quarta-feira, 4 de julho de 2018

A evolução de Proudhon (1838-46)


por José Paulo Netto

Entre 1838 e 1846, decorre a primeira fase da reflexão de Proudhon[1], que compreende a evolução que leva das Investigações sobre as categorias gramaticais (ensaio de gramática comparada que lhe propiciou, com o Prêmio Suard, da Academia de Besançon, uma bolsa de estudos em Paris, em 1838) à publicação, em 15 de outubro de 1846, do Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria[2]. Trata-se de uma evolução que, em resumidas contas, traça a trajetória que conduz de um ponto de vista aberta e formalmente revolucionário a um termo anemicamente reformista (utópico-reformista).

A primeira obra de Proudhon destinada ao grande público é Sobre a celebração  do domingo, redigida e publicada em 1839 (uma edição em tiragem comercial maior sairá em 1841). O argumento proudhoniano, discorrendo sobre a significação dos ritmos de trabalho e repouso na vida, visa à crítica da espoliação do trabalho pelo capital . O seu objetivo é

provar a todos os monopolizadores do trabalho, exploradores do proletariado, autocratas ou feudatários da indústria, ricaços e proprietários à tripla potência, que o direito de trabalhar e de viver, devolvido a uma massa de homens que [...] não gozam dele, não seria parte dos beneficiários uma gratificação, mas uma restituição.[3]

Frente ao que Marx, ulteriormente, chamaria de pauperização, Proudhon, contra o capital, vocifera: “Apelamos para a força. Proprietários, defendei-vos! Haverá combates e massacres”[4].

Mas é o opúsculo de 1840, O que é a propriedade? — que contém a célebre frase A propriedade é um roubo e que lhe acarretou a perda da bolsa de estudos —, que tornará famoso o nome de Proudhon. Refutando a noção (encravada na ideologia liberal desde Locke) de que o fundamento da propriedade é o trabalho, Proudhon assinala que “o proprietário não produz nem por si nem por seus instrumentos e, recebendo os produtos em troca de nada, é um parasita ou um ladrão[5]. Movendo-se no âmbito de uma problemática de raiz ilustrada (afinal, para mostrar a impossibilidade da propriedade, ele recorre à Justiça, ao Direito, à Consciência), Proudhon postula a “reabilitação do proletariado” mediante a defesa da teses que, malgrado posteriores alterações, será sempre a sua favorita: a igualdade de condições. E, um anos depois, na Segunda memória sobre a propriedade, ele determina o modus para alcançar essa igualdade de condições: “Concito à revolução por todos os meios ao meu alcance”[6].

Em 1843 — em duras condições de vida; transferira-se para Lyon, trabalhando numa empresa de transportes —, Proudhon publica A criação da ordem na humanidade. Esta obra pretensiosa (dividida em cinco partes: a Religião, a Filosofia, a Metafísica, a Economia e a História) contém uma espécie de súmula das ideias que Proudhon tematiza ao longo da vida. Propondo-se a crítica da concepção de ordem, ele passa em revista uma longa série de filósofos (Platão, Bossuet, Malebranche, de Maistre, Leibniz, Kant, Hegel), polemiza com contemporâneos (Comte) e explicita a sua dialética serial que, como se sabe, nada tem a ver com Hegel[7]. Ainda aqui, Proudhon reafirma a sua posição revolucionária: o determinismo econômico — ele não duvida que o movimento da sociedade tem por base a vida econômica, nem que as leis da economia política sejam as leis da história — não impede, exclui ou invalida a “força criadora revolucionária”[8].

Na sua obra subsequente, porém, esta “força criadora” já não encontra espaço: o Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria atesta a viragem decisiva de Proudhon no sentido do reformismo ou, mais exatamente, do utopismo reformista. Não é que Proudhon tenha sofrido qualquer processo de venalização ou corrupção ideológica. Na verdade, os dois volumes que publica em 1846 põem em relevo, mais que as limitações derivadas do horizonte de classe que o aprisiona, as constrangedoras restrições que o seu desengonçado conhecimento da dinâmica social faz penetrar nas suas propostas políticas. É porque erra na análise que Proudhon elabora uma proposta política equivocada: ele não é capaz de formular um projeto político revolucionário porque não é capaz de compreender a efetiva legalidade histórico-social. Se, nas suas obras anteriores, a precária análise econômico-social não comprometia a conclusão revolucionária, a razão está em que esta não se engrenava realmente naquela — era uma petição ética; agora, quando pretende formular um projeto de intervenção social a partir de uma investigação sistemática, a solução que apresenta aparece inteiramente hipotecada à sua inépcia teórica. A política que se articula no Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria é utópico-reformista porque a análise histórico-social que a funda é frágil e porque a teoria econômica que a sustenta é falsa.

Acerta Bottigelli[9] ao observar que esta “não é, decerto, a melhor obra que Proudhon escreveu” — complicado, o livro intenta, de forma detalhada e sistemática, “uma síntese entre o capitalismo e o socialismo, defendendo, com os economistas burgueses, o princípio da propriedade privada contra os socialistas e criticando, com estes, as taras do capitalismo”[10]. Ou, como resume um analista simpático a Proudhon:

Os seus dois volumes tratam sucessivamente dos valores econômicos, da divisão do trabalho, das máquinas, da concorrência, do monopólio, do imposto, da balança de comércio, do crédito, da propriedade individual, da propriedade coletiva, da comunidade de bens, da população, do trabalho. Proudhon procura mostrar que, relativamente uns aos outros, estes termos são antinômicos [...e] conduzem a resultados opostos aos que uma sociedade poderia esperar. Para sair do impasse, é preciso renunciar aos preconceitos da economia política clássica e às “utopias comunistas” do tempo, que pregam a 'comunidade de bens', utopias que Proudhon identifica, muitas vezes sem razão, com o coletivismo socialista.[11]

Arrancando de uma “hipótese de Deus”[12], já nas suas primeiras páginas, retóricas e bombásticas[13], a obra evidencia a característica maior que permeia todos os desenvolvimentos nela contidos: uma hipostasia de eventos, dados e instituições que, retirados do contexto sócio-histórico, são convertidos em antinomias que não se resolvem por conflitos imanentes, mas, antes, são combinadas por uma razão interveniente que é exterior a eles. Proudhon parte da ideia de que duas doutrinas disputam o mundo: a economia política (a rotina) e socialismo (a utopia). A verdade de disputa se encontra na sua conciliação: a combinação entre a conservação e o movimento, única solução para formular os fundamentos da ordem social e a “lei orgânica da humanidade”.

Pesquisando esta supra-histórica “lei orgânica”, Proudhon articula os seus  materiais arbitrária e dogmaticamente. O idealismo mais banal senta praça nos seus raciocínios: “Para nós, os fatos não são matéria [...] mas, ao contrário, manifestações sensíveis de ideias sensíveis”[14]. A mitificação da história é patente: “Para nós, a história das sociedades não é mais que uma longa determinação da ideia  de Deus, uma revelação progressiva do destino do homem”[15]. A sociedade é reduzida ao esquema de uma pessoa, simbolizada por Prometeu. E o seu dinamismo é convertido no jogo de dois princípios abstratos: “A vida social se manifesta duplamente: conservação e movimento”[16]. A concepção geral do movimento histórico-social, assim erguida, resvala, num discurso inflado, para o vulgarismo mais francamente desistoricizado:

A humanidade, na sua marcha oscilatória, retorna inconscientemente sobe si mesma [...] A verdade, no movimento da civilização, permanece sempre idêntica e nova [...]. E isto, precisamente, constitui a Providência e a infalibilidade da razão humana: assegura, no interior mesmo do progresso, a imutabilidade do nosso ser; torna a sociedade, ao mesmo tempo, inalterável em sua essência e irresistível em suas revoluções [...].[17]

As remissões à Providência ou à infalibilidade da razão humana apenas dissimulam a real incompreensão tanto das categorias econômicas quantos dos processos que elas denotam.[18] Com a redução da complexidade social posta pelo capitalismo a um somatório de antinomias (monopólio/imposto, responsabilidade de Deus/responsabilidade do homem etc. etc.), Proudhon, todavia, não retrocede somente em relação ao nível já alcançado pela economia política em sua versão clássica. Faz mais e pior: o seu fracasso teórico incide sobre o seu próprio percurso político e ideológico — agora, já não coloca como alternativa libertadora a supressão do capitalismo pela abolição da propriedade privada através da via revolucionária. Ao contrário: a antinomia propriedade/comunidade resolve-se na sua conciliação — e eis o que Proudhon propugna pela mutualidade. Este novo fundamento para a sociedade futura, como é compreensível, já não repousa mais na anteriormente glorificada “força criadora revolucionária”: a emergência da nova sociedade

ocorrerá não como novidade imprevista, inesperada, repentino efeito das paixões do povo ou da habilidade de alguns homens, mas pelo retorno espontâneo da sociedade a uma prática imemorial, momentaneamente abandonada [...].[19]

