quinta-feira, 9 de maio de 2024

A esquerda romântica e a atitude mental da adolescência


por György Lukács

Eis-nos enfim em presença de uma tomada de posição nítida. Após tudo o que foi dito sobre o escândalo da violência, essa tomada de posição deveria logicamente levar ao tolstoísmo, ou antes à ideologia da não-violência de certos expressionistas alemães. Mas S. de Beauvoir não quer — e isto é honra — tirar todas as consequências que se imporiam. Prefere prender-se num fio de contradições insolúveis do que optar resolutamente por uma  renúncia, sublime em aparência e covarde na realidade. Infelizmente, os motivos por meio dos quais tenta justificar suas inconsequências tão honráveis, são perfeitamente ilusórios. Invoca o exemplo da Resistência na França.
 
A Resistência — diz ela — não tendia a uma eficácia positiva. Era negação, revolta, martírio; e nesse movimento negativo, a liberdade era positiva e absolutamente confirmada.[1]
É um mito. Fazendo saltar trens, matando agentes da Gestapo, libertando prisioneiros, até organizando batalhas de guerrilheiros, a Resistência realizava atos políticos muito concretos e tendia — é evidente — à maior eficácia possível, tanto na conduta de cada ação, como no seu conjunto, no objetivo de libertar a França. Os traçados respectivos das frentes políticas eram então, sem dúvida, mais simples que após a Libertação, ainda que a simplicidade seja, nesse domínio, igualmente um mito. É humanamente muito compreensível ver alguns — Simone de Beauvoir não é a única — darem as costas aos problemas complexos e prosaicos do presente (sobretudo quando não estão à altura de assimilá-los, filosófica e politicamente) para refugiar-se na simplicidade poética do tempo da Resistência.

Essa nostalgia, dizíamos, é humanamente compreensível. Sua generalização teórica dá entretanto a nascimento de mitos, sem falar desses casos em que se erige em valor absoluto, o que é uma fonte de erros fatais. É entretanto o que acontece com S. de Beauvoir, quando declara que “somente a revolta é pura”[2]. Essa afirmação apenas dissimula — S. de Beauvoir não tarda a confessá-lo — o medo de ver triunfar “a revolta”, o temor de ver esse triunfo chegar a uma “degenerescência” da pureza original dos princípios e do entusiasmo romântico dos inícios. O humanismo revolucionário — prossegue S. de Beauvoir — “criou uma Igreja, onde a salvação é comprada por uma inscrição no partido, como é comprada alhures pelo batismo e pelas indulgências”[3]. Aqui, o existencialismo mostra de novo seu verdadeiro aspecto: o do niilismo anarquista, próprio aos intelectuais que não têm, certamente, senão desprezo pelo capitalismo imperialista dos trustes, mas aos quais a revolução real inflige um terror pânico. Isto não significa necessariamente que sejam covardes: o que temem é ver transformar-se o caráter de isolamento de sua “existência”.

As considerações de S. de Beauvoir são interessantes na medida em que desvendam um traço muito importante da caracterologia de um certo tipo social que tem medo da maturidade no plano da existência histórico-social. Entretanto a prosa da objetividade deve suceder à poesia da subjetividade juvenil; a prosa da realização na matéria dura, resistente e, apesar de tudo, sempre dócil da realidade, deve tomar o lugar da poesia nebulosa dos estados indefiníveis obscuros. Na sua Tipologia das idades, que leva a marca sentimental da lembrança de Hölderlin, Hegel descreve da maneira seguinte a atitude mental do adolescente:

A adolescência dissolve de tal maneira a ideia realizada no mundo que se atribui a si mesma a definição do substancial que pertence à natureza da ideia — o verdadeiro e o bom — enquanto atribui a definição do fortuito e do acidental ao mundo.

A existência da maior parte dos românticos está marcada pelo selo da vontade tragicômica de eternizar essa atitude mental da adolescência. Trata-se, em particular, daqueles que tiveram a ocasião de viver, no decorrer da sua juventude, um período heroico, “mítico” da história. Os românticos recusam-se a envelhecer e morrer — e a política romântica recusa dobrar-se à necessidade que quer que à poesia da subversão ou da clandestinidade heroica suceda a prosa da realização, da execução. No seu escrito que acabamos de citar, Hegel sublinha a repulsa que experimentaram numerosos adolescentes no limiar da maturidade, em se ocupar dos problemas precisos que a realidade tende a lhes impor. Simone de Beauvoir faz-se nitidamente intérprete dessa tendência, porque considera “mais autêntica” a juventude revoltada de Goethe que sua maturidade de “servidor do Estado”. Sem querer discutir com S. de Beauvoir a “autenticidade” do Segundo Fausto ou a da Trilogia das paixões, permitimo-nos notar que é uma abstração muito juvenil querer caracterizar toda a maturidade de Goethe pela definição de “servidor do Estado”. Tão “juvenil” aliás como o paralelo que estabelece entre a evolução de Goethe, de Barrès e de Aragon. Tudo isso é, em suma, profundamente falso, mas psicologicamente compreensível, porque na noite escura do medo juvenil diante de qualquer conformismo, todas as vacas — como dizia Hegel — parecem negras, todas as realizações, individuais ou sociais, parecem degenerescências verdadeiras (Barrès, por exemplo).

É portanto perfeitamente lógico ver, à guisa de apólogo, este velho adágio que S. de Beauvoir coloca no termo de seu escrito: “Faça o que deve, aconteça o que acontecer!”. Destrói assim o fruto de todas as suas considerações e de todos os seus raciocínios, às vezes cheios de interesse, para restabelecer a moral da intenção abstrata de L’être et le nant, na sua pureza integral, abstrata e perfeitamente estéril. Para chegar a uma tal conclusão, o que procede não era indispensável e guarda apenas um valor de sintoma da crise do existencialismo. caráter incognoscível do futuro, pela relatividade e subjetividade de tudo o que se pode enunciar sobre o futuro.

* * *

Certamente Merleau-Ponty rejeita resolutamente algumas das asneiras mais grosseiras do trotskismo, como por exemplo, a afirmação segundo a qual a Segunda Guerra Mundial formaria a pedra de toque absoluta do marxismo: se não conduzisse ao socialismo, o marxismo provaria ser uma utopia. Admite igualmente que a vida política tornara-se impossível[4] para Trotski, mas, apesar de tudo, seu pensamento sofre, frequentemente, a influência decisiva do trotskismo. Aliás, a melhor prova disso é que julga útil — a despeito de sua vasta cultura e de seu instinto crítico robusto — repetir certas calúnias mil vezes ouvidas sobre a União Soviética, quando não faltam assalariados do nível de Koestler para desincumbir-se dessa tarefa. Não temos lugar nem tempo para nos deter neste gênero de problemas, porque em primeiro lugar propomo-nos esclarecer problemas teóricos. Citaremos, portanto, apenas uma das objeções de Merleau-Ponty, a título de exemplo. Forja, com efeito, um argumento da luta staliniana contra o nivelamento em matéria de salários, para declarar que o bolchevismo está bastante afastado das teorias clássicas do marxismo e frisa seu pragmatismo a partir de então. Ora, não é necessário ser um grande conhecedor dos textos clássicos, para saber que, desde 1875, Marx caracterizava a diferenciação dos salários como uma tendência econômica fundamental da primeira fase do socialismo.
 
