sexta-feira, 25 de abril de 2025

ARTE REALISTA| Geração Coca-Cola

 
Geração Coca-Cola
Renato Russo

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos U.S.A., de nove as seis
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de vinte anos na escola
Não é difí­cil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí­ então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola

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terça-feira, 15 de abril de 2025

Sobre Proudhon


  Carta de Marx a J. B. Schweitzer[1]

Londres, 24 de Janeiro de 1865

Caro senhor:

Recebi ontem a sua carta, na qual me solicita um julgamento aprofundado sobre Proudhon. A falta de tempo não me permite atender a seu pedido. Entretanto, para lhe demonstrar a minha boa vontade, redigi à pressa um breve esboço. O senhor pode fazer adições ou reduzi-lo; numa palavra: pode fazer com este material o que lhe aprouver[2].

Não me recordo já dos primeiros ensaios de Proudhon. Seu trabalho de escolar sobre a língua universal[3] comprova a falta de cerimônia com que tratava problemas para cuja solução lhe faltavam os conhecimentos mais elementares.

Sua primeira obra, Qu'est-ce que la propriété?[4], é, sem dúvida, a melhor. Ela marcou época, se não pela originalidade do seu conteúdo, ao menos pela maneira nova e audaciosa de dizer coisas antigas. Nas obras dos socialistas e comunistas franceses, que ele conhecia, a propriedade fora, não só, como é natural, criticada sob vários pontos de vista, mas também utopicamente abolida. Com este livro, Proudhon colocou-se, em relação a Saint-Simon e a Fourier, quase no mesmo plano em que Feuerbach se encontra em relação a Hegel. Comparado a Hegel, Feuerbach é muito pobre. Contudo, depois de Hegel, ele assinalou uma época, já que realçou alguns pontos pouco agradáveis para a consciência cristã e importantes para o progresso da crítica, que Hegel deixara em mística penumbra [clair-obscur, em francês].

O estilo de Proudhon, aí, é — permita-me a expressão — vigorosamente musculado, constituindo, no meu entender, a principal qualidade deste estudo. Mesmo nas passagens em que Proudhon limita-se a repetir o conhecido, a simples reprodução é para ele um descobrimento; o que diz é, para ele, original, algo novo, e passa como tal. A audácia provocadora com que ele ataca o “santuário” da economia política, os engenhosos paradoxos com que ironiza a vulgaridade do burguês, seus juízos corrosivos, a ironia amarga, um profundo e sincero sentimento de indignação expresso intermitentemente contra as infâmias da ordem existente, sua convicção revolucionária — todas essas qualidades contribuíram para que Qu'est-ce que la propriété? eletrizasse os leitores e produzisse uma grande impressão, desde o primeiro momento em que viu a luz. Numa história rigorosamente científica da economia política, este texto mal seria mencionado. Mas, como na literatura romanesca, obras sensacionais como esta desempenham um papel na ciência. Pense-se, por exemplo, no livro de Malthus, Sobre a população[5]; sua primeira edição não constitui mais que um panfleto sensacional e, ademais, era um plágio da primeira à última linha. E, apesar de tudo, como esta pasquinada causou impacto sobre o gênero humano!

Se eu tivesse à mão o livro de Proudhon, ser-me-ia fácil demonstrar, com alguns exemplos, a sua maneira inicial de escrever. Nos parágrafos considerados mais importantes por ele mesmo, imita o método das antinomias de Kant — o único filósofo alemão que conhecia naquela época, através de traduções —, oferecendo-nos a sólida impressão de que, assim como Kant, busca a solução das antinomias num mais além do entendimento humano, isto é: a solução permanece obscura para ele mesmo.

Apesar da sua aparência de assalto ao céu, encontra-se em Qu'est-ce que la propriété? esta contradição: de um lado, Proudhon critica a sociedade a partir do ponto de vista do pequeno camponês (mais tarde, pequeno burguês) francês; de outro, aplica a ela a escala que lhe transmitiram os socialistas.

O próprio título indica as deficiências do texto. O problema fora tão mal colocado que a solução não podia ser correta. As “relações de propriedade” dos tempos antigos foram destruídas pelas feudais; e estas, pelas burguesas. Assim, a própria história encarregou-se de submeter à crítica as relações de propriedade do passado. No fundo, Proudhon trata é da moderna propriedade burguesa, tal como existe hoje. À pergunta — o que é a propriedade? — só podia responder com uma análise crítica da economia política, que abarcasse o conjunto dessas relações de propriedade, não em expressão jurídica, como relações de vontade, mas eu sua forma real, isto é, como relações de produção. Mas como Proudhon vinculava a totalidade destas relações ao conceito jurídico geral de “propriedade”, não podia ir além da resposta que Brissot já dera[6], numa obra similar, anterior a 1789, repetindo-a com as mesmas palavras: a propriedade é um roubo.

No melhor dos casos daí se pode deduzir que o conceito jurídico burguês de “roubo”, como violação da propriedade, pressupõe a propriedade, Proudhon enredou-se em toda sorte de elucubrações sobre a verdadeira propriedade burguesa.

Durante minha estância em Paris, em 1844, travei conhecimento pessoal com Proudhon. Menciono aqui o fato porque, em certa medida, sou responsável pela sua sophistication, como os ingleses chamam à adulteração de mercadorias. Em nossas longas discussões, que frequentemente duravam noites, contagiei-o, para grande desgraça sua, com o hegelianismo que, por seu desconhecimento da língua alemã, não podia estudar a fundo. Após a minha expulsão de Paris, o sr. Karl Grün continuou o que eu iniciara. Professor de filosofia alemã, ele tinha sobre mim a vantagem de não entender uma palavra do que ensinava.

Pouco antes da publicação da sua segunda obra importante Philosophie de la misère, Proudhon anunciou-me sua próxima edição numa carta muito detalhada, em que, entre outras coisas, dizia-me o seguinte: “Espero a férula de sua crítica[7]. Com efeito, a minha crítica caiu rapidamente sobre ele (em meu livro Misére de la philosophie, Paris, 1847), de tal forma que pôs fim, para sempre, à nossa amizade.

Como o senhor poderá ver, na sua Philosophie de la misère ou Système des contradictions économiques, Proudhon responde, realmente, pela primeira vez, à pergunta — o que é a propriedade? De fato, somente depois da publicação do seu primeiro livro, Proudhon iniciou seus estudos econômicos; compreendera que, à pergunta em tela, não se podia responder com invectivas, mas por meio de uma análise da economia política moderna. Ao mesmo tempo, tentou expor, dialeticamente, o sistema das categorias econômicas. No seu método de análise, à insolúvel “antinomia” kantiana devia substituir-se, intervindo como meio de desenvolvimento, a “contradição” hegeliana.

O senhor encontrará, na réplica que escrevi em seguida, a crítica aos dois grossos volumes da obra. Nessa réplica demonstro, entre outras coisas, o pouco que Proudhon penetrou nos segredos da dialética científica e até que ponto, por outro lado, compartilha das ilusões da filosofia especulativa, quando, em vez de considerar as categorias econômicas como expressões teóricas de relações de produção históricas e correspondentes a um determinado nível do desenvolvimento da produção material, converte-as, absurdamente, em ideias eternas, preexistentes. Com essa meia-volta, ele retorna ao ponto de vista da economia burguesa[8].

Mais adiante, demonstrei, também, o quanto é insuficiente o seu conhecimento — às vezes, digno de um escolar — da economia política, ciência a cuja crítica se dedica e como, à semelhança dos utopistas, corre atrás de uma pretensa “ciência”, da qual se pode arrancar a priori uma fórmula para a “solução do problema social”, em vez de ir buscar a fonte da ciência no conhecimento crítico do movimento histórico, movimento que cria ele mesmo, as condições materiais da emancipação. Demonstrei, sobretudo, que Proudhon só tem ideias vagas, falsas e parciais sobre o valor de troca, fundamento de toda economia, e como, inclusive, vê na interpretação utópica da teoria de Ricardo a base de uma ciência. Meu juízo sobre a sua concepção geral, resumo-o nas seguintes palavras:

Cada relação econômica tem um lado bom e um lado mau, esse é o único ponto em que o sr. Proudhon não se desmente. O lado bom, ele o vê exposto pelos economistas; o mau, denunciado pelos socialistas. Dos economistas, ele toma a necessidade de relações eternas; dos socialistas, a ilusão de ver na miséria apenas a miséria (em vez de ver nela o lado revolucionário, destrutivo, que há de acabar com a velha sociedade)[9].

Proudhon está de acordo com uns e outros quando se trata de apoiar-se na “autoridade” da ciência. Para ele, a ciência se reduz às magras proporções de uma fórmula científica. É um homem à caça de fórmulas. Assim, o sr. Proudhon jacta-se de oferecer-nos uma crítica da economia política e do comunismo, quando, na realidade, permanece muito abaixo de uma e de outro: dos economistas, porque, como filósofo, de posse de uma fórmula mágica, julga-se dispensado da obrigação de entrar em detalhes puramente econômicos; dos socialistas, porque carece da perspicácia e da coragem necessárias para elevar-se, ainda que apenas no terreno da especulação, para além dos horizontes da burguesia.

Pretende, como homem da ciência, pairar acima de burgueses e proletários, mas não passa do pequeno-burguês que oscila, constantemente, entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo[10].

Por mais severo que possa parecer esse juízo, subscrevo ainda hoje cada uma das suas palavras. Ao mesmo tempo, é preciso recordar que, na época em que afirmei, e demonstrei teoricamente, que o livro de Proudhon era o código do socialismo pequeno-burguês, os economistas e os socialistas o excomungaram como um herético ultrarrevolucionário. Essa é a razão pela qual, posteriormente, jamais fiz coro com os que denunciaram a sua “traição” à revolução. Não foi culpa sua se, incompreendido inicialmente tanto pelos outros como por si mesmo, ele não satisfez expectativas infundadas.

Em contraste com Qu'est-ce que la propriété?, na Philosophie de la misère todos os defeitos do estilo proudhoniano ressaltam particularmente. Estilo ampoulé, como dizem os franceses: sempre que lhe falta a acuidade gaulesa, aparece uma pomposa algavaria especulativa que pretende ser o estilo filosófico alemão. O tom charlatanesco, fanfarrão e vaidoso e, especialmente, o leilão que faz de uma pretensa “ciência”, a bazófia com que a apresenta – tudo isso assombra. O entusiasmo sincero que anima a sua primeira obra é aqui, em inúmeras passagens, substituído sistematicamente pelo ardor febril da declamação. A isso se soma o afã pedante de fazer gala de erudição, afã próprio de um autodidata, cujo orgulho inato por seu pensamento original e independente se perdeu e que, em sua qualidade de parvenu da ciência, orgulha-se do que não é e não tem. E, de sobra, essa mentalidade de pequeno-burguês, que o leva a atacar de um modo indigno, grosseiro, torpe, superficial e até injusto a um homem como Cabet – merecedor de respeito pela sua atividade prática entre o proletariado francês –, enquanto exibe extremos de amabilidade para Dunoyer[11], conselheiro de Estado, é verdade, mas cuja importância se reduz à cômica seriedade com que, em três grossos volumes, insuportavelmente entediantes, prega o rigorismo, caracterizado por Helvetius nestes termos: “On veut que lês malheureux soient parfaits” [Pretende-se que os desgraçados sejam perfeitos].

A revolução de fevereiro foi uma surpresa desagradável para Proudhon, já que ele, poucas semanas antes, demonstrara irrefutavelmente que a “era da revoluções” passara para sempre. No entanto, a sua intervenção na Assembleia Nacional merece elogios, apesar de ter evidenciado o pouco que compreendia do que estava ocorrendo. Efetuada após a insurreição de junho, foi um ato de grande coragem[12]. Sua intervenção teve, além disso, resultados positivos: no discurso que pronunciou em oposição a Proudhon, e que, mais tarde, foi publicado em folheto, o sr. Thiers demonstrou a toda a Europa quão mísero e infantil era o catecismo que servia de pedestal a esse pilar espiritual da burguesia francesa[13]. Comparado ao sr. Thiers, Proudhon adquiria, certamente, as dimensões de um colosso antediluviano.

A descoberta do “crédito gratuito” e do “banco do povo” baseado nele são as últimas “façanhas” econômicas de Proudhon. Na minha Zur Kritik der Politischen Ökonomie (Berlim, 1859, parte primeira, pp. 59-64), demonstrei que a base teórica das ideias proudhonianas tem sua origem na ignorância dos princípios elementares da economia política burguesa, a saber: a relação entre a mercadoria e o dinheiro. Quanto ao edifício erguido sobre essa base, não é mais que uma simples reprodução de esquemas velhos e muito melhor desenvolvidos. Não há dúvida, e é evidente por si mesmo, que o crédito, como ocorreu em inícios do 19, contribuiu para as riquezas passassem das mãos de uma classe às de outra, e que, em determinadas condições econômicas e políticas, poderá ser um fator que acelere a emancipação do proletariado. Mas é uma fantasia genuinamente pequeno-burguesa considerar que o capital que produz juros é a forma principal do capital e tratar de converter uma aplicação particular do crédito – uma suposta abolição do juro – em base de transformação social. Com efeito, essa fantasia já fora minuciosamente desenvolvida pelos porta-vozes econômicos da pequena burguesia inglesa do século 17. A polêmica de Proudhon com Bastiat (1850), sobre o capital que produz juros[14], está muito aquém da Philosophie de la misère. Proudhon consegue ser derrotado até por Bastiat, e entra em furor cômico cada vez que o adversário lhe assesta um golpe.

Há alguns anos, Proudhon escreveu, para um concurso organizado, se bem me recordo, pelo governo de Lausanne, uma trabalho sobre impostos[15]. Aí desapareceram, por completo, os últimos vestígios do gênio e nada mais resta que o petit bourgeois tout pur[16].

No que respeita às obras políticas e filosóficas de Proudhon, todas elas apresentam o mesmo caráter ambíguo e contraditório dos seus trabalhos sobre economia. Além do mais, seu valor não ultrapassa as fronteiras francesas. Entretanto, seus ataques à religião, à Igreja etc., possuem um grande mérito, por terem sido escritos na França num época em que os socialistas franceses julgavam oportuno fazer constar que seus sentimentos religiosos os situavam acima do voltaireanismo burguês do século 18 e do ateísmo alemão do século 19. Se Pedro, o Grande, derrotou a barbárie russa com a barbárie, Proudhon fez o que pôde para derrotar com frases a fraseologia francesa.

Seu texto sobre o golpe de Estado[17] não deve ser considerado, simplesmente, como uma obra ruim, mas como uma verdadeira vilania que, ademais, corresponde plenamente a seu ponto de vista pequeno-burguês. Nesse livro, lisonjeia Luís Bonaparte, procurando torná-lo aceitável aos operários franceses. O mesmo vale para a sua última obra contra a Polônia, na qual, para a maior glória do tsar, demonstra o cinismo próprio de um cretino[18].

Frequentemente, Proudhon foi comparado a Rousseau. Nada tão falso. Está mais próximo a Nicholas Linguet, cujo livro Théorie des lois civiles é uma obra genial[19].

Proudhon possuía uma inclinação natural para a dialética. Mas nunca compreendeu a verdadeira dialética científica — não foi além dos sofismas. Na verdade, isso se explica pela sua mentalidade pequeno-burguesa. À semelhança do historiógrafo Raumer, o pequeno-burguês constitui-se de “por uma parte” e “por outra parte”. Como tal se nos revela em seus interesses econômicos e, logo, também em sua política e em suas concepções religiosas, científicas e artísticas. Assim nos aparece em sua moral e so in everything[20]. É a contradição personificada. E se é, além disso, como Proudhon, uma pessoa de espírito, logo aprenderá a fazer prestidigitação com as suas próprias contradições e convertê-las, segundo as circunstâncias, em paradoxos inesperados, espetaculares, ora escandalosos, ora brilhantes. Charlatanismo científico e oportunismo político são elementos inseparáveis de semelhante posição. A homens assim só resta um estímulo: a vaidade. Como a todos os vaidosos, preocupa-lhes unicamente o êxito momentâneo, a sensação de um dia. E é aí que se perde, fatalmente, o tato moral que sempre preservou Rousseau, por exemplo, de todo compromisso, mesmo aparente, com os poderes estabelecidos[21].

Talvez a posteridade, caracterizando esse período recente da história da França, diga que Luís Bonaparte foi o seu Napoleão e Proudhon o seu Rousseau-Voltaire.

O senhor me atribuiu uma tarefa penosa: o juízo sobre um homem morto, um homem que faleceu há pouco. Debito-lhe a responsabilidade que me foi imposta.

Respeitosamente,
Karl Marx

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Notas agregadas:
[1] Imediatamente após a morte de Proudhon (16 de janeiro de 1865), Scweitzer e W. Liebknetch pediram a Marx uma nota necrológica para o Social-Demokrat (cf. “Prefácio à primeira edição alemã” da Miséria da filosofia). O jornal publicou sem modificações esta carta de Marx, nas suas edições de 1, 3 e 5 de fevereiro de 1865. Numa carta a Engels, de 25 de janeiro, Marx comentou: “Atendendo a um pedido urgente de Schweitzer (...) remeti-lhe, ontem, um artigo sobre Proudhon. Você verá que alguns golpes bem fortes, aparentemente dirigidos a Proudhon, atingem o nosso Aquiles, a quem eram destinados”. Aquiles é referência a Lassalle.
[2] Quando da publicação da carta, a redação do Social-Demokrat, aqui, introduziu a seguinte nota: “Consideramos preferível publicar a carta sem qualquer modificação”.
[3] Trata-se do ensaio de Proudhon sobre gramática comparada, publicado no volume de Bergier, Os elementos primitivos das línguas, Besançon, 1838.
[4] Trata-se do texto O que é a propriedade? (ou Pesquisas sobre o princípio do direito e do governo), Paris, 1840.
[5] Trata-se da obra An essay of the principle of population as it affects the future improvement of society, with remarks on the speculations of Mr. Godwin, Mr. Condorcet and others writes, Londres, 1798.
[6] Trata-se da obra de Brissot de Varville, Recherches philosophiques. Sur Le droit propriété ET sur Le vol, considérés dans la nature ET dans la société, publicada no volume 6 da Bibliothèque Philosophique du Législateur, du Politque, du Jurisconsulte, Berlim-Paris-Lyon, 1782.
[7] Marx refere-se à carta de Proudhon que se insere nos Anexos deste volume.
[8] Cf., neste volume, pp. 125-126.
[9] No texto Miséria da filosofia não figura o parênteses introduzido aqui por Marx. Cf. p. 142 deste volume.
[10] Idem.
[11] Cabet: socialista utópico francês, figura de relevo na orientação do movimento operário da França entre os anos de 1830 e 1840. Dunoyer: político e economista vulgar: a obra referida por Marx é De la liberté du travail, ou simple exposé des conditions dans lesquelle les forces humaines s
‘exercent avec le plus de puissance, Paris, 3 volumes, 1845. [12] A intervenção referida por Marx é o discurso de Proudhon à Assembleia Nacional, em 31 de julho de 1848: nele, Proudhon denuncia a repressão aos revolucionários de 23-26 de junho como violência e arbítrio.
[13] Contra as propostas que Proudhon fizera à Comissão Financeira da Assembleia Nacional, Thiers replicou num discurso pronunciado em 26 de julho de 1848. Na Nova Gazeta Renana, de 5 de agosto de 1848, Engels publicou um artigo em que analisava as posições de ambos os políticos (“Discurso de Thiers contra Proudhon”).
[14] Marx se refere ao volume Gratuité du crédit. Discussion entre M. Fr. Bastiat e M. Proudhon, Paris, 1850.
[15] Trata-se da obra Théorie de l’impôt (Question mise au concors par le Conseil d’État du canton de Vaud en 1860), Bruxelas-Paris, 1861.
[16] Em francês: pequeno-burguês puro e simples.
[17] Trata-se do livro La révolution sociale démonstrée par le coup d’État du 2 de décembre, Paris, 1852.
[18] Trata-se da obra Si les Traités de 1815 ont cessé d’exister? Actes du futur congrès, Paris, 1863. Nesta obra, Proudhon protesta contra a revisão do Tratado de 1815 (Congresso de Viena) sobre a Polônia e se volta contra o apoio europeu ao movimento de libertação dos poloneses face à opressão do tsarismo russo. Aliás, sobre a posição dos políticos franceses diante do problema polonês, Marx chegou a observar (em carta a Engels, de 10 de dezembro de 1864) “a permanente traição dos franceses para com a Polônia, de Luís XV a Bonaparte II”.
[19] Essa obra foi publicada em Londres, em dois volumes, em 1767.
[20] Em inglês: então em tudo.
[21] É bem claro que essas últimas frases visam Lassalle.
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MARX, K. “Carta a J. B. Schweitzer”. In: MARX. K.  A miséria da filosofia: resposta à Filosofia da miséria, do sr. Proudhon. Trad. José Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 259-269.
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segunda-feira, 17 de março de 2025

O marxismo ocidental de Slavoj Žižek


por Domenico Losurdo

I. O anti-imperialismo de Žižek

Se comparado com 1989 e os anos imediatamente posteriores, e se comparado com o período em que o discurso sobre a nada pranteada morte definitiva de Marx se tornara praticamente senso comum, o quadro ideológico de nossos dias se mostra bem diferente: é claro e crescente o interesse pelo grande pensador e revolucionário, e os autores que de uma maneira ou de outra a ele se referem gozam não raro de considerável prestígio e popularidade. Devemos, então, falar de uma recuperação do marxismo ocidental?

