terça-feira, 13 de maio de 2025

ARTE REALISTA| O Casamento dos Pequenos Burgueses

O Casamento dos Pequenos Burgueses
Chico Buarque

Ele faz o noivo correto
E ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia

Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho

Ele faz o macho irrequieto
E ela faz crianças de monte
Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte
Até secar a fonte

Ele é o funcionário completo
E ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros

Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos

Ele fala de cianureto
E ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
Até que alguém decida

Ele tem um velho projeto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo teto
Até o fim dos dias
Até o fim dos dias

Ele às vezes cede um afeto
Ela só se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo teto
Até um breve futuro
Até um breve futuro

Ela esquenta a papa do netoE ele quase que fez fortunaVão viver sob o mesmo tetoAté que a morte os unaAté que a morte os una
 
Até que a morte os unaAté que a morte os una
 
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Sabiá Marrom: O Samba Raro De Alcione (BRA,1979) - Alcione.
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sexta-feira, 25 de abril de 2025

ARTE REALISTA| Geração Coca-Cola

 
Geração Coca-Cola
Renato Russo

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos U.S.A., de nove as seis
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de vinte anos na escola
Não é difí­cil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí­ então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola

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terça-feira, 15 de abril de 2025

Sobre Proudhon


  Carta de Marx a J. B. Schweitzer[1]

Londres, 24 de Janeiro de 1865

Caro senhor:

Recebi ontem a sua carta, na qual me solicita um julgamento aprofundado sobre Proudhon. A falta de tempo não me permite atender a seu pedido. Entretanto, para lhe demonstrar a minha boa vontade, redigi à pressa um breve esboço. O senhor pode fazer adições ou reduzi-lo; numa palavra: pode fazer com este material o que lhe aprouver[2].

Não me recordo já dos primeiros ensaios de Proudhon. Seu trabalho de escolar sobre a língua universal[3] comprova a falta de cerimônia com que tratava problemas para cuja solução lhe faltavam os conhecimentos mais elementares.

Sua primeira obra, Qu'est-ce que la propriété?[4], é, sem dúvida, a melhor. Ela marcou época, se não pela originalidade do seu conteúdo, ao menos pela maneira nova e audaciosa de dizer coisas antigas. Nas obras dos socialistas e comunistas franceses, que ele conhecia, a propriedade fora, não só, como é natural, criticada sob vários pontos de vista, mas também utopicamente abolida. Com este livro, Proudhon colocou-se, em relação a Saint-Simon e a Fourier, quase no mesmo plano em que Feuerbach se encontra em relação a Hegel. Comparado a Hegel, Feuerbach é muito pobre. Contudo, depois de Hegel, ele assinalou uma época, já que realçou alguns pontos pouco agradáveis para a consciência cristã e importantes para o progresso da crítica, que Hegel deixara em mística penumbra [clair-obscur, em francês].

O estilo de Proudhon, aí, é — permita-me a expressão — vigorosamente musculado, constituindo, no meu entender, a principal qualidade deste estudo. Mesmo nas passagens em que Proudhon limita-se a repetir o conhecido, a simples reprodução é para ele um descobrimento; o que diz é, para ele, original, algo novo, e passa como tal. A audácia provocadora com que ele ataca o “santuário” da economia política, os engenhosos paradoxos com que ironiza a vulgaridade do burguês, seus juízos corrosivos, a ironia amarga, um profundo e sincero sentimento de indignação expresso intermitentemente contra as infâmias da ordem existente, sua convicção revolucionária — todas essas qualidades contribuíram para que Qu'est-ce que la propriété? eletrizasse os leitores e produzisse uma grande impressão, desde o primeiro momento em que viu a luz. Numa história rigorosamente científica da economia política, este texto mal seria mencionado. Mas, como na literatura romanesca, obras sensacionais como esta desempenham um papel na ciência. Pense-se, por exemplo, no livro de Malthus, Sobre a população[5]; sua primeira edição não constitui mais que um panfleto sensacional e, ademais, era um plágio da primeira à última linha. E, apesar de tudo, como esta pasquinada causou impacto sobre o gênero humano!

Se eu tivesse à mão o livro de Proudhon, ser-me-ia fácil demonstrar, com alguns exemplos, a sua maneira inicial de escrever. Nos parágrafos considerados mais importantes por ele mesmo, imita o método das antinomias de Kant — o único filósofo alemão que conhecia naquela época, através de traduções —, oferecendo-nos a sólida impressão de que, assim como Kant, busca a solução das antinomias num mais além do entendimento humano, isto é: a solução permanece obscura para ele mesmo.

Apesar da sua aparência de assalto ao céu, encontra-se em Qu'est-ce que la propriété? esta contradição: de um lado, Proudhon critica a sociedade a partir do ponto de vista do pequeno camponês (mais tarde, pequeno burguês) francês; de outro, aplica a ela a escala que lhe transmitiram os socialistas.

