domingo, 11 de agosto de 2019

O problema da vanguarda literária



por Ranieri Carli

Realismo crítico hoje foi finalizado em 1957. Mesmo que Lukács tenha dito em carta a Carlos Nelson Coutinho (ver Coutinho e Konder, 2002a, p. 153-154) que as conclusões do livro foram produzidas de modo apressado, a obra é o grande documento da estética lukácsiana sobre a vanguarda formalista, sistematizando as ideias que antes estavam dispersas em variados ensaios. O seu caráter constitutivo dentro da bibliografia de Lukács está em íntima ligação com o fato de que temos aqui uma profunda discussão a propósito da concepção de mundo que movimenta a criação literária vanguardista.

O livro se insere em um contexto em que, para os que veem superficialmente o cenário da produção literária, existe a predominância das vanguardas, conforme o próprio Lukács anuncia nas linhas iniciais (Lukács, 1991, p. 33). A superficialidade desse ponto de vista diz respeito à atenção dada exclusivamente a questões de ordem formal: aquilo que se representa novidade é previamente admitido como superior a seu “antepassado”; o formalmente novo é transformado no critério de valor privilegiado na consideração crítica da arte. No intento de desmistificar a superficialidade dessa visão, Lukács alude a uma comparação entre Mann e Joyce; ambos utilizam a técnica do monólogo interior na composição de suas obras — Carlota em Weimar e Ulisses, respectivamente. Uma leitura superficial dos dois romances dará a impressão de que estamos diante de técnicas de mesma proporção. Entretanto, não há nada mais enganoso na opinião de Lukács. Ao passo que Joyce não utilizou o monólogo interior à maneira de uma técnica estilística, mas como a própria forma da descrição épica das situações vivenciadas por seus personagens, Mann serviu-se dele para pôr seus tipos em “uma realidade que se situa muito além dos dados brutos” (ibid., p. 34), dando vivacidade à relação entre o personagem e o ambiente concreto de sua ação, tratando-se, assim, de uma “composição autenticamente épica, que utiliza o dinamismo das transformações, a sua aceleração e o seu retardamento, em plena conformidade com as regras tradicionais da epopeia, mas de uma maneira original” (ibid., p. 35). Em Joyce a forma romanesca reduz-se ao monólogo interior (pelo menos em Ulisses) e condiz, em seu inteiro emprego, com a ideia de livre associação característica do surrealismo; em Mann, é apenas um artifício eficaz que expande e coloca em prática as leis estruturais do romance.

Mas, para Lukács, a questão não está ainda resolvida; discernir o uso das chamadas “inovações de estilo” em autores como os dois citados é somente a primeira etapa que, levada ao extremo, nos colocará de frente a duas concepções diferentes de arte, a duas concepções distintas de mundo. Cabe aqui, com justeza, a epígrafe do nosso estudo: no cerne de toda obra de arte, encontra-se a resposta à indagação sobre o que é o homem; “o centro, o coração desta estrutura que determina a forma é sempre, em última análise, o próprio homem” (Lukács, 1991, p. 36). Em Joyce e em Mann, temos duas noções diversas sobre o que é o humano. O problema já é nosso conhecido: a literatura realista implica a configuração de tendências humanamente relevantes de determinado período histórico, equivalendo, sob a ótica lukacsiana, ao verdadeiro humanismo, defendendo a integridade do homem contra as tendências que a fragmentam. No que concerne à concepção de mundo vanguardista, recorremos à letra do próprio Lukács:

Completamente oposto é o objetivo intencional pelo qual os comandantes da vanguarda literária determinam a essência humana de seus personagens. Podemos dizer, em suma, que eles não consideram mais do que “o” homem, o indivíduo que existe desde sempre, essencialmente solitário, desligado de todas as relações humanas e, a fortiori, social, ontologicamente independente. (Lukács, 1991, p. 37)

