sábado, 6 de agosto de 2022

O elitismo romântico de Adorno contra o jazz


por István Mészáros

Analisado superficialmente, o alinhamento da “teoria crítica” com a perspectiva weberiana foi muito mais surpreendente. No entanto, havia importantes pontos de contato entre essa perspectiva e o pensamento geral da Escola de Frankfurt, apesar das diferenças entre seus membros individuais.

É fato que esta escola corresponde a um conjunto muito heterogêneo de pensadores. Sua diversidade incluía desde as esperanças de Walter Benjamin de participação direta na práxis política de esquerda[1] até o ativismo político “voltado para os excluídos” de Marcuse; desde o não-envolvimento sociopolítico de Adorno até o extraordinário ecletismo teórico[2] e, apesar de seus protestos verbais, o oportunismo político tecnocrático de Jürgen Habermas. Há uma certa ironia na elevação desses intelectuais ao status de uma instituição cultural venerável, porque a constituição de uma “escola” sobre a grande diversidade de indivíduos que foram finalmente classificados sob o rótulo de “teoria crítica” tinha tanto a ver com as necessidades da “indústria cultural” e da “comunicação de massas manipuladora" — dois dos alvos mais frequentes das denúncias mordazes de Adorno — quanto com a coerência intelectual de suas ideias.

Entretanto, para além das diferenças significativas, a origem weberiana da crítica da “burocracia” e da “razão instrumental” — compartilhada por praticamente todos os membros da Escola de Frankfurt — é bastante óbvia. E, mais importante ainda, encontramos uma forte tendência elitista nos escritos teóricos de todos os “teóricos críticos”, qualquer que seja o ponto particular do espectro político em que estejam situados.

Em relação a Adorno, isto foi enfatizado em muitas ocasiões. Citando uma análise favorável:
O discurso de Adorno sobre a mediação entre a práxis intelectual e a práxis política permaneceu abstrato e vago, sem explicação do agente social que poderia servir como condutor desta mediação, uma vez que o papel do partido foi rejeitado. O agente da “mediação” de Adorno permaneceu tão misterioso quanto o mediador entre os espíritos e a matéria do mundo, e a crítica de Hanns Eisler possui um inegável ponto de validade: “Esta crença metafísica e cega no 'desenvolvimento da música'. Se Adorno compreendesse pelo menos uma vez  que a música é feita por pessoas e para pessoas —  e se ela também se desenvolve, este desenvolvimento não é abstrato, mas de alguma forma pode ser ligado aos relacionamentos sociais! —, ele não diria este absurdo abstrato”.[3] Havia realmente algo de metafísico na ênfase que Adorno confere à verdade, e também em sua visão da elite intelectual como formuladora daquela verdade.[4]
O problema era, na verdade, até mais complicado do que está indicado nesta passagem, uma vez que não faltava apenas o “agente ou veículo social” da “mediação” programática de Adorno, mas também seu terminus ad quem emancipatoriamente efetivo. Isso trazia a necessidade de uma auto-orientação e de um retraimente intelectual, articulando-se na perspectiva pessimista de uma “dialética negativa” deliberadamente oposta à adoção de um ponto de vista social, sem deixar de buscar uma solução misteriosa dos problemas identificados, como resultado da ação a partir do campo problemático desta autocontenção desesperada.

Talvez por causa do forte sentimento de desesperança prática decorrente desta negação sem afirmação, nascida de uma autocontenção intelectual imposta a Adorno pela lógica interior do “veículo” e do terminus ad quem ausentes, ele assumiu algumas posturas que pareciam estranhas até em seus próprios termos de referência. Assim, embora postulasse o papel de “mediação” abstrata de sua elite, Adorno também idealizava o ato de ficar imerso, em total silêncio, na leitura da partitura musical — obviamente limitada a poucos escolhidos — como a única maneira realmente adequada, “imediata” e “não-adulterada”, de usufruir a música.[5] Lamentavelmente, comparada a tal concepção da comunicação musical, a aristocrática afirmação de seu ídolo, Schönberg — segundo o qual o público só é necessário para melhorar a acústica da sala de concertos —, poderia soar como a manifestação do humanismo democrático orientado para as massas.
 
Também os ataques românticos de Adorno contra o jazz traíam seu extremo elitismo. Ele via e abominava no jazz “a atitude perene da cultura de massa”[6], ridicularizando seus “apaixonados devotos” por “mal serem capazes de descrever, em conceitos musicais precisos, técnicos, o que é que tanto os comove”.[7] Ao mesmo tempo que condenava a incapacidade de tais “primitivos” para articular as ideias sobre seu objeto de admiração, Adorno dava sua opinião sobre o que estava realmente envolvido na execução e na experiência do jazz, opinião que parecia terrivelmente profunda: “O objetivo do jazz é a reprodução mecânica de um momento regressivo, um simbolismo da castração”.[8] E isso não era tudo. Ele acrescentava outra visão profunda, relacionada ao “sujeito” do jazz, definido por ele nos seguintes termos:
 
O sujeito que se expressa, expressa precisamente isto: não sou nada, sou sujo, e mereço qualquer coisa que façam comigo. Potencialmente, este sujeito já se tornou um daqueles russos acusados de um crime e que, embora, inocente, desde o início colabora com seu perseguidor e é incapaz de encontrar um castigo severo o bastante.[9]

