domingo, 24 de julho de 2022

A rebeldia romântica e a atitude mental da adolescência


por György Lukács

Eis-nos enfim em presença de uma tomada de posição nítida. Após tudo o que foi dito sobre o escândalo da violência, essa tomada de posição deveria logicamente levar ao tolstoísmo, ou antes à ideologia da não-violência de certos expressionistas alemães. Mas S. de Beauvoir não quer — e isto é honra — tirar todas as consequências que se imporiam. Prefere prender-se num fio de contradições insolúveis do que optar resolutamente por uma  renúncia, sublime em aparência e covarde na realidade. Infelizmente, os motivos por meio dos quais tenta justificar suas inconsequências tão honráveis, são perfeitamente ilusórios. Invoca o exemplo da Resistência na França.
 
A Resistência — diz ela — não tendia a uma eficácia positiva. Era negação, revolta, martírio; e nesse movimento negativo, a liberdade era positiva e absolutamente confirmada.[1]
É um mito. Fazendo saltar trens, matando agentes da Gestapo, libertando prisioneiros, até organizando batalhas de guerrilheiros, a Resistência realizava atos políticos muito concretos e tendia — é evidente — à maior eficácia possível, tanto na conduta de cada ação, como no seu conjunto, no objetivo de libertar a França. Os traçados respectivos das frentes políticas eram então, sem dúvida, mais simples que após a Libertação, ainda que a simplicidade seja, nesse domínio, igualmente um mito. É humanamente muito compreensível ver alguns — Simone de Beauvoir não é a única — darem as costas aos problemas complexos e prosaicos do presente (sobretudo quando não estão à altura de assimilá-los, filosófica e politicamente) para refugiar-se na simplicidade poética do tempo da Resistência.

Essa nostalgia, dizíamos, é humanamente compreensível. Sua generalização teórica dá entretanto a nascimento de mitos, sem falar desses casos em que se erige em valor absoluto, o que é uma fonte de erros fatais. É entretanto o que acontece com S. de Beauvoir, quando declara que “somente a revolta é pura”[2]. Essa afirmação apenas dissimula — S. de Beauvoir não tarda a confessá-lo — o medo de ver triunfar “a revolta”, o temor de ver esse triunfo chegar a uma “degenerescência” da pureza original dos princípios e do entusiasmo romântico dos inícios. O humanismo revolucionário — prossegue S. de Beauvoir — “criou uma Igreja, onde a salvação é comprada por uma inscrição no partido, como é comprada alhures pelo batismo e pelas indulgências”[3]. Aqui, o existencialismo mostra de novo seu verdadeiro aspecto: o do niilismo anarquista, próprio aos intelectuais que não têm, certamente, senão desprezo pelo capitalismo imperialista dos trustes, mas aos quais a revolução real inflige um terror pânico. Isto não significa necessariamente que sejam covardes: o que temem é ver transformar-se o caráter de isolamento de sua “existência”.

As considerações de S. de Beauvoir são interessantes na medida em que desvendam um traço muito importante da caracterologia de um certo tipo social que tem medo da maturidade no plano da existência histórico-social. Entretanto a prosa da objetividade deve suceder à poesia da subjetividade juvenil; a prosa da realização na matéria dura, resistente e, apesar de tudo, sempre dócil da realidade, deve tomar o lugar da poesia nebulosa dos estados indefiníveis obscuros. Na sua Tipologia das idades, que leva a marca sentimental da lembrança de Hölderlin, Hegel descreve da maneira seguinte a atitude mental do adolescente:

A adolescência dissolve de tal maneira a ideia realizada no mundo que se atribui a si mesma a definição do substancial que pertence à natureza da ideia — o verdadeiro e o bom — enquanto atribui a definição do fortuito e do acidental ao mundo.