Seria, no entanto, inútil determo-nos em detalhes de segunda ordem. O essencial é a influência profunda que o trotskismo exerce em Merleau-Ponty. A História, desde há muito tempo, fez justiça a todas as afirmações concretas de Trotski e, no entanto, os efeitos de suas teorias fazem-se ainda sentir em certos meios. O efeito de que falamos manifesta-se antes de tudo pelo desvio de atenção das questões essenciais e concretas do presente, e, ao mesmo tempo, por uma camuflagem do niilismo teórico e prático por meio de uma demagogia revolucionária. A intenção original de Trotski, sem dúvida, não era desviar quem quer fosse dessas questões; apenas forneceu respostas totalmente falsas, construindo arbitrariamente um antagonismo insolúvel entre os interesses camponeses e os interesses operários. Mas esse primeiro erro teve por consequência inevitável a negação da possibilidade de construir o socialismo em um só país e essa negação torna-se, por sua vez, o verdadeiro sinal de união da contrarrevolução. Devia fornecer a plataforma sobre a qual certos intelectuais e elementos operários deveriam agrupar-se contra a URSS. A evolução econômica, política e cultural sublinha a importância do socialismo enquanto única perspectiva do futuro, e a atitude individual em relação à União Soviética torna-se a pedra de toque não somente de todas as questões políticas, mas também dos problemas da ideologia. Com efeito, a questão da perspectiva não deve somente ser colocada politicamente, mas também no plano ideológico. Só uma perspectiva de futuro concreto está em condições de superar teoricamente o niilismo ideológico. Ora, nossa própria evolução não produziu outra perspectiva a não ser o socialismo.

Afirmamos que o homem moderno, se não está desprovido da necessidade de honestidade intelectual, deve escolher entre a perspectiva do socialismo e o niilismo filosófico. Esta escolha impõe-se hoje muito mais imperiosamente do que há cento e cinquenta anos.

Enquanto a filosofia era apenas um prelúdio teórico à Revolução Francesa, a preparação ideológica, de alguma maneira, do “Império da Razão”, não tinha a necessidade de fazer diretamente apelo à História para evitar o escolho do niilismo. A realidade que fornecia à filosofia suas bases nada mais era do que o combate da sociedade burguesa em gestação contra o feudalismo caduco. Em termos filosóficos, isto se chamava então de combate da razão contra o irracional e o caos. A filosofia do século XVIII podia permitir-se tomar como ponto de partida de suas especulações (epistemológicas, ontológicas, psicológicas, pouco importa) o indivíduo isolado e criar, a seu bel prazer, mito sobre mito em torno do tema de Robinson, sem no entanto, perder seu caráter social, sua historicidade implícita e, portanto, sua perspectiva. Os pensadores mais evoluídos anteriores à Revolução Francesa embalavam-se, com efeito, na ilusão de ver surgir, espontânea e inevitavelmente, uma sociedade baseada na razão e harmonia, a partir da ação do indivíduo egoísta e isolado. Poder-se-ia quase dizer, sob uma forma um pouco paradoxal, que a concepção econômica de Adam Smith dava enfim um fundamento aos grandes sistemas filosóficos anteriores à Revolução Francesa.

Essa base objetiva da filosofia devia entretanto sofrer uma metamorfose profunda, devida ao triunfo da Revolução Francesa e ao término da revolução industrial na Inglaterra. Antes de mais nada, a historicidade do mundo e, em primeiro lugar a da humanidade, impôs-se ao pensamento. Isto significa concretamente que o pensamento teve de reconhecer o “império da razão” — de que Engels havia dito tão espirituosamente que, uma vez realizado, mostrar-se ia como o império da burguesia — como um estado passageiro da humanidade. Toda filosofia que tende a esconder esse caráter historicamente transitório do capitalismo, condena-se a perde toda perspectiva. Só a resignação total, a aceitação da impotência da razão, pode aceitar o capitalismo como perspectiva da evolução da humanidade. No estágio do imperialismo, um niilismo desesperado ou cínico junta-se a esse niilismo resignado e a ausência de toda perspectiva lhes serve de base comum. Não é mais necessário, estamos convencidos, determo-nos para demonstrar que, desde Nietzsche até o fascismo, passando por Spengler, os mitos históricos da reação são apenas tentativas falaciosas, com vistas a camuflar esse niilismo.

Mas a evolução econômica e social, desde metade do século XIX, não somente privou a filosofia de todo fundamento especulativo supra-histórico, como também tornou-lhe sensível a impossibilidade de tomar como ponto de partida o indivíduo isolado e seus estados de consciência. A evolução econômica real provou concretamente o erro das concepções de Smith e de Ricardo, demonstrando que em lugar de fazer nascer a harmonia social, a soma dos atos individuais só pode dar lugar a um caos feito de crises e de guerras que tenderia cada vez mais para a instauração de uma barbárie universal. Assim, o indivíduo isolado, enquanto ponto de partida do pensamento filosófico (gnosiológico, ontológico ou psicológico, pouco importa) terminou por perder sua base implícita, amparada ainda há pouco por uma ilusão historicamente justificada.

Esse estado de coisas está ainda bem longe de ter entrado na consciência, e também no pensamento filosófico. A existência social, que se impõe cada vez mais à vida do homem, age no entanto cada vez mais sobre o pensamento humano e mesmo sobre o dos filósofos, nos quais entretanto as tradições seculares da metodologia criam sobrevivências ideológicas muito tenazes. A presença da categoria do ser-com (Mitsein) na ontologia heideggeriana é uma das provas desse evolução inconsciente. A crise do existencialismo francês, por nós descrita, reflete nitidamente a distância que subsiste entre os problemas que a existência social lhe impõe e as sobrevivências ideológicas que embaraçam sua metodologia. As tentativas de Merleau-Ponty, no sentido de apreender a realidade social atual, ofereceram-nos, em razão da sensibilidade particularmente aguda do autor para problemas novos, a melhor ocasião de estudar essas sobrevivências.

Resta-nos apenas demonstrar a ligação íntima que existe entre essas sobrevivências do existencialismo e dos resíduos de opiniões e atitudes trotskistas. Aqui, algumas notas de ordem histórica impõem-se. Merleau-Ponty estaria talvez inclinado a se reconciliar com o que ele chama de marxismo clássico: dirige objeções somente contra a forma atual do marxismo, a que os partidos comunistas representam. Ocupando essa posição, Merleau-Ponty toma sob sua responsabilidade e conserva (se bem que rejeite numerosas opiniões concretas de Trotski e de seus partidários) duas atitudes trotskistas, estreitamente ligadas uma à outra. A primeira é sua desconfiança a respeito da política seguida pelos partidos comunistas, desde o VII Congresso da Internacional Comunista, isto é, desde 1935. Já falamos da primeira questão, analisando a título de exemplo, a incompreensão de Merleau-Ponty a respeito da desigualdade de salários na União Soviética. Considera igualmente a possibilidade de um ataque da URSS contra a Europa e conclui que essa ameaça não é para hoje. Não é portanto por princípio que Merleau-Ponty rejeita uma tal possibilidade, admitindo assim uma teoria que é a de toda contrarrevolução e que considera a União Soviética como um Estado imperialista: julga  somente que o problema de uma agressão soviética não é de atualidade. A diferença entre sua posição e a da contrarrevolução antissoviética e portanto somente de ordem tática e não de princípios. É igualmente muito significativo que não faça jamais menor alusão à luta pela democracia nova na França ou em outros países, enquanto que a solução dessa luta decidirá para nós da sorte da evolução e mesmo da sorte da perspectiva socialista. Parece ante que, segundo ele, é precisamente aí que se encontraria a base da pretensa evolução antiteórica do marxismo: essa Realpolitik “pragmatista” é, a seus olhos, responsável pelo afastamento do “marxismo clássico”.

O marxismo clássico coincide certamente para Merleau-Ponty (ele o diz aliás abertamente) com a concepção trotskista que negava, desde 1905, na Rússia, a transição real, se bem que complexa, da revolução até o socialismo. Mais tarde, na época de Brest-Litovsk, os representantes dessa tendência combateram, em nome da “frase revolucionária” (Lênin sobre Trotski), as medidas eficazes para salvar a revolução e para intensificar seu surto. Todo marxista sabe que esse reino da “frase revolucionária” alia-se perfeitamente bem com um oportunismo desprovido de todo princípio. (Cf. o papel de Trotski na realização do bloco de Agosto dos oportunistas em 1910). Lênin, em Que fazer?, desmascara aliás a íntima afinidade ideológica que liga o oportunismo político ao terrorismo individual (a frase revolucionária) dos SR. Essa afinidade íntima encontra uma definição muito feliz num dito que teve um SR numa conversa com Asev, o célebre agente provocador — que não tinha ainda sido desmascarado na época — e pretenso organizados de grandes atentados: “Em suma, Asev vós sois apenas um cadete (liberal) ordinário, mais as bombas...”.

Temos certeza de não caluniar o existencialismo, colocando-o sob este prisma, porque o próprio Merleau-Ponty o faz. Evoca os processos de Moscou: ora, o que foram esses processos, em suma, senão a revelação da essência mesma do trotskismo, da traição em relação à revolução, uma traição que ia até a espionagem? Uma revelação que nos mostrava “o nada aniquilante”, enquanto essência mesma do mundo e da personalidade dessas pessoas, que nos provava sua falência intelectual e moral absoluta e sua “situação” “face ao nada”. Sem o querer expressamente, Merleau-Ponty não está entretanto longe de nos dar razão quando escreve: “Não se é ‘existencialista’ por gosto, e há tanto ‘existencialismo’ — no sentido de paradoxo, divisão, angústia e resolução — no relato estenográfico dos Debates de Moscou como em todas as obras de Heidegger”.[5] Com efeito, o universo dos Bukarin, Rakovski e outros Yagoda, é efetivamente o universo de Sein und Zeit, esse “teatro de fantoches da filosofia", como tão bem diz Henri Lefebvre.
 
A condenação da frase revolucionária constitui entretanto a condição sine qua non da verdadeira inteligência do marxismo, da verdadeira superação das tendências niilistas do presente. Quanto mais a evolução segue seu caminho, mais é assim. Há cem, ou mesmo cinquenta anos, uma profissão de fé socialista determinava, num intelectual, uma verdadeira revolução de toda a marcha de seu pensamento. Mas numa época como a nossa, em que o socialismo tem atrás de si trinta anos de história real, uma profissão de fé abstrata pelo objetivo final do socialismo não quer dizer mais nada. A escolha diante da qual nossa realidade social coloca o pensador honesto, a “situação” na qual se encontra, é a seguinte: é necessário tomar posição face ao socialismo tal como é, tal como nasceu e como se desenvolve na União Soviética; é necessário tomar concretamente posição frente aos caminhos inteiramente novos que conduzem ao socialismo e que se abriram com a derrota do fascismo. Dizer: sou pelo socialismo, mas não pelo socialismo soviético; sou unicamente por um socialismo conforme a minha representação — dizer isso, mesmo sob formas “heroicas”, “sublimes” ou “poéticas”, equivaleria à atitude da mãe que dissesse: a chama do amor materno me consome, sou o amor materno feito mulher, mas recuso-me a amar meu filho porque tem as orelhas descoladas.

É assim que a frase revolucionária e suas consequências morais aparecem tal como o “Urphaenomen” goethiano. O que é, no plano político “frase revolucionária”, corresponde a uma mal geral dos intelectuais do estágio do imperialismo. Estudamos um dos sintomas desse mal em Simone de Beauvoir, a propósito da superestimação falaciosa, à custa da maturidade, da juventude poética e rebelde. É difícil resistir à tentação de esboçar a análise fenomenológica desse comportamento em face da realidade, mas infelizmente precisamos limitar-nos a algumas notas. Esse mal niilista foi aliás logo reconhecido e genialmente descrito por Dostoievski. Pensemos no diálogo de Ivan Karamazov com o Diabo, que lhe aparece sob a aparência de um proprietário fundiário parasita. O Diabo diz a Ivan: “Na realidade, estás furioso só porque não apareci numa luz vermelha acompanhada de raios e trovões, com asas queimadas, mas sob uma aparência mais modesta. Estás ofendido, primeiro nos teus sentimentos estéticos, mas também no teu orgulho: Perguntas: como um diabo tão ordinário pode apresentar-se diante de um tão grande homem?” A frase revolucionária representa simplesmente a defesa do psiquismo do intelectual contra as ofensas desse gênero: é o anjo de asas queimadas. Ela satisfaz o amor-próprio dos intelectuais, que se debatem como vítimas do desejo pouco consciente de sair do niilismo. Quando se crê, com efeito, ter rompido com a sociedade burguesa ou, que se levante, ao menos, um protesto intelectual contra ela, exige-se que essa atitude traga consigo toda a poesia das épocas heroicas. Não nos revoltamos contra a sociedade burguesa simplesmente para tornarmo-nos uma engrenagem no aparelho do partido e para dedicarmo-nos a estatísticas prosaicas. Tememos cair, de uma maneira ou de outra, no conformismo. Aquele que se aferra assim à frase revolucionária do trotskismo, encontra-se, por esse fato, separado do proletariado, o qual — como Merleau-Ponty vê muito bem — permanece fiel aos partidos comunistas e à União Soviética. Mas isto em nada conta, ao contrário: resta sempre o recurso de se lamentar, numa atitude de luto sublime, na solidão do não-conformista ao meio de uma época má.
 
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Referências:
[1] Temps moderns, t. XVII, p. 856.
[2] Ibidem, p. 875.
[3] Idem.
[4] Temps moderns, t. XVI, p. 690.
[5] Ibidem, p. 711.
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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, pp. 161-164; 195-203.
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quarta-feira, 8 de maio de 2024

O elitismo de Adorno contra o jazz


por István Mészáros

Analisado superficialmente, o alinhamento da “teoria crítica” com a perspectiva weberiana foi muito mais surpreendente. No entanto, havia importantes pontos de contato entre essa perspectiva e o pensamento geral da Escola de Frankfurt, apesar das diferenças entre seus membros individuais.

É fato que esta escola corresponde a um conjunto muito heterogêneo de pensadores. Sua diversidade incluía desde as esperanças de Walter Benjamin de participação direta na práxis política de esquerda[1] até o ativismo político “voltado para os excluídos” de Marcuse; desde o não-envolvimento sociopolítico de Adorno até o extraordinário ecletismo teórico[2] e, apesar de seus protestos verbais, o oportunismo político tecnocrático de Jürgen Habermas. Há uma certa ironia na elevação desses intelectuais ao status de uma instituição cultural venerável, porque a constituição de uma “escola” sobre a grande diversidade de indivíduos que foram finalmente classificados sob o rótulo de “teoria crítica” tinha tanto a ver com as necessidades da “indústria cultural” e da “comunicação de massas manipuladora" — dois dos alvos mais frequentes das denúncias mordazes de Adorno — quanto com a coerência intelectual de suas ideias.

Entretanto, para além das diferenças significativas, a origem weberiana da crítica da “burocracia” e da “razão instrumental” — compartilhada por praticamente todos os membros da Escola de Frankfurt — é bastante óbvia. E, mais importante ainda, encontramos uma forte tendência elitista nos escritos teóricos de todos os “teóricos críticos”, qualquer que seja o ponto particular do espectro político em que estejam situados.

Em relação a Adorno, isto foi enfatizado em muitas ocasiões. Citando uma análise favorável:
O discurso de Adorno sobre a mediação entre a práxis intelectual e a práxis política permaneceu abstrato e vago, sem explicação do agente social que poderia servir como condutor desta mediação, uma vez que o papel do partido foi rejeitado. O agente da “mediação” de Adorno permaneceu tão misterioso quanto o mediador entre os espíritos e a matéria do mundo, e a crítica de Hanns Eisler possui um inegável ponto de validade: “Esta crença metafísica e cega no 'desenvolvimento da música'. Se Adorno compreendesse pelo menos uma vez  que a música é feita por pessoas e para pessoas —  e se ela também se desenvolve, este desenvolvimento não é abstrato, mas de alguma forma pode ser ligado aos relacionamentos sociais! —, ele não diria este absurdo abstrato”.[3] Havia realmente algo de metafísico na ênfase que Adorno confere à verdade, e também em sua visão da elite intelectual como formuladora daquela verdade.[4]
O problema era, na verdade, até mais complicado do que está indicado nesta passagem, uma vez que não faltava apenas o “agente ou veículo social” da “mediação” programática de Adorno, mas também seu terminus ad quem emancipatoriamente efetivo. Isso trazia a necessidade de uma auto-orientação e de um retraimente intelectual, articulando-se na perspectiva pessimista de uma “dialética negativa” deliberadamente oposta à adoção de um ponto de vista social, sem deixar de buscar uma solução misteriosa dos problemas identificados, como resultado da ação a partir do campo problemático desta autocontenção desesperada.

Talvez por causa do forte sentimento de desesperança prática decorrente desta negação sem afirmação, nascida de uma autocontenção intelectual imposta a Adorno pela lógica interior do “veículo” e do terminus ad quem ausentes, ele assumiu algumas posturas que pareciam estranhas até em seus próprios termos de referência. Assim, embora postulasse o papel de “mediação” abstrata de sua elite, Adorno também idealizava o ato de ficar imerso, em total silêncio, na leitura da partitura musical — obviamente limitada a poucos escolhidos — como a única maneira realmente adequada, “imediata” e “não-adulterada”, de usufruir a música.[5] Lamentavelmente, comparada a tal concepção da comunicação musical, a aristocrática afirmação de seu ídolo, Schönberg — segundo o qual o público só é necessário para melhorar a acústica da sala de concertos —, poderia soar como a manifestação do humanismo democrático orientado para as massas.
 
Também os ataques românticos de Adorno contra o jazz traíam seu extremo elitismo. Ele via e abominava no jazz “a atitude perene da cultura de massa”[6], ridicularizando seus “apaixonados devotos” por “mal serem capazes de descrever, em conceitos musicais precisos, técnicos, o que é que tanto os comove”.[7] Ao mesmo tempo que condenava a incapacidade de tais “primitivos” para articular as ideias sobre seu objeto de admiração, Adorno dava sua opinião sobre o que estava realmente envolvido na execução e na experiência do jazz, opinião que parecia terrivelmente profunda: “O objetivo do jazz é a reprodução mecânica de um momento regressivo, um simbolismo da castração”.[8] E isso não era tudo. Ele acrescentava outra visão profunda, relacionada ao “sujeito” do jazz, definido por ele nos seguintes termos:
 
O sujeito que se expressa, expressa precisamente isto: não sou nada, sou sujo, e mereço qualquer coisa que façam comigo. Potencialmente, este sujeito já se tornou um daqueles russos acusados de um crime e que, embora, inocente, desde o início colabora com seu perseguidor e é incapaz de encontrar um castigo severo o bastante.[9]

Como é tão frequente nos escritos de Adorno, suas afirmações arbitrárias só eram “substanciadas” por analogias igualmente arbitrárias. Evidentemente, os sujeitos privilegiados capazes de relatar suas experiências musicais (não corrompidas pela “indústria cultural”) em “conceitos musicais precisos, técnicos”, e que já estivessem perfeitamente sintonizados no comprimento da onda da “teoria crítica” e da negação universal abstrata (mas concretamente bem acomodados), não teriam dificuldade em aceitar as duas afirmações — sobre o “sujeito sujo do jazz” e sobre “aqueles russos” — sem questionamento, juntamente com sua esclarecedora contribuição à compreensão da natureza do jazz, que teria escapado aos simples mortais. Este procedimento é muito semelhante ao que se usa quando dois nomes são ligados com um “e” nos títulos de livros para estabelecer um elo “orgânico” entre dois campos que de outro modo nada teriam em comum. Mas, por mais problemático que seja tal procedimento, aqueles que compartilham do ponto de vista de Adorno não teriam qualquer objeção a fazer. Sem dúvida, teriam afirmado imediatamente que uma das acusações mais óbvias que se poderia levantar contra o jazz “primitivamente improvisado” e “monotonamente sincopado” era a de fazer muito pouco uso, se é que fazia algum, das partituras musicais.

Tudo isso, no entanto, não altera o fato de que, em todo o ataque ressentido e arrogante de Adorno ao jazz, não se encontra uma única linha de análise musical; nem em “conceitos musicais precisos, técnicos”, nem sob qualquer forma. Em vez disso, o verdadeiro significado do jazz era descrito por Adorno da seguinte forma:
 
“Desista da sua masculinidade, deixe-se castrar”, é o que proclama o som assexuado da banda de jazz, “e se você será recompensado, aceito em uma fraternidade que partilha com você o mistério da impotência, mistério revelado no momento do rito de iniciação”. Se esta interpretação do jazz — cujas implicações sexuais são mais bem compreendidas por seus oponentes chocados do que por seus apologistas parece arbitrária e rebuscada, permanece o fato de que ela pode ser constatada em incontáveis detalhes tanto da música como das letras.[10]

Apesar da promessa de constatar em “incontáveis detalhes” aquilo que ele mesmo reconhecia estar sujeito à acusação de arbitrariedade e rebuscamento, nem uma obra de jazz foi sequer mencionada, e muito menos adequadamente analisada, nesse ensaio tão parcial. Nem mesmo os nomes de alguns músicos de jazz foram apresentados como exemplos ilustrativos, exceto dois — Mike Riley e Louis Armstrong. Mas mesmo estes foram tomados de segunda mão de duas obras críticas norte-americanas citadas por Adorno.

A referência de segunda mão a Louis Armstrong o comparava aos “grandes castrati do século XVIII”,[11] sem querer mencionar a contradição óbvia entre as afirmações genéricas da própria teoria de Adorno sobre a natureza do jazz, em uma “sociedade de massa totalmente integrada e reificada”, e o século XVIII; este último, nem um pouco perturbado pela “produção planejada”, a “cultura de massas”, a “reificação total” e a ubíqua “indústria cultural”, mas possuindo seus “grandes castrati” — que o eram não apenas simbolicamente — que, não obstante, são tomados como exemplos que esclarecem a desconcertante realidade do jazz e o suposto complexo de castração de todos aqueles que dele participam. Na estrutura aforística de declarações e declamações de Adorno, é suficiente apenas afirmar os preconceitos ideológicos do autor e suas negações genéricas da “sociedade em si”, sem qualquer esforço real para demonstrá-los, enquanto ao mesmo tempo desfia acusações igualmente genéricas contra a ideologia.

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Notas:
[1] Benjamin era muito amigo de Bertolt Brecht e Karl Korsch.
[2]
Alles was gut und teuer” (“tudo o que há de bom e valioso”, isto é, muito elogiado), como dizem em alemão, Ver uma excelente resenha crítica de Legitimation crisis, de Habermas, de autoria de James Miller, Telos, n. 25, outono de 1975, p. 210-20. O mesmo número da Telos contém um debate muito interessante entre Wolfgang Müller, Christel Neusüss, Jürgen Habermas e Claus Offe que é importante para se compreender a posição política de Habermas. Os artigos em questão são: W. Müller e C. Neusüss, The illusion of state socialism and the contradiction between wage labour and capital”, p. 13-91; J. Habermas, A reply to Mülller and Neusüss, p. 91-8; Claus Offe, Further comments on Müller and Neusüss, p. 99-111.
[3] Hans Bunge, Fragen sie mehr über Brecht: Hanns Eisler in Gerspräch, Munique, Rogner and Bernhand, 1970, p. 30.
[4] Susan Buck-Morss, The origin of negative dialetics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin and the Frankfurt Institute, Hassocks, Haverster Press, 1977, p. 42. Uma análise séria de Adorno e Marcuse é a de Joseph McCarney,
What makes critical theory 'critical'?, Radical Philosophy, n. 42, inverno/primavera de 1986.
[5] Ele tentou persuadir Arnold Hauser — que era muito menos competente do que Adorno na leitura de partituras musicais, e por isso permaneceu completamente cético — da correção deste julgamento.
[6] Theodor W. Adorno, Prisms, Londres, Nevile Spearman, 1967 (ensaio
Perennial fashion — jazz, p. 119-32).
[7] Ibid., p. 127.
[8] Ibid., p. 129.
[9] Ibid., p. 132.
[10] Ibid., p. 129-30.
[11] Ibid., p. 130.
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MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 154-156.
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quarta-feira, 29 de novembro de 2023

O racha e seu reflexo na juventude


A Coordenação Nacional da União da Juventude Comunista (CN/UJC), organização de juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) vinculada a ele histórica e organicamente por meio de seus quadros compartilhados e por submissão à sua linha política e deliberações partidárias, vem por meio desta nota se manifestar publicamente acerca do racha em andamento em nosso partido, que se cristalizou especialmente por meio da atuação da juventude fracionista cuja argumentação construída para se justificar já é de conhecimento público.

Sabemos que esta nota é tardia. Infelizmente, houve entre os militantes restantes da Coordenação Nacional uma sobrecarga produzida pela necessidade de sustentar o trabalho organizativo da juventude a nível nacional, enquanto a grande maioria dos então membros debandavam para uma outra organização que buscava disputar e incorporar, primeiro internamente e depois publicamente, o nome e os trabalhos da UJC, desvinculando nossa organização do PCB.