O próprio título indica as deficiências do texto. O problema fora tão mal colocado que a solução não podia ser correta. As “relações de propriedade” dos tempos antigos foram destruídas pelas feudais; e estas, pelas burguesas. Assim, a própria história encarregou-se de submeter à crítica as relações de propriedade do passado. No fundo, Proudhon trata é da moderna propriedade burguesa, tal como existe hoje. À pergunta — o que é a propriedade? — só podia responder com uma análise crítica da economia política, que abarcasse o conjunto dessas relações de propriedade, não em expressão jurídica, como relações de vontade, mas eu sua forma real, isto é, como relações de produção. Mas como Proudhon vinculava a totalidade destas relações ao conceito jurídico geral de “propriedade”, não podia ir além da resposta que Brissot já dera[6], numa obra similar, anterior a 1789, repetindo-a com as mesmas palavras: a propriedade é um roubo.

No melhor dos casos daí se pode deduzir que o conceito jurídico burguês de “roubo”, como violação da propriedade, pressupõe a propriedade, Proudhon enredou-se em toda sorte de elucubrações sobre a verdadeira propriedade burguesa.

Durante minha estância em Paris, em 1844, travei conhecimento pessoal com Proudhon. Menciono aqui o fato porque, em certa medida, sou responsável pela sua sophistication, como os ingleses chamam à adulteração de mercadorias. Em nossas longas discussões, que frequentemente duravam noites, contagiei-o, para grande desgraça sua, com o hegelianismo que, por seu desconhecimento da língua alemã, não podia estudar a fundo. Após a minha expulsão de Paris, o sr. Karl Grün continuou o que eu iniciara. Professor de filosofia alemã, ele tinha sobre mim a vantagem de não entender uma palavra do que ensinava.

Pouco antes da publicação da sua segunda obra importante Philosophie de la misère, Proudhon anunciou-me sua próxima edição numa carta muito detalhada, em que, entre outras coisas, dizia-me o seguinte: “Espero a férula de sua crítica[7]. Com efeito, a minha crítica caiu rapidamente sobre ele (em meu livro Misére de la philosophie, Paris, 1847), de tal forma que pôs fim, para sempre, à nossa amizade.

Como o senhor poderá ver, na sua Philosophie de la misère ou Système des contradictions économiques, Proudhon responde, realmente, pela primeira vez, à pergunta — o que é a propriedade? De fato, somente depois da publicação do seu primeiro livro, Proudhon iniciou seus estudos econômicos; compreendera que, à pergunta em tela, não se podia responder com invectivas, mas por meio de uma análise da economia política moderna. Ao mesmo tempo, tentou expor, dialeticamente, o sistema das categorias econômicas. No seu método de análise, à insolúvel “antinomia” kantiana devia substituir-se, intervindo como meio de desenvolvimento, a “contradição” hegeliana.

O senhor encontrará, na réplica que escrevi em seguida, a crítica aos dois grossos volumes da obra. Nessa réplica demonstro, entre outras coisas, o pouco que Proudhon penetrou nos segredos da dialética científica e até que ponto, por outro lado, compartilha das ilusões da filosofia especulativa, quando, em vez de considerar as categorias econômicas como expressões teóricas de relações de produção históricas e correspondentes a um determinado nível do desenvolvimento da produção material, converte-as, absurdamente, em ideias eternas, preexistentes. Com essa meia-volta, ele retorna ao ponto de vista da economia burguesa[8].

Mais adiante, demonstrei, também, o quanto é insuficiente o seu conhecimento — às vezes, digno de um escolar — da economia política, ciência a cuja crítica se dedica e como, à semelhança dos utopistas, corre atrás de uma pretensa “ciência”, da qual se pode arrancar a priori uma fórmula para a “solução do problema social”, em vez de ir buscar a fonte da ciência no conhecimento crítico do movimento histórico, movimento que cria ele mesmo, as condições materiais da emancipação. Demonstrei, sobretudo, que Proudhon só tem ideias vagas, falsas e parciais sobre o valor de troca, fundamento de toda economia, e como, inclusive, vê na interpretação utópica da teoria de Ricardo a base de uma ciência. Meu juízo sobre a sua concepção geral, resumo-o nas seguintes palavras:

Cada relação econômica tem um lado bom e um lado mau, esse é o único ponto em que o sr. Proudhon não se desmente. O lado bom, ele o vê exposto pelos economistas; o mau, denunciado pelos socialistas. Dos economistas, ele toma a necessidade de relações eternas; dos socialistas, a ilusão de ver na miséria apenas a miséria (em vez de ver nela o lado revolucionário, destrutivo, que há de acabar com a velha sociedade)[9].

Proudhon está de acordo com uns e outros quando se trata de apoiar-se na “autoridade” da ciência. Para ele, a ciência se reduz às magras proporções de uma fórmula científica. É um homem à caça de fórmulas. Assim, o sr. Proudhon jacta-se de oferecer-nos uma crítica da economia política e do comunismo, quando, na realidade, permanece muito abaixo de uma e de outro: dos economistas, porque, como filósofo, de posse de uma fórmula mágica, julga-se dispensado da obrigação de entrar em detalhes puramente econômicos; dos socialistas, porque carece da perspicácia e da coragem necessárias para elevar-se, ainda que apenas no terreno da especulação, para além dos horizontes da burguesia.

Pretende, como homem da ciência, pairar acima de burgueses e proletários, mas não passa do pequeno-burguês que oscila, constantemente, entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo[10].

Por mais severo que possa parecer esse juízo, subscrevo ainda hoje cada uma das suas palavras. Ao mesmo tempo, é preciso recordar que, na época em que afirmei, e demonstrei teoricamente, que o livro de Proudhon era o código do socialismo pequeno-burguês, os economistas e os socialistas o excomungaram como um herético ultrarrevolucionário. Essa é a razão pela qual, posteriormente, jamais fiz coro com os que denunciaram a sua “traição” à revolução. Não foi culpa sua se, incompreendido inicialmente tanto pelos outros como por si mesmo, ele não satisfez expectativas infundadas.

Em contraste com Qu'est-ce que la propriété?, na Philosophie de la misère todos os defeitos do estilo proudhoniano ressaltam particularmente. Estilo ampoulé, como dizem os franceses: sempre que lhe falta a acuidade gaulesa, aparece uma pomposa algavaria especulativa que pretende ser o estilo filosófico alemão. O tom charlatanesco, fanfarrão e vaidoso e, especialmente, o leilão que faz de uma pretensa “ciência”, a bazófia com que a apresenta – tudo isso assombra. O entusiasmo sincero que anima a sua primeira obra é aqui, em inúmeras passagens, substituído sistematicamente pelo ardor febril da declamação. A isso se soma o afã pedante de fazer gala de erudição, afã próprio de um autodidata, cujo orgulho inato por seu pensamento original e independente se perdeu e que, em sua qualidade de parvenu da ciência, orgulha-se do que não é e não tem. E, de sobra, essa mentalidade de pequeno-burguês, que o leva a atacar de um modo indigno, grosseiro, torpe, superficial e até injusto a um homem como Cabet – merecedor de respeito pela sua atividade prática entre o proletariado francês –, enquanto exibe extremos de amabilidade para Dunoyer[11], conselheiro de Estado, é verdade, mas cuja importância se reduz à cômica seriedade com que, em três grossos volumes, insuportavelmente entediantes, prega o rigorismo, caracterizado por Helvetius nestes termos: “On veut que lês malheureux soient parfaits” [Pretende-se que os desgraçados sejam perfeitos].

A revolução de fevereiro foi uma surpresa desagradável para Proudhon, já que ele, poucas semanas antes, demonstrara irrefutavelmente que a “era da revoluções” passara para sempre. No entanto, a sua intervenção na Assembleia Nacional merece elogios, apesar de ter evidenciado o pouco que compreendia do que estava ocorrendo. Efetuada após a insurreição de junho, foi um ato de grande coragem[12]. Sua intervenção teve, além disso, resultados positivos: no discurso que pronunciou em oposição a Proudhon, e que, mais tarde, foi publicado em folheto, o sr. Thiers demonstrou a toda a Europa quão mísero e infantil era o catecismo que servia de pedestal a esse pilar espiritual da burguesia francesa[13]. Comparado ao sr. Thiers, Proudhon adquiria, certamente, as dimensões de um colosso antediluviano.

A descoberta do “crédito gratuito” e do “banco do povo” baseado nele são as últimas “façanhas” econômicas de Proudhon. Na minha Zur Kritik der Politischen Ökonomie (Berlim, 1859, parte primeira, pp. 59-64), demonstrei que a base teórica das ideias proudhonianas tem sua origem na ignorância dos princípios elementares da economia política burguesa, a saber: a relação entre a mercadoria e o dinheiro. Quanto ao edifício erguido sobre essa base, não é mais que uma simples reprodução de esquemas velhos e muito melhor desenvolvidos. Não há dúvida, e é evidente por si mesmo, que o crédito, como ocorreu em inícios do 19, contribuiu para as riquezas passassem das mãos de uma classe às de outra, e que, em determinadas condições econômicas e políticas, poderá ser um fator que acelere a emancipação do proletariado. Mas é uma fantasia genuinamente pequeno-burguesa considerar que o capital que produz juros é a forma principal do capital e tratar de converter uma aplicação particular do crédito – uma suposta abolição do juro – em base de transformação social. Com efeito, essa fantasia já fora minuciosamente desenvolvida pelos porta-vozes econômicos da pequena burguesia inglesa do século 17. A polêmica de Proudhon com Bastiat (1850), sobre o capital que produz juros[14], está muito aquém da Philosophie de la misère. Proudhon consegue ser derrotado até por Bastiat, e entra em furor cômico cada vez que o adversário lhe assesta um golpe.

Há alguns anos, Proudhon escreveu, para um concurso organizado, se bem me recordo, pelo governo de Lausanne, uma trabalho sobre impostos[15]. Aí desapareceram, por completo, os últimos vestígios do gênio e nada mais resta que o petit bourgeois tout pur[16].

No que respeita às obras políticas e filosóficas de Proudhon, todas elas apresentam o mesmo caráter ambíguo e contraditório dos seus trabalhos sobre economia. Além do mais, seu valor não ultrapassa as fronteiras francesas. Entretanto, seus ataques à religião, à Igreja etc., possuem um grande mérito, por terem sido escritos na França num época em que os socialistas franceses julgavam oportuno fazer constar que seus sentimentos religiosos os situavam acima do voltaireanismo burguês do século 18 e do ateísmo alemão do século 19. Se Pedro, o Grande, derrotou a barbárie russa com a barbárie, Proudhon fez o que pôde para derrotar com frases a fraseologia francesa.

Seu texto sobre o golpe de Estado[17] não deve ser considerado, simplesmente, como uma obra ruim, mas como uma verdadeira vilania que, ademais, corresponde plenamente a seu ponto de vista pequeno-burguês. Nesse livro, lisonjeia Luís Bonaparte, procurando torná-lo aceitável aos operários franceses. O mesmo vale para a sua última obra contra a Polônia, na qual, para a maior glória do tsar, demonstra o cinismo próprio de um cretino[18].

Frequentemente, Proudhon foi comparado a Rousseau. Nada tão falso. Está mais próximo a Nicholas Linguet, cujo livro Théorie des lois civiles é uma obra genial[19].

Proudhon possuía uma inclinação natural para a dialética. Mas nunca compreendeu a verdadeira dialética científica — não foi além dos sofismas. Na verdade, isso se explica pela sua mentalidade pequeno-burguesa. À semelhança do historiógrafo Raumer, o pequeno-burguês constitui-se de “por uma parte” e “por outra parte”. Como tal se nos revela em seus interesses econômicos e, logo, também em sua política e em suas concepções religiosas, científicas e artísticas. Assim nos aparece em sua moral e so in everything[20]. É a contradição personificada. E se é, além disso, como Proudhon, uma pessoa de espírito, logo aprenderá a fazer prestidigitação com as suas próprias contradições e convertê-las, segundo as circunstâncias, em paradoxos inesperados, espetaculares, ora escandalosos, ora brilhantes. Charlatanismo científico e oportunismo político são elementos inseparáveis de semelhante posição. A homens assim só resta um estímulo: a vaidade. Como a todos os vaidosos, preocupa-lhes unicamente o êxito momentâneo, a sensação de um dia. E é aí que se perde, fatalmente, o tato moral que sempre preservou Rousseau, por exemplo, de todo compromisso, mesmo aparente, com os poderes estabelecidos[21].

Talvez a posteridade, caracterizando esse período recente da história da França, diga que Luís Bonaparte foi o seu Napoleão e Proudhon o seu Rousseau-Voltaire.

O senhor me atribuiu uma tarefa penosa: o juízo sobre um homem morto, um homem que faleceu há pouco. Debito-lhe a responsabilidade que me foi imposta.

Respeitosamente,
Karl Marx

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Notas agregadas:
[1] Imediatamente após a morte de Proudhon (16 de janeiro de 1865), Scweitzer e W. Liebknetch pediram a Marx uma nota necrológica para o Social-Demokrat (cf. “Prefácio à primeira edição alemã” da Miséria da filosofia). O jornal publicou sem modificações esta carta de Marx, nas suas edições de 1, 3 e 5 de fevereiro de 1865. Numa carta a Engels, de 25 de janeiro, Marx comentou: “Atendendo a um pedido urgente de Schweitzer (...) remeti-lhe, ontem, um artigo sobre Proudhon. Você verá que alguns golpes bem fortes, aparentemente dirigidos a Proudhon, atingem o nosso Aquiles, a quem eram destinados”. Aquiles é referência a Lassalle.
[2] Quando da publicação da carta, a redação do Social-Demokrat, aqui, introduziu a seguinte nota: “Consideramos preferível publicar a carta sem qualquer modificação”.
[3] Trata-se do ensaio de Proudhon sobre gramática comparada, publicado no volume de Bergier, Os elementos primitivos das línguas, Besançon, 1838.
[4] Trata-se do texto O que é a propriedade? (ou Pesquisas sobre o princípio do direito e do governo), Paris, 1840.
[5] Trata-se da obra An essay of the principle of population as it affects the future improvement of society, with remarks on the speculations of Mr. Godwin, Mr. Condorcet and others writes, Londres, 1798.
[6] Trata-se da obra de Brissot de Varville, Recherches philosophiques. Sur Le droit propriété ET sur Le vol, considérés dans la nature ET dans la société, publicada no volume 6 da Bibliothèque Philosophique du Législateur, du Politque, du Jurisconsulte, Berlim-Paris-Lyon, 1782.
[7] Marx refere-se à carta de Proudhon que se insere nos Anexos deste volume.
[8] Cf., neste volume, pp. 125-126.
[9] No texto Miséria da filosofia não figura o parênteses introduzido aqui por Marx. Cf. p. 142 deste volume.
[10] Idem.
[11] Cabet: socialista utópico francês, figura de relevo na orientação do movimento operário da França entre os anos de 1830 e 1840. Dunoyer: político e economista vulgar: a obra referida por Marx é De la liberté du travail, ou simple exposé des conditions dans lesquelle les forces humaines s
‘exercent avec le plus de puissance, Paris, 3 volumes, 1845. [12] A intervenção referida por Marx é o discurso de Proudhon à Assembleia Nacional, em 31 de julho de 1848: nele, Proudhon denuncia a repressão aos revolucionários de 23-26 de junho como violência e arbítrio.
[13] Contra as propostas que Proudhon fizera à Comissão Financeira da Assembleia Nacional, Thiers replicou num discurso pronunciado em 26 de julho de 1848. Na Nova Gazeta Renana, de 5 de agosto de 1848, Engels publicou um artigo em que analisava as posições de ambos os políticos (“Discurso de Thiers contra Proudhon”).
[14] Marx se refere ao volume Gratuité du crédit. Discussion entre M. Fr. Bastiat e M. Proudhon, Paris, 1850.
[15] Trata-se da obra Théorie de l’impôt (Question mise au concors par le Conseil d’État du canton de Vaud en 1860), Bruxelas-Paris, 1861.
[16] Em francês: pequeno-burguês puro e simples.
[17] Trata-se do livro La révolution sociale démonstrée par le coup d’État du 2 de décembre, Paris, 1852.
[18] Trata-se da obra Si les Traités de 1815 ont cessé d’exister? Actes du futur congrès, Paris, 1863. Nesta obra, Proudhon protesta contra a revisão do Tratado de 1815 (Congresso de Viena) sobre a Polônia e se volta contra o apoio europeu ao movimento de libertação dos poloneses face à opressão do tsarismo russo. Aliás, sobre a posição dos políticos franceses diante do problema polonês, Marx chegou a observar (em carta a Engels, de 10 de dezembro de 1864) “a permanente traição dos franceses para com a Polônia, de Luís XV a Bonaparte II”.
[19] Essa obra foi publicada em Londres, em dois volumes, em 1767.
[20] Em inglês: então em tudo.
[21] É bem claro que essas últimas frases visam Lassalle.
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MARX, K. “Carta a J. B. Schweitzer”. In: MARX. K.  A miséria da filosofia: resposta à Filosofia da miséria, do sr. Proudhon. Trad. José Paulo Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 259-269.
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segunda-feira, 17 de março de 2025

O marxismo ocidental de Slavoj Žižek


por Domenico Losurdo

I. O anti-imperialismo de Žižek

Se comparado com 1989 e os anos imediatamente posteriores, e se comparado com o período em que o discurso sobre a nada pranteada morte definitiva de Marx se tornara praticamente senso comum, o quadro ideológico de nossos dias se mostra bem diferente: é claro e crescente o interesse pelo grande pensador e revolucionário, e os autores que de uma maneira ou de outra a ele se referem gozam não raro de considerável prestígio e popularidade. Devemos, então, falar de uma recuperação do marxismo ocidental?

Recentemente, o expoente mais ilustre daquele que adora se autodefinir, sedutoramente, como o “marxismo ocidental libertário” saudou 2011 como “o ano do despertar da política radical de emancipação em todo o mundo”[1]. Verdade seja dita, o autor não demorou a admitir a desilusão em que logo recaiu. Mas abstraiamos os desenvolvimentos sucessivos e concentremo-nos no ano de 2011, saudado em termos tão lisonjeiros: sim, era o ano em que novos movimentos de protesto (Occupy Wall Street, Indignados etc.) pareciam se alastrar como fogo, mas também o ano em que a Otan deflagrava contra a Líbia uma guerra  que, depois de provocar dezenas de milhares de mortos, se encerrou com o terrível linchamento de Muammar Kadafi. O caráter neocolonial da agressão era reconhecido por respeitados órgãos da imprensa ocidental. No entanto, Hillary Clinton entregava-se a um júbilo tão excessivo (“nós viemos, nós vimos, ele morreu!”, we came, we saw, he died! — exclamava triunfante a então secretária de Estado), a ponto de provocar escrúpulos até num jornalista da Fox News: em sua opinião, esse entusiasmo por um crime de guerra era perturbador. Infelizmente, a infame empresa neocolonial aqui tratada não apenas não encontrou resistências de relevo no marxismo ocidental como, na Itália, foi legitimada por pelo menos uma figura histórica dessa corrente de pensamento[2].

Ainda em 2011, em Tel Aviv e em outras cidades israelenses, centenas de milhares de “indignados” acorriam às praças contra o alto custo de vida, os aluguéis exorbitantes etc., mas eram bem cautelosos quanto a discutir a persistente e acelerada colonização dos territórios palestinos: a “indignação” alertava para as crescentes dificuldades dos estratos populares da comunidade judaica, mas não julgava digna de atenção a interminável tragédia do povo submetido à ocupação militar. Assim descreve essa tragédia, numa prestigiosa revista estadunidense, um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém: ao menos no que se refere aos territórios palestinos ocupados, Israel é uma “etnocracia”, em última instância, um Estado racial.

A colonização das terras palestinas expropriadas pela força prossegue ininterrupta. Os que ousam protestar “são tratados com rigor, às vezes levados à prisão por longo período, às vezes mortos no decorrer das manifestações”. Tudo isso se insere no âmbito de “uma campanha impiedosa cujo objetivo é tornar a vida dos palestinos o mais miserável possível [...], na esperança de que eles vão embora”. É uma obra de limpeza étnica, ainda que diluída no tempo. Estamos diante de uma etnocracia tão dura que nos traz a memória os “tenebrosos precedentes da história do século passado”[3]. Apesar disso, os “indignados” com o alto custo de vida a que estão submetidos, mas indiferentes à cruel “etnocracia” imposta aos palestinos, foram celebrados por dois ilustres autores de orientação marxista como paladinos de uma nova sociedade, “baseada nas relações comunitárias”[4].

Seria 2011, então, “o ano dos despertar da política radical de emancipação em todo o mundo” (para citar Žižek), ou do despertar do ideal de uma sociedade “baseada nas relações comunitárias” (como disseram Hardt e Negri), ou ainda seria o ano em que os crimes colonialistas e neocolonialistas encontram o silêncio ou a conivência até dos ambientes tradicionais da esquerda? Ao traçarem seu balanço abstraindo completamente a sorte reservada aos povos coloniais, Žižek, Hardt e Negri reproduzem, ampliando-o ainda mais, o limite de fundo do marxismo ocidental. Desse ponto de vista, o sucesso de que sobretudo Žižek goza em nossos dias leva-nos pensar não numa recuperação, mas num último suspiro do marxismo ocidental.

O recalque da questão colonial é parte integrante da plataforma teórica e política do filósofo esloveno. Para ele, o mundo existente, anos-luz distante do Outro desejado ou sonhado, é dominado integralmente pelo capitalismo; não faria sentido distinguir as potências imperialistas e colonialistas dos países que há pouco tempo se libertaram do domínio colonial e que ainda, entre tentativas e erros, tentam superar o atraso, alcançar a plena independência também no plano econômico e atribuir-se instituições políticas adequadas às próprias condições econômico-sociais, bem como à própria situação geopolítica. Žižek não é menos hostil do que Arendt à categoria de Terceiro Mundo. Aliás, ele é mais radical. É contundente sua ironia em relação àqueles países que, embora façam referência a uma ideologia revolucionária e por vezes ao marxismo, agitam a bandeira do anti-imperialismo: a luta de classes já não teria como protagonistas “os capitalistas e o proletariado de cada país”, mas se desenvolveria num quadro internacional, contrapondo os Estados mais do que as classes sociais; dessa forma, a marxiana “crítica do capitalismo enquanto tal” se reduz e se deforma em “crítica do ‘imperialismo’”, que perde de vista o essencial, isto é, as relações capitalistas de produção[5].

Depois de tirar do caminho as categorias de Terceiro Mundo, imperialismo e anti-imperialismo, a única distinção sensata, no que diz respeito ao presente, seria a distinção entre “capitalismo autoritário” e não autoritário. Na primeira categoria deve ser incluída a China[6], mas podem ser inseridos também o Vietnã e talvez a própria Cuba, depois das recentes aberturas de mercado e à economia privada (ao menos tendencialmente capitalista). Seja como for, aqui devem ser inseridos os países da “América Latina”, marcados por um “capitalismo populista” inclinados ao caudilhismo e ao autoritarismo[7]. Se olharmos com atenção, de alguma maneira ressurge a distinção desprezada pelo filósofo esloveno, aquela entre Terceiro Mundo, de um lado, e Ocidente capitalista (e com tradições e persistentes tendências colonialistas), de outro. Só que agora tal distinção reaparece por glória exclusiva do Ocidente liberal, que se torna o modelo a ser seguido pelos países do Terceiro Mundo.

Em conclusão: o ponto de vista de Žižek não diverge da autoconsciência das classes dominantes na Europa e nos Estados Unidos. A constatação dessa convergência não é, por si só, uma contestação. É o próprio filósofo esloveno, porém, quem nos fornece essa contestação. Ele menciona a diretiva dada por Kissenger à CIA no intuito de desestabilizar o Chile de Salvador Allende (“Façam com que a economia grite de dor”) e destaca como tal política teve continuidade contra a Venezuela de Chávez[8]. Evita-se, porém, uma pergunta que naturalmente se impõe: por que a Venezuela de Chávez e Maduro deveria ser considerada mais “autoritária” do que o país que pretende a todo custo desestabilizá-la e subjugá-la e que pretende exercer sua ditadura na América Latina e no mundo? Claro, do ponto de vista da autoconsciência do Ocidente liberal, o despotismo ou o autoritarismo exercido contra os povos coloniais são irrelevantes. Com base nessa lógica, em seu discurso de posse do primeiro mandato presidencial, Bill Clinton celebrava os Estados Unidos como a mais antiga democracia do mundo: a escravização dos negros e a expropriação, deportação e dizimação dos nativos não mereciam nenhuma atenção. A uma abstração semelhante e igualmente arbitrária procede Žižek, que nem sequer se pergunta se o autoritarismo de Washington não estimula em alguma medida o autoritarismo de Caracas.

Pode-se fazer uma consideração de caráter geral: é muito estranha uma crítica do capitalismo que poupe os piores aspectos desse sistema, muito evidentes, segundo a lição de Marx, nas colônias. Não teria credibilidade uma crítica ao trabalho assalariado que silenciasse sobre o trabalho escravo, pois a história do trabalho escravo em suas diversas formas está em ampla medida ligada à história da opressão colonial. E certamente é enganosa uma crítica do “autoritarismo” como a de Žižek, que nos leva a menosprezar o “autoritarismo” praticado contra povos que, por decisão soberana de uma grande potência ou de uma coalizão de grandes potências, são submetidos a embargos devastadores ou a bombardeios e ocupação militar.

II. Žižek, o desprezo pela revolução anticolonial e a demonização de Mao

A desconsideração da luta entre colonialismo e anticolonialismo também se manifesta nos capítulos da história evocadas pelo filósofo esloveno. A propósito da revolução dos escravos negros de São Domingo/Haiti, ele observa que, depois da morte de Jean-Jacques Dessalinis, em 1806, esse evento sofre uma “regressão para uma nova forma de domínio hierárquico”[9]. A observação é correta se nos ativermos exclusivamente à política interna. No plano internacional, ao contrário, o cenário é bem diferente: mesmo sem conseguir estabilizar e superar a autocracia, o poder dos escravos ou ex-escravos continua a desempenhar uma função revolucionária: é Alexander Pétion, presidente entre 1806 e 1818, quem obtém de Simón Bolívar o compromisso com a libertação imediata dos escravos em troca de apoio à luta da América Latina pela independência da Espanha. Por outro lado, em defesa obstinada do instituto da escravidão, vemos a “democrática” república norte-americana, que, com um política de embargo ou de bloqueio naval, tenta impor a inanição ou a capitulação ao Haiti, o país que, não obstante o despotismo de seu regime político, encarna a causa do abolicionismo e da liberdade para os negros. Se quiséssemos utilizar o critério que Žižek estabelece para a leitura do presente, deveríamos dizer que o Haiti representava o “capitalismo autoritário”, ao passo que os Estados Unidos representavam o capitalismo mais ou menos “democrático". Contudo, tal leitura nos permite entender muito pouco tanto do presente quanto do passado, além de distorcer ambos.

Não menos unilateral é o juízo formulado pelo filósofo esloveno sobre a União Soviética que sucede a morte de Lênin. Limito-me aqui a reportar uma afirmação lapidar: “Heidegger erra quando reduz o Holocausto à produção unilateral de cadáveres; quem se reduziu a isso foi o comunismo stalinista, não o nazismo”[10]. Deixemos de lado o gosto pela provocação, tão caro a esse autor, que frequentemente parece apreciar mais pirotecnia do que os argumentos. O essencial não é isso: vimos eminentes historiadores caracterizar a agressão hitlerista do Leste como a maior guerra colonial de todos os tempos, uma guerra colonial contra a qual, já sabemos, Stálin se prepara mesmo antes da conquista do poder. Pois bem, o mínimo que se pode dizer é que o teórico do “marxismo ocidental libertário” não tem uma posição preliminarmente anticolonialista! Como ignora o papel internacional do Haiti, encarnação da causa abolicionista apesar de seu regime político despótico, também não dá nenhuma atenção ao papel internacional da União Soviética de Stálin, que, aniquilando a tentativa hitlerista de reduzir a Europa oriental a “Índias alemãs”, deu a sentença de morte para o sistema colonialista mundial (ao menos na sua forma clássica).

O mais significativo é o modo como Žižek se posiciona em relação a outro recente capítulo da história, aquele referente à China. No que concerne à gravíssima crise econômica e à terrível penúria provocadas ou seriamente aprofundadas pelo Grande Salto para a Frente de 1958-1959, ele fala com distraída desenvoltura sobre a “decisão de Mao de matar de fome dez milhões de pessoas no fim dos anos 1950”[11]. Quando vi essa afirmação pela primeira vez, fiquei estarrecido: a tradução italiana seria imprecisa ou muito enfática? Nada disso! A versão original também não dá margem a dúvidas e, na verdade, é ainda mais desconcertante: “Mao's ruthless decision to starve tens millions to death in the late 1950's[12]. No original se fala não de “dez milhões de pessoas", mas de “dezenas de milhões de pessoas"; provavelmente, o tradutor tentou salvaguardar o prestígio do autor que traduziu, redimensionando  seus arroubos. De qualquer modo, é preciso que fique claro: o motivo recorrente da campanha voltada a demonizar, junto com o líder que em Pequim exercia o poder por mais de um quarto de século, a República Popular da China enquanto tal, a república surgida da maior revolução anticolonial da história, tal motivo é reverberado sem nenhuma cautela crítica pelo mais famoso expoente do “marxismo ocidental libertário”!

Todavia,a acusação em questão não obtém crédito algum entre autores mais sérios. Até O livro negro do comunismo, embora insistindo nas proporções colossais do desastre, reconhece que o “objetivo de Mao não era matar em massa seus compatriotas”[13]. Eminentes homens de Estado ocidentais também se recusavam a cavalgar o cavalo de batalha da incipiente guerra fria contra o grande país asiático. Numa entrevista ao jornal semanal Die Zeit, o ex-chanceler alemão Helmut Schmidt fez questão de destacar o caráter não intencional da tragédia que o Grande Salto para a Frente provocou em sua época[14]. De modo análogo argumentou Kissinger: de fato, tratou-se de “uma das piores crises de penúria da história humana”[15]. Mesmo assim, Mao se propunha acelerar ao máximo “o desenvolvimento industrial e agrícola" da China, pretendia alcançar o Ocidente em curto período e, desse modo, obter uma condição de bem-estar difuso e generalizado. Em suma, segundo o ilustre estudioso e político estadunidense, Mao “novamente chamara o povo chinês a mover montanhas, mas desta vez as montanhas não se mexeram”.

Ainda que marcada pela honestidade e seriedade intelectual, as tomadas de posição anteriormente reportadas apresentam um limite: ignoram o contexto histórico em que se insere o Grande Salto para a Frente e que remete à longa duração da luta entre colonialismo e anticolonialismo. Já conhcecemos a preocupação expressa por Mao às vésperas da proclamação da República Popular da China: o país, apesar do respaldo da gloriosa luta de libertação nacional, corria o risco de depender economicamente dos Estados Unidos e, portanto, de se tornar uma semicolônia.

Com efeito, as diretivas da administração Truman eram ao mesmo tempo claras e impiedosas: já em condições desesperadoras devido a décadas de guerra e de guerra civil, a República Popular da China, não admitida na ONU e cercada e ameaçada no plano militar, devia ser submetida a uma guerra econômica que a conduziria rumo a uma “situação econômica catastrófica”, “rumo ao desastre” e ao “colapso”. Isso também provocaria a derrota do Partido Comunista Chinês, que até aquele momento governara somente áreas rurais mais ou menos extensas e, portanto, padecia de uma total “inexperiência” no que se referia ao “campo da economia urbana". Era dessa condição de extrema fragilidade econômica e de potencial queda ou recaída numa condição de dependência semicolonial que Mao tentava escapar, recorrendo a uma mobilização de massas de tipo militar em que dezenas de milhões de camponeses, embora semianalfabetos, com seu entusiasmo revolucionário, deveriam imprimir uma prodigiosa aceleração ao desenvolvimento econômico.

Na realidade, com sua impaciência e com sua inexperiência no “campo da economia urbana”, o líder chinês acabou caindo na armadilha preparada contra ele por seus inimigos. O resultado foi a catástrofe. Um fato, porém, dá o que pensar: no início dos anos 1960, um colaborador da administração Kennedy, a saber, Walt. W. Rostow, vangloriava-se do triunfo dos Estados Unidos, que tinham conseguido atrasar o desenvolvimento econômico da China por “décadas”. Isto é, a penúria que se seguiu ao Grande Salto para a Frente de 1958-1959 não era atribuída à suposta fúria homicida de Mao, mas sim à sabedoria maquiavélica da política perseguida por Washington[16].

Concluindo: Margolin, Schmidt e Kissinger erram ao não inserir claramente o desastroso experimento utopista de Mao na história da tragédia colonial iniciada com as guerras do ópio e ainda  em pleno desenvolvimento nos anos do Grande Salto para a Frente. No entanto, é Žižek que, omitindo tanto a luta entre colonialismo e anticolonialismo quanto a corrida frenética de Mao para escapar da desesperada miséria de massa resultante da agressão e do domínio colonial, atribui tudo à loucura homicida do líder chinês.

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Notas:
[1] Slavoj Žižek, In difesa delle cause perse (trad. Cinzia Arruzza, Milão, Salani, 2009), p. 255 [ed. bras.: Em defesa das causas perdidas, trad. Maria Beatriz Medina, São Paulo, Boitempo, 2011]; e Un anno sognato pericolosamente (trad. Carlo Salzani, Milão, Salani, 2012), p. 163 [ed. bras.: O ano em que sonhamos perigosamente, trad. Rogério Bettoni, São Paulo, Boitempo, 2012].
[2] Ver, neste volume, cap. 5, § 7.
[3] David Shulman,
“Israel in Peril”, The New York Review of Books, 7 jun. 2012.
[4] Michael Hardt e Antonio Negri, Questo non è un manifesto (Milão, Feltrinelli, 2012), p. 66. 
[5] Slavoj Žižek,
“Mao Tse-ting, the Marxist Lord of Misrule”, em Mao. On Practice and Contradiction (Londres, Verso, 2007), p. 2 e 5.
[6] Idem,
“De la démocratie à la violence divine”, em Giorgio Agamben et al, Démocratie, dans quell état? (Paris, La Fabrique, 2009), p. 131. 
[7] Idem, In difesa delle cause perse, cit., p. 450.
[8] Domenico Losurdo, La lotta di classe: una storia politica e filosofica (Roma/Bari, Laterza, 2011), cap. 9, § 7 [ed. bras.: A luta de classes: uma história política e filosófica, trad. Silvia de Bernardinis, São Paulo, Boitempo, 2015].
[9] Slavoj Žižek, Dalla tragedia alla farsa (trad. Cinzia Arruzza, Florença, Ponte alle Grazie, 2010 [2009]), p. 159 [ed. bras.: Primeiro como tragédia, depois como farsa, trad. Maria Beatriz de Medina, São Paulo, Boitempo, 2009].
[10] Idem, “Mao Tse-tung, the Marxist Lord of Misrule”, cit., p. 10.
[11] Idem, In difesa delle cause perse, cit., p. 212.
[12] Idem, In Defense of Lost Causes (Londres/Nova York, Verso, 2008), p. 169.
[13] Jean-Louis Margolin, “Cina: una lunga marcia nella note” (1997), em Stéphane Courtois et. al., Il libro nero del comunismo. Crimini - terrore - repressione (trad. Luisa Agnese Dalla Fontana, Milão, Mondadori, 1998), p. 456.
[14] Giovanni di Lorenzo, “Verstehen Sie das, Herr Schmidt?” (entrevista a Helmut Schmidt), Die Zeit, 13 set. 2012.
[15] Henry Kissinger, On China, (Nova York, The Penguin Press, 2011), p. 107 e 183-4. 
[16] Domenico Losurdo, Il revisionismo storico: problemi e miti (Roma/Bari, Laterza, 2015), cap. 6, § 10 [ed. bras.: Guerra e revolução: o mundo um século após outubro de 1917, trad. Ana Maria Chiarini e Diego Silva Coelho Ferreira, São Paulo, Boitempo, 2017].
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LOSURDO, D. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. Trad. Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 165-172.
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