sábado, 28 de abril de 2018

A antítese metafísica entre ser e ente em Heidegger


por György Lukács

O contraste, tão importante para a influência exercida por Heidegger, entre autenticidade e inautenticidade do ser humano num mundo manipulado por “o impessoal [das Man]” é, no fundo, uma questão ética que, também no caso dele, como veremos mais adiante, necessariamente terminará numa das alternativas oferecidas pela pergunta “que fazer?”. Num primeiro momento, deixaremos o conteúdo ético de lado e voltaremos nossa atenção unicamente para o dilema entre autêntico e inautêntico numa realidade estranhada. Trata-se do problema central de uma antropologia filosófica, da qual Heidegger de todo modo está em busca em Ser e tempo em decorrência da posição ontológica central do ser-aí. Em sua monografia sobre Kant, ele de fato chega a abordar à exaustão a questão de uma antropologia filosófica e expressa relativamente a ela algumas objeções metodológicas. Estas parecem concentrar-se, no entanto, nas antropologias de Kant e Scheler, sendo que Heidegger não fornece, nessa passagem, nenhuma instrução de como essas observações poderiam ser colocadas em relação também com a ontologia do ser-aí em sua obra principal. Em todo caso, porém, são feitas aí algumas declarações sobre o ser humano como objeto da ontologia que se prestam a iluminar mais de perto a problemática do ser-aí. “Mas não houve época que soubesse menos sobre o que é o ser humano do que a atual. Em nenhuma época o ser humano se tornou tão discutível quanto na nossa”.[1]
  
O incognoscível ou a incognoscibilidade do ser humano é um patrimônio intelectual geral do existencialismo; desempenha um papel importante, por exemplo, também em Jaspers. Do ponto de vista objetivo estrutural, esses são, em Ser e tempo, uma consequência direta da dominação de “o impessoal”: toda ação exterior e interior do ser humano é determinada pela manipulação. Caso se assuma aqui uma negação que possa ser cogitada em termos ontológicos, ela só pode estar fundamentada no fato de que o estranhamento que prevalece de modo geral neste mundo até tem algo ontologicamente relevante a dizer sobre o ser humano, sendo, portanto, um “existencial”, mas que, ao mesmo tempo, a essência ontológica do ser humano também contém algo diferente, contraposto, e que o ser humano (o ser-aí) só pode ser caracterizado exaustivamente em termos ontológicos como ponto de interseção desses contrastes. A questão fundamental, que adquire — especialmente no desenvolvimento posterior de Heidegger — a forma da antítese de ser e ente, aparece em Ser e tempo essencialmente nesse contexto. O ponto de partida fenomenológico ressaltado por nós, a saber, que o fenômeno não só pode revelar, mas também ocultar, encobrir, a essência, já tem em vista essa oposição. Para entendê-la e avaliá-la corretamente, é preciso apreender seu sentido com mais precisão, o modo como ela figura no pensamento de Heidegger: ela possui aí um caráter rigorosamente contraditório.
 
Ora, sabemos desde Hegel que a diferença entre contrário e contraditório não tem significado para a dialética[2]. Porém, essa concepção dialética correta está muito distante do pensamento de Heidegger. Ele confronta, no pensamento, a contraditoriedade de ente e ser, de ser-aí autêntico e ser-aí inautêntico, mas o movimento dialético, a reversão recíproca das categorias opostas uma à outra, é totalmente estranho ao modo de pensar filosófico. Especialmente em Ser e tempo, ele se encontra, no tocante às questões da dialética, sob a completa influência da crítica de Kierkegaard a Hegel. Nesta, porém, é rejeitada sobretudo a reversão dialética das categorias uma na outra, sendo sua posição ocupada pelas respectivas alternativas cristalizadas intransponíveis em termos formais, lógicos e teológicos, o que se pretende resolver, então, de modo irracionalista-religioso. Uma vinculação metodológica de lógica formal enrijecida e conteúdos irracionalistas não é, portanto, nenhuma novidade na história da filosofia. Desse modo, as tradições do pensamento adotadas por Heidegger dão a entender que ele promoveu o enrijecimento de conceitos contraditórios. Foi o que ocorreu no caso recém-mencionado.

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Notas:
[1] Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik (Frankfurt, 1951), p. 189 [ed. esp.: Kant y el problema de la metafísica, Cidade do México, Fondo de Cultura Económica, 1986].
[2] Hegel, Enzyklopädie, § 165 [ ed. bras.: Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. I: A ciência da lógica, São Paulo, Loyola, 1995, p. 300].
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LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 92-93.
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