terça-feira, 15 de maio de 2018

A psicologia das massas em Freud

 
por György Lukács

Não pode ser nosso objetivo nesta revista, cujo espaço não o permite, fazer um quadro do sistema psicológico de Freud e conferir a ele uma avaliação, mesmo que apenas delineada. Isso demandaria propriamente um tratado, o que não seria mau negócio, uma vez que, de um lado, a psicologia freudiana significa um certo avanço se comparada à psicologia vulgar; porém, de outro lado, à maneira da maioria das teorias modernas, predispõe-se a desinformar o leitor por não levar em conta a totalidade do fenômeno social; predispõe-se a lhe oferecer uma panaceia sobre eventos tão populares atualmente, sem que leve racionalmente a termo a real estrutura da sociedade.

Até hoje, toda psicologia (inclusa a freudiana) sofre por conceber o seu método a partir do ser humano artificialmente insulado, isolado da sociedade capitalista e de seu modo de produção. Trata de suas peculiaridades, assim como o efeito do capitalismo, enquanto qualidades permanentes que são imanentes ao “homem”, que são “prescritas pela Natureza”. Semelhante à economia, à jurisprudência burguesa, etc., fixa-se nas formas superficiais produzidas pela sociedade capitalista; não percebe que está somente aceitando as formas da sociedade capitalista e que, em consequência, não pode emancipar-se dela. Por esta razão, à par com as demais ciências burguesas, é incapaz de resolver ou mesmo compreender deste ponto de vista a questões que subjazem à psicologia. Nesse sentido, a psicologia inverte a essência das coisas. Tenta explicar as relações sociais do homem partindo da consciência individual (ou subconsciência), ao invés de capturar as determinações sociais de seu deslocamento do conjunto dos problemas concernentes às relações comunitárias. Inevitavelmente, revolve-se sem saída em um círculo de falsas polêmicas por ela criadas.

Este estado de coisas aparenta alterar-se quando emerge a questão da psicologia das massas. Contudo, apenas um olhar sobre o método com o qual a psicologia das multidões aproxima-se de seus problemas demonstrará que prevalecem as mesmas proposições equivocadas, até mesmo em extensão maior. Assim como a psicologia do indivíduo falha na tarefa de abarcar sua situação de classe (e, a reboque, os contornos históricos da própria classe), aqui a psicologia compreende as “massas” enquanto uma congregação de seres humanos, a qual, embora possa variar em número de participantes ou no estado de organização, se limita a estas diferenças formais. Em sua metodologia, a psicologia das multidões exclui a influência das condicionantes econômicas, sociais e históricas. Efetivamente, esforça-se para provar que a composição social das massas não possui importância para o fenômeno de sua psicologia. Isso é o que se segue do fato de que a psicologia busca explicar as multidões a partir do indivíduo. Analisa as mudanças espirituais que ocorrem individualmente em meio às massas. Desse modo, não procura capturar o problema em seu verdadeiro sentido. Ao contrário, contribui para que se mantenha em sua inversão. Isto não é fortuito já que, na psicologia das massas, as características das lutas de classes inerentes à psicologia burguesa claramente veem à superfície. Tende a diminuir o valor moral e intelectual das multidões; tende a demonstrar “cientificamente” a sua instabilidade, falta de independência, etc. Deixando de lado a intrincada e sofisticada terminologia, podemos dizer hoje que a psicologia burguesa das massas está ainda formulando em termos científicos a mesma visão reacionária das massas que Shakespeare, por exemplo, expressou em termos dramáticos nas cenas de multidões de suas peças.

Enquanto um pesquisador íntegro, Freud observa os aspectos contraditórios e anticientíficos desta visão acima descrita. Ele sente que esta sistemática difamação das massas não apenas desconsidera o núcleo do objeto, como também falha em produzir algo novo; já com esta postura positiva, mantém-se liberto das mesmas contradições. Todavia, ao considerar as massas desde a psicologia do espírito individual e ao evitar a subestimação das massas, Freud cai na igualmente limitante superestimação dos líderes. Ora, Freud procura explicar o fenômeno das multidões com sua teoria geral da sexualidade. Na relação entre as massas e a liderança — na qual é alocado por ele o problema central da psicologia das massas —, Freud percebe somente um caso particular do “fato primário” que estaria na raiz das relações entre amantes, pais e filhos, amigos, profissionais, etc.

Não há como promover uma crítica desta teoria nesta revista. Apenas é necessário remarcar que Freud, de um modo inteiramente acrítico, compreende a vida emocional do homem sob o capitalismo avançado como um “fato primário” trans-histórico. No lugar de produzir a investigação das reais razões que determinam esta vida emocional, ele deseja explicar todos os eventos do passado partindo do “fato primário”. A natureza anticientífica deste método torna-se ainda mais evidente onde, tomando como seu ponto de partida as manifestações da sexualidade infantil em contemporâneos (correta ou incorretamente descritas), Freud tenciona compreender a sociedade primitiva. Ao fazê-lo, chega à fantástica suposição a propósito da existência de uma “horda primária” correspondente à família patriarcal. Para que se tome tal ponto de partida é necessário que se abra mão da maioria das descobertas da pesquisa etnológica moderna (Morgan, Engels, Cunow, Grosse, etc.).

Entretanto, podemos nos referir a outro exemplo para deixar claro até mesmo ao menos cientificamente informado dos leitores as absurdas consequências de tal método, a psicologia dos exércitos em Freud. Esta é uma questão que Freud discute com grandes detalhes.

Não é preciso dizer que ele não discerne entre um e outro exército: sob sua ótica, os exércitos camponeses da Roma antiga, os exércitos medievais de guerreiros, os mercenários rudemente disciplinados do lumpenproletariat dos séculos XVII e XVIII e as massas mobilizadas na Revolução Francesa são exatamente as mesmas “psicologicamente”; tão idênticas que Freud considera desnecessário inclusive submeter ao exame a diferença na composição social dos exércitos. Ao contrário, encontra a conexão que une todos os exércitos no “eros”, no amor. “O general é o pai que ama todos os seus soldados igualmente e, por isso, estes soldados nutrem uma camaradagem mútua... Cada capitão é, de certo modo, o general e o pai de sua divisão, e cada tenente o pai de sua unidade”. E é de se lamentar os “métodos antipsicológicos” do militarismo alemão, que “negligencia o fator libidinoso do exército”. Freud chega a atribuir a este fator o efeito do pacifismo ao fim de uma guerra.

Não mencionamos este exemplo para expor ao merecido ridículo um pesquisador meritório. Ainda que valorizemos em alto grau as aquisições do pensamento de Freud, aludimos a ele como um crasso exemplo do quanto são confusos os métodos com que operam os saberes burgueses (no caso, a psicologia). O exemplo ilustra como a psicologia burguesa negligencia os fatos mais simples e básicos da história, a fim de construir teorias “interessantes” e “profundas” através de uma abstração mistificadora desde fenômenos superficiais ou “fatos espirituais” meramente construídos. Tal saber é incapaz até mesmo de um desenvolvimento acadêmico, já que permanecerá completamente fechado no círculo de pseudoproblemas aos quais são concedidas falsas repostas enquanto não se percebe o caráter social, classista de seus equívocos. Porém, sequer o menor sinal desta percepção pode ser visto em qualquer disciplina burguesa; e menos ainda à proporção que seus problemas tocam somente em questões tópicas. Toda “profundidade” da exposição em contraste com a “uniformidade dogmática” do materialismo histórico apenas atende à necessidade de se deitar um véu sobre o atual estado de coisas (o que, em várias circunstâncias, se faz inconscientemente). Porém, em face disso, é de importância vital que, em cada caso particular, se clarifique profusamente não só o equívoco em si mesmo, senão também suas raízes sociais.

= = =
[0] Retirado de: LUKÁCS, Georg. Reviews and articles from Die Rote Fahne. Tradução de Peter Palmer. London: Merlin Press, 1983, pp 33-36. Título em inglês do artigo: Freud’s psychology of the masses. Este é um opúsculo escrito por Georg Lukács em 1922 a propósito da teoria das massas elaborada por Freud. Apareceu na revista Die rote Fahne, órgão de imprensa do Partido Comunista Alemão, editada em Berlim. É um artigo de ocasião, mas que demonstra o primeiro e único diálogo entre estes dois gigantes do pensamento do séc. XX: Georg Lukács e Sigmund Freud. Como se verá, não é cordial a recepção da teoria freudiana por parte de Lukács. O crítico húngaro via na psicologia das massas de Freud uma outra variante das teorias aristocráticas da política, que abundavam em meio à inteligência burguesa da época, sendo defendida na Alemanha por autores tão díspares como Nietzsche, Simmel, Rickert, Max e Alfred Weber, Scheler, Spengler, entre outros. É certamente uma crítica severa. Contudo, Lukács não deixa de efetuar a necessária distinção entre a psicologia vulgar e as autênticas realizações do pai da psicanálise.(Nota de R. Carli)
= = =
LUKÁCS, G. “A psicologia das massas em Freud” [1922]. Trad. Ranieri Carli. In: Psicanálise & Barroco em revista, v.7, n.1: 219-224, jul., 2009.
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário