quinta-feira, 8 de agosto de 2019

A poesia do “reino animal do espírito”



por György Lukács

Como diz Marx em O 18 brumário, a Revolução Francesa foi o término do período heroico do desenvolvimento da burguesia:

Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antidiluvianos desapareceram; e, com eles, a Roma ressuscitada [...]. Inteiramente absorta na produção da riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço.[1]

No período situado entre a Revolução Francesa e o ingresso autônomo do proletariado na arena da história universal, a ideologia burguesa se eleva pela última vez às grandes sínteses sistemáticas (Hegel, Ricardo, os historiadores franceses da época da Restauração); algo similar pode ser dito do romance. A figuração da realidade cotidiana, que havia alcançado tão grande perfeição no romance do século XVIII, transforma-se agora num mero procedimento artístico, num meio de expressão épico-monumental do caráter já então tragicamente inconciliável das contradições capitalistas. Em certo sentido pode-se dizer que o romance volta ao fantástico de seu período inicial, mas este fantástico torna-se agora o realismo fantástico das evidentes contradições da vida burguesa; o pathos otimista se transforma em pressentimento trágico do fim inevitável da civilização burguesa. (No desenvolvimento do romance russo, a Revolução de 1905 desempenha o mesmo papel que junho de 1848 na Europa Ocidental[2]. Os grandes representantes do romance russo, de Pushkin a Tolstoi, correspondem portanto a um estágio de desenvolvimento do romance análogo àquele de Goethe, Balzac e Stendhal.)

Mas o novo realismo fantástico se distingue do anterior porque passou pela experiência do romantismo. Decerto, é impossível fornecer aqui uma caracterização social e ideológica do movimento romântico europeu; limito-me, portanto, a mencionar o que é absolutamente necessário para a compreensão do desenvolvimento do romance. A multiplicidade de versões do movimento romântico deve-se ao fato de que ele é uma combinação, dosada de modo diverso em diferentes escritores e grupos, de uma recusa reacionária da Revolução Francesa com um protesto confuso contra a reificação mortificante trazida pelo capitalismo vitorioso. A luta contra a prosa da vida burguesa adquire no romantismo um caráter reacionário, voltado para o passado; mas, dado que correntes sociais das quais o romantismo é expressão ideológica conservam-se sempre, consciente ou inconscientemente, no terreno da realidade burguesa, também o protesto romântico contra a prosa burguesa se baseia inevitavelmente na aceitação tácita da reificação capitalista, quase como se esta fosse um “destino” inelutável. Disso resulta que, no domínio da arte e da teoria artística — e, portanto, também no campo do romance —, o romantismo não pode nem mesmo tentar superar o caráter prosaico da vida mediante um método criativo que permita descobrir na realidade social os elementos de uma atividade humana espontânea, que esta realidade ainda conserva, e de torná-los assim objeto de uma ampla figuração realista. Ao contrário, o romantismo do século XIX perpetua uma oposição cristalizada entre prosa objetiva e poesia subjetiva, reduzindo-se assim a um protesto impotente contra esta prosa.

Esta degradação socialmente determinada do princípio poético, rebaixado ao nível de uma subjetividade impotente, manifesta-se na literatura romântica seja na escolha temática de sistemas sociais que ainda não foram tocados pelo capitalismo (os romances históricos de Walter Scott); seja na contraposição entre o princípio poético e aquele prosaico mediante uma forma exageradamente fantástica (E. T. A. Hoffmann. E. A. Poe etc.); seja no abandono absoluto do terreno da realidade social, na tentativa de criar livremente, a partir do sujeito, a realidade poética como uma particular esfera “mágica” (Novalis); seja, finalmente — e este é o momento mais importante para o desenvolvimento ulterior do romance —, num exagero simbólico-fantástico da reificação cristalizada do mundo exterior, na tentativa de, mediante esta estilização simbólica, depurá-la do caráter prosaico e torná-la de novo poética. O canhão que rompe suas amarras e termina na ponte do navio, no 1793 de Victor Hugo, é talvez o exemplo mais expressivo desta estilização. O canhão, escreve Hugo,
[...] torna-se inesperadamente uma espécie de besta sobrenatural. É uma máquina que se transforma num monstro. [...] Dir-se-ia que este eterno escravo se vinga; parece que a raiva que está nos objetos que chamamos de inertes subitamente emerge e explode. [...] Não podemos matá-lo porque ele é morto. Mas, ao mesmo tempo, é vivo. E vive da vida sinistra que lhe vem do infinito.[3]
O romantismo — que escreve em sua bandeira a luta implacável contra a prosa da vida moderna — leva, no final das contas, a uma capitulação incondicionada a essa prosa “fatal”, terminando, inclusive, por se converter numa glorificação simbólica (involuntária, na maior parte das vezes), numa apologia poética desta aborrecida e condenada prosa da vida.