Recentemente, o expoente mais ilustre daquele que adora se autodefinir, sedutoramente, como o “marxismo ocidental libertário” saudou 2011 como “o ano do despertar da política radical de emancipação em todo o mundo”[1]. Verdade seja dita, o autor não demorou a admitir a desilusão em que logo recaiu. Mas abstraiamos os desenvolvimentos sucessivos e concentremo-nos no ano de 2011, saudado em termos tão lisonjeiros: sim, era o ano em que novos movimentos de protesto (Occupy Wall Street, Indignados etc.) pareciam se alastrar como fogo, mas também o ano em que a Otan deflagrava contra a Líbia uma guerra  que, depois de provocar dezenas de milhares de mortos, se encerrou com o terrível linchamento de Muammar Kadafi. O caráter neocolonial da agressão era reconhecido por respeitados órgãos da imprensa ocidental. No entanto, Hillary Clinton entregava-se a um júbilo tão excessivo (“nós viemos, nós vimos, ele morreu!”, we came, we saw, he died! — exclamava triunfante a então secretária de Estado), a ponto de provocar escrúpulos até num jornalista da Fox News: em sua opinião, esse entusiasmo por um crime de guerra era perturbador. Infelizmente, a infame empresa neocolonial aqui tratada não apenas não encontrou resistências de relevo no marxismo ocidental como, na Itália, foi legitimada por pelo menos uma figura histórica dessa corrente de pensamento[2].

Ainda em 2011, em Tel Aviv e em outras cidades israelenses, centenas de milhares de “indignados” acorriam às praças contra o alto custo de vida, os aluguéis exorbitantes etc., mas eram bem cautelosos quanto a discutir a persistente e acelerada colonização dos territórios palestinos: a “indignação” alertava para as crescentes dificuldades dos estratos populares da comunidade judaica, mas não julgava digna de atenção a interminável tragédia do povo submetido à ocupação militar. Assim descreve essa tragédia, numa prestigiosa revista estadunidense, um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém: ao menos no que se refere aos territórios palestinos ocupados, Israel é uma “etnocracia”, em última instância, um Estado racial.

A colonização das terras palestinas expropriadas pela força prossegue ininterrupta. Os que ousam protestar “são tratados com rigor, às vezes levados à prisão por longo período, às vezes mortos no decorrer das manifestações”. Tudo isso se insere no âmbito de “uma campanha impiedosa cujo objetivo é tornar a vida dos palestinos o mais miserável possível [...], na esperança de que eles vão embora”. É uma obra de limpeza étnica, ainda que diluída no tempo. Estamos diante de uma etnocracia tão dura que nos traz a memória os “tenebrosos precedentes da história do século passado”[3]. Apesar disso, os “indignados” com o alto custo de vida a que estão submetidos, mas indiferentes à cruel “etnocracia” imposta aos palestinos, foram celebrados por dois ilustres autores de orientação marxista como paladinos de uma nova sociedade, “baseada nas relações comunitárias”[4].

Seria 2011, então, “o ano dos despertar da política radical de emancipação em todo o mundo” (para citar Žižek), ou do despertar do ideal de uma sociedade “baseada nas relações comunitárias” (como disseram Hardt e Negri), ou ainda seria o ano em que os crimes colonialistas e neocolonialistas encontram o silêncio ou a conivência até dos ambientes tradicionais da esquerda? Ao traçarem seu balanço abstraindo completamente a sorte reservada aos povos coloniais, Žižek, Hardt e Negri reproduzem, ampliando-o ainda mais, o limite de fundo do marxismo ocidental. Desse ponto de vista, o sucesso de que sobretudo Žižek goza em nossos dias leva-nos pensar não numa recuperação, mas num último suspiro do marxismo ocidental.

O recalque da questão colonial é parte integrante da plataforma teórica e política do filósofo esloveno. Para ele, o mundo existente, anos-luz distante do Outro desejado ou sonhado, é dominado integralmente pelo capitalismo; não faria sentido distinguir as potências imperialistas e colonialistas dos países que há pouco tempo se libertaram do domínio colonial e que ainda, entre tentativas e erros, tentam superar o atraso, alcançar a plena independência também no plano econômico e atribuir-se instituições políticas adequadas às próprias condições econômico-sociais, bem como à própria situação geopolítica. Žižek não é menos hostil do que Arendt à categoria de Terceiro Mundo. Aliás, ele é mais radical. É contundente sua ironia em relação àqueles países que, embora façam referência a uma ideologia revolucionária e por vezes ao marxismo, agitam a bandeira do anti-imperialismo: a luta de classes já não teria como protagonistas “os capitalistas e o proletariado de cada país”, mas se desenvolveria num quadro internacional, contrapondo os Estados mais do que as classes sociais; dessa forma, a marxiana “crítica do capitalismo enquanto tal” se reduz e se deforma em “crítica do ‘imperialismo’”, que perde de vista o essencial, isto é, as relações capitalistas de produção[5].

Depois de tirar do caminho as categorias de Terceiro Mundo, imperialismo e anti-imperialismo, a única distinção sensata, no que diz respeito ao presente, seria a distinção entre “capitalismo autoritário” e não autoritário. Na primeira categoria deve ser incluída a China[6], mas podem ser inseridos também o Vietnã e talvez a própria Cuba, depois das recentes aberturas de mercado e à economia privada (ao menos tendencialmente capitalista). Seja como for, aqui devem ser inseridos os países da “América Latina”, marcados por um “capitalismo populista” inclinados ao caudilhismo e ao autoritarismo[7]. Se olharmos com atenção, de alguma maneira ressurge a distinção desprezada pelo filósofo esloveno, aquela entre Terceiro Mundo, de um lado, e Ocidente capitalista (e com tradições e persistentes tendências colonialistas), de outro. Só que agora tal distinção reaparece por glória exclusiva do Ocidente liberal, que se torna o modelo a ser seguido pelos países do Terceiro Mundo.

Em conclusão: o ponto de vista de Žižek não diverge da autoconsciência das classes dominantes na Europa e nos Estados Unidos. A constatação dessa convergência não é, por si só, uma contestação. É o próprio filósofo esloveno, porém, quem nos fornece essa contestação. Ele menciona a diretiva dada por Kissenger à CIA no intuito de desestabilizar o Chile de Salvador Allende (“Façam com que a economia grite de dor”) e destaca como tal política teve continuidade contra a Venezuela de Chávez[8]. Evita-se, porém, uma pergunta que naturalmente se impõe: por que a Venezuela de Chávez e Maduro deveria ser considerada mais “autoritária” do que o país que pretende a todo custo desestabilizá-la e subjugá-la e que pretende exercer sua ditadura na América Latina e no mundo? Claro, do ponto de vista da autoconsciência do Ocidente liberal, o despotismo ou o autoritarismo exercido contra os povos coloniais são irrelevantes. Com base nessa lógica, em seu discurso de posse do primeiro mandato presidencial, Bill Clinton celebrava os Estados Unidos como a mais antiga democracia do mundo: a escravização dos negros e a expropriação, deportação e dizimação dos nativos não mereciam nenhuma atenção. A uma abstração semelhante e igualmente arbitrária procede Žižek, que nem sequer se pergunta se o autoritarismo de Washington não estimula em alguma medida o autoritarismo de Caracas.

Pode-se fazer uma consideração de caráter geral: é muito estranha uma crítica do capitalismo que poupe os piores aspectos desse sistema, muito evidentes, segundo a lição de Marx, nas colônias. Não teria credibilidade uma crítica ao trabalho assalariado que silenciasse sobre o trabalho escravo, pois a história do trabalho escravo em suas diversas formas está em ampla medida ligada à história da opressão colonial. E certamente é enganosa uma crítica do “autoritarismo” como a de Žižek, que nos leva a menosprezar o “autoritarismo” praticado contra povos que, por decisão soberana de uma grande potência ou de uma coalizão de grandes potências, são submetidos a embargos devastadores ou a bombardeios e ocupação militar.

II. Žižek, o desprezo pela revolução anticolonial e a demonização de Mao

A desconsideração da luta entre colonialismo e anticolonialismo também se manifesta nos capítulos da história evocadas pelo filósofo esloveno. A propósito da revolução dos escravos negros de São Domingo/Haiti, ele observa que, depois da morte de Jean-Jacques Dessalinis, em 1806, esse evento sofre uma “regressão para uma nova forma de domínio hierárquico”[9]. A observação é correta se nos ativermos exclusivamente à política interna. No plano internacional, ao contrário, o cenário é bem diferente: mesmo sem conseguir estabilizar e superar a autocracia, o poder dos escravos ou ex-escravos continua a desempenhar uma função revolucionária: é Alexander Pétion, presidente entre 1806 e 1818, quem obtém de Simón Bolívar o compromisso com a libertação imediata dos escravos em troca de apoio à luta da América Latina pela independência da Espanha. Por outro lado, em defesa obstinada do instituto da escravidão, vemos a “democrática” república norte-americana, que, com um política de embargo ou de bloqueio naval, tenta impor a inanição ou a capitulação ao Haiti, o país que, não obstante o despotismo de seu regime político, encarna a causa do abolicionismo e da liberdade para os negros. Se quiséssemos utilizar o critério que Žižek estabelece para a leitura do presente, deveríamos dizer que o Haiti representava o “capitalismo autoritário”, ao passo que os Estados Unidos representavam o capitalismo mais ou menos “democrático". Contudo, tal leitura nos permite entender muito pouco tanto do presente quanto do passado, além de distorcer ambos.

Não menos unilateral é o juízo formulado pelo filósofo esloveno sobre a União Soviética que sucede a morte de Lênin. Limito-me aqui a reportar uma afirmação lapidar: “Heidegger erra quando reduz o Holocausto à produção unilateral de cadáveres; quem se reduziu a isso foi o comunismo stalinista, não o nazismo”[10]. Deixemos de lado o gosto pela provocação, tão caro a esse autor, que frequentemente parece apreciar mais pirotecnia do que os argumentos. O essencial não é isso: vimos eminentes historiadores caracterizar a agressão hitlerista do Leste como a maior guerra colonial de todos os tempos, uma guerra colonial contra a qual, já sabemos, Stálin se prepara mesmo antes da conquista do poder. Pois bem, o mínimo que se pode dizer é que o teórico do “marxismo ocidental libertário” não tem uma posição preliminarmente anticolonialista! Como ignora o papel internacional do Haiti, encarnação da causa abolicionista apesar de seu regime político despótico, também não dá nenhuma atenção ao papel internacional da União Soviética de Stálin, que, aniquilando a tentativa hitlerista de reduzir a Europa oriental a “Índias alemãs”, deu a sentença de morte para o sistema colonialista mundial (ao menos na sua forma clássica).

O mais significativo é o modo como Žižek se posiciona em relação a outro recente capítulo da história, aquele referente à China. No que concerne à gravíssima crise econômica e à terrível penúria provocadas ou seriamente aprofundadas pelo Grande Salto para a Frente de 1958-1959, ele fala com distraída desenvoltura sobre a “decisão de Mao de matar de fome dez milhões de pessoas no fim dos anos 1950”[11]. Quando vi essa afirmação pela primeira vez, fiquei estarrecido: a tradução italiana seria imprecisa ou muito enfática? Nada disso! A versão original também não dá margem a dúvidas e, na verdade, é ainda mais desconcertante: “Mao's ruthless decision to starve tens millions to death in the late 1950's[12]. No original se fala não de “dez milhões de pessoas", mas de “dezenas de milhões de pessoas"; provavelmente, o tradutor tentou salvaguardar o prestígio do autor que traduziu, redimensionando  seus arroubos. De qualquer modo, é preciso que fique claro: o motivo recorrente da campanha voltada a demonizar, junto com o líder que em Pequim exercia o poder por mais de um quarto de século, a República Popular da China enquanto tal, a república surgida da maior revolução anticolonial da história, tal motivo é reverberado sem nenhuma cautela crítica pelo mais famoso expoente do “marxismo ocidental libertário”!

Todavia,a acusação em questão não obtém crédito algum entre autores mais sérios. Até O livro negro do comunismo, embora insistindo nas proporções colossais do desastre, reconhece que o “objetivo de Mao não era matar em massa seus compatriotas”[13]. Eminentes homens de Estado ocidentais também se recusavam a cavalgar o cavalo de batalha da incipiente guerra fria contra o grande país asiático. Numa entrevista ao jornal semanal Die Zeit, o ex-chanceler alemão Helmut Schmidt fez questão de destacar o caráter não intencional da tragédia que o Grande Salto para a Frente provocou em sua época[14]. De modo análogo argumentou Kissinger: de fato, tratou-se de “uma das piores crises de penúria da história humana”[15]. Mesmo assim, Mao se propunha acelerar ao máximo “o desenvolvimento industrial e agrícola" da China, pretendia alcançar o Ocidente em curto período e, desse modo, obter uma condição de bem-estar difuso e generalizado. Em suma, segundo o ilustre estudioso e político estadunidense, Mao “novamente chamara o povo chinês a mover montanhas, mas desta vez as montanhas não se mexeram”.

Ainda que marcada pela honestidade e seriedade intelectual, as tomadas de posição anteriormente reportadas apresentam um limite: ignoram o contexto histórico em que se insere o Grande Salto para a Frente e que remete à longa duração da luta entre colonialismo e anticolonialismo. Já conhcecemos a preocupação expressa por Mao às vésperas da proclamação da República Popular da China: o país, apesar do respaldo da gloriosa luta de libertação nacional, corria o risco de depender economicamente dos Estados Unidos e, portanto, de se tornar uma semicolônia.

Com efeito, as diretivas da administração Truman eram ao mesmo tempo claras e impiedosas: já em condições desesperadoras devido a décadas de guerra e de guerra civil, a República Popular da China, não admitida na ONU e cercada e ameaçada no plano militar, devia ser submetida a uma guerra econômica que a conduziria rumo a uma “situação econômica catastrófica”, “rumo ao desastre” e ao “colapso”. Isso também provocaria a derrota do Partido Comunista Chinês, que até aquele momento governara somente áreas rurais mais ou menos extensas e, portanto, padecia de uma total “inexperiência” no que se referia ao “campo da economia urbana". Era dessa condição de extrema fragilidade econômica e de potencial queda ou recaída numa condição de dependência semicolonial que Mao tentava escapar, recorrendo a uma mobilização de massas de tipo militar em que dezenas de milhões de camponeses, embora semianalfabetos, com seu entusiasmo revolucionário, deveriam imprimir uma prodigiosa aceleração ao desenvolvimento econômico.

Na realidade, com sua impaciência e com sua inexperiência no “campo da economia urbana”, o líder chinês acabou caindo na armadilha preparada contra ele por seus inimigos. O resultado foi a catástrofe. Um fato, porém, dá o que pensar: no início dos anos 1960, um colaborador da administração Kennedy, a saber, Walt. W. Rostow, vangloriava-se do triunfo dos Estados Unidos, que tinham conseguido atrasar o desenvolvimento econômico da China por “décadas”. Isto é, a penúria que se seguiu ao Grande Salto para a Frente de 1958-1959 não era atribuída à suposta fúria homicida de Mao, mas sim à sabedoria maquiavélica da política perseguida por Washington[16].

Concluindo: Margolin, Schmidt e Kissinger erram ao não inserir claramente o desastroso experimento utopista de Mao na história da tragédia colonial iniciada com as guerras do ópio e ainda  em pleno desenvolvimento nos anos do Grande Salto para a Frente. No entanto, é Žižek que, omitindo tanto a luta entre colonialismo e anticolonialismo quanto a corrida frenética de Mao para escapar da desesperada miséria de massa resultante da agressão e do domínio colonial, atribui tudo à loucura homicida do líder chinês.

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Notas:
[1] Slavoj Žižek, In difesa delle cause perse (trad. Cinzia Arruzza, Milão, Salani, 2009), p. 255 [ed. bras.: Em defesa das causas perdidas, trad. Maria Beatriz Medina, São Paulo, Boitempo, 2011]; e Un anno sognato pericolosamente (trad. Carlo Salzani, Milão, Salani, 2012), p. 163 [ed. bras.: O ano em que sonhamos perigosamente, trad. Rogério Bettoni, São Paulo, Boitempo, 2012].
[2] Ver, neste volume, cap. 5, § 7.
[3] David Shulman,
“Israel in Peril”, The New York Review of Books, 7 jun. 2012.
[4] Michael Hardt e Antonio Negri, Questo non è un manifesto (Milão, Feltrinelli, 2012), p. 66. 
[5] Slavoj Žižek,
“Mao Tse-ting, the Marxist Lord of Misrule”, em Mao. On Practice and Contradiction (Londres, Verso, 2007), p. 2 e 5.
[6] Idem,
“De la démocratie à la violence divine”, em Giorgio Agamben et al, Démocratie, dans quell état? (Paris, La Fabrique, 2009), p. 131. 
[7] Idem, In difesa delle cause perse, cit., p. 450.
[8] Domenico Losurdo, La lotta di classe: una storia politica e filosofica (Roma/Bari, Laterza, 2011), cap. 9, § 7 [ed. bras.: A luta de classes: uma história política e filosófica, trad. Silvia de Bernardinis, São Paulo, Boitempo, 2015].
[9] Slavoj Žižek, Dalla tragedia alla farsa (trad. Cinzia Arruzza, Florença, Ponte alle Grazie, 2010 [2009]), p. 159 [ed. bras.: Primeiro como tragédia, depois como farsa, trad. Maria Beatriz de Medina, São Paulo, Boitempo, 2009].
[10] Idem, “Mao Tse-tung, the Marxist Lord of Misrule”, cit., p. 10.
[11] Idem, In difesa delle cause perse, cit., p. 212.
[12] Idem, In Defense of Lost Causes (Londres/Nova York, Verso, 2008), p. 169.
[13] Jean-Louis Margolin, “Cina: una lunga marcia nella note” (1997), em Stéphane Courtois et. al., Il libro nero del comunismo. Crimini - terrore - repressione (trad. Luisa Agnese Dalla Fontana, Milão, Mondadori, 1998), p. 456.
[14] Giovanni di Lorenzo, “Verstehen Sie das, Herr Schmidt?” (entrevista a Helmut Schmidt), Die Zeit, 13 set. 2012.
[15] Henry Kissinger, On China, (Nova York, The Penguin Press, 2011), p. 107 e 183-4. 
[16] Domenico Losurdo, Il revisionismo storico: problemi e miti (Roma/Bari, Laterza, 2015), cap. 6, § 10 [ed. bras.: Guerra e revolução: o mundo um século após outubro de 1917, trad. Ana Maria Chiarini e Diego Silva Coelho Ferreira, São Paulo, Boitempo, 2017].
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LOSURDO, D. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. Trad. Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 165-172.
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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

História idealista em Max Weber: o finalismo histórico



por Ranieri Carli

A crítica burguesa à teoria social marxista alimenta-se de alguns chavões e um dos mais constantes talvez seja associar a Marx uma concepção teleológica da história. Em verdade, é necessário que se diga prontamente que uma teleologia da história é possível de se encontrar em Weber e não em Marx. Ellen Wood discerne:

Foi Weber, e não Marx, quem viu o mundo através do prisma da concepção unilinear, teleológica e eurocêntrica da história, que Marx, mais que qualquer outro pensador ocidental, tentou erradicar. Longe de levar a teoria social a superar as imperfeições do determinismo marxista, Weber a reduziu a uma teleologia pré-marxista, em que toda a história é um movimento no mais das vezes tendencioso em favor do capitalismo, em que o destino capitalista é sempre percebido nos movimentos da história, e em que as diferenças entre as várias formas sociais estão relacionadas aos modos particulares com que incentivam ou obstruem o movimento histórico único (2003: 129).

Nos Gründrisse, Marx afirma a necessidade metodológica de se partir das categorias da sociedade então mais desenvolvida para se capturar a anatomia das sociedades remotas. Parte-se do resultado do processo (a economia burguesa) para lançar luz sobre os aspectos progressistas das formações societárias anteriores. Quanto de relevância histórica adquirem as manufaturas durante o feudalismo, por exemplo, no instante em que se constata que ali nasceu o capital industrial. É claro, esta análise só pode ser feita post festum. O que Marx não permite é que as categorias da sociedade burguesa sejam assim generalizadas para todo o devir do homem. Ele mesmo adiciona à ideia de que a economia burguesa oferece a chave para a apreensão da anatomia das sociedades remotas: “porém não certamente do modo dos economistas, que cancelam todas as diferenças históricas e veem a forma burguesa em todas as formas societárias. Pode-se compreender o tributo, o dízimo, etc., quando se conhece a renda da terra. Mas não se deve identificá-los” (2001: 26). Marx não se esquece de assinalar que as relações capitalistas de produção podem encerrar determinados aspectos herdados de tempos anteriores, como a produção comunal. No entanto, há que se frisar: “elas [as relações burguesas] podem conter estas formas de um modo desenvolvido, atrofiado, caricaturado, etc., porém a diferença será sempre essencial” (Marx, idem: 27). Isso é de imensa importância: a diferença será sempre o essencial. Para a teoria social marxista, o comum entre as formações históricas é o acessório; o essencial é aquilo que as particulariza uma em face da outra.

A crítica de Marx às generalizações abusivas da economia vulgar torna-se mais incisiva em O capital. Segundo Marx, a apologia à sociedade burguesa costuma partir do ponto de vista da mera circulação de mercadorias, quando, na verdade, o método correto seria assumir o ponto de vista do processo de produção. Com este procedimento, a ciência apologética “procura negar as contradições do processo capitalista, reduzindo as relações de seus agentes de produção às relações mais simples que decorrem da circulação das mercadorias” (Marx, 2002: 141). Marx explica que “produção e circulação de mercadorias são, porém, fenômenos que sucedem nos mais diferentes modos de produção, embora com extensão e importância diversas” (idem: 141). A apologia direta ao capital consiste em tomar essas relações abstratas precisamente em seu caráter abstrato: “quando se conhecem apenas as categorias abstratas da circulação, comuns a todos esses modos de produção, é impossível saber qualquer coisa sobre as diferenças características desses modos de produção, não havendo condições para julgá-los” (Marx, idem: 141).

Serve em Weber com toda sua justeza a crítica aos apologistas construída por Marx. Não é difícil de localizar ao longo da obra de Weber a ideia de que as antigas formações sociais não passam de antecipações do que chama de capitalismo racional moderno. Em primeiro lugar, em História geral da economia, Weber define o seu tipo-ideal de capitalismo: “o capitalismo existe onde quer que se realize a satisfação de necessidades de um grupo humano, com caráter lucrativo e por meio de empresas, qualquer que seja a necessidade que se trate” (1968: 249). Qualquer usurário aparece assim como as relações capitalistas de produção projetadas no tempo. É capitalista o homem que entra no mercado com a quantia X e sai com X+1, esteja ele no passado, presente ou futuro. Com este conceito, é fato que Weber atem-se apenas à epiderme da experiência. Mas o sociólogo não é o único. Lujo Brentano lhe faz companhia. Para o economista alemão (que se guia por Werner Sombart), empresa capitalista é a forma econômica que possui o objetivo de aumentar o valor dos bens reais através de uma série de contratos de prestações e contraprestações medidas em dinheiro, e o regime capitalista é aquele em que a empresa capitalista constitui a específica forma econômica (cf. Brentano, 1968: 21). Weber, Brentano e tantos outros tomam as categorias epidérmicas das instituições burguesas como se fossem as características mais peculiares de suas relações de produção.

Mészáros utiliza o tipo-ideal weberiano de capitalismo para colocar em xeque a pretensa “neutralidade axiológica” de seu autor. Lembrem-se de que Weber pretendia-se “neutro” ao criar este tipo (ou qualquer outro). Mészáros distingue muitos elementos a propósito da questão e vamos listar alguns: 1) Weber escolhe definir o capitalismo em termos de uma cultura privada, fomentos de empresas, preterindo alternativas possíveis como “modo de produção”, por exemplo; 2) nada se diz acerca dos fundamentos históricos em que a satisfação das necessidades surge para o homem; 3) o “caráter lucrativo” encobre as relações de exploração da mais-valia entre capital e trabalho; 4) está oculto o fato de que não é só o investimento empresarial, mas também o estatal que caracteriza o capitalismo. Mészáros seleciona outras tantas abstrações do tipo-ideal de capitalismo feito por Weber. O principal é que está problematizada a “neutralidade” do conceito. De forma cabal, o crítico marxista determina que se pode contrapor à definição weberiana esta seguinte: “‘o capitalismo é um modo de produção caracterizado pela extração de mais-valia para efeito de produção e reprodução do capital em escala sempre crescente’. Fica para o leitor decidir qual das duas definições é mais ‘ideológica’” (1993: 29, 30). De fato, deve-se decidir por uma das duas definições porque “não são complementares, mas diametralmente opostas uma à outra: o que absolutamente não seria o caso, se fosse válida a afirmação de Weber quanto ao caráter ‘puramente lógico’ e ‘axiologicamente neutro’ de seus ‘tipos ideais (Mészáros, idem: 30).

Os problemas não se limitam à natureza epidérmica e apologética do conceito de capitalismo em Weber. Na sequência àquela definição que vimos acima, o nosso autor generaliza o seu tipo-ideal para as demais épocas históricas:

O capitalismo se nos apresenta em forma diferente nos diversos períodos da história, porém a satisfação das necessidades cotidianas, baseada em técnicas capitalistas, só é peculiar no Ocidente... O que registramos em séculos anteriores, numa espécie de antecipação, são simples pródromos (Weber, 1968: 250).

São simples e nada mais do que preâmbulos os demais estágios de desenvolvimento do homem. São antecipações que desembocaram inevitavelmente no atual “capitalismo moderno”. Toda a história mundial é compreendida como um trajeto fatal rumo à época capitalista. A pré-história do capitalismo atual é apenas “um simples pródromo” na teleologia designada a resultar na sociedade burguesa. Por isso, repetimos: a crítica que Marx construiu visando atingir os apologistas da sociedade burguesa serve em Weber com todas as suas proporções.
 
Quando captura a história a partir das categorias da sociedade mais desenvolvida, Marx não subtrai as transformações dinâmicas que culminaram na formação social que provisoriamente está no cume do processo evolutivo. Em seu tempo, Weber toma a sociedade burguesa e apaga as particularidades dos modos de produção que lhe precederam; todos não passam de meras “antecipações”. Os diversos estágios de desenvolvimento do ser social, para Marx, possuem sua própria dinâmica interna, sua peculiar totalidade de complexos, suas categorias e estrutura autônoma; uma categoria como “escravidão” pertence à determinada particularidade histórica, e o mesmo se diz para “vassalagem” e “trabalho assalariado”. Para Weber, os demais estágios da evolução humana são apenas tendências que obstruem ou favorecem em maior ou menor grau o destino único rumo ao nascimento do capitalismo moderno ocidental; uma categoria como “capital” pertence a toda e qualquer etapa societária.

Ainda que demarque certos aspectos abstratos de diferenciação histórica, Weber sente-se à vontade para escrever em A ética protestante e o espírito do capitalismo que “‘capitalismo’ existiu na China, na Índia, na Babilônia, na Antiguidade e na Idade Média” (2004b: 45).

É curioso o modo pelo qual são descobertas por Weber as relações capitalistas na Antiguidade romana. A preocupação é compreender até que ponto as leis facilitavam o empreendimento capitalista, um problema que Weber procurava resolver desde os primeiros anos de academia, conforme atesta a sua dissertação (cf. Weber, 2003a). Posteriormente, na História agrária romana, o sociólogo estuda as legislações que versam sobre a propriedade fundiária e encontra-se com o ager publicus, que, segundo ele, desvinculava a propriedade da terra de seu caráter individual (cf. Weber, 1994: 98). Por meio desta lei, estavam concedidos à livre iniciativa a concessão e o usufruto das terras do Estado; a legislação do ager publicus teria incentivado a livre concorrência pela posse da terra pública. Então, Weber presume:

Com toda probabilidade, conforme a natureza dos compromissos da época, estabeleceu-se uma igualdade jurídica de todos os cidadãos ante a terra pública com a concessão geral da liberdade de pastoreio e de ocupação, e tentou-se mascarar, na medida do possível, esse impulso ao capitalismo com a introdução, ao menos em teoria, da obrigatoriedade de um tributo. De fato, observou-se frequentemente que essa livre concorrência não pode ter beneficiado os pequenos proprietários, mas, antes, os grandes capitalistas patrícios ou plebeus; em suma, ela representou o mais desenfreado capitalismo agrário da história (1994: 106).

Na realidade da Roma antiga, Weber deparou-se com o “mais desenfreado capitalismo agrário da história”. O ager publicus equiparou os homens em face das leis — aliás, como sempre quis o liberalismo burguês. A livre concorrência liberal teria aberto as vias que impulsionaram o capitalismo romano nas terras públicas, cuja expansão jamais foi repetida na história. Tentou-se freá-lo com a cobrança de tributos, o que favoreceu os “grandes capitalistas patrícios ou plebeus”; mas, de qualquer forma, não foi suficiente. Weber julga que a livre concorrência do ager publicus representou o mais desenfreado capitalismo agrário da história.

A análise do “capitalismo agrário romano” prossegue: “durante toda a era republicana, continuaram levantando-se vozes que reclamavam a divisão do ager publicus, mas essas vozes perderam sua justificativa íntima quando a massa dos proletários, que as havia erguido, perdeu pouco a pouco suas antigas características” (Weber, 1994: 107). A “massa proletária” da Roma antiga, que se opôs ao ager publicus e ao “capitalismo desenfreado”, foi gradativamente perdendo voz porque perdeu sua identidade, suas antigas características que a uniam em torno de interesses práticos. Roma deixava de ser uma cidade com amplas terras a serem ocupadas; “enquanto Roma ia assumindo cada vez mais o caráter de grande metrópole, o proletariado perdeu sua energia expansiva; concentrou-se numa plebe urbana de tipo moderno” (Weber, idem: 107).

Como se Weber estivesse tratando da Roma do século XX. Sob a égide do “mais desenfreado capitalismo”, a “massa dos proletários” desenvolveu-se em uma “plebe urbana de tipo moderno”. Não se iludam: o tema daquele livro é a história agrária romana da Antiguidade. Livre iniciativa, legislação liberal, concorrência de mercado, grande capital latifundiário, massa proletária de tipo moderno e capitalismo agrário: são categorias que Weber extrai da sociedade burguesa e projeta para a realidade da Antiguidade. Olha-se para o passado remoto e descobre-se a sociedade do presente. A sua teleologia da história possibilita tais exacerbações. Cancelam-se as diferenças e encontra-se a forma atual de sociabilidade no conjunto extensivo da história.

Não pensem que isso se deve à juventude de História agrária romana[1]. Na maturidade de Economia e sociedade, estas ideias foram retomadas e acentuadas com outros componentes. Desta vez, Weber afirma explicitamente que o império romano foi a primeira amostra do capitalismo imperialista: “a expansão ultramarina de Roma... mostra — pela primeira vez na história de forma tão marcante e, ao mesmo tempo, em escala gigantesca — traços que, desde então, semelhantes em seus elementos fundamentais, apresentam-se sempre de novo, até hoje” (1999: 168). Os traços vistos na expansão romana apresentam-se repetidamente na história. Nietzsche arremataria completando que, por isso, a história é um eterno retorno. Weber expõe os elementos que vê na antiga Roma e que se repetem ininterruptamente: “são próprios de um tipo específico, apesar de não se distinguir claramente de outros tipos de relações capitalistas — ou melhor: oferecem-lhe condições de existência — que denominaremos capitalismo imperialista” (idem: 168). Não só houve capitalismo na Antiguidade romana como este capitalismo foi de espécie especificamente imperialista. Os aspectos gerais que estariam presentes em Roma e que se reiteram em giros circulares são estes: “trata-se dos interesses capitalistas de arrendatários de impostos, credores do Estado, fornecedores ao Estado, capitalistas do comércio exterior e coloniais estatalmente privilegiados” (Weber, idem: 168). São traços que sempre retornam à história ao infinito. Não foram poupadas abstrações na tarefa de eternizar para a história as relações da fase monopolista do capital.

Continuemos com Weber a buscar a “ação capitalista” entre os povos da Antiguidade. No Judaísmo antigo, outro livro da maturidade, Weber estuda a conduta religiosa dos judeus no período anterior à diáspora e percebe também ali uma espécie de capitalismo. Eis que igualmente houve capitalismo no antigo Oriente Médio. O interessante nome que Weber lhe dá é “capitalismo pária judeu”. Constituía-se da prática da usura e do comércio com os não-judeus, os homens que não pertenciam aos guetos judaicos. Lembrem-se de que a presença de um simples usurário é pretexto para que Weber transponha as relações capitalistas para as formações socioeconômicas passadas. Apesar de “sentirem-se em casa em várias formas de capitalismo”, os judeus “falharam ao desenvolver os traços específicos do capitalismo moderno. Isto é verdade para a Antiguidade, a Idade Média e os tempos modernos” (Weber, 1967: 345). Dada a especificidade do “capitalismo pária”, os judeus não anteciparam as linhas do capital moderno, estivessem eles entre os antigos, medievais ou modernos. Repete-se o que disse Ellen Wood no início do item, Weber analisa a história para encontrar barreiras ou incentivos ao desenvolvimento do capitalismo moderno ocidental[2].

Após toda esta exegese, não é de se admirar que as abstrações desmesuradas de Weber levem-no a estender as relações capitalistas até a distante China antiga:

Durante o Período dos Reinos Guerreiros e suas lutas por poder político, existiu um capitalismo de provedores de empréstimo monetário, que era politicamente determinado e aparentemente muito significativo. Altas taxas de lucro pareciam ser a regra. Na China, como em outros Estados patrimoniais, este tipo de capitalismo era costumeiro. Somando a estas transações politicamente determinadas, a extração e o comércio são mencionados como fontes de acumulação de bens. Dizem terem existido multimilionários sob a dinastia Han (no padrão do cobre). Quando a China unificou-se politicamente em um império mundial, como o orbis terrarum unificado do Império Romano, o resultado foi um óbvio retrocesso deste capitalismo, essencialmente vinculado à competição entre Estados. Por outro lado, o desenvolvimento do mercado capitalista puro, de busca por livres oportunidades de comércio, era apenas rudimentar (Weber, 1968a: 84).

Acreditamos não ser preciso rediscutir a natureza excessiva das projeções weberianas. À guisa de esclarecimento, a citada dinastia Han perdurou de 206 a.C. ao ano de 220 d.C.

Essas tamanhas abstrações, no entanto, são lidas da pena de autor que escreveu um dia: “nada seria mais perigoso que representar as condições da Antiguidade em uma feição ‘moderna’. Aquele que o faz subestima a variedade das formas que a Idade Média nos produziu, precisamente à sua maneira, no domínio do direito do capital” (Weber, 2001: 96). Estas palavras pertencem à obra que recebeu o titulo original de Relações agrárias na Antiguidade. Haveria perigo em se representar a Antiguidade a partir das categorias “modernas”; isso seria subestimar a variedade histórica. Sugere-se que, no livro de 1909, Weber será menos epidérmico do que no restante de sua extensa produção teórica; dessa vez, não se subestimará a variação das formas históricas. Apesar da aparente cautela, o ponto de vista burguês termina por prevalecer na leitura que Weber produz dos povos antigos neste estudo; é o que justifica a colocação de uma pergunta como esta: “a Antiguidade conheceu a economia capitalista a um grau que seja significativo do ponto de vista da história mundial?” (Weber, idem: 98). Quando Weber fala acerca do “ponto de vista da história mundial”, que se ouça, em verdade, do “ponto de vista da sociedade burguesa”. Com idas e vindas, Weber prescinde da cautela inicial e conclui afirmativamente que “o caráter amplamente ‘capitalista’ de épocas inteiras da história antiga (e precisamente das ‘maiores’ épocas) parece então de todo assegurado” (idem: 101). Épocas inteiras dos povos antigos foram de caráter “capitalista”. Com transparência meridiana, Weber reconheceu que é perfeitamente possível de assegurar a ocorrência das relações capitalistas em etapas distintas da evolução do ser social, se o conceito de capitalismo for “puramente econômico”, “se não se limite, não sem motivo, o conceito de ‘economia capitalista’ ao modo determinado de valorização do capital, isto é, a exploração do trabalho alheio mediante um contrato com o trabalhador ‘livre’, se não se inserirem determinações sociais no conceito” (Weber, idem: 101). Concordamos integralmente com o escrito weberiano: caso não se apreendam as determinações sociais do modo de produção capitalista, caso não se restrinja a produção capitalista à valorização do capital por meio da extração de mais-valia do trabalhador “livre” para vender sua força de trabalho, então é fácil de assegurar a presença do capitalismo na Antiguidade.

Na Antiguidade manifestam-se relações capitalistas. E do mesmo modo no feudalismo. Em História geral da economia, Weber começa o parágrafo que se chama “desenvolvimento capitalista do regime feudal” com o seguinte dizer: “o sistema feudal, determinado por fatores militares, e concebido, a princípio, para assegurar aos senhores a exploração das terras e da mão-de-obra, demonstrou uma forte tendência a orientar-se no sentido capitalista” (1968: 92). O sentido capitalista das relações feudais seria claro nas plantações sob a forma de “fazendas”. A peculiaridade do estudo weberiano sobre a economia dos latifúndios feudais é que os exemplos históricos trazidos às páginas iniciais são concernentes a Inglaterra dos séculos XVI e XVII, quando, em verdade, se avança o processo de acumulação primitiva do capital. Ao longo do texto, outros fatos são reportados, como a organização econômica da Rússia feudal, com os quais Weber tenta provar a existência das instituições capitalistas durante o feudalismo. A conceitualização equivocada coloca em xeque a estrutura da História geral da economia, um livro riquíssimo nos detalhes e, por isso, imprescindível para o conhecimento das relações sociais de produção historicamente constituídas.

A descoberta do “capitalismo medieval” não fez com que Weber se abstivesse de reproduzir a vulgata burguesa que entende a Idade Média como um interlúdio de trevas entre a Antiguidade e a “civilização burguesa moderna”. Weber sustenta que a queda do império romano implicou a queda da antiga economia urbana. Com o término do “ciclo do desenvolvimento econômico” dos povos antigos, “seu gênio criador parece completamente exaurido. Com o comércio, submergiu o esplendor dos mármores das cidades antigas e, com elas, todas as riquezas espirituais que nela repousavam: a arte e a literatura, a ciência e as formas refinadas do direito comercial antigo” (Weber, 2001: 82). O fim da grande civilização antiga implicou o retorno para o campo: “a civilização torna-se rural” (Weber, idem: 82). A economia perde seu caráter “burguês urbano” e parte rumo ao feudalismo, à autoridade despótica dos senhores fundiários. “Deste modo, desaparece o véu da civilização antiga e a vida espiritual da humanidade ocidental mergulha em uma longa noite” (Weber, idem: 82). Se um dos autores clássicos acordasse em qualquer dos mosteiros medievais, consideraria tudo estranho: “ele seria assaltado pelo odor do esterco do domínio feudal” (Weber, idem: 83). Entretanto, após a longa noite do feudalismo, o homem retorna à claridade diurna com a sociedade burguesa. Apenas com o desenvolvimento da burguesia urbana durante a Idade Média, “os velhos gigantes armaram-se de novas forças e o testamento espiritual da Antiguidade foi revivido à luz da moderna civilização burguesa” (Weber, idem: 83).

Afinal, as passagens acima são suficientes para demonstrar que, para a interpretação teleológica da história em Weber, haveria relações capitalistas em todo o tempo e lugar. Basta que alguém atue em busca do lucro para que o capitalismo esteja presente.
 
Falamos do capitalismo que Weber transpõe para o passado, mas não ainda daquele previsto para o futuro. Isso se clarifica de melhor forma com a análise que o sociólogo faz da burocracia. E aqui nos ocuparemos bastante do tema. A natureza teleológica que Weber imputa ao devir histórico não possuiria melhor estampa do que as suas teses acerca da “liderança burocrática”. A fundamental característica dos burocratas seria a extrema “racionalidade” com que executam as tarefas; o aparato burocrático desenvolve sua peculiaridade “com tanto maior perfeição quanto mais se ‘desumaniza’, vale dizer, quanto mais perfeitamente consegue realizar aquela qualidade específica que é louvada como sua virtude” (Weber, 1999: 213). Weber fala especificamente da “eliminação do amor, do ódio e de todos os elementos sentimentais, puramente pessoais e, de modo geral, irracionais, que se subtraem ao cálculo, na execução das tarefas oficiais” (idem: 213). Com este modelo de ação racional relativa a fins, “esta burocracia pode operar muito melhor do que qualquer outra estrutura de dominação” (Weber, 1974: 31).

O verdadeiro triunfo do cálculo burocrático é observado por Weber nas indústrias que se guiam pela organização “científica” do trabalho. Os delineamentos da “gerência científica” são descritos em Economia e sociedade:

O aparelho psicofísico do homem é aqui completamente adaptado às exigências do mundo externo, do instrumento, da máquina ou, em uma palavra, da função, despojado de seu ritmo dado por sua própria estrutura orgânica e submetido a um novo ritmo que, depois da análise sistemática das funções de cada músculo e da criação de uma ótima economia de forças, corresponde perfeitamente às condições do trabalho (Weber, 1999: 362).

Weber dá a este processo a denominação de “adestramento e treinamento do trabalho produtivo”. Em verdade, são as modalidades de exploração capitalista da força de trabalho que ficaram associadas ao nome de Taylor. Para Weber, são apenas métodos racionais de medição do “ótimo de rentabilidade” de cada trabalhador individual (cf. Weber, 1999: 362).

A burocratização da vida social é uma tendência que Weber qualifica como “inevitável”; em Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída, trata-se “do avanço irresistível da burocratização” (Weber, 1974: 32). Detém uma natureza teleológica e não haveria exército que impedisse o seu triunfo. E, caso fosse tentada uma revolução que instituísse uma sociabilidade para além dos limites do capital, Weber avisa: “a burocracia estatal reinaria absoluta se o capitalismo fosse eliminado. As burocracias privada e pública, que agora funcionam lado a lado, e potencialmente uma contra a outra, assim restringem-se mutuamente até certo ponto, fundir-se-iam numa única hierarquia” (idem: 31). Weber aprecia que, durante a vigência do capital, as burocracias estatal e privada atuam em paralelo e limitam-se reciprocamente; a derrocada do capitalismo só faria congregar as duas modalidades de burocracia, o que ampliaria a força do império burocrático. A eliminação do capitalismo instituiria o reino absoluto da burocracia. Na letra de Weber, a luta contra a burocracia seria então uma luta inglória, fadada ao fracasso.
 
Em meio às ideias de Weber, é necessário ter atenção sobre o que está em jogo quando se lê acerca da inexorabilidade da burocratização. Com efeito, o que Weber promove em sua teoria é uma generalização de seu próprio tempo histórico:
 
O ponto mais discutível de suas ideias é, sem dúvida, a afirmação — que é o cerne de sua “sociologia política” e o resultado de uma abstração injustificável e de uma “desistorização da História” — do destino burocratizado dos tempos modernos, ou seja, de que “o futuro pertence à burocratização”. Mas esse ponto, na verdade, nada mais reflete do que a generalização da experiência alemã por parte de Weber, em primeiro lugar para o capitalismo em geral e, depois, para o conjunto da humanidade (Nogueira, 1977: 146).

A teoria weberiana encoberta o fato de que a burocratização da vida social é uma característica do estágio monopolista do capital, em que não só a produção mas todas as esferas da cotidianidade são reificadas, o que demanda o controle burocrático, a manipulação do consumo inteiro dos homens. “A disciplina burocrática transcende o domínio do trabalho para regular a vida inteira de quase todos os homens, do útero à cova” (Netto, 1981: 82). O caso da Alemanha é ainda de maior dimensão haja vista o forte peso adquirido pelo Estado prussiano de Bismarck. As determinações de classe do movimento de regulação da vida cotidiana não são levadas em conta pela teleologia da história de Weber. A fase imperialista do capital particularizada na Alemanha é o período histórico que Weber transforma em inevitável necessidade, encontrando antecipações suas desde a Antiguidade (Egito, Roma, China, Pérsia, Esparta, etc.) e fazendo-o perdurar até as sociedades do futuro.

Ao contrário do que relata acima Marco Aurélio Nogueira, a generalização de um período histórico por parte de Weber não é uma “abstração injustificável”. Não paira a menor dúvida de que seja uma enorme abstração; porém, que se justifica pelo fato de que Weber atuava dentro das fronteiras objetivamente postas pelas lutas de classe de seu tempo. Para a burguesia do pós-1848, qualquer abstração era justificável caso fosse conveniente à conservação do estado de coisas.

Uma constante no processo de decadência ideológica da burguesia é o convite à resignação. Com Schelling, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e outros decadentes, foram vistas algumas formas de se educar o homem para a passividade. À sua maneira, Weber apresenta uma forma de resignação pessimista e de apologia indireta do capital: a burocratização da vida moderna é uma “jaula de ferro” que, embora aprisione os indivíduos, não é reversível. A racionalidade da vida social caminha sem perturbações e que os homens deixem-se levar. São os “malefícios” da sociedade burguesa alçados à condição humana inelutável.
 
No passado (Antiguidade e Idade Média), Weber via formas do capitalismo que impediam ou antecipavam os traços racionais da “ação de se obter lucro”; no presente, está em vigência o capitalismo de específico caráter racional; e no futuro, a racionalidade burocrática do capital persistirá em vigor.

É profundamente mistificador perder de vista o caráter teleológico que Weber atribui à racionalidade do capital quando se analisa a sua relação com a tese do fetichismo da mercadoria descrita por Marx. Para o bem dos fatos, deve-se rejeitar categoricamente a seguinte observação: “entre a ‘racionalização’ de Weber e a ‘alienação’ de Marx, a distância não é grande” (Colliot-Thélène, 1995: 48). O inverso é o verdadeiro: a distância é abismal. Dissemos acima que Weber apreende traços imediatos do processo de reificação do cotidiano no período do capitalismo monopolista, transformando-os em eternos. Marx abarca a totalidade contraditória das relações capitalistas dentro de seu processo histórico de gênese, desenvolvimento, crise e possibilidades concretas de superação. Weber não pretendia unir a ciência à ação, mas, se fosse o caso, uma crítica técnica reparadora é o máximo de prática que as suas teses permitiriam; a crítica resignada ao capital não pretende a sua superação, senão sua apologia indireta. É ocioso recordar que Marx concebe uma autêntica crítica revolucionária à sociedade burguesa; a transformação radical do modo de produção capitalista é o máximo de ação prática que as teses marxistas permitem. Colliot-Thélène não considera esses grandes pontos de discordância ao afirmar que a racionalização em Weber não distancia em muito da alienação em Marx.

A socióloga não é única a afirmar o íntimo parentesco entre Marx e Weber. Beetham sugere que existem “ecos” do “conceito de alienação de Marx” em Weber no instante em que este último afirma que a racionalização assume “forças e valores próprios”, independentes do homem (cf. Beetham, 1974: 71). Há inclusive quem sustente que é “consensual” a afinidade entre os dois: “[há] um consenso (embora frágil) que existe um certo paralelo entre a visão de Weber sobre a racionalidade e a visão de Marx sobre a alienação, que existem muitos pontos pacíficos entre Marx e Weber na conceitualização do capitalismo” (Holton & Turner, 1990: 17, 18). Nunca é demais recordar que este consenso não nos inclui.

Até mesmo nos instantes que Weber parece reproduzir algumas determinações capturadas por Marx, as diferenças dos pontos de vista de classe ganham relevo. Quando parece que a teoria da racionalização burocrática tangencia em alguns pontos o processo de fetichização do capital descrito por Marx, Weber é incapaz de ultrapassar o “círculo familiar dos objetos”, assim expressaria Schiller. Prestem atenção na maneira pela qual, ao estudar as condições dos trabalhadores nas fábricas alemãs, Weber chega perto de processos descritos por Marx como a transformação do operário em apêndice da maquinaria:

Na questão da “rentabilidade”, a capacidade de rendimento do trabalhador é considerada no mesmo sentido que a rentabilidade de uma classe qualquer de carvão ou de um mineral ou de qualquer outra “matéria prima”, de uma fonte de energia ou de uma determinada máquina. O trabalhador é aqui, em princípio, nada mais que um meio de produção rentável..., com cujas capacidades e “falhas” há que se contar, como se conta com as de qualquer meio de produção mecânico (Weber, 1999b: 131).

Weber chega perto das determinações do capítulo sobre a maquinaria de O capital, mas não as reproduz. Faltou dizer que, embora em aparência possa ser tratada como um “meio de produção”, um apêndice da maquinaria, a força de trabalho é, em verdade, a mercadoria particular sem a exploração da qual não existiriam as relações de produção capitalista. O trabalhador é um “apêndice” que gera mais-valor, o que nenhum meio de produção poderia efetuar; não se extrai mais-trabalho de um meio de produção. A “rentabilidade” da força de trabalho será sempre imperiosa ao capital. Ao contrário do argumento de Weber citado acima, as falhas da rentabilidade da força de trabalho possuem uma grandeza que não se compara com as falhas da rentabilidade do carvão ou de qualquer matéria prima. São estas as contradições essenciais que movem o processo. Para o capital, a classe trabalhadora nunca foi “nada mais que um meio de produção rentável”.

Nesta pesquisa sobre os trabalhadores alemães, quando se ocupa da extensão da jornada de trabalho, Weber põe às claras as diferenças entre o que chama de racionalização burocrática em face das formas capitalistas de alienação apreendidas por Marx. Nesse caso, a interrogação de Weber respeita à influência do aumento ou da diminuição da jornada sobre o “rendimento” do trabalhador; que espécie de mudança na jornada causa a “fatiga psicofísica” na classe operária. Menciona o exemplo a fábrica de tecelagem Zeiss que reduziu a jornada e o trabalho “rendeu” tanto ou inclusive mais do que uma jornada ampliada (cf. Weber, 1999b: 143). A propósito do assunto, escaparam a Weber elementos importantes que constam em O capital: a extensão da jornada e sua divisão entre o custo de reprodução da força de trabalho e o mais valor produzido; a ampliação ou redução da jornada de trabalho e a sua relação com a transformação da mais-valia absoluta em relativa; os métodos de exploração de mais-valia relativa caso a jornada esteja limitada por lei (incremento da produtividade do trabalho, o exército industrial de reserva, a introdução de novidades tecnológicas, etc.); a passagem da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital; a intensificação do trabalho; as melhorias ou os retrocessos do custo de reprodução da força de trabalho de acordo com as lutas travadas entre capital e trabalho, e outros. Se não houver grande distância entre a “racionalização” de Weber e a “alienação” de Marx, é de se explicar o porquê do abissal intervalo entre o que os autores disseram sobre a jornada de trabalho.

Disso não resulta que Weber não tenha capturado determinadas formas de resistência do trabalhador face aos avanços do capital. O debate sobre a “autorrestrição” cumpre um papel importante neste seu estudo empírico sobre a classe trabalhadora alemã. O trabalhador impõe-se conscientemente um limite de produção; restringe o próprio trabalho para que não dê maiores ganhos ao capital. A autorrestrição demanda um certo grau de consciência dos seus interesses por parte do trabalhador em antagonismo aos interesses do capital. Weber afirma que “a ‘autorrestrição’ intencional e consciente, não apenas involuntária e dependente do ânimo, dá-se em todos os lugares em que exista algum sentimento de solidariedade entre os trabalhadores ou em uma parte significativa deles, a despeito da organização sindical” (1999b: 157). Weber capta uma modalidade de resistência do operário e, ademais, atrela esta resistência à solidariedade de classe. Contudo,o sociólogo não transgride as fronteiras colocadas para sua classe; não vislumbra que a resistência espontânea do trabalho frente ao capital possa evoluir para a política revolucionária. Não era de se esperar que Weber pusesse tais temas em pauta de discussão. Pois, é evidente, logo nos capítulos introdutórios a Sociologia do trabalho industrial, declara-se que a empresa monopolista moderna “transformou o rosto espiritual do gênero humano quase até não reconhecê-lo e seguirá transformando-o” (Weber, idem: 74). Que resistam os trabalhadores porque o capitalismo burocrático modelou e seguirá modelando a face do gênero humano.

Lukács sempre teve enorme prudência ao traçar paralelos de Marx com os filósofos burgueses. Na análise da relação entre Marx e Vischer, Lukács apreende questões metodológicas que podem servir ao presente debate. Sabe-se que Marx acompanhou atentamente a produção teórica do esteta irracionalista. Lukács encontra algumas ressonâncias da leitura de Vischer na obra de Marx, como, por exemplo, nas passagens sobre os mitos gregos nos Gründrisse. Obviamente, não seria a circunstância para reproduzir a discussão completa; o decisivo é reter a afirmação de Lukács quando compara os trechos de Marx que parecem nascer da influência de Vischer: “é impossível não notar que as duas exposições apresentam certos traços comuns, ainda que sejam de natureza muito geral” (1957: 297). Isso, no entanto, não é suficiente para que Lukács convença-se de que Marx corrobora com a estética irracionalista de Vischer: “certamente o confronto entre os autores revelará ao mesmo tempo de modo mais explícito a radical diferença entre as duas concepções, o seu diverso fundamento de classe e, por isso, a sua linha de desenvolvimento diametralmente oposta” (Lukács, 1957: 297, 298). Daí, Lukács aprofunda o cotejo entre os dois, o que evidencia a mencionada “radical diferença”. Nas mãos de Marx, as influências de Vischer mudam de caráter, ganham uma “linha de desenvolvimento diametralmente oposta”.
 
É esta a postura metodológica a ser seguida quando se trata da relação entre Marx e Weber. Os prováveis ecos de Marx em Weber adquirem uma “linha de desenvolvimento diametralmente oposta”. A “racionalização” de Weber e a “alienação” de Marx distam remotamente; discutiram a introdução da maquinaria no processo produtivo, a jornada de trabalho, as formas de resistência do trabalho ao capital, mas assumiram pontos de vista de classes distintas.

É preferível que se descartem os paralelos com Marx e que se procurem com autores diversos os laços da interpretação de Weber acerca do capitalismo burocrático. Ao concluir o capítulo sobre Weber em A destruição da razão, Lukács diz que o sociólogo faz a ponte entre a filosofia imperialista do neokantismo e o existencialismo (cf. 1968: 500). A correlação é exata, a nosso ver. Também em Heidegger a situação do capital monopolista é eternizada para todo o ser social, com a peculiaridade que aqui se transforma na condição ontológica do homem. A angústia dos tempos do estágio imperialista do capital é um dos elementos que constituem a ontologia existencialista: “aquilo com que a angústia se angustia é o ‘nada’ que não se revela ‘em parte alguma’. Fenomenalmente, a impertinência do nada e do em parte alguma intramundanos significa que a angústia se angustia com o mundo como tal” (Heidegger, 1997: 250). Para Heidegger, o princípio motivador da angústia é o mundo enquanto tal e não o mundo do capital monopolista. Kierkegaard havia escrito que um pouco de eternidade compunha o desespero humano e Heidegger afirma que o homem jamais supera o estado de angústia. O homem está condenado à angústia. É a resignação frente à fase imperialista do capital compartilhada entre os existencialistas e Weber. Efetivamente, as circunstâncias históricas não são de todo distintas. A segunda e completa edição de A ética protestante e o espírito do capitalismo é de 1920 e a publicação de O ser e o tempo é de 1927. Respondem à mesma particularidade histórica. Não se duvida que haja especificidades entre Weber e os existencialistas (e mesmo entre os existencialistas; que se comparem os franceses com os alemães). Mas todos fincam estacas no mesmo território político-teórico.
 
Lukács estabelece a correlação entre o neokantismo de Weber e existencialismo de Heidegger que, a nosso parecer, é correta. No terreno do pensamento burguês, Weber é ponte de transição que conduz a Heidegger. Em contrapartida, existe novamente em Colliot-Thélène a tendência de equiparar as teses de Weber acerca do Estado burocrático com as de Hegel; não só Marx mas igualmente Hegel seria correlato de Weber quanto à burocracia. Com efeito, é a tese central do livro O desencantamento do Estado: de Hegel a Weber, de Colliot-Thélène. As palavras introdutórias já exibem a tendência: “as similitudes que existem entre as análises hegeliana e weberiana do Estado moderno foram raramente assinaladas. São, entretanto, completamente perceptíveis” (Colliot-Thélène, 1992: 07). A socióloga discorre a propósito das semelhanças dos dois autores a respeito do funcionalismo estatal. Por exemplo, segundo ela, em Weber também haveria “o tema da dedicação ao bem público, igualmente presente, e fundamentalmente, no Estado hegeliano” (idem: 15). Todo o texto direciona-se no sentido de construir um parentesco entre a “filosofia política” de Hegel e a “sociologia da dominação” de Weber.

Colliot-Thèléne acredita ter encontrado o grande trunfo de seus argumentos no fato de que Hegel teria percebido o desprendimento da esfera administrativa estatal em face das demais esferas societárias. Tal desprendimento autônomo seria posteriormente analisado em larga escala por Weber. É feito o vínculo: “Hegel, como vimos, antecipou esta dissociação das práticas sociais que está no coração do processo de ‘racionalização’ descrito por Weber” (Colliot-Thèléne, 1992: 261). Ali estão as similitudes perceptíveis entre os pensadores. Apesar de ressalvar certas distinções metodológicas (o projeto hegeliano de uma filosofia da história que nunca esteve nos planos weberianos), este foi o argumento com o qual Colliot-Thèléne procura convencer-nos das afinidades teóricas entre o dialético idealista e o positivista neokantiano: a burocracia desprende-se enquanto classe autônoma na gerência cotidiana dos negócios do Estado.

Na verdade, a socióloga francesa atem-se a aspectos formais de Princípios da filosofia do direito e de Economia e sociedade. Se ambos teorizaram sobre a burocracia desencantada, as suas respectivas teses assumem funções históricas bem diversas; refletem contextos distintos. Tomando de novo o modelo de Lukács ao estudar Marx e Vischer, veremos que as similitudes formais desaparecem ao analisarmos o conteúdo histórico dado ao Estado burocrático em Hegel e em Weber.

Bom leitor de Hobbes, Hegel entendia a sociedade civil como “o campo de batalha dos interesses individuais de todos contra todos” (1976: 265). No âmbito da sociedade civil, os homens portam-se conforme seus interesses mais imediatos, particulares. A manifestação de tais particularidades dá-se nas “corporações”. O Estado, emseu turno, representa os interesses universais, “o ponto de vista mais elevado”. É justamente a burocracia, a “classe de funcionários”, que está em possibilidade de engendrar a universalidade em meio às particularidades da sociedade civil; o funcionalismo é o portador da universalidade do Estado. É a generalidade da burocracia versus o imediatismo das corporações civis. Leiamos da letra de Hegel a sua definição da classe burocrata: “a classe universal ocupa-se dos interesses gerais, da vida social” (idem: 185). O ofício do funcionário é o interesse universal da razão. Para que esteja em condições de atuação, a classe universal deve ser “dispensada do trabalho direto requerido pelas carências, seja mediante a fortuna privada, seja mediante uma indenização dada pelo Estado que solicita a sua atividade, de modo que, nesse trabalho pelo universal, possa encontrar satisfação o seu interesse privado” (Hegel, idem: 185). É imperativo que o burocrata esteja acima das carências da sociedade civil para que possa resolver os conflitos particulares em nome da razão de Estado. Eis que a burocracia desprende-se, autonomiza-se das esferas sociais.

Os juízos de Hegel a propósito da “classe universal” suscitaram o seguinte comentário de Marx: “os fins do Estado convertem-se em fins de escritório e os fins de escritório em fins do Estado. A burocracia é um círculo de que nada pode escapar” (2002a:120). Logo adiante: “o Estado só existe na forma de diversos espíritos burocráticos fixos,cuja única coerência é a subordinação e a obediência passiva” (Marx, idem: 121).

O Estado de Hegel é uma projeção, um ideal a ser alcançado, um dever ser. É um conceito construído a partir das potencialidades do seu presente exacerbadas especulativamente. Diz Marx: “constrói-se uma categoria e conforma-se em encontrar uma existência que lhe corresponda. Hegel concede à sua Lógica um corpo político; o que não dá é a lógica do corpo político” (idem: 122). Ainda na esteira de Feuerbach, o jovem Marx procura resolver as mistificações hegelianas a partir de um ponto de vista materialista, mesmo que neste instante de sua formação não tenha descoberto a chave metodológica da crítica da economia política.

A teoria política de Hegel é a principal manifestação da contradição entre o seu método, que afirma a historicidade das relações sociais, e o sistema, que aponta para um “fim da história”.

Lukács diz que somente se pode entender a ideia de que o Estado é a realização da razão ao se reter a situação histórica da Alemanha de Hegel. Diante da fragmentação das nações germânicas, o Estado poderia engendrar a unidade nacional. “Só deste ponto de vista o Estado aparece como algo que se encontra para além de todos os contrastes da sociedade civil” (Lukács, 1975: 511). Assim, Hegel pensa o Estado como a encarnação unitária das figuras do espírito; o filósofo sempre acreditou que as contradições da sociedade pudessem ser resolvidas pela intervenção do Estado. E, para Hegel, a burocracia é a implementação do Estado burguês, a consolidação revolucionária deste Estado. Pode-se dizer que, segundo os Princípios da filosofia do direito, a maturação da revolução burguesa ocorre com o desenvolvimento da casta burocrática. Hegel era um ideólogo do período revolucionário da burguesia, do período heroico do nascimento do Estado burguês em face das relações feudais. A filosofia do direito de Hegel é a tentativa de elevar a conceito o Estado da revolução francesa (em especial do período napoleônico).

Inteiramente distante é a situação histórica de Weber. A sua apologia indireta ao Estado burocrático é o embate contra a possibilidade de ruptura deste Estado por parte da classe trabalhadora. Tanto Weber quanto Hegel estavam a favor do Estado burocrático burguês; porém, com a determinante diferença de que isso significava em Hegel uma tomada de posição contra a miséria da Alemanha aristocrática, enquanto que em Weber implicava a luta a favor da conservação da ordem. Entre ambos, há a mudança qualitativa da burguesia em direção à manutenção do estado de coisas. Entre os Princípios da filosofia do direito e Economia e sociedade há o surgimento do novo sujeito revolucionário, a classe trabalhadora.

Colliot-Thèléne não compreende que a advocacia de Hegel favorável ao Estado burguês revolucionário não é passível de equalização com a defesa do Estado burguês conservador de Weber. A identificação só é possível se nos atermos aos contornos mais abstratos do pensamento dos dois teóricos. A linha histórica que parte de Hegel e conduz a Weber somente pode ser construída sob aspectos puramente formais. Para alguém que tenha lido e entendido as teses de Lukács em A destruição da razão, soa extremamente problemático traçar uma linha de pensamento que chega até Weber desde Hegel e não de Schelling. Sabemos que a herança das grandes aquisições da dialética hegeliana não está em Weber, senão em Marx. Com mordaz ironia, Isaac Deutscher (1973) disse que, se houver algum parentesco entre Hegel e Weber, este último seria um “neto pigmeu” daquele primeiro.

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Notas:
[1] Quanto à existência do “proletário de tipo moderno” em Roma, Weber reformulou suas ideias juvenis e, em 1909, escreveu que, na Antiguidade, “enquanto classe, o proletariado moderno não existia” (2001: 92). Pelo menos enquanto classe, Weber não mais projetou o proletariado moderno para o passado antigo.
[2] Marx também abordou as formas antigas de aquisição de lucro. Para Weber, os usurários e comerciantes antigos constituíam manifestações do sistema capitalista. Ao contrário, Marx disse que “a forma comercial e a forma a juros são mais antigas do que a da produção capitalista, do que o capital industrial, forma básica da relação capital enquanto domina a sociedade burguesa” (1974a: 279). A produção capitalista não engendra estas formas de aquisição de lucro: “encontra estas formas mais antigas na época de sua constituição e de sua geração, encontra-as como prévias pressuposições, que não são todavia pressuposições postas por si próprias, formas de seu processo de vida” (Marx, idem: 279). A usura e o comércio não são gerados pela produção capitalista; em seu processo de constituição histórica, as relações de produção de capital já se deparam com estas formas de lucro. De fato, são pressupostos para o metabolismo capitalista: do dinheiro acumulado com a usura e o comércio, investe-se na compra de força de trabalho; então, usurário e o comerciante transformamse em capitalistas industriais. Contudo, para que isso ocorra, há que se contar com determinadas circunstâncias históricas: o acúmulo de dinheiro dos usurários e comerciantes é meio para a constituição deuma nova sociabilidade “somente numa época em que se encontram disponíveis as demais condições para a produção capitalista — trabalho livre, mercado mundial, dissolução do vínculo social antigo, desenvolvimento do trabalho até determinado nível, desenvolvimento da ciência, etc.” (Marx, idem: 328).Uma vez desenvolvida a produção capitalista, as antigas formas de obtenção de lucro subordinam-se à nova estrutura societária. Indubitavelmente, é uma abordagem teórica diversa desta que estudamos em Weber.
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CARLI, R. György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 119-136.
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