O homem representado no vanguardismo é, em geral, um solitário. No realismo, segundo Lukács, a solidão significa sempre um momento parcial na vida de homens que comungam situações concretas, vivenciam destinos em influência recíproca. A necessidade de solidão é condicionada pelo destino de certos tipos determinados pelas intenções últimas que movem a ação desses tipos no mundo próprio da obra, sempre em referência à particularidade histórica refletida. Não é, portanto, “a condição humana”. A vanguarda literária, ao contrário, apresenta o homem isolado das relações concretas não como expressão de certas tendências sociais, mas de acordo com o ponto de vista que concebe o homem como uma individualidade singular e avulsa. Que se recorde A queda, de Albert Camus, “romance” de um só personagem (o juiz-penitente Jean-Baptiste Clamence) em diálogo com um interlocutor inexistente para o leitor, em que não há reciprocidade da relação. Enquanto, na Antiguidade, Ésquilo introduziu o diálogo do segundo ator na tragédia a fim de refletir a nova situação em que o embate entre indivíduos e sociedade fez-se presente, Camus deixa de lado, nesse romance, a influência mútua entre os tipos precisamente porque considera o seu destine “imune” à reciprocidade. Não é casual o esclarecimento que seu único personagem dá aos desavisados: “Nunca consegui acreditar profundamente que os assuntos humanos fossem coisas sérias” (Camus, 1996, p. 65-66).

Tendo em vista a noção de homem que direciona a criação vanguardista, Lukács afirma:

Por muitos fortes que sejam as suas convicções vanguardistas, um escritor de talento não pode nunca deixar de exprimir na sua obra, até certo ponto, um hic et nunc de caráter concreto. É assim que, como atmosfera que banha a narração, se pode sentir a cidade de Dublin na obra de Joyce, e a monarquia hasbsburguesa nas obras de Kafka e de Musil. Mas, neste caso, trata-se apenas, em diversos graus, de um subproduto e, de maneira nenhuma, de uma realidade concebida pelos próprios artistas como parte integrante de sua obra. (Lukács, 1991, p. 39)

Ao homem tal como figurado pela vanguarda não são dadas possibilidades concretas de desenvolvimento, de rebeldia. Lukács assinala que a ausência de perspectivas para a criação de um mundo futuro termina por produzir um homem resignado com o decorrer dos eventos estranhos de sua própria sorte; o homem sente-se um estrangeiro de sua própria vida. Poderemos compreender o que significa esse processo de destruição da forma artística se recordarmos que os elementos primariamente estéticos da mimese mágica fizeram-se estéticos, de fato, a partir da vivência da sociedade como uma segunda natureza, criada para e pelo homem, refletindo-se na arte como a aquisição de mundo próprio.

Embora Lukács de 1957 exemplifique com Kafka, cremos que são ainda Albert Camus e seu personagem Meursault, de O estrangeiro, os mais apropriados para ilustrar a passividade ante as ocorrências da vida social. O resultado é a imagem de uma personalidade abstrata que não se constrói progressivamente enquanto as possibilidades surgem ao longo da narrativa. Um outro exemplo: Stephen Dedalus, em Retrato do artista quando jovem, de Joyce, apresenta a maneira como lida com a opressão da ordem burguesa e suas instituições (em suas palavras, o lar, a pátria, a igreja): “empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio, exílio e sutileza” (Joyce, 1998, p. 280). A apatia e a inércia também são as “armas" de Jean-Baptiste Clamence, em A queda, de Camus: ao fim da obra, quando vislumbra uma oportunidade de salvar a sua vida de sua história de hipocrisia, ele sucumbe resignado constatando ser “tarde demais, agora, será sempre tarde demais. Felizmente!” (Camus, 1996, p. 110)

Para alguns autores da escola que ora analisamos, a colocação de possibilidades concretas seria mesmo impensável, pois a existência da efetividade do real é considerada “ilusão”. É nesse sentido que Lukács cita o testemunho de Gottfried Ben; “a realidade efetiva não existe [...]; existe apenas a consciência humana, cujo poder criador não cessa de formas mundos, de os transformar, de os elaborar, de os assumir, de os assinalar com sua marca espiritual” (G Benn apud Lukács, 1991, p. 45). Do mesmo modo, Lukács recorre à confissão de Robert Musil: "Aquilo que me interessa é o típico no plano do espírito, poderia dizer, exatamente aquilo que os acontecimentos têm de fantasmagóricos” (Musil apud Lukács, 1991, p. 45). A angústia humana, assim, é de caráter apenas subjetivo, sem nenhum confronto com a realidade de fato angustiante do período imperialista do capital. A nosso ver, pode-se dizer que se trata do correlato artístico da ontologia irracionalista de Heidegger.

