deve ser procurada no sentido da negação. A existência, segundo o existencialismo, é o que falta à realidade humana. O ser humano, diz Heidegger, “só pode definir-se a partir de sua existência, isto é, de sua possibilidade de ser ou não ser o que ele é”.
Encontramos aqui o problema da perda da substância contínua da existência humana, da qual já falamos. Vimos o sentido antissocial e associal que as correntes dominantes do pensamento moderno dão a esse problema. Ainda aqui a obra de Heidegger situa-se no topo dessa evolução. E existência cotidiana do homem nela está submetida a uma análise muito detalhada, com a ajuda do método que já conhecemos. Em Heidegger, a vida do homem, a “realidade-humana” é o “ser-com-outro” (Miteinandersein) e, ao mesmo tempo, “ser-no-mundo” (In-der-Welt-sein). Este “ser” está construído em torno da figura central mitificada do “se” (das Man). Esse pronome impessoal, que se tornou uma categoria mitificada da ontologia heideggeriana, representa o símbolo de todas as funções da vida social; é tudo o que distancia o homem de sua própria existência, desvia sua atenção da essência, priva a vida humana de seu sentido profundo. As diversas manifestações do “se” são, segundo Heidegger, o palavrório, a curiosidade, o equívoco, o descrédito. O que pretende viver sua própria vida, deve, segundo Heidegger, viver para sua própria morte: viver de tal maneira que a morte não seja uma ruptura inesperada, em relação à sua existência, mas antes “sua própria morte”. A existência digna desse nome não encontra sua realização verdadeira, para Heidegger, senão nessa morte pessoal.
Aqui ainda o arbitrário total, o subjetivismo sem limite e mascarado por uma pseudo-objetividade, da “ontologia fundamental” são evidentes. A obra de Heidegger, “essa confissão de um burguês do período entre guerras”, é plena de interesse. Sein und Zeit (1927) é uma leitura, ao menos, tão interessante quanto o grande romance de Céline, Voyage au bout de la nuit (1932), mas — assim como o romance de Céline — não constitui a “revelação ontológica” de qualquer “realidade última”. É simplesmente um documento revelador do universo intelectual e sentimental de uma classe social de uma época. Convém demasiado bem ao clima psicológico da intelligentzia atual, para que o arbitrário dos pseudo-raciocínios sobre os quais se funda possa tornar-se facilmente evidente. O absurdo da vida e a imagem abstrata da morte que lhe é oposta são para um grande número de nossos contemporâneos uma experiência pessoal. Constituem, por assim dizer, a base inconsciente de sua concepção de mundo. Basta, no entanto, olhar para trás, no universo filosófico de uma época que estava ainda isenta dos germes da decomposição, para ver que essa atitude face à morte não corresponde a uma categoria ontológica do “ser”, mas simplesmente a um sintoma da época. Spinoza disse: “O homem livre pensa muito mais em qualquer outra coisa do que na morte; sua sabedoria é meditação não sobre a morte, mas sobre a vida”.
Jaspers e Sartre estão, no que concerne ao problema da morte, bem longe do extremismo de Heidegger, sem que essa divergência possa modificar, no entanto, o caráter fundamental de sua filosofia, função de sua classe social e de seu tempo. Sartre até mesmo recusou-se a dar noção de morte pessoal, no sentido heideggeriano do termo, um lugar no existencialismo. Quanto a Jaspers, no qual o fantasma do “se” apresenta-se sob uma forma menos profundamente mitificada que em Heidegger, contenta-se em orientar o homem que encontrou o sentido de sua existência, em direção a uma vida estritamente privada e voltada para si mesma. A ação política e social não poderia jamais levar a resultados essenciais, dizia Jaspers ultimamente nos Encontros de Genebra, e a humanidade não pode ser salva a não ser que cada um se consagre apaixonadamente à sua própria existência, para cultivar somente relações “existenciais” com alguns indivíduos isolados e animados de paixões semelhantes.
Aqui, também, as montanhas filosóficas terminaram por originar, com um sorriso cinzento, uma mentalidade pequeno-burguesa. E o grande escritor antifascista alemão, Ernst Bloch, tinha bastante razão quando escreveu, a propósito da teoria heideggeriana da morte, da qual a moral individualista de Jaspers é apenas diluição insípida, as linhas seguintes:
Face à morte eterna, a condição social do homem não tem nenhuma importância. Pouco importa que seja capitalista [...] A aceitação da morte, enquanto destino absoluto e única saída, tem a mesma significação para a contrarrevolução atual que a consolação do além tinha outrora.
Escritas há mais de doze anos, essas observações pertinentes esclarecem perfeitamente as razões da popularidade grandiosa que usufrui o existencialismo, não somente entre os esnobes, mas também nos meios reacionários.
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Notas:
Notas:
[1] Face a face com o nada.
[2] L'être et le néant, p. 713.
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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, p. 77-89.
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