A existência da maior parte dos românticos está marcada pelo selo da vontade tragicômica de eternizar essa atitude mental da adolescência. Trata-se, em particular, daqueles que tiveram a ocasião de viver, no decorrer da sua juventude, um período heroico, “mítico” da história. Os românticos recusam-se a envelhecer e morrer — e a política romântica recusa dobrar-se à necessidade que quer que à poesia da subversão ou da clandestinidade heroica suceda a prosa da realização, da execução. No seu escrito que acabamos de citar, Hegel sublinha a repulsa que experimentaram numerosos adolescentes no limiar da maturidade, em se ocupar dos problemas precisos que a realidade tende a lhes impor. Simone de Beauvoir faz-se nitidamente intérprete dessa tendência, porque considera “mais autêntica” a juventude revoltada de Goethe que sua maturidade de “servidor do Estado”. Sem querer discutir com S. de Beauvoir a “autenticidade” do Segundo Fausto ou a da Trilogia das paixões, permitimo-nos notar que é uma abstração muito juvenil querer caracterizar toda a maturidade de Goethe pela definição de “servidor do Estado”. Tão “juvenil” aliás como o paralelo que estabelece entre a evolução de Goethe, de Barrès e de Aragon. Tudo isso é, em suma, profundamente falso, mas psicologicamente compreensível, porque na noite escura do medo juvenil diante de qualquer conformismo, todas as vacas — como dizia Hegel — parecem negras, todas as realizações, individuais ou sociais, parecem degenerescências verdadeiras (Barrès, por exemplo).

É portanto perfeitamente lógico ver, à guisa de apólogo, este velho adágio que S. de Beauvoir coloca no termo de seu escrito: “Faça o que deve, aconteça o que acontecer!”. Destrói assim o fruto de todas as suas considerações e de todos os seus raciocínios, às vezes cheios de interesse, para restabelecer a moral da intenção abstrata de L’être et le nant, na sua pureza integral, abstrata e perfeitamente estéril. Para chegar a uma tal conclusão, o que procede não era indispensável e guarda apenas um valor de sintoma da crise do existencialismo. caráter incognoscível do futuro, pela relatividade e subjetividade de tudo o que se pode enunciar sobre o futuro.

* * *

Certamente Merleau-Ponty rejeita resolutamente algumas das asneiras mais grosseiras do trotskismo, como por exemplo, a afirmação segundo a qual a Segunda Guerra Mundial formaria a pedra de toque absoluta do marxismo: se não conduzisse ao socialismo, o marxismo provaria ser uma utopia. Admite igualmente que a vida política tornara-se impossível[4] para Trotski, mas, apesar de tudo, seu pensamento sofre, frequentemente, a influência decisiva do trotskismo. Aliás, a melhor prova disso é que julga útil — a despeito de sua vasta cultura e de seu instinto crítico robusto — repetir certas calúnias mil vezes ouvidas sobre a União Soviética, quando não faltam assalariados do nível de Koestler para desincumbir-se dessa tarefa. Não temos lugar nem tempo para nos deter neste gênero de problemas, porque em primeiro lugar propomo-nos esclarecer problemas teóricos. Citaremos, portanto, apenas uma das objeções de Merleau-Ponty, a título de exemplo. Forja, com efeito, um argumento da luta staliniana contra o nivelamento em matéria de salários, para declarar que o bolchevismo está bastante afastado das teorias clássicas do marxismo e frisa seu pragmatismo a partir de então. Ora, não é necessário ser um grande conhecedor dos textos clássicos, para saber que, desde 1875, Marx caracterizava a diferenciação dos salários como uma tendência econômica fundamental da primeira fase do socialismo.
 
Seria, no entanto, inútil determo-nos em detalhes de segunda ordem. O essencial é a influência profunda que o trotskismo exerce em Merleau-Ponty. A História, desde há muito tempo, fez justiça a todas as afirmações concretas de Trotski e, no entanto, os efeitos de suas teorias fazem-se ainda sentir em certos meios. O efeito de que falamos manifesta-se antes de tudo pelo desvio de atenção das questões essenciais e concretas do presente, e, ao mesmo tempo, por uma camuflagem do niilismo teórico e prático por meio de uma demagogia revolucionária. A intenção original de Trotski, sem dúvida, não era desviar quem quer fosse dessas questões; apenas forneceu respostas totalmente falsas, construindo arbitrariamente um antagonismo insolúvel entre os interesses camponeses e os interesses operários. Mas esse primeiro erro teve por consequência inevitável a negação da possibilidade de construir o socialismo em um só país e essa negação torna-se, por sua vez, o verdadeiro sinal de união da contrarrevolução. Devia fornecer a plataforma sobre a qual certos intelectuais e elementos operários deveriam agrupar-se contra a URSS. A evolução econômica, política e cultural sublinha a importância do socialismo enquanto única perspectiva do futuro, e a atitude individual em relação à União Soviética torna-se a pedra de toque não somente de todas as questões políticas, mas também dos problemas da ideologia. Com efeito, a questão da perspectiva não deve somente ser colocada politicamente, mas também no plano ideológico. Só uma perspectiva de futuro concreto está em condições de superar teoricamente o niilismo ideológico. Ora, nossa própria evolução não produziu outra perspectiva a não ser o socialismo.

