sexta-feira, 1 de março de 2019

O assalto financeiro ao Estado, a destruição da Previdência e o liberalismo social de Pablo Ortellado




O professor da USP Pablo Ortellado, em sua Coluna na Folha de São Paulo, tentou escrever sobre a previdência social e as supostas mudanças imprescindíveis que a previdência precisa. Parte da premissa de que a "esquerda" – um geral abstrato sem diferenças – adota um "conivente com terraplanismo contábil" ao negar que a contrarreforma tem que existir. Segundo o professor uspiano, a "reforma" tem que ser feita e acabou. Cabe apenas a esquerda "reduzir danos" e buscar colocar o sacrifício mais nas costas dos "ricos" do que dos "pobres".

Ortellado começa dizendo que a esquerda (ele deve estar falando do PT) no governo reconhece o problema fiscal, mas quando está na oposição, se negar a ver uma realidade evidente, técnica, só para construir um discurso fácil e sedutor. A realidade, porém, é que os economistas e dirigentes do PT, corretamente, apontavam que durante o Governo FHC se criou um modelo de desenvolvimento (o termo teoricamente preciso é "padrão de acumulação") formando uma captura financeira-rentista do Estado. Em poucas palavras, mesmo realizando rodadas avassaladoras de privatizações, impondo cortes cada vez mais duros nos gastos públicos com saúde, educação, infraestrutura etc., atacando o servidor público e facilitando todo tipo de atividade capitalista, com destaque para exportações de produtos primários e especulação financeira, a dívida pública interna explodiu, a carga tributária aumentou e o Brasil tinha uma das maiores taxas de juros do mundo. Dois dados são fundamentais para pensar isso: No final de 1994, a dívida pública era de R$ 153,162 bilhões, em 2002, no final do mandato do tucano, saltou para R$ 892,291 bilhões (60,38% do PIB). Ou seja, a dívida pública cresceu na era FHC 482% em termos nominais. Já a carga tributária cresceu em 6% do PIB, entre 1994 e 2002

Enquanto fazia isso, FHC e sua turma aprovaram coisas como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que limitava o gasto público com funcionalismo público, mas deixava livre o gasto financeiro, isto é, para pagamentos de juros e serviços da dívida. O PT, na época, defendia corretamente que isso não tem nada de "responsabilidade fiscal" e era um esquema de enriquecimento de setores da classe dominante e dos monopólios estrangeiros a partir do assalto ao orçamento público. Quando, depois no Governo, o PT, PCdoB, PDT e PSB esqueceram as críticas dos anos de 1990 e passaram, dentre outras coisas, a louvar a LRF, foi por aceitarem fazer a gestão do modelo econômico de FHC e não um realismo técnico ou responsabilidade de governo.

Esse modelo, vigente até hoje mesmo que com transformações, têm elementos curiosos. Em 2017, o total de renúncia fiscal (quando o Governo deixa de arrecadar impostos como suposto incentivo para investimentos econômicos) foi de 400 bilhões. Isso supera o gasto com saúde e educação no ano. Só que isso não aconteceu só em 2017, desde FHC até hoje passando por Lula, Dilma, Temer e continuando com Bolsonaro, todo ano o Estado deixa de arrecadar bilhões e bilhões de grandes empresas, inclusive as multinacionais. Na maioria das vezes, essas desonerações fiscais não tem nem a contrapartida de manter o nível de emprego. Aí uma empresa como a Ford, depois de ganhar bilhões de dinheiro público, resolve ir embora e pronto.

Mas isso não é tudo. O Estado não só abre mão de arrecadar impostos, como não cobra as dívidas que as empresas devem. Proprietários rurais devem quase 1 trilhão a União; empresas privadas devem quase 450 bilhões aos INSS – e ao contrário do discurso liberal de que essas empresas estão falidas em sua maioria, em muitos casos, a questão é uma manobra jurídica e contábil, podendo e devendo cobrar a dívida do patrimônio dos seus donos; O Brasil também é o segundo país com mais sonegação de impostos do mundo. Só perdemos para Rússia. O custo estimado da sonegação é de 13% do PIB por anos.

Todos esses dados estão nessa situação desde o Governo FHC. Pablo Ortellado ignora todos eles. Ao falar da dívida pública, diz que a esquerda infla o papel do gasto financeiro no orçamento do Estado. Algumas pessoas falam que juros e serviços da dívida consomem, em média, quase 50% do orçamento público todo ano. Esse cálculo é problemático, mesmo assim, porém, é um consenso que o gasto financeiro do Estado desde FHC não fica abaixo de 26% do gasto público total. Isso significa, mesmo se não for 50%, um valor absurdo. Absurdo por um motivo simples: não é uma dívida que serve para financiar a construção de escolas, hospitais, creches, casas ou nada do tipo. Serve para deixar sempre mais ricos bilionários do Brasil e do exterior, como os Bancos Itaú e Bradesco.

Junte a isso o fato de que temos, por baixo, 12 milhões de desempregados, mais de 25 milhões na informalidade, um número incerto de jovens em estágio, segundo graduação, trabalhos temporários ou com alta rotatividade (como telemarketing). Ou seja, temos uma força de trabalho jovem gigante que não está contribuindo com a previdência diretamente (afinal, todos pagam altíssimos impostos sobre o consumo e, portanto, contribuem com o fundo público) por causa de uma política e um modelo econômico que gera desemprego, trabalhos cada vez mais precários, informalidade, terceirização, baixos salários e alta rotatividade no mercado de trabalho.

Mais uma vez, sobre isso, Ortellado não tem nenhuma palavra a dizer. O professor aceita o modelo atual como único possível. O único racional, científico. Qualquer questionamento a isso é uma visão delirante, "terraplanismo". O negócio é tão imbecil que nesses debates quase todos cometem um erro básico de contabilidade e estatística ao falar da previdência.

É falso dizer que o "x" da questão na previdência é apenas número de trabalhadores na ativa vs número de aposentados. Ao fazer isso se ignora algumas coisas básicas, por exemplo

– Desconsiderar a produtividade do trabalho. É tido como lógico considerar que na evolução demográfica a produtividade do trabalho e a apropriação dos ganhos de produtividade pelos trabalhadores ficará congelada. Trabalhar com essa premissa é dizer, nas estrelinhas, que a política econômica aplicada hoje é imutável e será assim para sempre.

– Desconsiderar a possibilidade de aumentar a massa salarial e a porcentagem de contribuição previdência, sem reduzir a renda, dos trabalhadores ativos. Mas debater isso pressupõe uma política forte e agressiva dos ganhos salariais. Sem falar, é claro, em aumentar as contribuições patronais para previdência ou fazer coisas que João Goulart defendiam e que nunca foram aplicadas (como Lei de Remessas de Lucros das multinacionais e aplicar os ganhos no financiamento da previdência dos trabalhadores, por exemplo).

– Desconsiderar as possibilidades de mudança na alocação do gasto da previdência para financiar mais aposentadorias. Por exemplo, se cortássemos pela metade as aposentadorias de juízes, desembargadores, procuradores e afins, realocando o dinheiro para pagar o custo médio de uma aposentadoria de trabalhador, 1, 600 reais, quantos aposentadorias a mais e por quantos anos poderíamos financiar?

– Desconsiderar a variável planejamento demográfico. A demografia é mesmo um problema econômico nas próximas décadas? Que políticas de aumento da natalidade é possível e desejável executar?

Todas essas variáveis, e muitas outras, do problema são excluídas. Ortellado, se achando o gênio da contabilidade, tentar fazer um cálculo que se um aluno meu do 9° ano fizesse igual, teria que dar uma nota baixa para ele.

Esses são alguns temas do debate sobre a previdência excluídos pelos monopólios de mídia e os intelectuais da classe dominante, como o professor da USP. Uns usam uma versão abertamente de direita, defendendo o fim da previdência e fuder o trabalhador; outros dizem que tem que fazer a destruição da previdência, mas “protegendo um pouco” o trabalhador. Ambos, porém, dizem: no atual modelo de acumulação capitalista e na política econômica que o sustenta ninguém mexe!
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