segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Eu não entendi. Você entendeu?

por Arthur D'Elia

A poesia concretista brasileira possui algumas características essenciais, tais como: realização de experiências com a linguagem poética, incorporação de recursos visuais, aventuras verbais e fragmentação de palavras (BOSCO, 2007). Tais aspectos se evidenciam em alguns poemas. Importante ressaltar, para evitar confusões, que nem todos os poemas da tradição concretista se inserem no tipo de abordagem que será explicitada mais adiante. Certos escritos são valiosos; no entanto, eles não serão expostos com a devida análise no presente texto.

Por conseguinte, para que se inicie a análise, alguns trabalhos do autor citado a seguir:


 










Em tais obras, percebe-se uma marcante característica de alguns dos poemas concretistas, que é a hiper-valorização da forma em prol do conteúdo. Ela fica encarregada por informar o sentido do poema. Todo esse jogo de palavras visa passar a informação ao leitor. Esse tipo de posicionamento perante a escrita literária recebeu um tratamento por parte de Marcos Siscar, que tentou situar essa forma de fazer poemas dentro do contexto brasileiro.

Sob o nome de “impasse da modernização”, Siscar ressalta alguns problemas políticos que assolaram a segunda metade do século XX, tais como: anistia e redemocratização após um período ditatorial no Brasil, e a queda do “comunismo” no cenário internacional. Esses acontecimentos teriam influenciado o desenvolvimento literário brasileiro. Em segundo lugar, com o nome de “O enfrentamento das ruínas” se tem a exposição dos seguintes fatos: anos 70/80 marcados por uma profunda desordem moral e estética, degradação dos valores político-poéticos; surgimento de metalinguagem erudita e pragmática; e o abandono do projeto humanista (SISCAR, 2005). Essa última característica, de forma imediata, remete às obras já citadas. A utilização da metalinguagem erudita constitui a pedra angular do concretismo em alguns casos, principalmente no que tange aos poemas de Décio Pignatari. É perceptível, em suas obras já citadas, o giro que a linguagem desenvolve sobre si mesma a fim de que seja possível captar o sentido que está no próprio poema (ele é o tema de si próprio).

Diante do que já foi exposto, cabe uma crítica à tamanha predominância da forma sobre o conteúdo. O estudo da substância humana do homem faz parte da essência da literatura. O bom escritor é aquele que consegue tornar sensível a realidade por meio de sua reprodução elaborada artísticamente. Ele deve se esquivar da mera fotocópia do real, bem como de formulações abstratas que se distanciam deste (LUKÁCS, 1965). Para ficar evidente tal posição:
A verdadeira arte, aprofunda-se sempre na busca daqueles momentos mais essenciais que se acham ocultos sob a capa dos fenômenos; mas não representa esses momentos essenciais de maneira abstrata, fazendo abstração dos fenômenos e contrapondo-se àqueles, e sim apreende exatamente aquele processo dialético vital pelo qual a essência se transforma em fenômeno, se revela no fenômeno, fixando, também, aquele aspecto do mesmo processo segundo o qual o fenômeno se manifesta, sua mobilidade, a sua própria essência (LUKÁCS, 1965, pág. 29).
Para melhor revelar o tipo de abordagem da arte que torna possível problematizar o trabalho de Décio Pignatari, outra consideração de Lukács é importante. Para tanto: 
A estética marxista identifica o maior valor da atividade criadora do sujeito artístico no fato dele assumir nas suas obras o processo social universal e torná-lo sensível (LUKÁCS, 1965, pág. 32).
Diante disso, analisando os poemas de Pignatari, é evidente que sua criação não torna sensível a essência, o conteúdo, tal como grandes gênios da arte o faz. Essa questão não é esquecida por Siscar quando se refere à questão da “metalinguagem erudita” ou a crise da poesia, que afligem, sobretudo, o cenário brasileiro em um determinado momento histórico (SISCAR, 2005). Nesse tipo de exposição concretista, há uma supervalorização do fenômeno ou forma, que fica evidente na máxima “A forma é que informa”.