Afirmamos que o homem moderno, se não está desprovido da necessidade de honestidade intelectual, deve escolher entre a perspectiva do socialismo e o niilismo filosófico. Esta escolha impõe-se hoje muito mais imperiosamente do que há cento e cinquenta anos.

Enquanto a filosofia era apenas um prelúdio teórico à Revolução Francesa, a preparação ideológica, de alguma maneira, do “Império da Razão”, não tinha a necessidade de fazer diretamente apelo à História para evitar o escolho do niilismo. A realidade que fornecia à filosofia suas bases nada mais era do que o combate da sociedade burguesa em gestação contra o feudalismo caduco. Em termos filosóficos, isto se chamava então de combate da razão contra o irracional e o caos. A filosofia do século XVIII podia permitir-se tomar como ponto de partida de suas especulações (epistemológicas, ontológicas, psicológicas, pouco importa) o indivíduo isolado e criar, a seu bel prazer, mito sobre mito em torno do tema de Robinson, sem no entanto, perder seu caráter social, sua historicidade implícita e, portanto, sua perspectiva. Os pensadores mais evoluídos anteriores à Revolução Francesa embalavam-se, com efeito, na ilusão de ver surgir, espontânea e inevitavelmente, uma sociedade baseada na razão e harmonia, a partir da ação do indivíduo egoísta e isolado. Poder-se-ia quase dizer, sob uma forma um pouco paradoxal, que a concepção econômica de Adam Smith dava enfim um fundamento aos grandes sistemas filosóficos anteriores à Revolução Francesa.

Essa base objetiva da filosofia devia entretanto sofrer uma metamorfose profunda, devida ao triunfo da Revolução Francesa e ao término da revolução industrial na Inglaterra. Antes de mais nada, a historicidade do mundo e, em primeiro lugar a da humanidade, impôs-se ao pensamento. Isto significa concretamente que o pensamento teve de reconhecer o “império da razão” — de que Engels havia dito tão espirituosamente que, uma vez realizado, mostrar-se ia como o império da burguesia — como um estado passageiro da humanidade. Toda filosofia que tende a esconder esse caráter historicamente transitório do capitalismo, condena-se a perde toda perspectiva. Só a resignação total, a aceitação da impotência da razão, pode aceitar o capitalismo como perspectiva da evolução da humanidade. No estágio do imperialismo, um niilismo desesperado ou cínico junta-se a esse niilismo resignado e a ausência de toda perspectiva lhes serve de base comum. Não é mais necessário, estamos convencidos, determo-nos para demonstrar que, desde Nietzsche até o fascismo, passando por Spengler, os mitos históricos da reação são apenas tentativas falaciosas, com vistas a camuflar esse niilismo.

Mas a evolução econômica e social, desde metade do século XIX, não somente privou a filosofia de todo fundamento especulativo supra-histórico, como também tornou-lhe sensível a impossibilidade de tomar como ponto de partida o indivíduo isolado e seus estados de consciência. A evolução econômica real provou concretamente o erro das concepções de Smith e de Ricardo, demonstrando que em lugar de fazer nascer a harmonia social, a soma dos atos individuais só pode dar lugar a um caos feito de crises e de guerras que tenderia cada vez mais para a instauração de uma barbárie universal. Assim, o indivíduo isolado, enquanto ponto de partida do pensamento filosófico (gnosiológico, ontológico ou psicológico, pouco importa) terminou por perder sua base implícita, amparada ainda há pouco por uma ilusão historicamente justificada.