Se, por um lado, parte de nossos trabalhos foi gravemente prejudicado ou tomado de assalto pela nova organização, como nossa construção da UNE (no qual alguns dissidentes assumiram as cadeiras que legitimamente foram conquistadas com esforço coletivo e pertenciam à UJC e, portanto, ao PCB), não permitiremos que deem fim aos esforços da juventude comunista por meio de práticas oportunistas e fracionistas. Da mesma forma, não permitiremos que roubem nosso nome e história. Assim, ressaltamos que este é o posicionamento legítimo da UJC, que vem paulatinamente lutando para recuperar nossas redes e canais de comunicação usurpados, e que foi redigido pela Coordenação Nacional eleita em congresso e que goza da plenitude de seus direitos estatutários e políticos na organização, diferentemente de tantos ex-membros que hoje compõem fileiras alheias e disseminam a confusão por falsearem sua identidade organizativa.

O racha já é um fato consumado, apesar das tentativas de manutenção da unidade da UJC a nível nacional. A organização que se constituiu com o racha do PCB – intitulada PCB-RR – forçou uma profunda ruptura no interior da UJC. Dessa forma, a CN/UJC entende que é necessário assumir postura decisiva em meio a esta crise, debatendo-a politicamente e defendendo nossos princípios organizativos: o centralismo democrático, a ligação orgânica com o PCB e o compromisso com a Revolução Socialista.
 
Antecedentes da crise

Toda questão organizativa é também uma questão política, então não podemos iniciar o debate por outra forma que não analisando quais as teses políticas defendidas por este grupo, que passou a se constituir enquanto um partido próprio ao adotar a sigla de PCB-RR, anunciar a existência de uma Coordenação Nacional própria, criar espaços de articulação paralela em distintos estados e construir seus próprios meios de comunicação. Dentro dessas posições encontraremos as razões de fundo para a ruptura e os indícios que nos permitirão diagnosticar o futuro deste partido e do nosso.

A primeira tese defendida pelo PCB-RR é a polêmica pública, um posicionamento retirado da literatura leninista sobre a construção do Partido Revolucionário, como um pré-requisito para organizar a disputa interna, permitindo que as ideias se confrontem livremente. Na prática, essa proposta abre alas para a organização de tendências dentro do Partido, expressas enquanto correntes de opinião e com potencial para constituírem estrutura própria. Em resumo, se trata da adoção de um princípio que regia o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Este debate é, em si, relevante. A todos interessa a construção do Partido Revolucionário e nenhum comunista pode abdicar de discutir os meios necessários para essa construção, por mais difíceis e desgastantes que sejam. Contudo, essa é uma tese já debatida em congresso, tanto no XVI Congresso do PCB quanto no IX Congresso Nacional da UJC (CONUJC), e em ambos foi derrotada, com graus diferentes de maioria. Portanto, é compreendido que o intelectual coletivo que constitui a militância do PCB e da UJC rejeita essa tese, e entende que a atual forma organizativa do PCB (o Partido Comunista herdado da III Internacional) é a adequada para construir a Revolução Socialista no Brasil, e neste caso este entendimento se dá sem abrir mão da crítica e a autocritica interna constantemente praticada nas devidas instâncias.

Contudo, embora rejeitada coletivamente, essa tese encontrou uma brecha na atual forma organizativa do complexo partidário para se expressar ilegitimamente. A autonomia relativa dos coletivos partidários, principalmente da UJC, foi instrumentalizada para construir tendências internas. Não negamos que há um descompasso na relação entre o PCB, seus coletivos e sua Juventude. Uma organização que exercita o centralismo democrático não deve se abster da crítica ou menosprezá-la. Os erros devem ser combatidos e superados. Contudo, não é negando os princípios da nossa própria organização que construiremos o caminho para superar essa contradição. Enquanto marxista-leninistas, temos o compromisso histórico de melhorar nossa organização e não cindi-la quando a conjuntura não nos favorece do ponto de vista individual.

A segunda tese defendida pelo PCB-RR é a questão da independência proletária. Trata-se de uma contraposição importada dos nossos camaradas portugueses entre as políticas defendidas por Álvaro Cunhal e Francisco Martins Rodrigues (FMR), a frente ampla contra a independência proletária. O debate colocado é a identificação no Brasil das condições necessárias para romper com a política da frente ampla, entendida enquanto necessária no combate ao fascismo, e preparar a ofensiva proletária na constituição de um bloco de poder sob nossa hegemonia.

Mais uma vez, a polêmica justa é deturpada em prol da ruptura. Uma vez que não há uma política de frente ampla generalizada dentro do PCB, parte-se para a criação de espantalhos. Sabemos que essa questão foi um amplo debate dentro da conjuntura brasileira nas últimas eleições e saímos orgulhosos da nossa política independente frente a hegemonia forçada do petismo, sem nos abdicar de construir as lutas unitárias com o conjunto dos movimentos sociais e partidos políticos contra o bolsonarismo. Cultivamos nossa independência e, inclusive, pautamos o acirramento das lutas de massas nas ruas quando o petismo buscava travar isso visando o cálculo eleitoral. Por conta disso, tivemos um crescimento amplo como não víamos há muito tempo, principalmente na Juventude. Não negamos a grande dificuldade que o PCB tem demonstrado para encontrar as mediações táticas diante da conjuntura nos últimos anos, mas, entre erros e acertos, reconhecemos que uma linha revolucionária acertada tem prevalecido.

O primeiro espantalho construído foi sobre a Plataforma Mundial Anti-Imperialista (PMAI), quando a quebra de centralismo por parte do camarada Eduardo Serra foi usada para imputar um suposto giro a direita que estaria sendo planejado pelo conjunto do Comitê Central do PCB. Em seguida, dada a própria fragilidade do argumento, mudaram as acusações para a não caracterização do terceiro governo Lula pelo CC e um suposto rebaixamento tático do PCB em relação ao governo petista. Entretanto, outras ações, que dentro de uma interpretação mais estrita da independência proletária seriam condenáveis, como a participação em entidades representativas hegemonizadas pelo petismo e pela socialdemocracia (a exemplo das maiores entidades estudantis da América Latina, UNE e UBES), ou mesmo pela direita, não são sequer apontadas, dado o absurdo que seria defender essa política mais estreita na atual conjuntura. Então são apontados supostos rebaixamentos em questões onde a relação com o poder é mais distante – as relações internacionais e o governo federal – mas nas situações concretas, um alto grau de pragmatismo político é adotado pelo novo partido.

Vale lembrar que o debate sobre o papel da UJC na UNE já foi incansavelmente realizado durante todos os anos de governo petista e amadurecido até se concretizar a mudança no 55º CONUNE, iniciando nossa retomada ativa na disputa da direção da entidade. Esta ação foi construída coletivamente e referendada em nosso VIII Congresso. Desde então, a UJC tem realizado um importante trabalho na entidade que ajudou a fundar, disputando a linha política e fortalecendo o papel da mesma rumo a construção de uma universidade popular.

Dentro do PCB e do seu complexo partidário não há centralismo teórico. Todos os seus militantes são livres para defender o que acreditam, dentro dos princípios do marxismo-leninismo. O que não aceitamos é que a autonomia relativa da Juventude e das suas instâncias seja utilizada para romper com o centralismo-democrático, corrompendo nossa forma-partido e prejudicando a construção do nosso organismo revolucionário, de acordo com nossas resoluções tiradas em Congresso. A tese da forma-partido do PCB-RR foi derrotada no IX CONUJC, assim como no XVI Congresso do PCB. Portanto, as tentativas de aproximar a militância da UJC das teses dessa fração são baseadas em atropelos das nossas deliberações coletivas. Convocamos todos que acreditam nos princípios do PCB e aceitam sua disciplina partidária e permanecer nas fileiras da UJC, contudo, não podemos aceitar que o desrespeito ao nosso Estatuto às nossas Resoluções tiradas no IX CONUJC.
 
O IX CONUJC

Vale avaliar o processo do último congresso para colocar em questão as diversas evidências de fração organizada dentro da UJC, com seu epicentro no estado de São Paulo, assim como destrinchar a vitória da linha do giro operário-popular e da construção nacional da organização.

A tese da formação de tendência interna apareceu no IX CONUJC a partir da proposta de nacionalização do jornal O Futuro de São Paulo via a construção de um jornal nacional da UJC, em detrimento da construção do jornal do PCB, o Poder Popular. Essa iniciativa nasceu na antiga Coordenação Regional de São Paulo e extrapola suas incumbências para incluir também o direito a polêmica pública e aberta, que serviria então para organizar abertamente os campos de opinião dentro da UJC, dando um salto qualitativo na organização de tendências. Durante toda a etapa nacional do Congresso ficou mais do que evidente, inclusive por via de denúncias, que a grande maioria da delegação de São Paulo, principalmente a proveniente do movimento estudantil universitário, defendia esta tese de forma orquestrada e organizada, tentando levar uma maioria nos Grupos de Discussão a partir do grande número de delegados que possuía o estado devido ao inchaço da organização em São Paulo. Mesmo assim, a maioria dos GDs e da plenária final votou contra a tese, a derrubando, e incluindo em seu rechaço a crítica de fracionismo e oportunismo por reapresentar um debate derrotado no XVI Congresso do PCB, a partir do que diversos dirigentes ligados ao jornal O Futuro de SP foram a tribuna “justificar sua abstenção” para se defender e tentar virar a acusação de fracionismo.

A vitória do giro operário-popular já se deu de forma mais sutil. Não houve no congresso uma contraposição aberta contra as prioridades da UJC no próximo período: o movimento estudantil secundarista e os jovens trabalhadores. Contudo houve sim um processo de secundarização da pauta em detrimento do já consolidado na juventude (o movimento estudantil universitário) e também do debate acerca do estatuto e da forma organizativa da UJC. Esse debate, que em grande parte levou de nada a lugar nenhum, uma vez que o PCB já tinha rechaçado a polêmica pública e a UJC não poderia ir contra o seu Partido, restringiu o tempo de discussão e elaboração política sobre a maior tarefa da UJC no próximo período: o giro operário-popular das suas fileiras. Assim nossa organização saiu do congresso com teses curtas e sem a devida atenção a estas pautas. Embora tenha havido uma vitória formal desta linha, houve também o seu enfraquecimento tático e ideológico, uma vez que as teses do IX CONUJC relegam boa parte do trabalho de formulação sobre a inserção nestes segmentos para a CN eleita, abdicando de criar uma linha consequente para todo o território nacional com base nos debates em todo o país.

Da mesma forma se dá a intervenção contra a concentração regional, em prol da construção da juventude nacional. Não há ou houve nenhuma tese congressual que defenda explicitamente a centralidade do trabalho no eixo Sul/Sudeste, reconhecendo que há a necessidade de enfrentar a burguesia brasileira de Norte a Sul no país. Contudo, a própria falta de teses e formulações políticas que saiam da compreensão política da complexidade regional do país, com especial atenção ao Norte (mas sem descartar o Nordeste e o Centro-oeste), acaba relegando a UJC a construir uma política nacional a partir da experiência no eixo Sul/Sudeste, com todas as particularidades que o desenvolvimento capitalista do Brasil incutiu a região, e no fim atrelando grandemente a atuação da UJC a uma certa concepção de movimento estudantil universitário, muito ligada a tradição política do estado de São Paulo.
 
A CN durante seu primeiro ano

Findado o IX Congresso e eleita a nova CN, a UJC embarcaria num novo momento da sua história. Pela primeira vez em décadas a juventude estava organizada em todos os estados da federação, com diferentes níveis de consolidação, e agora tínhamos um compromisso político, se não uma linha tática, de organizar o giro operário-popular em nossas fileiras e em nossa linha política, vinculando fundamentalmente a UJC ao processo de reconstrução histórica do movimento comunista brasileiro junto ao PCB. Contudo, já nos seus primeiros meses a CN passou por um processo de difícil consolidação, em grande parte causado pelos equívocos políticos na condução da sua organização interna e nas prioridades elencadas para o seu trabalho.

O mais grave desvio organizativo que prejudicou a consolidação da CN enquanto uma instância orgânica foi a centralização excessiva na Comissão Executiva Nacional e na Comissão Nacional de Organização, sendo esta última composta integralmente por dirigentes que aderiram ao racha. Essas instâncias não davam espaço e oportunidade para que a CN se reunisse e discutisse qualitativamente a nossa linha política. Nem mesmo nossa participação no CONUNE, com toda a sua importância, foi debatido em reunião do pleno da CN, tendo ficado a cargo da CEN e da CNME organizar a nossa atuação. Às demais comissões da CN, couberam a tarefa operativa de resolver as demandas que chegavam. Essa centralização, em unidade com a fragmentação do trabalho, onde os dirigentes de diferentes comissões foram, inclusive, várias vezes impedidos de dialogar entre si, levou a uma instância sem a menor capacidade de trabalho positivo, levando quase tudo a toque de caixa, tendo quase um ano de gestão e não tendo conseguido aplicar boa parte das suas atribuições de congresso e do seu próprio planejamento.