Não há um só escritor importante, neste período de desenvolvimento do romance, que esteja inteiramente isento das influências românticas. Nesta influência profunda e generalizada do romantismo na literatura burguesa da época da Revolução Francesa, manifesta-se a necessidade social que  produziu as tendências românticas. Mas os grandes escritores desta época são grandes precisamente porque não capitulam, sob a aparência de uma oposição intransigente, diante da crescente prosa da vida burguesa, mas buscam descobrir e figurar, por meio de múltiplas formas, os elementos que ainda sobrevivem de uma atividade espontânea dos homens. A lutas destes escritores contra a degradação do homem na ordem capitalista consolidada é mais profunda de que a luta dos românticos precisamente porque ela é mais vital e evita um pretenso “radicalismo”. Mas as tendências românticas estão presentes em todos eles enquanto momentos (parcialmente) superados. Mas só “parcialmente”. Embora os grandes escritores realistas do século XIX superem o romantismo, na medida em que sua luta criadora contra a degradação do homem penetra muito mais profundamente do que fazem os românticos no interior do mundo objetivo, eles não superam inteiramente a herança romântica. Querendo ou não, eles são obrigados, quando não podem derrotar o caráter reificado das formações sociais, a recorrer aos meios da estilização romântica.

Ambas as formas de superação do romantismo, a verdadeira e a aparente, manifestam-se claramente em Balzac. Mas esta ambiguidade dos grandes escritores deste período em face do romantismo manifesta-se de modo muito diferenciado em cada um deles. Todos podem ser criticados por fazerem concessões, por um lado, à prosa da vida e, por outro, ao subjetivismo romântico. Esta dupla crítica do romance clássico já aparece nos debates sobre o Wilhelm Meister de Goethe. Numa carta endereçada a Goethe, na qual resume sua impressão final, Schiller escreve que o aparato romântico deste romance, apesar de toda a habilidade artística de Goethe, terá o efeito apenas de um “jogo teatral”, de um“procedimento artificioso”, enquanto Novalis, como romântico coerente, recusa esta obra de Goethe como “um Cândido dirigido contra a poesia”:[4] “Trata-se de uma história doméstica e burguesa poetizada. [...] O espírito deste livro é o ateísmo artístico. Ele é construído com grande habilidade; mas o fato é que se obtém um efeito poético com um material poético barato”.

Essa duplicidade na luta dos melhores pensadores e artistas contra a degradação do homem na ordem capitalista — duplicidade que resulta, em última instância, do fato de que esta luta se trava inevitavelmente no terreno burguês, enquanto o conhecimento das causas desta degradação tende à romper com todos os limites burgueses — determina a posição dos escritores na questão do herói “positivo”. A exigência hegeliana de que o romance eduque o leitor para a realidade burguesa deveria levar, em última instância, à criação de uma personalidade positiva proposta como modelo. Mas este herói positivo, como certa feita se expressou cinicamente Hegel, seria um herói, mas
[...] um filisteu como os outros: [...] a mulher, outrora adorada como um ser único, comporta-se mais ou menos como todas as outras mulheres, o emprego obriga ao trabalho e gera aborrecimentos, o casamento transforma-se num calvário doméstico; é, em suma, o despertar depois da juvenil embriaguez.[5]
Deste modo, a realização da exigência hegeliana levaria inevitavelmente à banalidade; e, para realizá-la de modo poético, seria preciso pôr em ação a dialética irônica desta realização (ver o epílogo de Guerra e paz, de Tolstoi). Em geral, por razões que já mencionei, a conciliação das contradições sociais só pode se tornar um elemento de composição do romance quando ela não é efetivamente realizada, ou seja, quando o autor figura algo diverso e maior do que esta conciliação de opostos, isto é, sua trágica impossibilidade. O insucesso das intenções conscientes do escritor, a figuração artística de uma realidade diversa daquela projetada, constitui precisamente a grandeza dos escritores neste período de desenvolvimento do romance.