Lukács lembra que, por mais diversificadas que possam ser as direções tomadas por cada autor, o importante é verificar que, por trás de todas elas, está a mesma concepção de homem, a saber, um ser carente de unidade objetiva, de relações efetivas com a objetividade que o circunda. Desconexão que tende à resignação como condição do homem em Camus, à livre associação de ideais subjetivas em Joyce, à fantasmagoria sublinhada por Musil. Aliás, de outras palavras deste último autor, Lukács abstrai uma determinação a mais na exposição das nuanças do pensamento vanguardista: “perante este mundo ignóbil — diz Musil —, não se tem outra alternativa: uivar com os lobos ou perder a razão” (Musil apud Lukács, 1991, p. 49). A partir daí, Lukács se vê confrontado com o papel desempenhado pela patologia na escola literária de Musil e seus seguidores.[1]

Vimos que Zola já colocava o problema de forma equivocada, como consequência do seu sociologismo. O problema persiste entre os formalistas. Contudo, há distinções importantes a serem feitas: segundo o marxista húngaro, a patologia naturalista era “simples ornamento estético”, enquanto a patologia vanguardista é uma forma de protesto moral contra a reificação da cotidianidade burguesa (Lukács, 1991, p. 50). Entretanto, um protesto posto nesses termos — ou seja, mediante a fuga para o patológico — é puramente vazio e abstrato; seu resultado não vai além da “condenação sumária” do real, em vez de lhe impor uma crítica concreta, tal como o fazem os escritores realistas (ibid., p. 51). A fuga para o patológico não significa a busca de alternativas ao caos burguês, mas a reclusão introspectiva na subjetividade.[2] E o sujeito recluso é o que resta quando o coletivo não é opção. Lukács cita uma vez mais Musil: “Se a humanidade tivesse sonhos coletivos, só poderia sonhar ser Moosbrugger”; e o nosso filósofo esclarece: “ora, Moosbrugger é um assassino sádico e um débil mental” (ibid., p. 54).

O subjetivismo exacerbado do homem, tal como apresentado pela vanguarda, vincula-se intimamente à já referida ausência de perspectivas para a construção do mundo futuro para o herói romanesco. É um outro ponto de contato que Lukács observa entre o naturalismo e o vanguardismo: por não possuir um perspectiva que conceda direção aos seus personagens, o mundo apresentado é estático. Há escritores que recusam a própria noção de tempo histórico; e Lukács alude ao poeta Gottfried Benn como representante emblemático desta posição (Lukács, 1991, p. 56-57). Tudo isso nos faz retornar à antiga questão acerca da impotência do homem frente às causalidades históricas. Assim, podemos acrescentar um elemento adicional da crítica lukacsiana à concepção de mundo vanguardista: a apresentação de uma imagem do mundo desprovida de concretude histórica abre a possibilidade de se ter a alegorização da realidade. Lukács estabelece quais são as determinações da alegoria no âmbito da criação estética: “A alegoria dá, com efeito, uma expressão estética a certas concepções de mundo, fundamentando-o numa transcendência essencial, cavando um abismo entre o homem e o real” (ibid., p. 66). A alegoria opõe-se à imanência humana, ao caráter terreno que, de acordo com Lukács, está nos fundamentos de toda e qualquer legítima obra de criação artística.[3]

O caminho traçado pela arte de vanguarda é colidente com a tendência naturalmente desfetichizadora da criação estética, isto é, com os elementos essenciais da arte, como a reprodução dos destinos humanos concretos situados historicamente, que convergem espontaneamente para a configuração do mundo dos objetos em sua unidade terrena. Quando discutimos a questão em capítulos anteriores, notamos que Lukács atribui a legitimidade do estético à resolução da problemática, à configuração de tendências humanamente relevantes de determinada época, despojadas de sua imediaticidade fetichizada. Não é assim por acaso que nosso filósofo veja nas vanguardas a “deformação” do conhecimento estético, haja vista que, no formalismo experimental, na verdade, existe o abismo entre o homem e o real, como a citação elucida. A abstração do tempo histórico traz consequências relevantes. Ao tomar como ponto de partida “a condição humana" imutável, o vanguardismo perde as peculiaridades das condições humanas particulares que a humanidade assume no decorrer da história, fechando os olhos para a peculiaridade da condição burguesa do homem. Quanto a isso, as teses de Lukács não comportam imprecisões: “Qualquer esforço para substituir o dinamismo histórico por uma forma de estatismo leva à desvitalização da obra literária e ao enfraquecimento do valor típico das personagens que ela põe em cena” (Lukács, 1991, p. 93)

