por Lucas Kuntz
Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895–1975) foi filósofo e linguista russo, cujo objeto de estudo se estendeu da linguagem à antropologia, passando pela literatura, pela cultura popular e pela arte, influenciando tradições filosóficas como o estruturalismo, o marxismo e a semiótica.
Em seu livro O freudismo, ele tecerá uma crítica ao conjunto de discursos e trabalhos englobados em torno da teoria psicanalítica criada por Freud – o que denomina de “freudismo”; para o autor, o fenômeno do freudismo não se trata de uma “moda fugaz” da sociedade europeia; esse sucesso não se deve ao seu método psiquiátrico ou científico, pelo gosto pela ciência ou pela medicina; as pessoas que o leem não se interessam por questões psiquiátricas e pelos seus êxitos, por seu método terapêutico ou sua eficácia médica: essa explosão se deve ao fato de a teoria psicanalítica ser a expressão mais profunda de aspectos essenciais da ideologia burguesa europeia – já que nela foi engendrado: o homem como um sujeito abstrato, retirado de seu contexto social e histórico, animalizado em seus instintos, envolto de uma teoria com pretensões de universalidade – Bakhtin argumenta que Freud veste com uma roupagem nova uma abordagem teórica e metodológica velhas, próprias das classes dominantes em decadência.
Ao contrário do marxismo, que entende a organização social do homem e a luta de classe oriunda dessa divisão social do trabalho como motor da História, o motivo ideológico central do freudismo (ou seja, o motor de sua filosofia e seu embasamento), são as pulsões sexuais do homem:
O destino do homem, todo o conteúdo da sua vida e criação – o conteúdo da arte, quando ele é artista; das suas teorias científicas, quando ele é cientista; de seus programas e ações políticas, quando político – é inteiramente determinado pelos destinos do seu desejo sexual e só por eles. Tudo o mais são apenas sons harmônicos da melodia fundamental e poderosa das pulsões sexuais.[1]
Tudo deriva da pulsão sexual – a pulsão sexual do homem determina seus feitos e é seu conteúdo – ele não é fruto das circunstâncias (tempo, lugar, classe); há o deslocamento do homem, animal social, para sua condição biológica – apenas animal; retira dele o que, segundo Aristóteles, o diferencia de todos os outros seres: sua condição social. Essa forma filosófica – a-histórica, a-social, idealizada – não é uma forma nova: é expressão das filosofias que temem discutir a sociedade e suas mudanças históricas. Correntes como o epicurismo, o estoicismo, os decadentistas romanos – todos aqueles que temem a História e supervalorizam a vida privada e particular do homem – que tem o primado do biológico sobre o social – busca repaginar a ideologia das classes dominantes (que estão em decadência ou em risco de desintegração[2]) com uma nova fórmula filosófica, precisando dar um ar novo ao velho, e repetindo a naturalização do espírito voraz do homem; ela transfere o centro da gravidade para o organismo biológico isolado.
Assim, vemos que o motivo biológico central do freudismo não está nada só. Faz coro em uníssono com todos os motivos principais da filosofia burguesa atual. Um medo singular perante a história, a aspiração de encontrar um mundo além de tudo o que é histórico e social, a procura desse mundo exatamente nas profundezas do orgânico penetram todas as teorias da filosofia atual, constituindo-se em sintoma da desintegração e da decadência do mundo burguês.[3]
Bakhtin aponta que, tampouco, o freudismo encontra-se sozinho nessa empreitada de repaginação filosófica: o élan vital, em Bergson; a unidade orgânica fechada da vida, em Zimmel; os sentimentos, em Gomperz; a entelequéia, em Driesch; o sexual, em Freud. Apesar das divergências entre esses autores, ele encontra fundamentos filosóficos semelhantes – diferindo, muitas vezes, apenas o nome que são dados aos seus componentes.
São os fundamentos filosóficos:
1) a vida, biologicamente interpretada, ocupa o centro da teoria filosófica. A unidade orgânica isolada é proclamada valor supremo e critério da filosofia;
2) desconfiança na consciência. Tentativa de reduzir ao mínimo o seu papel na criação cultural. Daí a crítica ao kantismo como filosofia da consciência;
3) tentativa de substituir todas as categorias socioeconômicas por categorias psicosubjetivas ou biológicas. Aspiração de interpretar a História e a cultura diretamente a partir da natureza, evitando a economia.
2) desconfiança na consciência. Tentativa de reduzir ao mínimo o seu papel na criação cultural. Daí a crítica ao kantismo como filosofia da consciência;
3) tentativa de substituir todas as categorias socioeconômicas por categorias psicosubjetivas ou biológicas. Aspiração de interpretar a História e a cultura diretamente a partir da natureza, evitando a economia.
Após localizar o freudismo em seu contexto social e histórico, o autor parte para a crítica metodológica do freudismo e da psicanálise.
Crítica metodológica do freudismo
Bakhtin nota três fases do freudismo: a primeira, quando Freud ainda era discípulo de Breuer (1890-1897); a segunda, considerada a mais importante e fundamental da psicanálise, em que Freud atinge uma maior maturidade intelectual (1897-1914) e publica suas obras principais, e a terceira (1914 em diante), em que a observação empírica dá lugar a uma metafísica filosófica, muito influenciada pela popularização da doutrina (e sua consequente ânsia editorial), pelos discípulos (que muitas vezes eram mais freudianos que o próprio Freud) e influências filosóficas exteriores (como Nietzsche e Schopenhauer).
Assim, o autor parte para as seguintes críticas metodológicas:
Crítica metodológica do freudismo
Bakhtin nota três fases do freudismo: a primeira, quando Freud ainda era discípulo de Breuer (1890-1897); a segunda, considerada a mais importante e fundamental da psicanálise, em que Freud atinge uma maior maturidade intelectual (1897-1914) e publica suas obras principais, e a terceira (1914 em diante), em que a observação empírica dá lugar a uma metafísica filosófica, muito influenciada pela popularização da doutrina (e sua consequente ânsia editorial), pelos discípulos (que muitas vezes eram mais freudianos que o próprio Freud) e influências filosóficas exteriores (como Nietzsche e Schopenhauer).
Assim, o autor parte para as seguintes críticas metodológicas:
- I. Freud postula fenômenos sociais como erigidos da dinâmica psíquica e somente dela.
Nessa teoria não há uma só palavra sobre qualquer um dos fundamentos sociais do caráter, alicerçados na constituição física do homem, nem sobre as influências físicas e sócio-objetivas do ambiente. Todo o processo de formação do caráter transcorre nos limites do psiquismo subjetivo tomado isoladamente. Entre a retenção das fezes e a retenção do dinheiro, entre as fezes e o ouro, existe apenas uma semelhança subjetiva bastante forçada, por assim dizer, uma semelhança de impressões, mas não há quaisquer fios materiais e reais que as vinculem na composição material do próprio organismo.[4]
Mais adiante:
A questão não melhora tampouco com a sua inserção no processo socioeconômico da história. Porque já sabemos que Freud extrai todas as formações objetivas históricas (a família, a tribo, o Estado, a igreja etc.) das mesmas raízes subjetivamente psíquicas, e o ser de tais formações se esgota no mesmo jogo de forças subjetivas interiores (o poder como Ideal do Ego; a solidariedade social como identificação mútua na comunidade do Ideal do Ego; o capitalismo como sublimação do erotismo anal etc.)[5]
Fenômenos eminentemente sociais – os mitos, as histórias, a religião – são, para o freudismo, todos derivados dos mesmos mecanismos psicorgânicos que criam os sonhos; toda – absolutamente toda – criação mitológica-religiosa segue sendo a representação do recalcamento das pulsões sexuais – seja a da atração pela mãe ou as proibições do pai. No campo da arte, há o disfarce das pulsões sexuais e infantis-agressivas em outras formas, tornando-as aceitáveis para a consciência e criando um respiradouro para as energias reprimidas. Dessa forma, o motor das formações e fenômenos sociais é colocado como intrínseco ao homem, e não exterior a ele e relacionado com seu contexto.
- II. Freud projeta a) uma mitologia e b) um olhar adulto na dinâmica psíquica da criança.
- III. Freud não se interessa pelo material objetivo.
[Freud] não tem o menor interesse pelo mecanismo fisiológico do sintoma físico, por exemplo, da tosse histérica, mas tão-somente pelo avesso psíquico-subjetivo-interior. Para ele, o sintoma, o ato falho, o sonho e todos os outros fatos de onde parte o método psicanalítico são como que desprovidos de carne objetiva, material.[6]
Há, assim, uma separação entre a objetividade científica (fisiologia do corpo) com a subjetividade (que também existe materialmente) e a “psicologização” do somático: o freudismo ignora reações químicas e hormonais do corpo.
- IV. Incomensurabilidade da dinâmica subjetiva.
- V. Freud constrói o inconsciente a partir do consciente.
- VI. O freudismo toma seus princípios psicanalíticos – método, conteúdo, dinâmica da psique – como universais, e seus casos clínicos, como individuais.
Assim, o essencial do homem não é, de maneira nenhuma, aquilo que determina o seu lugar e seu papel na história – a classe, a nação, a época histórica a que ele pertence; essenciais são apenas o seu sexo e a sua idade; tudo o mais é mera superestrutura erigida sobre esses elementos. A consciência do homem não é determinada pelo seu ser histórico, mas pelo ser biológico, cujo aspecto fundamental é a sexualidade.[8]
Contraponto e avanços da teoria psicanalítica
Contudo, o autor não deixa de reconhecer os méritos da abordagem psicanalítica: uma nova construção dos conceitos de sexo e idade; a diversidade e amplitude de novos conhecimentos e informações acerca da sexualidade e da vida sexual do homem (que a sociedade burguesa, até então e hipocritamente, havia censurado); a derrubada de um esquema que idealizava a criança como um ser desprovido de sexualidade, o adulto com sua pulsão regulada e amadurecida, e o idoso com sua inocência.
A força de Freud está em haver proposto essas questões com toda acuidade e ter reunido material para a sua análise. Sua fraqueza está em não ter entendido a essência sociológica de todos esses fenômenos e haver tentado metê-los à força nos limites estreitos de um organismo individual e de seu psiquismo. Ele explica processos essencialmente sociais do ponto de vista da psicologia individual. [9]
Freud também possui o mérito de tomar o inconsciente como algo em permanente movimento, coisa que não havia sido feito até então – o inconsciente era visto como algo passivo, que repousava na alma humana, quieta. Assim, a diferença fundamental entre Freud e outras teorias subjetivistas está em tomar o interior do homem como caos, luta, infortúnio, que geram a crise, a tragédia, a catarse. Freud, assim, faz avançar o debate no campo da psicologia, e assim também busca fazer Bakhtin, ao expor as bases ideológicas de sua doutrina, e ao considerá-lo no conjunto de outras ideologias e doutrinas filosóficas da Europa de sua época, localizando-o em seu tempo histórico:
[…] a formação das respostas verbais só é possível nas condições do meio social. O complexo dispositivo dos contatos verbais se elabora e se põe em prática no processo da comunicação longa, articulada e variada entre as organizações. Evidentemente, a psicologia não pode dispensar os métodos sociológicos objetivos. Portanto, a psicologia deve estudar com métodos objetivos o comportamento humano materialmente expresso nas condições do meio natural e social. São essas as reivindicações do marxismo à psicologia.[10]
= = =
Notas:
[1] BAKHTIN, M. O freudismo: um esboço crítico. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2007. p.6= = =
[2] No contexto em que Freud escreve, a sociedade alemã estava em plena decadência de valores e afundada na instabilidade social; nos anos seguintes, a Europa assistiria à ascensão do nazi-fascismo em o todo o continente.
[3] Op cit., p.10
[4] Ib., p.72
[5] Ib., p.101
[6] Ib.,p.96
[7] Ib.,p.84
[8] Ib.,p.6
[9] Ib., p.6
[10] Ib., p.19
Nenhum comentário:
Postar um comentário