Esse estado de coisas está ainda bem longe de ter entrado na consciência, e também no pensamento filosófico. A existência social, que se impõe cada vez mais à vida do homem, age no entanto cada vez mais sobre o pensamento humano e mesmo sobre o dos filósofos, nos quais entretanto as tradições seculares da metodologia criam sobrevivências ideológicas muito tenazes. A presença da categoria do ser-com (Mitsein) na ontologia heideggeriana é uma das provas desse evolução inconsciente. A crise do existencialismo francês, por nós descrita, reflete nitidamente a distância que subsiste entre os problemas que a existência social lhe impõe e as sobrevivências ideológicas que embaraçam sua metodologia. As tentativas de Merleau-Ponty, no sentido de apreender a realidade social atual, ofereceram-nos, em razão da sensibilidade particularmente aguda do autor para problemas novos, a melhor ocasião de estudar essas sobrevivências.

Resta-nos apenas demonstrar a ligação íntima que existe entre essas sobrevivências do existencialismo e dos resíduos de opiniões e atitudes trotskistas. Aqui, algumas notas de ordem histórica impõem-se. Merleau-Ponty estaria talvez inclinado a se reconciliar com o que ele chama de marxismo clássico: dirige objeções somente contra a forma atual do marxismo, a que os partidos comunistas representam. Ocupando essa posição, Merleau-Ponty toma sob sua responsabilidade e conserva (se bem que rejeite numerosas opiniões concretas de Trotski e de seus partidários) duas atitudes trotskistas, estreitamente ligadas uma à outra. A primeira é sua desconfiança a respeito da política seguida pelos partidos comunistas, desde o VII Congresso da Internacional Comunista, isto é, desde 1935. Já falamos da primeira questão, analisando a título de exemplo, a incompreensão de Merleau-Ponty a respeito da desigualdade de salários na União Soviética. Considera igualmente a possibilidade de um ataque da URSS contra a Europa e conclui que essa ameaça não é para hoje. Não é portanto por princípio que Merleau-Ponty rejeita uma tal possibilidade, admitindo assim uma teoria que é a de toda contrarrevolução e que considera a União Soviética como um Estado imperialista: julga  somente que o problema de uma agressão soviética não é de atualidade. A diferença entre sua posição e a da contrarrevolução antissoviética e portanto somente de ordem tática e não de princípios. É igualmente muito significativo que não faça jamais menor alusão à luta pela democracia nova na França ou em outros países, enquanto que a solução dessa luta decidirá para nós da sorte da evolução e mesmo da sorte da perspectiva socialista. Parece ante que, segundo ele, é precisamente aí que se encontraria a base da pretensa evolução antiteórica do marxismo: essa Realpolitik “pragmatista” é, a seus olhos, responsável pelo afastamento do “marxismo clássico”.

O marxismo clássico coincide certamente para Merleau-Ponty (ele o diz aliás abertamente) com a concepção trotskista que negava, desde 1905, na Rússia, a transição real, se bem que complexa, da revolução até o socialismo. Mais tarde, na época de Brest-Litovsk, os representantes dessa tendência combateram, em nome da “frase revolucionária” (Lênin sobre Trotski), as medidas eficazes para salvar a revolução e para intensificar seu surto. Todo marxista sabe que esse reino da “frase revolucionária” alia-se perfeitamente bem com um oportunismo desprovido de todo princípio. (Cf. o papel de Trotski na realização do bloco de Agosto dos oportunistas em 1910). Lênin, em Que fazer?, desmascara aliás a íntima afinidade ideológica que liga o oportunismo político ao terrorismo individual (a frase revolucionária) dos SR. Essa afinidade íntima encontra uma definição muito feliz num dito que teve um SR numa conversa com Asev, o célebre agente provocador — que não tinha ainda sido desmascarado na época — e pretenso organizados de grandes atentados: “Em suma, Asev vós sois apenas um cadete (liberal) ordinário, mais as bombas...”.

Temos certeza de não caluniar o existencialismo, colocando-o sob este prisma, porque o próprio Merleau-Ponty o faz. Evoca os processos de Moscou: ora, o que foram esses processos, em suma, senão a revelação da essência mesma do trotskismo, da traição em relação à revolução, uma traição que ia até a espionagem? Uma revelação que nos mostrava “o nada aniquilante”, enquanto essência mesma do mundo e da personalidade dessas pessoas, que nos provava sua falência intelectual e moral absoluta e sua “situação” “face ao nada”. Sem o querer expressamente, Merleau-Ponty não está entretanto longe de nos dar razão quando escreve: “Não se é ‘existencialista’ por gosto, e há tanto ‘existencialismo’ — no sentido de paradoxo, divisão, angústia e resolução — no relato estenográfico dos Debates de Moscou como em todas as obras de Heidegger”.[5] Com efeito, o universo dos Bukarin, Rakovski e outros Yagoda, é efetivamente o universo de Sein und Zeit, esse “teatro de fantoches da filosofia", como tão bem diz Henri Lefebvre.
 