O caráter estático da vanguarda resulta da substituição do tempo histórico pelo “tempo interior”, meramente subjetivo. Recorde-se que no, no começo do capítulo, definimos, a partir das elaborações contidas em O romance histórico, que uma das funções da forma épica é a construção de uma imagem que apresente o mundo objetivo e exterior na qual atuam os personagens; significa que a angústia humana representada somente possui sua eficácia no mundo próprio do romance quando posta em relação com o ambiente concreto circundante. Porém, de acordo com a concepção vanguardista, o homem é ontologicamente angustiado. Diz Lukács: “É evidente que as experiências vividas têm a ver com o mundo, mas dizem também respeito, e mais essencialmente, ao próprio sujeito, e o seu pretexto pode ser qualquer realidade” (Lukács, 1991, p. 115).

Impõe-se a mesma discussão acerca da legitimidade do naturalismo no estudo da vanguarda formalista: até que ponto as caricaturas encontradas em suas obras são de fato apreensão verídica do movimento real burguês? A resposta de Lukács não se modifica no fundamental: na realidade concreta, por trás das deformações fetichizantes do capital, está  o homem em sua integridade; no seio da arte da vanguarda, não se dissolvem esses fetiches, mas, ao contrário, eles são tomados como objeto mesmo da representação. Temos então que a literatura de vanguarda “deforma a própria deformação, transpondo-a do plano fenomenal para a realidade objetiva” (Lukács, 1991, p. 119). Por isso, Lukács comenta:

É evidente que a experiência vivida da sociedade capitalista atual provoca, sobretudo nos intelectuais, sentimentos de angústia, de repulsa, de perdição, de desconfiança em relação a si próprios e aos outros, de desprezo e de vergonha, de desespero etc. Mas ainda: uma descrição da realidade efetiva que não se referisse a essas emoções, que não lhes desse lugar na obra literária, refletiria falsamente o mundo presente e daria dele uma imagem embelezada. Não se trata, pois, de perguntar: tudo isso se encontra de fato na realidade efetiva? Mas simplesmente: isso constitui o todo da realidade efetiva? Não se trata de perguntar: não deve tudo isso ser representado? Mas simplesmente: devemos ficar inertes perante tudo isso? (Lukács, 1991, p. 119-120)

Essa é, em síntese, a caracterização feita por Lukács da postura vanguardista diante da objetividade. O caráter polêmico das ideias salta os olhos. Com elas, Lukács conseguiu fazer uma dezena de adversários. O mais importante de todos eles foi, sem dúvida alguma, Bertolt Brecht: “A polêmica de Lukács contra os experimentos modernistas teve como um dos episódios mais significativos o confronto com Brecht” (Frederico, 1997, p. 42). O dramaturgo alemão consagrou uma série de textos à defesa da vanguarda contra as severas críticas lukacsianas. Lunn recorda que, “embora ambos partissem de Marx, eles usavam elementos caracteristicamente diversos na síntese da obra do mestre” (Lunn, 1982, p. 75-76). A diversidade das posições adotadas inicia-se com a própria concepção de arte realista. Com efeito, a noção brechtiana de realismo possuía certos elementos inadmissíveis para Lukács, como, por exemplo, a correspondência imediata entre a ideologia do escritor e a obra produzida; de acordo com Brecht, ser realista é “escrever do ponto de vista da classe que dispõe das soluções mais amplas para os problemas mais urgentes com que a sociedade humana se debate” (Brecht, 1978, p. 110). Um burguês católico como Mário de Andrade não se enquadraria no realismo de Brecht.