Caracterizando Tolstoi como “espelho da revolução russa”, Lenin descreve com grande clareza esta relação paradoxal entre a intenção do artista e sua obra:
Como se pode chamar espelho o que não reflete absolutamente os fenômenos de modo justo? Mas nossa revolução é um fenômeno extremamente complexo; entre a massa de seus executores e participantes diretos, há muitos elementos que não compreenderam o que estava acontecendo. [...] Tolstoi refletiu o intenso ódio, a aspiração já amadurecida no sentido de uma vida melhor, o desejo de livrar-se do passado, bem como a imaturidade das fantasias, a falta de educação política, a fraqueza diante da revolução.[6]
Estas profundas observações críticas valem também, mutatis mutandis, para Balzac e Goethe; com efeito, Engels adotou o mesmo ponto de vista metodológico para criticá-los. Diz-se do herói de Wilhelm Meister que ele partiu como Saul em busca das jumentas do seu pai e terminou por encontrar um reino; mas seria possível dizer, com ainda mais justeza, em referência a estes romances clássicos que seus criadores efetivamente buscaram e encontraram as jumentas (a utopia do “estado médio”), mas que, no caminho desta busca, descobriram e figuraram o reino das contradições históricas da sociedade capitalista.

A representação destas contradições, insolúveis no capitalismo, torna possível — nas obras bem-sucedidas — a figura do herói “positivo”. Em um dos seus prefácios, Balzac escreve que seus romances teriam fracassado sem para o leitor, as figuras de César Birrotteau, Pierrete, Madame de Mortsauf etc., não fossem mais atraentes, por exemplo, do que as de Vautrin ou Lucien de Rubempré. Na verdade, os romances de Balzac são bem realizados precisamente porque isso não ocorreu. Quanto mais profundamente o artista descobre as contradições da sociedade burguesa, quanto mais desmascara impiedosamente a baixeza e a hipocrisia desta sociedade, tanto menos exequível se torna a cínica exigência hegeliana do herói “positivo” filisteu. Já vimos que os heróis “positivos” do romance do século XVIII (que eram livres e vigorosos, ainda que limitados) tornam-se cada vez mais inaceitáveis, no século XIX, como heróis positivos. A exigência de criar um herói “positivo” torna-se para a burguesia do século XIX, cada vez mais apologética, ou seja, a exigência de que o escritor não descubra as contradições, mas as mascare e concilie. Gogol pronunciou-se contra esta exigência:
Não me entristece que não estejam satisfeitos com meu herói. o que me entristece é que esteja alojada na alma a invencível certeza de que os leitores possam estar igualmente satisfeitos com esse mesmo Tchitchkov. Se o autor não tivesse olhado para dentro da alma do personagem, senão houvesse remexido até o fundo  que escapa à atenção geral e se oculta, não teria revelado os pensamentos mais secretos, aqueles que nenhum homem confia a outro; se o tivesse mostrado como ele aparecia a toda cidade, a Manolov e aos outros, então todos ficariam felizes e contentes e o considerariam uma pessoa interessante.[7]
Com estas palavras, Gogol evidencia com clareza a problemática social fundamental do romance moderno: aquilo a que aspiram os grandes escritores enquanto representantes das tendências histórico-universais progressistas da revolução burguesa contradiz as exigências instintivas feitas à literatura pelo homem médio da sociedade burguesa. O que faz a grandeza dos clássicos do romance burguês é precisamente o que os afasta da maioria dos membros de sua própria classe: é o caráter revolucionário de suas aspirações o que os torna impopulares no ambiente burguês.

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Notas:
[1] K. Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, em K. Marx e F. Engels, Obras escolhidas, ed. cit., v.1, 1956, p. 225.
[2] Lukács se refere ao fato de que, em junho de 1848, no seio do processo revolucionário ocorrido na França, o proletariado francês promoveu uma insurreição que foi esmagada pelas forças burguesas. Em toda a sua obra, Lukács situa neste episódio o início do que vai chamar de "decadência ideológica da burguesia".
[3] Victor Hugo, Quatre-vingt treize, primeira parte, livro II, tomo IV.
[4] Cândido é uma novela de Voltaire.
[5] G. W. F. Hegel, Estética. A arte clássica e a arte romântica, Lisboa, Guimarães, 1958, p. 301.
[6] Lukács cita o artigo de Lenin, “Tolstoi, espelho da revolução russa”, publicado em Proletari, 11 de setembro de 1908.
[7] Gogol se refere a personagens do seu romance Almas mortas.
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LUKÁCS, G. “O romance como epopeia burguesa”. In: Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 222-227).
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