domingo, 20 de maio de 2018

Trechos sobre o panteísmo


Uma concepção ontológica no estágio de transição moderna

Com essa renovação ética de Epicuro - que foi uma tendência involuntária de Hegel, historicamente inconsciente, mas nem por isso menos persistente no plano teórico — encerra-se na grande filosofia a época intermediária panteísta. A grande revolução ontológica do Renascimento destruiu substancialmente, para o pensamento filosófico do mundo, a derivação da racionalidade do ser e da ação humanos a partir de uma transcendência religiosa. Todavia, salvo algumas exceções, essa tendência levou a substituir a visão religiosa do mundo fixada dogmaticamente por outra visão de mundo certamente livre, aberta para as coisas, mas ainda frequentemente semirreligiosa. Disso resultou, obviamente, que o Deus transcendente desapareceu da ontologia ou, pelo menos, esfumaçou-se a ponto de transformar em algo totalmente inconsistente, mas para ser substituído – também aqui não abstraímos das exceções — por um Deus sive Natura.

Quando Schopenhauer, num dizer tão maldoso quanto espirituoso, chama o panteísmo de ateísmo cortês, ele fornece uma caracterização apenas superficial da grande corrente abrigada pelo panteísmo. O que de Giordano Bruno e Espinoza até Goethe se apresenta como “divinização” da natureza certamente é, quando encarado do ângulo da história mundial, uma batalha de retaguarda travada pela visão de mundo religiosa em retirada, mas é também uma luta de vanguarda da nova relação do ser humano com a natureza. Apesar de seu caráter de transição, aliás, precisamente por isso, germina em tal movimento uma visão de mundo genuína, historicamente fundada. Abreviando e simplificando, poder-se-ia dizer que o que une os vários panteísmos, tão diversos entre si, é o reconhecimento aberto e festivo da nova relação com a natureza que surge após Copérnico e Galileu e, ao mesmo tempo, uma visão de mundo que se recusa a extrair dessa nova relação a consequência pascalina da solidão do homem no cosmo infinito e estranho. É bem mais do que a simples recusa do pânico desencadeado pela nova imagem da natureza; é a grande tentativa de descobrir no cosmo estranho ao ser humano uma pátria para ele, de conciliar o humanismo com a constituição do mundo natural como algo estranho ao ser humano. (Também aqui o Prometeu de Goethe é um importante ponto de referência.).

Não é possível neste espaço, evidentemente, nem sequer esboçar o desenvolvimento dessa tendência. Tivemos, porém, de nos referir expressamente a ela porque Hegel, com frequência, foi acusado de panteísmo. Ele sempre se defendeu com veemência contra essa acusação, e acreditamos que com toda razão. Hegel jamais foi panteísta no sentido de Goethe ou mesmo do jovem Schelling. Sua concepção da natureza como ser-outro da ideia, isto é, de uma natureza ontologicamente estranhada do sujeito, exclui todo panteísmo e põe a filosofia da natureza de Hegel, nesse sentido, ao lado do materialismo de Epicuro. Mas só no que se refere ao panteísmo. Indicamos pouco antes as consequências imediatas de sua visão da natureza; e, mais adiante, veremos as insolúveis antinomias que ela contém no que se refere ao posicionamento de Hegel em relação à religião.

G., Lukács, Para uma ontologia do ser social I.
Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo, 2012, p. 209-210.

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