No que tange ao vanguardismo expressionista, as divergências pautavam-se essencialmente em duas questões: a atitude revolucionária da vanguarda e o problema da herança cultural.[4] Sobre esta última, Brecht afirmava com grande vigor: “Ele [Lukács] não vê, nem quer ver, que o autor moderno não pode utilizar um tipo de narrativa que, como a de Balzac, servia à romantização das lutas de concorrência na França pós-napoleônica” (Brecht, 1978, p. 104). O fato é que as formas são, na acepção de Lukács, o reflexo concentrado de determinações do conjunto histórico de relações sociais. O romance, em suas leis estruturais — utilizadas por Balzac com grande genialidade —, está vinculado à representação da realidade burguesa; a mudança radical dessas leis (como fizeram arbitrariamente os expressionistas) é algo a ser posto por um novo conjunto de relações sócio-históricas, precisamente como o advento da burguesia impusera em relação à transformação da epopeia.

Contudo, Brecht persiste na controvérsia caricaturando o procedimento crítico lukacsiano: “Apresenta-se como se disse, um par de romances famosos do século passado, faz-se o seu elogio, aliás, merecido, e extrai-se deles o realismo” (Brecht, 1978, p. 107). A irônica repreensão possui certa pertinência por que a remissão de Lukács à literatura do século XIX era constante, elegendo-a aparentemente como modelo (muito embora ninguém tenha proferido tão ásperas críticas a Flaubert, Zola, Gouncourt — todos representantes daquela época —, não obstante, uma vez ou outra, tenha sido igualmente recriminado por isso). A estética de Lukács é tão normativa quanto a de Hegel ou Aristóteles.

Apesar de nunca ter negado determinado “conservadorismo” em suas apreciações literárias, Lukács reprovava com veemência a alcunha de “crítico romântico”, de adulador do passado, afirmando que, ao conferir elogios ao comportamento ético de Sócrates na Antiguidade, por exemplo, não está assim sugerindo aos homens atuais que se confrontem com os eventos modernos do mesmo modo como fizera o filósofo grego em seu tempo. Além do mais, quando Lukács expõe a alternativa à “arte decadente da vanguarda” (que ele, em 1957, tipificava erradamente em Kafka), não é de Balzac que fala e, sim, de Thomas Mann, um artista que viveu intensamente as crises do século XX, que não negou as tradições do romance burguês e que ampliou na tarefa de apreender essa particularidade.[5] A proposição de Brecht (1978, p. 110), de que se devem utilizar todos os métodos cabíveis para a apreensão do real, não satisfazia Lukács, assim como não o persuadia a ideia de realismo sem fronteiras de Roger Garaudy (1966). A amplidão desmesurada que o realismo assumia tanto para Brecht quanto para Garaudy terminava por transformá-lo em uma categoria estéril, posto que serviria para todo e qualquer uso.

Brecht estava de acordo com a ideia segundo a qual a vanguarda tinha um caráter revolucionário. Os escritores vanguardistas eram, em grande parte, declaradamente de esquerda (o que para o poeta alemão significa muito); a arte de tais autores adquiria, nas palavras de Brecht, um significado marcadamente popular por colocar-se a serviço de “um povo que faz história, que transforma o mundo e se transforma” (Brecht, 1978, p. 109-110). Por essa razão, “tendo em mente o povo que luta e transforma a realidade, não podemos prender-nos a regras 'comprovadas' da narrativa, a veneráveis modelos de literatura, a leis estéticas imutáveis” (ibid., p. 110). Nesse sentido, a revolução expressionista promovida nas formas literárias seria um exemplo de força rupturista do povo. Sobre tudo isso, há várias diferenciações a serem feitas. Lukács estava convencido de que o ponto de vista correto para se analisar o fenômeno do expressionismo não é considerá-lo uma forma de manifestação de arte popular. De início, ao estudar um homem, não se deve tomar como princípio o que ele diz de si mesmo, mas sim a efetividade de seu ser — isto vale para uma época histórica, para um movimento cultural etc. Lukács retira tal método de Marx: o fundador do materialismo histórico-dialético não dispensou oportunidades para escrever que “não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco de homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso” (Marx e Engels, 1972, p. 26). Parte-se, com efeito, dos homens de carne e osso. Aliás, é precisamente este o princípio básico da ontologia marxista. Isso quer dizer que não se deve considerar a vanguarda pelo o que ela professa como suas intenções; o fato de que os escritores dessa escola se digam de esquerda interessa, apenas, em último caso, para elucidar contradições entre seu pensamento e sua práxis política.

