terça-feira, 8 de maio de 2018

Sartre protomarxista: a rejeição da ontologia dialética da natureza



por György Lukács

Apenas para lançar um pouco de luz sobre essa situação e sem a intenção de caracterizar o seu sistema de pensamento, que de qualquer modo se encontra em estágio de transição, sejam feitas aqui algumas referências a Sartre. É do conhecimento geral que seu ponto de partida foi o existencialismo de Heidegger e Jaspers. Igualmente do conhecimento geral é que, nos últimos tempos, ele se aproximou, muito resolutamente do marxismo e com grande arrojo e determinação converteu em práxis essa sua convicção — no que se diferencia com bastante nitidez e de forma vantajosa da massa dos insatisfeitos habituais. Portanto, essa guinada de Sartre para o marxismo, que se comprovou em feitos importantes e arriscados, só pode ser acompanhada com o maior respeito possível. Seu comportamento na prática nada tem a ver com a autocomplacência gerencial dos neopositivistas nem com a apologia da revolta a priori impotente contra o estranhamento no existencialismo “clássico”.

Reiteramos: é impossível fazer aqui uma análise ou uma crítica dessa nova posição de Sartre. Pois a finalidade desta observação, cuja parte introdutória, tratando da situação atual da ontologia, desemboca na investigação das reflexões de Marx sobre a ontologia do ser social, consiste meramente em proporcionar um quadro crítico do estado atual do problema, visando fundamentar teoricamente o nexo indissolúvel mas dialeticamente contraditório entre a ontologia geral (ontologia do ser natural) e a ontologia do ser social. Nesse contexto, é preciso indicar, portanto, que a nova obra de Sartre [Critique de la raison dialectique] tampouco se desprendeu ontologicamente dos preconceitos do neopositivismo e do existencialismo. Consonâncias com o marxismo em questões que dizem respeito a fenômenos puramente sociais e históricos não são capazes de eliminar essa contraditoriedade ontológica. O ponto central em tais pontos controversos é o complexo de uma dialética na natureza. Como para Marx a dialética não é apenas um princípio cognitivo, mas constitui a legalidade objetiva de toda realidade, uma dialética desse tipo não pode estar presente nem funcionar na sociedade sem ter tido uma “pré-história” ontológica correspondente na natureza inorgânica e orgânica. A dialética concebida em termos ontológicos só tem sentido se for universal. Essa universalidade naturalmente não representa um singelo sinal de igualdade entre dialética na natureza e dialética na sociedade; também nesse ponto se aplica a constatação hegeliana da identidade da identidade e da não identidade. Só poderemos falar sobre o caráter concreto desses nexos quando tratarmos da ontologia de Marx, isto é, aqui só se pode apontar para o seu quê, e não para o seu como. Contudo, essas questões precisam ao menos ser mencionadas neste ponto por se tratar de um contraste determinante entre o marxismo e correntes filosóficas hoje predominantes, como antes de tudo, o neopositivismo e o existencialismo[1]. Essa questão tem para as atuais aspirações filosóficas de Sartre uma importância tanto maior porque um de seus propósitos é a produção de uma antropologia filosófica. Ora, como vimos, o existencialismo chegou – em íntima conexão com a centralização exclusiva do que é ontologicamente relevante no ser humano e seu mundo — a uma concepção irracionalista e abstratamente vazia em relação à gênese real do ser humano ontologicamente em consideração e, desse modo, transformou — querendo ou não — a filosofia numa antropologia idealisticamente irracionalista. Sem uma ruptura decisiva com essa concepção e seus pressupostos filosóficos não é possível desobstruir o caminho metodológico que leva à apreensão concreta do ser humano no sentido antropológico e social — as duas coisas são inseparáveis: sem uma ontologia dialética da natureza não é possível fundar nenhuma ontologia dialética do ser humano e da sociedade.