Entretanto, tal perspectiva parece pressupor uma espécie de hiper capacidade do sujeito de um modo que seja capaz de apreender o conteúdo da obra, retirando assim toda a função do artista desse processo. Isto porque a forma está de modo excessivo. O autor requer da comunidade uma extremada capacidade para desvendar todo jogo de palavras embutido, para depois sim conseguir acessar a sua essência. No poema “coca-cola” isso fica evidente, assim como nos demais já citados. Ainda que, deve-se reconhecer uma relação dialética nestas obras, porém, esta fica meramente abstrata se não é capaz de trazer à tona o que está em jogo no poema.

Aqui deve ser reconhecido também que alguns indivíduos podem conseguir apreender o sentido do poema, mas o ponto de partida para o tratamento da arte não deve ser a vivência individual de cada indivíduo, e sim o modo como na obra em si mesma o artista possibilita a captação do devir humano do ser humano, da substância humana.

Nada mais fraco esteticamente que isso. O bom artista torna sensível a realidade a partir de sua apropriação feita e da adequação artística que torne isso possível. Pode-se dizer que o predomínio na relação obra-contemplador está na obra e não em quem está posto a admirá-la ou posteriormente representá-la. Isso fica evidente quando se depara com o seguinte poema “tirado de uma notícia de jornal” de Manuel Bandeira:
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(BANDEIRA, 1930)
No presente poema, ainda que o autor seja um pouco anterior ao Pignatari, há uma relação entre forma e conteúdo ou fenômeno e essência que torna sensível a essencialidade da obra. O objetivo de retratar determinado aspecto da vida cotidiana; um morador de certa comunidade (pobre), que não poderia ser lembrado nem pelo número de sua casa, morre afogado após um pleno deleite sob as amarras do hedonismo desenfreado. Bandeira torna acessível o contato com o modo como se configura a vida desse tipo de pessoa de dada posição social menos favorecida. Problematizando-a. A dialética envolvida não é abstrata como em alguns poemas “concretos”, mas sim concreta e clara.

O que foi até então exposto insere-se na problemática levantada por Marcos Siscar, acerca da relação entre realidade e poesia ou a consideração desta última como certo modo de ler a realidade. A exaustão de sentido, de que ressalta Siscar, bem como sua preocupação com a crise que atinge a poesia brasileira, insere-se nessa questão dos poemas concretistas já analisados (SISCAR, 2005). Para que fique clara, a consideração acerca da obra de arte, sobretudo a literatura, algumas breves considerações a mais são necessárias.

A beleza de uma obra de arte ou de um escrito literário, como bem já foi demonstrada, não reside na extrapolação sentimentalista do autor ou em um princípio de ultraconsciência ou até mesmo no extremo peso jogado sobre a forma a fim de que esta por si mesma repasse o sentido da totalidade apresentada. O belo revela-se objetivamente a partir do tornar sensível a realidade pelo artista, ou seja, depende fundamentalmente da apreensão do real pelo autor e sua exposição de maneira artística de modo que não seja nem fotocópia nem algo extremamente abstrato. A partir disso, para uma última exposição crítica dos poemas já explicitados, um retorno ao texto de Lukács é importante. Para tanto:

Portanto, se a estética marxista identifica o maior valor da atividade criadora do sujeito artístico no fato dele assumir nas suas obras o processo social universal e torná-lo sensível, experimentalmente acessível, e se nessas obras se cristaliza a autoconsciência do sujeito, o despertar da consciência do desenvolvimento social, nada disso implica em uma subestimação da atividade do sujeito artístico, e sim, pelo contrário, temos uma legítima valorização desta atividade, mais elevada do que a de qualquer outro critério precedente (LUKÁCS, 1965, pág. 32).

Diante dessa abordagem, deve-se enfatizar que por mais que se tenha uma crítica, levantamento de questões referentes à realidade, nos respectivos poemas de Décio Pignatari, ele não consegue tornar acessível tal conteúdo. Até mesmo em seu poema “coca-cola”, em que se pretende realizar uma crítica à indústria do refrigerante. Todo o complexo de questões permanece abstrato à espera de um “eu” transcendental capaz de apreender o jogo dialético envolvido. Portanto, a partir disso, fica a pergunta: “Você entendeu”?

= = =
Bibliografia:
BANDEIRA, M. Libertinagem. 1930.
BOSCO, J. Concretismo: a liberdade concreta. Bahia: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2007.
LUKÁCS, G. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1965.
SISCAR, M. A cisma da poesia brasileira. 2005.
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário