quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O lugar de fala de Djamila Ribeiro

por Inês Maia

Considero se tratar um equívoco a afirmação que a questão da raça e racismo no Brasil nunca foi levada a sério. Tal premissa é no mínimo ingênua, senão oportunista. Há uma ampla bibliografia consistente lançando luz sobre a forma pela qual a exploração do capital por aqui se deu a partir de uma estrutura escravocrata, que de fato jamais foi superada. Escavando um pouco a nossa velha bibliografia, teremos uma visão ampla, profunda e aguda da nossa formação social que eleva o componente racial como algo central. Também temos críticos/militantes interessantes, como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez.

Se a aposta liberal era a de que a modernidade capitalista por si só faria evanescer as relações de violência racial, logo se viu seu engodo, e se vê, na estrutura própria de nossa exploração capitalista, o componente racial tornado um dispositivo de controle dos corpos negros marcados não só pela exclusão, salários baixos e degradação existencial, como pelo auxílio na construção de um inimigo do Estado a ser sempre combatido pela forma de seu braço armado: a polícia. Exatamente aquilo que Mbembe chamou, com muita razão, de necropolítica. Grosso modo, uma política estatal que autoriza quem pode morrer e quem pode viver.

Então com duzentos anos de modernização capitalista, nesses tristes trópicos, é factível a impossibilidade de superação do racismo contra os negros baseados nas premissas básicas de um sistema no qual a exploração radical é o que o mantém vivo. É equivocada a crença na possibilidade de ascensão racial em um sistema que inventou as raças, que inventou um continente para dividir, controlar e usurpar suas riquezas. Tratar da questão racial é, portanto, refletir radicalmente sua fundamentação na estrutura de modernização colonial propulsora do capitalismo desde o seu berço.

Isto significa, sobretudo, que foi justamente a escravidão a condição de possibilidade do capitalismo e, com ela, a construção ficcional das raças como diferenças engendradas socialmente pela necessidade predatória de sua acumulação primitiva. É preciso acabar de vez com a ingenuidade da ciência etnológica pois desde sua fundação ela teve um único princípio: controle e submissão dos povos “não civilizados”. É preciso entender, como Mbembe deixou claro, que o projeto de neoliberalismo é uma tentativa de reedição da escravidão num novo patamar produtivo. É disso que se trata o devir negro do mundo.

Esse deveria ser o bê-á-bá de todos aqueles que se dizem antirracistas. Infelizmente não é o caso. Diga-se logo: o livro de Djamila Ribeiro não é sequer um livro anticapitalista. Feito esse preâmbulo, podemos passar para uma análise mais crítica de suas premissas e dos seus desenvolvimentos internos.

Demorou muitos anos para que uma intelectual negra tivesse algum tipo de destaque no Brasil. E Djamila é, sem dúvida, uma comentarista que trouxe para o debate público temas candentes e urgentes. A grande questão é que, como estudantes de filosofia, sabemos que a forma de abordar o problema define radicalmente os limites de sua resposta.

Com estudos em Simone de Beauvoir e Judith Butler, com um grande trabalho desenvolvido nas redes sociais, e agora entre os livros mais vendidos, seu nome já não é desconhecido. E sua prática, é preciso assinalar, tem sido até aqui coerente com sua teoria. Se o arcabouço teórico do livro limita-se a restituir humanidades negadas através da escuta das vozes silenciadas, podemos dizer, que a massiva aceitação de seu livro, que o convite aceito para sua participação em programas Globais, que o seu nome atrelado à indústria dos cosméticos indicam que pelo menos, segundo sua própria teoria, a sua humanidade fora restituída.

Necessitamos ler seu livro com estes olhos, como aquilo que efetivamente tem provocado na práxis política; os resultados causados no seio da militância, em especial àquela do movimento negro. Em primeiro lugar, os pressupostos do livro são inteiramente liberais-reformistas, não pensa em nenhum momento ultrapassar o horizonte formatado pela modernidade capitalista, mas, em se adequar ao seu interior, criando espaços de visibilidade para “subjetividades coletivas” invisibilizadas. Aliás, a palavra capitalismo aparece duas vezes no livro. Em segundo lugar, trata de trazer à tona a demarcação das diferenças identificando-as passo a passo, aceitando de antemão os pressupostos colonialistas que basearam essas diferenças.

Tendo isso exposto, não se trata de um livro cuja busca seja iluminar aquilo que se ocultou com a invenção das raças e do racismo, tampouco reflete a fundamentação do racismo a partir dos pressupostos da desigualdade e competitividade capitalistas, trata-se apenas de uma posição culturalista, ou melhor, moralista.

A discussão caminha assim para a tentativa de visibilizar uma disputa no interior do próprio feminismo. Ora, é evidente que a radicalidade do feminismo negro deve dar o horizonte e fornecer o mapa de quaisquer feminismos numa posição em que, no campo da luta política, as diferenças sejam concebidas para tornarem-se indiferentes na prática. Quer dizer, a hierarquia necessita ser expulsa do horizonte de lutas do movimento feminista, ao passo que, as vozes necessitam poder encarnar em qualquer corpo.

O paradoxo, não vislumbrado, é que as hierarquias são fornecidas pela desigualdade social radical cujo motor é a racialização da própria dinâmica do mercado e consumo, mas nada disso é dito. Não é o que importa à Djamila Ribeiro.

Ainda presa aos prognósticos do feminismo de donzelas do século XIX, até importa-se em colocar em xeque a posição social do feminismo que, em termos sintéticos, nas suas premissas, deixou de lado não só o componente racial, mas, como aparece nas desgostosas arengas de Truth, ficou afastado de uma base social pobre, entretanto, a posição social é reforçada só para sustentar um discurso que passa ao largo das questões de classe.

Apesar de tipificar o surgimento de um feminismo que era alheio a questão racial, Djamila, além de projetar uma fundamentação do feminismo norte-americano como um dado universal – por exemplo, não diz qual foi, ou como se deu, o desenvolvimento do feminismo no Brasil –, não deixa claro também, por exemplo, as condições de possibilidades que invisibilizaram a questão racial no interior do movimento feminista norte-americano, a não ser algo como uma espécie de cegueira moral daquelas primeiras feministas. Tal atitude argumentativa elide as condições objetivas e violentas, além das contradições existentes, em cada Estado da federação. Nessa perspectiva, portanto, o racismo torna-se sobretudo uma questão moral.

Lançando mão do conceito de “narrativas”, um olhar para o passado a partir do presente, a autora afirma que a luta no interior do movimento feminista era uma disputa de narrativas. Anacrônica ou não, essa perspectiva lança as bases para o que a comentarista tentará sustentar.

É nesse ponto que entra pela janela do texto uma noção de privilégio, mais ou menos, empírica, e diga-se de passagem plenamente liberal; o privilegio aí não advém do monopólio da riqueza, mas sim de um aspecto epidérmico biologizante. A culpa, segundo essa perspectiva, não é do sistema capitalista, cuja fundamentação colonial propiciou uma hierarquização social efetivada pela epiderme, mas sim do branco que nasceu branco. Como é parcial a forma de articulação do problema, também é parcial sua resposta e, dessa forma, aposta numa posição de mudança no interior dos limites postos pela vida baseada na competição e no fetichismo de mercado.

Naturalmente, a necessidade de reconhecer a estrutura de desigualdade racial de nosso mercado de trabalho é central – Ribeiro passa longe dessa discussão talvez porque esta seja de uma outra classe que não a sua – no entanto, não se preocupando com isso, o argumento é válido para alimentar o identitarismo de extrema direita que se utiliza dos mesmos argumentos, porém, de maneira invertida. Para a esquerda liberal, que aposta nessa noção unilateral sobre a construção dos privilégios, é como se uma cor (branca) tivesse tudo, para a extrema-direita, que se aproveita dessa posição, é como se uma cor (negra) quisesse roubar tudo. O problema é que estamos no Brasil e a miscigenação ocorreu – embora, algumas almas destroçadas e inúteis queiram torná-la crime de genocídio (deixa só o Pegida ou o Aurora ouvirem essa argumentação!).

E com a sustentação teórica, algo genérica, baseada em algumas referências a Lélia Gonzalez, reduz o debate epistemológico e científico a questão da raça excluindo não só o debate contra a neutralidade da ciência, como ainda, optando por excluir a própria ciência do horizonte emancipatório, já que é algo de privilegiado. Assim, é melhor lutar por um outro conhecimento, por uma outra episteme, “negra”, porque, segundo a autora, no escopo da ciência branca, há vozes que são legitimadas e vozes que não. Nada original; a posição problemática de Grada Kilomba ressoa no texto de maneira rebaixada.

Ora, combater a neutralidade epistemológica não é o mesmo que simplesmente negá-la, assim, quando a autora se apossa de Lélia Gonzalez, como instrumental para defender os próprios pressupostos, apenas aponta de maneira genérica quais pontos de vista que permeavam a práxis de Lélia, que, tendo ou não seus equívocos, de fato foi importante para trazer a questão racial para o interior do movimento feminista. A discussão sobre o fazer ciência envolve radicalmente a política econômica que é não apenas a ciência dominante como ciência da dominação. Sem dúvida, a questão do racismo governa os castelos conceituais da ciência é preciso combatê-lo, no entanto, sem petite-negre que, em termos grosseiros, significa um racismo crente de que o negro não conseguirá entender, jamais, Kant ou Hegel.

Sabemos que, ao contrário de Fanon que detestava o petite-negre, Gonzalez era entusiasta da liberdade gramatical como polo de resistência e suposta herança cultural. Aceitando de saída a alcunha redutora de que “eles não poderão ler os nossos livros”, tal noção acaba por limitar-se ao terreno minado criado para balizar o negro no interior da raça e defini-lo a partir dos pressupostos coloniais. Pois é exatamente aí que Djamila Ribeiro se sustenta para combater o “universalismo”. A todo momento não se saí da lógica colonial e se busca uma reafirmação do “eu” para disputar internamente aos pressupostos simbólicos do significante raça.

E assim salta para os argumentos de Alcoff com intuito de buscar valorizar outros saberes. Olhados agora, sabemos que essa é justamente a palavra de ordem do mercado: tragam para nós seus saberes “originários”, ou esse romantismo putrefato que volta, como tragédia, à esquerda e à direita. Mas, mais que isso, qualquer saber tem como intuito a transformação ou a conservação da realidade em sentido amplo; uma busca incessante pela produção da verdade significando que sua disputa é política e múltipla. Não se trata pois de querer criar, como se fosse um ato de decisão, uma nova metafisica, trata-se antes de colocar em xeque o mundo no qual essas epistemologias são autorizadas como discurso da verdade. Já sabemos que a ciência é um acordo que produz realidades, a questão é: o que e quem autoriza esse acordo?

E com essa carta na manga a autora diz: “Seria preciso, então, desestabilizar e transcender a autorização discursiva branca, masculina cis e heteronormativa e debater como as identidades foram construídas nesses contextos”. Desestruturar a autorização discursiva branca, masculina cis e heteronormativa não se dá pela manutenção através da competição no interior das instituições heteronormativas senão pela desestruturação dos próprios espaços e lugares onde a possibilidade de política está morta. Não se busca manter um lugar, mas acabar com o lugar; a desterritorialização do espaço político como possibilidade de encarnar as múltiplas vozes do coro dos “Condenados da Terra” em um objetivo comum e para o comum. É claro que qualquer epistemologia não é neutra porque social, então por que não se questiona a fundamentação social da epistemologia em nenhum momento no livro?

O fato de não criticar, em nenhuma passagem do livro, a fundamentação social dessa epistemologia, sustenta a posição de hierarquização e disputa no interior dos pressupostos e limites dados pelo capitalismo e sua posição que no lado sul do globo jamais deixou de ser colonial. Nada disso interessa aí.

Com uma teoria supostamente original, a aporia de sua estrutura se mantém inabalável do início ao fim. É uma teoria de significante colonial. A solução encontrada é então a criação de nichos de mercados conforme a súmula dos democratas americanos. Mas, nada disso se diz claramente senão que é preciso escutar as mulheres negras para que assim os quatrocentos anos de escravidão, trabalho precário, nadificação de sua existência sejam pagos através da garantia do lugar de fala! Trata-se de acessar a humanidade pelo ato da fala.

Naturalmente esta teoria é uma teoria de gestores da classe trabalhadora, aqueles que reivindicam um acento na política pública, ou um departamento de pesquisa na universidade. As trabalhadoras negras, aquelas que estão nas ruas pelas cinco da manhã e voltam às dez da noite, depois de um transito infernal, estão pouco se lixando para coisitas tais! Então, em primeiro lugar, é preciso estabelecer o lugar de fala dessa teoria e ele é o lugar da classe-média!

Esse lugar da classe média ilustrada é interessante ser posto em xeque porque acentua não apenas a dimensão ilusória de seus diagnósticos e de seus resultados, como nos faz entender como e o porquê a esquerda se afastou radicalmente da vida comum, das pessoas comuns. É patente a importância da discussão racial como aquela que possibilita interpretar a superexploração radical dos negros numa estrutura subdesenvolvida e dependente de capital, só que nada disso importa para essa classe-média.

A transformação social radical será negra, ou não será, mas para tanto é preciso que nós negros tenhamos dimensão concreta daquilo que possibilita o racismo e o mantém inalterado. É preciso sairmos dos limites coloniais que nos identifica, nos diz o que somos e como devemos agir. Mbembe diz, mais ou menos, que nada garante que o fim do capitalismo possa proporcionar o fim do racismo. Tudo bem! Mas, nós temos a certeza de que com a manutenção do capitalismo o racismo jamais terá fim. Arrisquemo-nos!
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