terça-feira, 7 de agosto de 2018

O ateísmo religioso dos niilistas secularizados


A religiosidade sem Deus

Conforme Lukács, Schopenhauer inaugura esta última expressão da apologia ao capital. Daí provém o seu pessimismo: elevando as misérias do capital à condição humana,o filósofo abstém-se então de qualquer luta. Afinal, uma luta contra as contradições intrínsecas à alma do homem está fadada ao fracasso; não haveria batalha consequente contra a natureza mesma do homem. Por isso, “a vida oscila, como um pêndulo, da direita para esquerda, do sofrimento para o aborrecimento: estes são os dois elementos de que ela é feita” (Schopenhauer, 2004, p. 327). O que Schopenhauer intitula as dores do mundo não são nada além do que as dores de um mundo historicamente situado, do mundo particular burguês.

Diante de um mundo dolente, cabe ao indivíduo encasular-se em si mesmo. A autarquia do indivíduo autossuficiente, que se expressa na obra de Schopenhauer, é um específico reflexo do período da Restauração prussiana. Depois de tantas mudanças pelos continentes (revolução francesa, as guerras napoleônicas, as guerras de independência,etc.), a miséria alemã permanecia intocada; uma revolução democrático-burguesa estava distante dos horizontes da Alemanha submetida aos mandos de Guilherme IV. Atendo-se aos limites da nação germânica — contrária a uma visão de amplitude cosmopolita comum a Kant, Fichte, Schiller, Hegel, Goethe, Hölderlin —, não é difícil de concluir que qualquer ação transformadora seria inútil.

Contudo, há uma diferença substancial entre Schopenhauer e a filosofia partidária da Restauração. Lukács a identifica:
Ressalta claramente aqui o que há de coincidente e de divergente entre Schopenhauer e a filosofia irracionalista do período da Restauração. Uma e outra tratam de educar seus partidários na passividade social. Mas por caminhos distintos. A segunda, glorificando como obra de Deus o 'crescimento orgânico' da sociedade, é dizer, proclamando a legitimidade exclusiva da ordem absolutista-feudal e condenando como satânico, como inorgânica, como fruto do "artifício", toda transformação revolucionária, enquanto que naquele, em Schopenhauer, o irracionalismo da sociedade e da história aparece como um absurdo puro e a aspiração de tomar parte na vida social, e não digamos o empenho em transformá-la, se revela como uma ausência tal de visão do que é o mundo, que raia já o criminal (1968, p. 173)
A educação para a passividade é feita com cartilhas diferentes. Schopenhauer não pretende justificar a miséria alemã utilizando-se da suposta legitimidade do Absoluto; a sua intenção é demonstrar o caráter "humano" dessa miséria, cujo absurdo é inerente à alma do homem e contra o qual não se pode lutar.

Não haveria em um burguês laico como Schopenhauer a defesa da mística religiosa. Em seu tempo, Schopenhauer nunca pretendeu defender a mística do cristianismo feudal como fizera Schelling; o seu ponto de vista é de uma burguesia secularizada. Isso explica porque a crise da religião não levou Schopenhauer a defendê-la, mas senão encontrar para ela um substituto. Lukács argumenta que o filósofo irracionalista constata a falência dos mitos tradicionais ligados à religião; entretanto, para não abstrair desse movimento uma concessão ao materialismo, apresenta o “Nada” como substituto para a religiosidade, para aqueles que não mais se apegam às crenças tradicionais e procuram uma “nova religião”. Em face da crise das religiões, cria-se um suplente: o “nada” absoluto, uma espécie de Cosmos. Eliminando a noção de Deus de uma “maneira descente”, isto é, anti-materialista, Schopenhauer cria a religiosidade sem Deus.

Trata-se do que Lukács chama de ateísmo religioso. Suprime-se a religião elevando o “nada” absoluto à condição de novo objeto de adoração. A abordagem aqui dada ao colapso religioso não é outra coisa além de uma saída irracionalista para um problema objetivo.

Desse ateísmo religioso procede a admiração de Schopenhauer não pelo catolicismo de seu tempo e sim pelas religiões orientais e pelo cristianismo primitivo, cujos preceitos visavam atingir uma “piedade cósmica”. Segundo Schopenhauer:
 
Despojar-se de suas riquezas, abandonar qualquer habitação, deixar os seus, viver no isolamento mais profundo, afundado numa contemplação silenciosa, infligir-se penitência voluntária no meio de lentos e terríveis suplícios, em vista da mortificação completa da vontade, levada finalmente à fome [...] precipitando-se da rocha sagrada do alto do Himalaia, ou fazendo-se enterrar vivo [...] Preceitos observados durante tanto tempo por um povo que conta milhões de indivíduos, impondo sacrifícios tão pesados, não pode ser uma fantasia inventada por capricho, mas devem ter a sua raiz na própria essência humana (2004, p. 407).

Ao levarmos uma vida ascética, como demanda a moral hindu, não encontramos no fim o Nirvana hinduísta; o que nos espera em seu lugar é o nada, é o precipitar-se do alto do Himalaia. Para os resignados, “para aqueles que se converteram e aboliram a Vontade, [o que resta] é o nosso mundo atual, este mundo tão real com seus sóis e todo as as suas vias lácteas, que é o nada” (idem, 2004, p. 431). Assim termina o texto de O mundo como vontade e representação, pondo o “nada” no pedestal antes ocupado por Deus.

Ranieri Carli, György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 17-18.

Sobrevivências teológicas

As perspectivas míticas, cuja eclosão maciça caracterizou o estágio do imperialismo, estiveram e pernamanecem ligadas ao niilismo. Essas tendências são fáceis de constatar já em Nietzsche, melhor ainda em Spengler ou em Klages, para atingir seu ponto culminante na pretensa concepção de mundo do fascismo.

No plano ideológico, a necessidade social do nascimento dos mitos explica-se pela incapacidade dos pensadores de romper radicalmente com as sobrevivências teológicas da filosofia. A conservação dessas representações de origem teológica faz, aliás, parte do esforço – frequentemente inconsciente – que deve impedir a realização, pela ideologia, das consequências decorrentes do caráter transitório das bases sociais da pessoa humana. Dostoievski formulou esse sentimento de uma maneira supreendente, colocando a questão seguinte na boca de um de seus personagens: “Que capitão sou eu, se Deus não existe?”

O existencialismo não soube, ao menos, vencer essas sobrevivências teológicas. O ateísmo de Heidegger e de Sartre é tão religioso quanto o de Nietzsche, se bem que deva suas bases a Kierkegaard. O horizonte religioso, que se forma assim, aproxima-se perigosamente de todos os mitos modernos. O existencialismo leva, portanto, a marca do mesmo niilismo espontâneo de toda ideologia burguesa moderna. Veremos a seguir que o existencialismo – sobretudo nas definições mais recentes – não pode superar esse abismo senão às custas de um certo ecletismo.


György Lukács, Existencialismo ou marxismo?
Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, p. 21-22.

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