A condenação da frase revolucionária constitui entretanto a condição sine qua non da verdadeira inteligência do marxismo, da verdadeira superação das tendências niilistas do presente. Quanto mais a evolução segue seu caminho, mais é assim. Há cem, ou mesmo cinquenta anos, uma profissão de fé socialista determinava, num intelectual, uma verdadeira revolução de toda a marcha de seu pensamento. Mas numa época como a nossa, em que o socialismo tem atrás de si trinta anos de história real, uma profissão de fé abstrata pelo objetivo final do socialismo não quer dizer mais nada. A escolha diante da qual nossa realidade social coloca o pensador honesto, a “situação” na qual se encontra, é a seguinte: é necessário tomar posição face ao socialismo tal como é, tal como nasceu e como se desenvolve na União Soviética; é necessário tomar concretamente posição frente aos caminhos inteiramente novos que conduzem ao socialismo e que se abriram com a derrota do fascismo. Dizer: sou pelo socialismo, mas não pelo socialismo soviético; sou unicamente por um socialismo conforme a minha representação — dizer isso, mesmo sob formas “heroicas”, “sublimes” ou “poéticas”, equivaleria à atitude da mãe que dissesse: a chama do amor materno me consome, sou o amor materno feito mulher, mas recuso-me a amar meu filho porque tem as orelhas descoladas.

É assim que a frase revolucionária e suas consequências morais aparecem tal como o “Urphaenomen” goethiano. O que é, no plano político “frase revolucionária”, corresponde a uma mal geral dos intelectuais do estágio do imperialismo. Estudamos um dos sintomas desse mal em Simone de Beauvoir, a propósito da superestimação falaciosa, à custa da maturidade, da juventude poética e rebelde. É difícil resistir à tentação de esboçar a análise fenomenológica desse comportamento em face da realidade, mas infelizmente precisamos limitar-nos a algumas notas. Esse mal niilista foi aliás logo reconhecido e genialmente descrito por Dostoievski. Pensemos no diálogo de Ivan Karamazov com o Diabo, que lhe aparece sob a aparência de um proprietário fundiário parasita. O Diabo diz a Ivan: “Na realidade, estás furioso só porque não apareci numa luz vermelha acompanhada de raios e trovões, com asas queimadas, mas sob uma aparência mais modesta. Estás ofendido, primeiro nos teus sentimentos estéticos, mas também no teu orgulho: Perguntas: como um diabo tão ordinário pode apresentar-se diante de um tão grande homem?” A frase revolucionária representa simplesmente a defesa do psiquismo do intelectual contra as ofensas desse gênero: é o anjo de asas queimadas. Ela satisfaz o amor-próprio dos intelectuais, que se debatem como vítimas do desejo pouco consciente de sair do niilismo. Quando se crê, com efeito, ter rompido com a sociedade burguesa ou, que se levante, ao menos, um protesto intelectual contra ela, exige-se que essa atitude traga consigo toda a poesia das épocas heroicas. Não nos revoltamos contra a sociedade burguesa simplesmente para tornarmo-nos uma engrenagem no aparelho do partido e para dedicarmo-nos a estatísticas prosaicas. Tememos cair, de uma maneira ou de outra, no conformismo. Aquele que se aferra assim à frase revolucionária do trotskismo, encontra-se, por esse fato, separado do proletariado, o qual — como Merleau-Ponty vê muito bem — permanece fiel aos partidos comunistas e à União Soviética. Mas isto em nada conta, ao contrário: resta sempre o recurso de se lamentar, numa atitude de luto sublime, na solidão do não-conformista ao meio de uma época má.
 
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Referências:
[1] Temps moderns, t. XVII, p. 856.
[2] Ibidem, p. 875.
[3] Idem.
[4] Temps moderns, t. XVI, p. 690.
[5] Ibidem, p. 711.
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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, pp. 161-164; 195-203.
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