A última obra de Sartre, porém, é precisamente uma tentativa de unir a rejeição da dialética da natureza com uma dialética do ser humano e da sociedade. A negação mesma é formulada de modo bem inequívoco. “E vimos que”, resume Sartre, “só se acha na natureza a dialética que foi posta dentro dela”.[2] Dizendo isso, Sartre não quer negar a limine [de antemão] que se possam encontrar nexos dialéticos na natureza. Porém, no estado atual dos nossos conhecimentos, cada pessoa está livre pra crer ou não crer nisso; na natureza inorgânica, trata-se, em todo caso, de afirmações extracientíficas[3]. Como veremos mais adiante, as constatações ontológicas com muita frequência antecedem a sua fundamentação científica, a qual, quando sucede, naturalmente poderá ser concretizada e modificada de múltiplas maneiras por elas, o que de fato sempre ocorrerá; abstraindo desse fato, constatamos que o escrito de Sartre mostra que há questões em que ele não só preservou inalterados seus pressupostos existencialistas, mas também, de modo correspondente, permanece enredado de muitas formas em preconceitos neopositivistas. Assim, ele reclama para o existencialismo o conhecimento da prioridade ontológica do ser em relação à consciência. Porém, essa pretensão só se torna sustentável quando uma abstração fenomenológica é levada a tal extremo que os traços reais, autenticamente conforme ao ser, do ente-em-si esmaecem a ponto de não poderem mais ser reconhecidos como tais. Até o próprio Heidegger, com sua determinação do ser humano como ser-aí, poderia falar de uma prioridade ontológica do ser, embora, como vimos, o sentido ontológico desse ser-aí mostre o contrário de tal prioridade.

Mas nessa tese também foram incorporados preconceitos neopositivistas. Nas elaborações seguintes, que visam à concretude, Sartre diz, por exemplo:

A única teoria do conhecimento que poderia hoje estar em vigor é a que está fundada sobre a seguinte verdade da microfísica: “o experimentador é parte integrante do sistema experimental”. Ela é a única que permite o afastamento de toda e qualquer ilusão idealista, a única que evidencia o ser humano real no mundo real.[4]

Mas isso não passa de um preconceito neopositivista, que foi disseminado especialmente por ocasião da popularização filosófica da “relação da incerteza” de Heisenberg, junto com o “livre-arbítrio” das partículas, da qual os pesquisadores da natureza sensatos se dissociam claramente. Na microfísica interagem realidades exclusivamente físicas, das quais fazem parte, todavia, também as condições de medição, os instrumentos de medição etc., como objetos físicos que podem influenciar a medição. O próprio observador, porém, também nesse caso não passa de uma arranjador ou registrador de ocorrências objetivamente físicas, como na macrofísica. A afirmação de Sartre mostra com clareza o quanto ele resiste à aceitação ontológica de uma natureza com lei própria, que se move como ser imanente de modo totalmente independente do ser humano. Trata-se de uma questão decisiva da ontologia; todavia, uma questão em que o neopositivismo e o existencialismo, a despeito de todas as suas demais diferenças, andam conformes. Essa posição pode ser percebida também em muitos posicionamentos decisivos da nova obra de Sartre. Para finalizar, damos destaque apenas a uma observação sobre o tempo, que mostra precisamente quanto suas atuais visões são determinadas pela concepção heideggeriana do tempo “autêntico”, do tempo não “vulgar”, quanto elas negam — uma vez mais, em consonância com o neopositivismo — toda objetividade ontológica do tempo. Sartre diz: “É preciso realmente entender que nem os seres humanos nem suas atividades existem no tempo, mas que, em contraposição, o tempo, como característica concreta da história, é feito pelos seres humanos com base na sua temporização original”[5]. A diferença em relação a Heidegger consiste aqui em nuanças que podem até ser interessantes no âmbito do existencialismo, mas que, para nossas indagações, não têm relevância, uma vez que também aqui o mundo extra-humano perdeu toda e qualquer importância ontológica, tendo sido subjetivado. A despeito de todos os contrastes exteriores, esse tempo social, moral e historicamente subjetivado é irmão gêmeo daquele que se origina no neopositivismo a partir da identificação medição do tempo com o próprio tempo, reprimindo totalmente este último. Ambas são formas subjetivas de manipulação — originárias de distintas finalidades e, por isso, diferentemente acentuadas —, chamadas a reprimir a objetividade ontológica.

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Notas:
[1] Também me sinto no dever de declarar, neste ponto, que meu livro História e consciência de classe, publicado em 1923, contribuiu para despertar ilusões quanto à possibilidade de ser adepto do marxismo — no sentido filosófico — e, ao mesmo tempo, negar a dialética na natureza.
[2] J.-P. Sartre, Critique de la raison dialetictique (Paris, 1960), p. 127.
[3] Ibidem, p. 129.
[4] Ibidem, p. 30.
[5] Ibidem, p. 69.
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LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 101-102.
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