Mais uma evidência dessa desarticulação é a própria ausência de reuniões. Em quase um ano de gestão, o pleno da CN se reuniu apenas uma vez, para fazer seu planejamento. E a maior parte das comissões nacionais também encontravam dificuldades para se reunir regularmente, causando ineficiência e desarticulação da UJC a nível nacional. Contudo, essa letargia da CEN para organizar reuniões seria rapidamente sanada ao eclodir a crise, quando a Secretaria de Organização rapidamente se mobilizou para adiantar um pleno, violando uma decisão da própria CEN, a partir de uma votação na lista de e-mails no dia 08/08, alegando que caso houvesse maioria, uma nova reunião seria convocada com pauta específica para o dia 12/08, uma semana antes do previsto, dia 19/08. Curiosamente, esse adiantamento viria por uma “urgente necessidade de debate”, sendo que a CN não procurou se reunir nenhuma vez desde o início da crise, até o desligamento dos então dirigentes de Pernambuco e São Paulo pelos respectivos CRs.

III pleno extraordinário

Sob troca de e-mails acalorada entre os membros da Coordenação Nacional, a reunião já convocada foi aprovada pelo método irregular e unilateral levado a cabo pelo então Secretário de Organização. Dada a conformação da solicitação, a Comissão Nacional de Juventude solicitou que a reunião ocorresse em sala virtual sob sua coordenação, o que foi veementemente negado pela antiga secretaria de organização sob a acusação de que o Comitê Central não seria confiável e que a UJC teria total autonomia frente ao Partido para se reunir, debater e encaminhar o que bem entendesse por si própria, mesmo quando orientado que o acompanhamento da assistência partidária seria fundamental e que a moderação deveria ser da assistência partidária à juventude ao compreender os problemas de se convocar uma reunião desse calibre às pressas, com pouco debate prévio e com desqualificação patente das instâncias do PCB, assim, questionando postulado central da razão de ser de uma juventude partidária: a autonomia relativa.

O que se sucedeu não foi de estranhar. A então CNO criou sala virtual própria e o pleno da Coordenação Nacional da UJC se reuniu às 9 h do dia 12 de agosto de 2023 para debater sua posição pública frente a crise partidária. O fundamental da discussão foi colocado nos primeiros minutos da reunião: a ideia era chancelar nacionalmente as notas públicas das Coordenações Regionais que haviam rachado com a organização, pedido congresso extraordinário à revelia das instâncias partidárias e declarado não reconhecer a direção do PCB. Uma questão fundamental desta reunião é que mais da metade dos presentes haviam sido desligados do complexo partidário na véspera pelas respectivas direções estaduais por adesão ao PCB-RR, que já naquele momento contava com sua direção e canais de comunicação próprios e realizavam o movimento de colocar em prática a polêmica pública derrotada no XVI Congresso do PCB.

Compreendendo a necessidade de reunião da UJC, já muito tardia, e a inevitabilidade da reunião já posta em execução, à revelia da reunião anteriormente convocada para o dia 19 de agosto, a Secretaria Nacional de Juventude do PCB teve a postura de esclarecer dúvidas referentes às atitudes tomadas pelo Partido e permitir o livre debate. A permissão do livre debate é ponto fundamental, posto que, com mais da metade dos militantes compondo outro partido, a reunião não se expressava adequadamente como reunião de instância, senão como bilateral na qual é possível debater, mas não chegar a encaminhamentos conjuntos. Esta tônica se provou fundamental. Ao logo da discussão o que se viu foi a violação da unidade recém-construída no IX Congresso da UJC sendo defendida com palavras de uma suposta “unidade”. Para que houvesse maior possibilidade de se utilizar dos mecanismos da UJC para a realização da disputa interna por partidos outros, diversos ex-militantes se colocaram favoráveis a uma mediação para a proposta de adesão ao “XVII congresso extraordinário” (convocado pelo PCB-RR) seja ela a solicitação da realização de um XVII congresso, mas nos termos daquele proposto por partido alheio. Junto a esse encaminhamento proposto, somaram-se outros cujo caráter político era de não reconhecimento da legitimidade do Comitê Central e das instâncias partidárias; frente aos quais a Secretaria Nacional de Juventude manifestou que não reconheceria os encaminhamentos daquela reunião por se tratar de um debate realizado majoritariamente por militantes que já não compunham a instância, de modo que a CN devidamente eleita pelo IX CONUJC e chancelada pelo Comitê Central do PCB, dada a autonomia relativa da UJC, e que ainda se encontrava regular e ligada ao complexo partidário, encaminharia em reunião posteriormente realizada, retirando-se do espaço, por compreendê-lo como um espaço que, por mais que pudesse discutir, não era um espaço legítimo da União da Juventude Comunista.

De imediato se aprovou por maioria simples a retirada dos membros da Comissão Nacional de Juventude de todos os meios de comunicação da UJC, rompendo os canais de comunicação com o PCB e, portanto, quebrando com sua autonomia relativa e negando o centralismo democrático do Partido Comunista Brasileiro, bem como se aprovou os demais encaminhamentos já mencionados, além do posicionamento público da suposta instância, consolidando, portanto o racha na UJC. Nesse racha, no entanto, as redes sociais @ujcbrasil no Instagram e @ujcbr no Twitter ficaram com os fracionistas, que em poucos instantes após o encerramento da reunião postaram extensa nota política em defesa própria, comprovando que a mesma já se encontrava pronta e que já havia organização paralela para este momento de fracionamento.

Neste sentido, a CN UJC eleita democraticamente no IX Congresso da UJC, e reconhecida pela Comitê Central do PCB, orienta o conjunto da militância os seguintes pontos:

1) Nossa organização surgiu como juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a ele é preservada uma relativa autonomia como consta no 1º art. de nosso Estatuto. Logo, todo e qualquer militante da UJC deve defender e reforçar as nossas resoluções eleitas em congresso, bem como aprofundar as críticas e gozar do pleno direito a crítica nas devidas instância, como determina nossas resoluções. A saber:

Art. 1° A União da Juventude Comunista (UJC), é a Juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e sua escola de quadros, submetida a ele histórica, orgânica, política e ideologicamente, possuindo autonomia relativa em relação ao PCB, ou seja, mantendo seus próprios congressos, organismos, direção, finanças, etc, na medida em que sua existência, suas direções e ações são referendadas pelo PCB, em seus respectivos organismos. (IX CONGRESSO UJC, 2022)

2) As discussões relativas a democracia interna partidária, bem como todas as outras discussões que dizem respeito a nossa organização, devem ser realizadas nas devidas instâncias. Como sempre ocorreu, exercendo o direito de se expressar nos debates internos sem riscos ou ameaças de algum tipo de “perseguição” ou “expurgo”. O exercício pela busca incessante do consenso é referência de uma organização que pratica o centralismo democrático, devemos abraçar a forma mais fraterna e empática de lidar com temas polêmicos. Não podemos abrir mão do respeito e da camaradagem quando lutamos pela nossa organização.

Coordenação Nacional da UJC

11 de setembro de 2023
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