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Notas
[1] Sobre Proudhon, referências biográficas podem ser encontradas, além dos textos citados na nota 2 [anterior], em A. Cuvillier (Proudhon, Paris, 1937), E. Dolléans (Proudhon, Paris, 1948) e D. Halévy (La vie de Proudhon, Paris, 1948). É de notar que, no seu conjunto, a obra proudhoniana é vasta: 38 livros (12 póstumos), 14 volumes de correspondência, 3 volumes de artigos e 6 volumes de anotações pessoais (os Carnets).
[2] Gurvitch (Proudhon e Marx, Lisboa, s.d., I: 31) periodiza a evolução de Proudhon em três fases: a primeira — anterior à revolução de 1848; segunda — entre 1848 e a sua libertação (1852); terceira — a final, entre 1852 e 1865.
[3] Apud Gurvitch, op. cit., I, p. 35.
[4] Ibidem, p. 36.
[5] Ibidem, p. 52.
[6] Apud Löwy, M.: La teoria de la revolución en el joven Marx, México, 1978, p. 199.
[7] Segundo Bancal (introdução a Proudhon, Oeuvres choisies, Paris, 1967), a dialética serial de Proudhon se funda numa tripla legalidade: a lei motriz — o antagonismo antinômico; a lei reguladora — a justiça/equilíbrio; a lei realizadora — o processo serial. Para Gurvitch (Dialética e sociologia, Lisboa, 1971, p. 143), a dialética de Proudhon
“desemboca num pluralismo tão bem ordenado, tão bem integrado, tão bem equilibrado, que suspeitamos terem esta integração e este equilíbrio arranjados previamente e preconcebidos”; aliás, “a orientação geral do pensamento de Proudhon vai exatamente na direção oposta à de Hegel”: desde Sobre a celebração do domingo, ele “proclama que o seu método é o da procura dos equilíbrios na diversidade” (ibidem, 139 e 143). Na verdade, Proudhon não teve contatos diretos com textos hegelianos (não lia alemão e, no seu tempo, não existiam traduções de Hegel): o mesmo Gurvitch informa que o seu conhecimento de Hegel vinha do que Ahrens, emigrado alemão que lecionara no Collège de France, veiculara no seu Curso de psicologia, publicado em 1836-1838. Entre 1844 e 1845, Marx forneceu-lhe sugestões hegelianas, posteriormente deformadas por Grün (cf. a carta de Marx a Schweitzer, de 24 de janeiro de 1865, pouco posterior à morte de Proudhon, ocorrida a 16 de janeiro, in Marx, Miséria da filosofia, São Paulo, Ciências Humanas, 1982, p. 217 e ss.). Analistas das mais distintas correntes coincidem na constatação da fragilidade metodológica do pensamento de Proudhon: se Buber (O socialismo utópico, São Paulo, 1971, p 39) afirma que ele “não era um pensador histórico”. Peter (introdução a Proudhon/Marx, Philosophie de la misère/Misère de la philosophie, Paris, 1964, p. 8) diz que o pensamento de Proudhon é uma “mecânica reguladora”; e Menezes (Proudhon, Hegel e a dialética, Rio de Janeiro, 1966, p. 29) escreve: “É verdade que Proudhon, em muitos trechos de seus escritos, falou da tríade da tese, da antítese e síntese; e muitos comentadores, com certa leviandade, discutem a sua tournure dialectque. A terminologia é superficial — e mascara, sob aparência dialética, a mais banal intuição mecanicista acerca do encadeamento dos fenômenos. Daí não passou o grande lutador”.
[8] Apud Gurvitch, Proudhon e Marx, op. cit., p. 68. 
[9] Bottigelli, E.: A gênese do socialismo científico, Lisboa, 1971, p. 222. 
[10] Cornu, A.: Karl Marx et Friedrich Engels, III: Marx à Paris, Paris, 1962, p. 53.
[11] Gurvitch, op. cit., I, p. 70.
[12]
“[...] Tenho a necessidade da hipótese de Deus para fundar a autoridade da ciência social” (Proudhon, in Proudhon/Marx, 1964: 36).
[13]
“Direi como, portanto, estudando, no silêncio do meu coração e longe de toda consideração humana, o mistério das revoluções sociais [...](Proudhon, in Proudhon/Marx, 1964: 25).
[14] Ibidem, p. 103.
[15] Ibidem, p. 37.
[16] Ibidem, p. 137.
[17] Ibidem, p. 306-307.
[18] Esta incompreensão — um dos objetos centrais da crítica de Marx — é constante no texto de Proudhon. Veja-se um só dentre os abundantes exemplos.
“O monopólio existe em função da natureza e do homem: sua fonte reside, simultaneamente, no mais profundo de nossa consciência e no fato exterior da nossa individualidade(Proudhon, in Proudhon/Marx, 1964: 140).
[19] Ibidem, p. 306.
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NETTO, J. P. 1847: “Marx contra Proudhon”. In: Marxismo impenitente: contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004, p. 87-108.
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