Vejamos o caos brasileiro e uma tentativa de reflexo e crítica de um dos períodos mais graves da nossa época: o golpe cívico-militar de 1964. Ignácio de Loyola Brandão publicou em 1974, a sua obra mais famosa, Zero. O livro descreve a  vida cotidiana de José, casado com Rosa, matador de ratos e assaltante de bancos, que cumpre o primeiro terço de sua história tentando seduzir a “filha dos mexicanos”. Em torno da banalidade de sua vida, irrompem personagens como Átila (que inventa namorar modelos de calendários), Carlos Lopes (um pai desesperado em busca de ajuda para seu filho doente) etc. As excêntricas histórias são contadas em meio a uma inúmera gama de montagens: figuras geométricas, mapas, gráficos, anúncios publicitários, notas de página. Entre as colagens aleatórias, Ignácio de Loyola Brandão insere notícias de jornal realmente censuradas pelos órgãos da ditadura naquele tempo. Com isso, o escritor procurava denunciar os desmandos dos militares golpistas. A pretensão falha porque as notícias censuradas perdem-se no emaranhado de símbolos e recortes avulsos. Não há em Zero um mundo próprio  que dê sentido harmônico às honestas críticas pretendidas por Brandão. Que ele tenha desejado fazer uma crítica reveladora do regime militar importa somente para clarificar, de um lado, a sua honestidade pessoal e, de outro, a falência de suas intenções artísticas. A versão verdadeiramente realista para o golpe de 1964 pode ser encontrada, por exemplo, em Incidente em Antares, de Érico Veríssimo.

Ademais, estamos lidando com duas noções diferentes de arte popular. Nas elaborações de Lukács, o caráter popular da arte não se assemelha àquele descrito por Brecht. O popular na arte é, para Lukács, a exata configuração de tendências sociais que movem a vida de um povo em determinada época. Homero, Shakespeare, Thomas Mann produziram, assim, a mais bela arte popular. E, por fim, Lukács ainda saliente que a vida social nunca está determinada exclusivamente pela descontinuidade. “Uma teoria como a dos ʽvanguardistasʼ, que nas revoluções vê apenas rupturas e catástrofes, que pretende destruir tudo o que é passado e quebrar toda relação com o passado grande e glorioso, é a teoria de Cuvier e não a de Marx e Lenin” (Lukács, 1978, p. 61, grifo do original). a atitude dos expressionistas está muito mais próxima dos anarquistas. As autênticas revoluções são resultado de um longo processo preparatório e associam, por isso, a permanência na ruptura. Lukács procura mostrar que, em Marx, a história não é feita de abismos e catástrofes, mas de processos dialéticos que unem continuidade e descontinuidade, os nexos evolutivos e as transformações.

São esses elementos formulados por Lukács na defesa da herança cultural e no ataque às “deformações” advindas com o vanguardismo literário. Depois de tanta polêmica, acreditamos que Jameson colocou em bons termos a relação de Lukács com os experimentos modernistas:

A vantagem de Lukács sobre os teóricos simpatizantes do moderno está na sua modalidade de pensamento, diferenciadora e profundamente comparativa. Ele não se instala no interior do fenômeno moderno, completamente entregue a seus valores fundamentais e capaz apenas de observá-lo a partir de sua própria ótica. Ele pode defini-lo e marcar seus limites, como momento histórico, frente ao que ele não é. (Jameson, 1985, p. 155)

Lukács não se iludiu com as inovações modernistas e não viu nelas a redenção do homem libertário perante as amarras do passado: fiel herdeiro da tradição de Aristóteles, Schiller, Hegel e Marx, Lukács considerava a liberdade arbitrária do vanguardismo como uma forma de irracionalismo que apagava a necessidade social da arte como meio de fixação da autoconsciência da humanidade. Porém o diagnóstico por ele produzido sobre as vanguardas desemboca às vezes em julgamentos questionáveis, como a tese de que Kafka, Joyce e outros “decadentes” anteciparam a ideologia fascista. A correta importância que Lukács dispensava a este fenômenos político talvez o tenha levado a produzir as equivocadas análises agora mencionadas, influenciado pela trajetória de escritores e pensadores que aderiram ao nazismo. De qualquer modo,em nossa opinião, a razão está com José Paulo Netto:

Os equívocos que [Lukács] cometeu — sua discutíveis interpretações da arte contemporânea, suas ingênuas avaliações de correlações de forças políticas, suas otimistas avaliações do panorama mundial etc. — não afetam medularmente a validade de sua obra filosófica e crítica; são produtos de condicionantes sociais que, desde que superados, podem admitir, sem grandes reajustes de principio, as correções necessárias. Eis por que, de Lukács, não se pode dizer que “acertou no essencial”;  em larga medida, poder-se-ia aplicar-lhe uma paráfrase do que ele mesmo disse de Marx: supondo-se que a pesquisa contemporânea possa refutar, de fato, todas as suas afirmações particulares, poder-se-ia reconhecer esta refutação, sem, no entanto, abdicar dos seus fundamentos metodológicos. (Netto, p. 1981, p. 47-48)

Feitos os ajustes necessários, as observações medulares de Lukács sobre a concepção de mundo da vanguarda mantêm-se intactas e o nosso estudo não abdica de seus fundamentos metodológicos. Konder (2005) não negou as premissas de Lukács e conseguiu grandes êxitos na avaliação de Fernando Pessoa, uma tarefa para o qual o próprio Lukács não seria o nome mais indicado. Acima de tudo, a correção das considerações metodológicas lukacsianas tem início em seu ponto de partida teórico: há uma realidade ontológica, humana e humanizadora que, em sua gênese, independe de nossas consciências individuais e, sobre ela, a literatura e a arte se debruçam, apreendendo o substancialmente humano do homem de seu presente.

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Notas:
[1] Para ilustrar tais teorias de Lukács sobre a fuga para o patológico, citaremos novamente uma passagem de A queda, de Camus; “Já que era mentiroso, ia manifestá-lo e atirar a minha duplicidade na cara de todos estes imbecis, antes mesmo que descobrissem. Intimado pela verdade, responderia ao desafio. Para me precaver contra o riso, imaginei então lançar-me à zombaria geral. Em suma, tratava-se ainda de fugir ao julgamento. Queria colocar do meu lado os que riam ou, pelo menos, colocar-me ao lado deles. Pensava, por exemplo, em dar empurrões em cegos da rua, e, pela alegria surda e imprevista que isto me dava, descobria até que ponto uma parte da minha alma os detestava: planejava furar os pneus das cadeiras de rodas dos aleijados, e ir gritar ʽtrabalha, vagabundoʼ debaixo dos andaimes onde estavam operários, esbofetear bebês no metrô” (Camus, 1996, p. 69).
[2] Celso Frederico comenta acertadamente:
“Lukács foi impiedoso com o expressionismo, afirmando que ele permanecera prisioneiro da abstração ao condenar genericamente a guerra, a violência etc. como opressora do homem, sem nunca precisar a natureza social dessas entidades” (Frederico, 1997, p. 35).
[3] Para aqueles que desejam um estudo da matriz lukacsiana acerca da alegoria, recomenda-se Kofler (1970), especialmente o capítulo
“Sobre o conceito do alegórico na ideologia estética do capitalismo tardio”.
[4] Uma excelente síntese do problema vanguarda versus tradição na estética marxista está em Gallas (1977)
[5] Os elogios que Lukács conferia à obra de Mann fazem parecer injusta a crítica de Adorno:
“O núcleo da teoria [de Lukács] segue sendo, em todo caso, dogmático. Toda a literatura moderna, na medida em que se aparta da fórmula do realismo — seja crítico, seja socialista —, é rechaçada e marcada sem vacilar com o selo infamante de decadentismo” (Adorno, 1972, p. 49). Os estudos sobre Mann provam que não é verdade que Lukács resista a toda literatura moderna.
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CARLI, R. A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura. Rio de Janeiro; Editora UFRJ, 2012, p. 175-188.
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