por István Mészáros
I
A sofisticada “eternização da ordem social estabelecida” de Weber estava limitada a exercer poderosa influência em uma época em que aquela ordem parecia capaz de resistir a todo ataque concebível pela integração bem-sucedida das forças tradicionais de oposição no quadro da política do consenso. Para os defensores do sistema capitalista, as categorias weberianas eram como maná, pois em nome da “racionalização”, do “cálculo”, da “eficiência”, da “tecnologia” e de coisas similares era possível “provar”, como se fossem fatos estabelecidos, várias noções que eram tão-somente o que eles desejariam que fosse realidade. Assim, em primeiro lugar, a identidade fundamental entre capitalismo e socialismo:
Na medida em que a industrialização leva a uma maior racionalização, as empresas desenvolvem cada vez mais aspectos comuns. Elas devem calcular despesas, receitas, lucros e impostos; os cálculos devem cobrir um certo período - visto que o próprio ciclo de produção requer tempo; todos os elementos do balancete devem ser traduzidos em quantidades comparáveis — e, assim, nenhuma distinção essencial pode se estabelecer entre custo do trabalho humano e o do material. O homem é substituído pela máquina quando os números mostram que isto seria lucrativo. Sob este aspecto, não apenas a sociedade capitalista, mas qualquer sociedade trata o homem como se ele fosse uma mercadoria ou um instrumento de produção.[1]
Significativamente, a questão relativa à base necessária ou estrutura orientadora do cálculo é totalmente esquecida. O “cálculo” seria a única estrutura orientadora “racional” concebível, e isto seria, ao mesmo tempo, sua justificação. A certa altura, entretanto, o significado real desse “cálculo neutro” e inevitável (absoluto) é revelado quando se afirma que o “o homem é substituído pela máquina quando os números mostram que isto seria lucrativo”.
Isto é, obviamente, tanto um completo absurdo como uma típica mistificação ideológica elevada por decreto ao status de sabedoria autoevidente. Absurdo porque — como pode ser comprovado até nos países capitalistas mais avançados, sem mencionar muitos outros — é necessário muito mais do que simplesmente ter à mão alguns “números que mostram” que seria “lucrativo substituir o homem pela máquina” para realmente se proceder a tão complicado e frequentemente contraditório processo de substituição. E uma mistificação porque, de forma arbitrária, equipara a orientação para o lucro ao cálculo racional.
Assumindo-se a impossibilidade de superar o modo de produção capitalista, no espírito de Weber, esta equação parece plausível, mas somente em virtude da coincidência circular da conclusão com a suposição arbitrária da qual ela é derivada. No momento em que submetemos a autoexpansão socialmente destrutiva do valor de troca e sua “lucratividade” a um exame crítico, toda a questão do “cálculo” — vinculada a um pseudo-racionalidade autopresumida — vai pelos ares. A resposta à questão de como orientar a contabilidade social vitalmente necessária de uma sociedade alternativa — isto é aquela oposta à contabilidade monetária desumanizadora e irracionalmente orientada para o lucro da sociedade de consumo — não pode ser deduzida dos conceitos weberianos de “cálculo" e “racionalização”. Portanto, a redução e sujeição das escolhas sociais a critérios supostamente evidentes por si e aos ditames materiais da contabilidade comercial voltada para o lucro — estipulada por Aron como absolutamente inevitável - representam uma concepção de “racionalidade” cuja circularidade autoassumida (e exclusão a priori de uma contabilidade social alternativa) revela uma substância ideológica inequivocadamente tendenciosa.
Além disso, deve-se também destacar na passagem citada a sutil “equação” segundo a qual toda sociedade trata o homem como “uma mercadoria ou um instrumento de produção”. Certamente é verdade que em todas as sociedades os homens tratam a si mesmos também como instrumentos de produção — e não há nada de errado nisso —, mas apenas sob o domínio do capital é que o homem é tratado como uma mercadoria, o que faz toda a diferença. Em outras palavras, para colocar um prego em um pedaço de madeira tratamos nossos braços e mãos como instrumentos de nossa atividade produtiva autocontrolada, mas não como mercadorias, o que o homem inteiro inevitavelmente se torna quando é obrigado a trabalhar (como força de trabalho controlada por outros) em uma fábrica capitalista. Entretanto, a equação falaciosa de Aron apaga esta diferença fundamental e reduz tudo ao denominador comum da “sociedade industrial moderna”. que não se pode superar e na qual tais diferenças. por definição, não têm nenhuma importância.
II
O faccionismo ideológico da abordagem de Aron, derivado de Weber, aparece claramente em outra passagem, embora seja apresentado em nome da própria ideologia superadora:
As instituições e mecanismos sociais já não são facilmente substituídos, visto que os sistemas existentes estão se tornando cada vez menos “puros” e tomam emprestados elementos de tipos ideais que, em termos abstratos, são incompatíveis. Mais importante que tudo, a atual tendência da história ilustra tanto o poder da tecnologia quando aplicada ao ambiente, como a resistência da natureza humana e da sociedade àqueles cuja ambição é “reconstruir” a ordem social. Além disso, por um lado, os acontecimentos parecem demonstrar que quanto mais ardentemente os homens acreditam na ilusão prometéica de estarem moldando a história, tanto mais prontamente a ela se submetem; por outro lado, os líderes que modestamente abordam os problemas à medida que ocorrem têm maior probabilidade de obter resultados que correspondam a suas intenções. A abordagem pragmática do engenheiro social, não a vasta ambição do ideólogo, está mais de acordo com o espírito do racionalismo e proporciona aos homens a melhor oportunidade, não de se tornarem os “senhores e proprietários da sociedade”, mas de melhorá-la sem deixar de aceitar suas regras. Na Europa, ninguém mais nega que a “síntese ideológica” perdeu sua força”. Observadores do cenário europeu inclinam-se até o termo despolitização para o que é apenas indiferença às ideologias tradicionais.[2]
Dentro do quadro categorial de tal abordagem, era possível ao mesmo tempo assobiar e chupar cana. E mais. Era possível sustentar ao mesmo tempo que os sistemas socioeconômicos rivais da “sociedade industrial moderna” eram fundamentalmente os mesmos, e que o sistema da iniciativa privada era bem superior. Ainda que frequentemente se afirmasse categoricamente que a determinante essencial era a tecnologia como tal, quando isso era adequado aos interesses ideológicos defendidos pelos ideólogos “pós-ideológicos”, o argumento podia também se deslocar para a glorificação do motivo do lucro, mesmo que o caso que era citado indicasse claramente a aplicação bem-sucedida de uma forma mais avançada de tecnologia. Como, por exemplo, ao dizer que “o sistema telefônico norte-americano, de longe o melhor do mundo, é operado em linhas estritamente lucrativas”.[3]
Também era possível afirmar ao mesmo tempo que as sociedades industriais ocidentais haviam conseguido resolver seus problemas materiais, e que aquelas aspirações que implicavam alguma crítica às suas realizações não deveriam ser consideradas senão ideais ilusórios ou manifestações irracionais de “individualismo anarquista”. Eis como a primeira metade deste raciocínio “não-ideológico” foi apresentada:
A realidade superou a ficção. Defensores e críticos do capitalismo de cinquenta anos atrás ficariam espantados diante dos resultados materiais que ele alcançou. (Estes resultados talvez sejam inferiores aos que o avanço tecnológico tornou possível, mas nenhuma sociedade jamais realizou plenamente seu potencial.). Mesmo o teórico da Grande Recusa[4] não divida que as sociedades industriais possam eliminar gradativamente os bolsões isolados de pobreza e imerecido infortúnio que ainda são encontrados em meio à opulência.[5]
Ao mesmo tempo, as dúvidas dos críticos eram silenciadas — ecoando não penas Max Weber, mas também F. W. Taylor - da seguinte maneira:
Uma sociedade racionalizada é uma sociedade escalonada, em que o maior número de pessoas aceita mansamente seu destino. Do ponto de vista da ideia utópica de que os homens, tanto individualmente quanto em comunidade, devem escolher o próprio destino, a sociedade moderna parece cada vez mais opressiva, autoritária e totalitária à medida que se torna mais industrializada. Em nenhuma firma comercial pode haver relaxamento da disciplina, pois o trabalhador costuma cumprir seus deveres sem perceber ou compreender a natureza da entidade total a que pertence. [...] A liberdade no trabalho será sempre restrita pelos requisitos impostos pela eficiência, pela autoridade inevitável dos especialistas ou diretores técnicos. [...] Quer pensemos no trabalho quer nas atividades de lazer, a autodeterminação não é mais do que um ideal [...] não podemos dispor as coisas de tal forma que uma sociedade industrial — isto é, uma sociedade racionalmente administrada — corresponda aos impulsos do individualismo anarquista.[6]
Naturalmente, este tipo de conceituação dos problemas que têm de ser confrontados pelos movimentos políticos e sociais carrega uma mensagem extremamente conservadora, no espírito da “aceitação de regras” da ordem estabelecida como a única maneira “racional” de proceder. Ao mesmo tempo pode reconciliar suas afirmações “anti-ideológicas” com a adoção de posições ideológicas extremas. Pois, assim como Max Weber dirigiu sua artilharia “axiologicamente neutra” contra o socialismo, que ele identificava, por definição, com a burocratização total da vida social, também os teóricos do “fim da ideologia” ocasionalmente deixaram transparecer o verdadeiro significado político-ideológico de seus esforços, insistindo em que, “longe de enfraquecer as defesas do Ocidente contra o comunismo, a anti-ideologia (seu grau de otimismo ou pessimismo pouco importa) proporciona-lhe a melhor proteção possível”.[7] Entretanto, desde que o acerto de contas com o adversário por meio de uma guerra global era muito terrível para ser cogitado, o outro lado também teve de receber o status de sociedade industrial racionalizada e planejada”, apesar de ser apenas — e necessariamente — uma sociedade inferior:
O diálogo se dá agora, basicamente, entre as duas versões do pensamento racionalista, a ocidental e a soviética. Ora, a democracia liberal do tipo ocidental, depois de assegurar o desenvolvimento das forças produtivas e a difusão da prosperidade material, possui uma superioridade óbvia (exceto aos olhos de alguns intelectuais) sobre a chamada democracia popular de tipo soviético.[8]
Dada tal perspectiva, a solução dos problemas mais flagrantes teria de aguardar a “convergência” inevitável do “outro sistema racionalista” para sua contrapartida considerada superior a priori:
À medida que a revolução vai ficando para trás, o revisionismo ganha terreno, juntamente com um modo de vida mais de classe média. Quanto mais os homens desfrutam de posse de um mundo que correm o risco de perder, menos impacientes ficam para modificar esse mundo.[9]
Assim, o pensamento veleitário prevaleceu, anunciando a si mesmo como a manifestação evidentemente superior da sabedoria científica pragmática, orientada para a eficiência e a tecnologia, não-utópica, modestamente realista, não-prometéica, gradualista, voltada para a engenharia social, racional e anti-ideológica. Suas incoerências e contradições internas são tantas que levaria tempo demais enumerá-las. Será suficiente mencionar que, embora, seus escritos estivessem salpicados de constantes polêmicas contra a concepção marxiana da história em nome de uma forma extrema de ceticismo — algo do tipo “eu não sei qual será o futuro da humanidade, mas eu sei que nós não sabemos”—[10], não hesitava em prever a absorção dos desenvolvimentos pós-revolucionários pela “sociedade industrial” superior do tipo ocidental, em que os indivíduos adotam o “modo de vida da classe média” ao qual para sempre se adaptam, e prudentemente se recusam a buscar qualquer mudança significativa.
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Notas:
[1] Raymond Aron, The Industrial Society, Londres, Weidenfeld and Nicolson, 1967, p. 101.= = =
[2] Ibid., p. 148-9.
[3] Ibid., p. 107.
[4] Referência a One-Dimensional Man, de Marcuse.
[5] R. Aron, The Industrial Society, p. 175. Mais uma vez deve-se notar que a realização da “plena potencialidade” de uma sociedade é grosseiramente reduzida à dimensão tecnológica: à aplicação mais ou menos completa de seus avanços tecnológicos.
[6] Ibid., p. 175-6.
[7] ibid., p. 160. E em outra parte, em que ele se refere à substância que une as várias abordagens “pós-ideológicas”, encontramos esta confissão: “O que temos em comum é nossa oposição ao marxismo-leninismo e ao tipo de ideologia da qual ele é a perfeita encarnação” (ibid., p. 143-4).
[8] Ibid.. p. 147.
[9] Ibid., p. 121.
[10] Ibid., p. 158.
MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 148-152.
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