Como é tão frequente nos escritos de Adorno, suas afirmações arbitrárias só eram “substanciadas” por analogias igualmente arbitrárias. Evidentemente, os sujeitos privilegiados capazes de relatar suas experiências musicais (não corrompidas pela “indústria cultural”) em “conceitos musicais precisos, técnicos”, e que já estivessem perfeitamente sintonizados no comprimento da onda da “teoria crítica” e da negação universal abstrata (mas concretamente bem acomodados), não teriam dificuldade em aceitar as duas afirmações — sobre o “sujeito sujo do jazz” e sobre “aqueles russos” — sem questionamento, juntamente com sua esclarecedora contribuição à compreensão da natureza do jazz, que teria escapado aos simples mortais. Este procedimento é muito semelhante ao que se usa quando dois nomes são ligados com um “e” nos títulos de livros para estabelecer um elo “orgânico” entre dois campos que de outro modo nada teriam em comum. Mas, por mais problemático que seja tal procedimento, aqueles que compartilham do ponto de vista de Adorno não teriam qualquer objeção a fazer. Sem dúvida, teriam afirmado imediatamente que uma das acusações mais óbvias que se poderia levantar contra o jazz “primitivamente improvisado” e “monotonamente sincopado” era a de fazer muito pouco uso, se é que fazia algum, das partituras musicais.

Tudo isso, no entanto, não altera o fato de que, em todo o ataque ressentido e arrogante de Adorno ao jazz, não se encontra uma única linha de análise musical; nem em “conceitos musicais precisos, técnicos”, nem sob qualquer forma. Em vez disso, o verdadeiro significado do jazz era descrito por Adorno da seguinte forma:
 
“Desista da sua masculinidade, deixe-se castrar”, é o que proclama o som assexuado da banda de jazz, “e se você será recompensado, aceito em uma fraternidade que partilha com você o mistério da impotência, mistério revelado no momento do rito de iniciação”. Se esta interpretação do jazz — cujas implicações sexuais são mais bem compreendidas por seus oponentes chocados do que por seus apologistas parece arbitrária e rebuscada, permanece o fato de que ela pode ser constatada em incontáveis detalhes tanto da música como das letras.[10]

Apesar da promessa de constatar em “incontáveis detalhes” aquilo que ele mesmo reconhecia estar sujeito à acusação de arbitrariedade e rebuscamento, nem uma obra de jazz foi sequer mencionada, e muito menos adequadamente analisada, nesse ensaio tão parcial. Nem mesmo os nomes de alguns músicos de jazz foram apresentados como exemplos ilustrativos, exceto dois — Mike Riley e Louis Armstrong. Mas mesmo estes foram tomados de segunda mão de duas obras críticas norte-americanas citadas por Adorno.

A referência de segunda mão a Louis Armstrong o comparava aos “grandes castrati do século XVIII”,[11] sem querer mencionar a contradição óbvia entre as afirmações genéricas da própria teoria de Adorno sobre a natureza do jazz, em uma “sociedade de massa totalmente integrada e reificada”, e o século XVIII; este último, nem um pouco perturbado pela “produção planejada”, a “cultura de massas”, a “reificação total” e a ubíqua “indústria cultural”, mas possuindo seus “grandes castrati” — que o eram não apenas simbolicamente — que, não obstante, são tomados como exemplos que esclarecem a desconcertante realidade do jazz e o suposto complexo de castração de todos aqueles que dele participam. Na estrutura aforística de declarações e declamações de Adorno, é suficiente apenas afirmar os preconceitos ideológicos do autor e suas negações genéricas da “sociedade em si”, sem qualquer esforço real para demonstrá-los, enquanto ao mesmo tempo desfia acusações igualmente genéricas contra a ideologia.

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Notas:
[1] Benjamin era muito amigo de Bertolt Brecht e Karl Korsch.
[2]
Alles was gut und teuer” (“tudo o que há de bom e valioso”, isto é, muito elogiado), como dizem em alemão, Ver uma excelente resenha crítica de Legitimation crisis, de Habermas, de autoria de James Miller, Telos, n. 25, outono de 1975, p. 210-20. O mesmo número da Telos contém um debate muito interessante entre Wolfgang Müller, Christel Neusüss, Jürgen Habermas e Claus Offe que é importante para se compreender a posição política de Habermas. Os artigos em questão são: W. Müller e C. Neusüss, The illusion of state socialism and the contradiction between wage labour and capital”, p. 13-91; J. Habermas, A reply to Mülller and Neusüss, p. 91-8; Claus Offe, Further comments on Müller and Neusüss, p. 99-111.
[3] Hans Bunge, Fragen sie mehr über Brecht: Hanns Eisler in Gerspräch, Munique, Rogner and Bernhand, 1970, p. 30.
[4] Susan Buck-Morss, The origin of negative dialetics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin and the Frankfurt Institute, Hassocks, Haverster Press, 1977, p. 42. Uma análise séria de Adorno e Marcuse é a de Joseph McCarney,
What makes critical theory 'critical'?, Radical Philosophy, n. 42, inverno/primavera de 1986.
[5] Ele tentou persuadir Arnold Hauser — que era muito menos competente do que Adorno na leitura de partituras musicais, e por isso permaneceu completamente cético — da correção deste julgamento.
[6] Theodor W. Adorno, Prisms, Londres, Nevile Spearman, 1967 (ensaio
Perennial fashion — jazz, p. 119-32).
[7] Ibid., p. 127.
[8] Ibid., p. 129.
[9] Ibid., p. 132.
[10] Ibid., p. 129-30.
[11] Ibid., p. 130.
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MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 154-156.
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