O
exame menos epidérmico da ditadura brasileira revela-a como um
processo, o ciclo da autocracia burguesa, com momentos nitidamente
diferenciados e diferenciáveis no plano empírico e analítico[1]. Em tal processo contém-se a constituição e a crise da autocracia e do seu regime político.
Nesta
seção, procuraremos realizar uma sinopse — que recolhe muitos dos
passos analíticos consagrados na documentação já produzida sobre a
ditadura mas que, ao mesmo tempo, se afasta de muitas considerações
correntes — que dê conta apenas dos aspectos substantivos do processo em
questão.
Entendemos
que o ciclo autocrático burguês recobre três lustros — de abril de 1964
a março de 1979; do golpe à posse do general Figueiredo. Assinalar seu
início com a empreitada que depôs o governo constitucional de Goulart
não desperta polêmica, mas é seguro que se levantem dúvidas pertinentes
acerca do marco estabelecido com a sagração presidencial de João
Figueiredo. Julgamos que é possível dirimi-las minimamente se
esclarecermos, de início, que não consideramos que o fim do ciclo
autocrático burguês significa a desarticulação do Estado por ele criado
e, logo, nem a substituição do regime próprio à ditadura; em poucas
palavras: o fim do ciclo autocrático burguês não corresponde, em nossa
ótica, à emergência de um regime político democrático. O que o governo
Figueiredo demarcou, claramente — e de modo inédito, no bojo dos
instantes finais do ciclo autocrático —, foi a incapacidade de a
ditadura reproduzir-se como tal: em face do acúmulo de forças da
resistência democrática e da ampla vitalização do movimento popular
(devida, decisivamente, ao reingresso aberto da classe operária urbana
na cena política), a já estreita base de sustentação da ditadura
experimentou um rápido processo de erosão que a compeliu a empreender
negociações a partir de uma posição política defensiva. Que esta situação não tenha desembocado numa crise do Estado instaurado pela ditadura, permitindo-lhe, durante o final do governo Geisel e durante o governo Figueiredo, estabelecer o terreno e os limites
da negociação — eis uma das particularidades da transição brasileira da
ditadura a um pacto e a um regime políticos que, neste momento, sob
vigência da Constituição de 1988, já têm definidos os seus parâmetros e
arcabouço. É no governo Figueiredo que o projeto de autorreforma
do regime ditatorial, a que nos referiremos adiante, a sua mais
ambiciosa proposta de institucionalização, fracassa. Nele, a resultante
do confronto entre a estratégia aberturista do regime e as aspirações e
tendências à democracia, que operavam no seio da sociedade brasileira, é
a impossibilidade de o regime impor as suas regras. É apenas neste sentido que tomamos o início do governo Figueiredo como o marco derradeiro do ciclo autocrático burguês[2].
Ao
longo desses três lustros, a autocracia evoluiu diferencialmente.
Parece-nos legítimo apanhar esta evolução segundo três momentos
distintos: o que vai de abril de 1964 a dezembro de 1968 (cobrindo o
governo Castelo Branco e parte do governo Costa e Silva); de dezembro de
1968 a 1974 (envolvendo basicamente o fim do governo Costa e Silva, o intermezzo
da Junta Militar e todo o governo Médici) e o período Geisel
(1974-1979). É desnecessário apontar para a natureza aproximativa e
indicativa destes marcos cronográficos; quanto à continuidade de que se
nutrem as diferenciações que conformam estes momentos, ela será
sumariada adiante.
O
primeiro momento (1964-1968) é singularizado pela inépcia da ditadura
em legitimar-se politicamente, em articular uma ampla base social de
apoio que sustentasse as suas iniciativas. Após a vaga repressiva que
desencadeou na sequência imediata da deposição de Goulart — vaga que
incidiu sobre aqueles atores que poderiam protagonizar confrontos
diretos com o pacto contrarrevolucionário, vale dizer: o movimento
operário e camponês, as lideranças democráticas mais comprometidas com
as forças populares e de esquerda, dentro e fora do aparelho estatal[3]
—, após esta vaga repressiva, a coalizão vencedora esforçou-se para
manter um consenso ativo entre seus parceiros e neutralizar as forças
que lhe eram hostis. Para tanto, no plano político apresentou-se como
responsável por um período preciso de excepcionalidade (v.g., a
limitação temporal explícita dos seus instrumentos de arbítrio), não
feriu o andamento formal da vida legislativa e se comprometeu com o
calendário eleitoral anteriormente definido. Seus esforços, porém,
mostraram-se inúteis: em pouco tempo as fraturas roeram a unidade dos
parceiros do pacto contrarrevolucionário e as forças antiditatoriais
buscaram mecanismos de rearticulação[4].
Para
a erosão da unidade do pacto contrarrevolucionário concorreram vetores
nitidamente políticos, entre os quais, com peso não desprezível, os
projetos particulares de lideranças que jogaram no golpe com o fito de
realizá-los mais facilmente. Todavia, o dinamismo essencial da erosão
radicava em que a orientação econômico-financeira do novo governo
colidia frontalmente com a composição heteróclita do pacto
contrarrevolucionário: as medidas “racionalizadoras”, quer em face da
desaceleração do crescimento (que vinha desde 1962), quer em face de
suas prospecções já lançando as bases para o “modelo econômico” que
haveria de consolidar-se no momento seguinte, rachavam a unidade
conseguida às vésperas de abril — aqui, a implementação do Plano de Ação Econômica do Governo
(PAEG/1964-1966) é canônica. No campo dos trabalhadores, as iniciativas
governamentais não ganhavam setores significativos — ao contrário, a
liquidação da estabilidade no emprego e uma política salarial depressiva
(com perdas muito visíveis a partir de 1967) só faziam alargar o fosso
original entre o governo e a massa trabalhadora. Por seu turno, parte
considerável da pequena burguesia urbana, afetada retardatariamente pela
desaceleração do crescimento e muito penalizada neste período,
descola-se rapidamente do pacto contrarrevolucionário. No lapso
indicado, nos dois processos eleitorais por que passou o país (o
segundo, em 1966, já com a imposição do bipartidarismo), o governo não
colheu evidências de que seus suportes sociais conservavam posições
seguras.
As
dificuldades do primeiro governo dos golpistas são grandes em todas as
frentes, mas apresentam-se óbvias particularmente em dois planos. O
primeiro deles é o do sistema político-institucional: o arcabouço
herdado do período pré-64, mesmo violentado, embaraçava a efetivação não
só do que suas políticas exigiam como, ainda, impunha-lhes um ritmo
lento, flagrantemente negativo à afirmação da nova ordem. Escusa
observar que as oposições aproveitavam-se de tudo o que poderia obstar
os movimentos governamentais, explorando precisamente o que, naquele
arcabouço, lhes favorecia. O segundo refere-se à coesão da força tutelar
do novo poder, a corporação armada[5]: o processo conspirativo e
a ascensão a posições públicas de poder e prestígio, comprometidas
descaradamente com interesses econômico-financeiros explícitos,
derruíram sensivelmente a sua unidade orgânica e funcional; no seu bojo,
começaram a emergir “partidos” — e daí a incapacidade do primeiro
titular golpista da Presidência para controlar a escolha do seu
sucessor.
Esta
herdaria de Castelo Branco toda a acumulação de estrangulamentos
políticos e sociais, sem outra perspectiva concreta e factível que a de
legitimar-se, ante ponderáveis estratos da população, com a retomada do
crescimento econômico, embora expressasse esforços para obter alguma
legitimação política. Esta perspectiva foi eclipsada pela dinâmica
política: capitalizando o difuso descontentamento popular, a oposição
saiu da defensiva e, mesmo privada de instrumentos de poder, começou a
romper o cerco com que os mecanismos do arbítrio procuraram insulá-la — é
o tempo da Frente Ampla, sinal inequívoco da ruptura do pacto
contrarrevolucionário. A aceleração do processo político foi potenciada
por dois fenômenos: o movimento operário e sindical retomou ações
significativas e o movimento estudantil, expressão privilegiada da
pequena burguesia urbana, assumiu ruidosamente a frente da contestação à
nova ordem. O quadro mudava; a oposição conquistava as ruas. E esta
mudança operava alterações nos dois campos — no do governo e no da
oposição. Nesta, adquiria densidade uma avaliação eufórica da situação
e, por fora da política institucional, condensavam-se polos (básico, mas
não exclusivamente, de extração pequeno-burguesa) que concebiam a
liquidação do arbítrio como ultrapassagem da dominação burguesa[6].
Naquele, encorpava-se a tendência a precipitar a instauração profunda
da nova ordem pela via da militarização do Estado e da sociedade.
1968
é o ano que decide do curso do processo. Conjugando a ação nos espaços
legais cedidos pelo governo com a intervenção aberta na área de penumbra
entre a legalidade e a ilegalidade, as oposições inviabilizaram a
intenção governamental de legitimar-se politicamente. Fica patente que,
mantidas em vigência as estruturas jurídico-políticas que reservavam
canais para o dissenso, mesmo desprovido de chances imediatas de rebater
nos centros decisórios do Estado, a projeção “modernizadora”, em curso,
entrará em ponto morto (assim é que nem proposta constitucional de
Costa e Silva/Pedro Aleixo mostra-se funcional, naquela conjuntura, a
tal projeção). O nó de impasses é rompido com o Ato Institucional n.º 5 (AI-5): abre-se o genuíno momento da autocracia burguesa[7].
O que fora, até então, uma ditadura reacionária,
que conservava um discurso coalhado de alusões à democracia e uma
prática política no bojo da qual ainda cabiam algumas mediações de corte
democrático-parlamentar, converte-se num regime político de nítidas características fascistas[8].
No bloco sociopolítico dominante, conquista preeminência indiscutível o
componente mais reacionário do pacto contrarrevolucionário, aquele que
corporifica os interesses do grande capital monopolista imperialista e
nativo. O processo de concentração e centralização capitalistas, com a
desobstrução do campo realizado pelo PAEG e, em muito menos medida, pelo
Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED, do governo Costa e
Silva), acelera-se velozmente — é que a estrutura do Estado, então, é
inteiramente redimensionada e refuncionalizada para servir e induzir à
concentração e à centralização. Se, entre 1964 e 1968, a ditadura
assumiu o Estado, ela agora cria as suas estruturas estatais. Com efeito, é nesse momento do ciclo autocrático burguês que a ditadura ajusta estruturalmente
o Estado de que antes se apossara para a funcionalidade econômica e
política do projeto “modernizador”. Esta adequação integra o aparato dos
monopólios ao aparato estatal.
Na
escala exata em que o Estado e o regime já não se confrontam apenas com
o campo democrático e popular, mas com amplos setores burgueses, na
defesa, que implica penalizações parciais de segmentos capitalistas, da
projeção histórico-societária do grande capital, a tutela militar
estende-se e amplia-se, generaliza-se por todos os pores do Estado e
penetra os interstícios da sociedade. A repressão à oposição e ao
dissenso, mesmo prosseguindo em linha seletiva, torna-se sistemática e
se converte, operacionalizada de forma policial-militar (com o
reconhecido aporte de meios empresariais e a assessoria, inicialmente,
de personalidades afetas a organismos estrangeiros), em prática
organizada e planificada oficialmente: o terrorismo de Estado é a
contraface política da “racionalização”, da “modernização conservadora”
conduzida ao clímax na economia e visível na consolidação do “modelo”.
A
requisição da legitimação é deslocada no plano da representação de
interesses sociais, do plano da representação e da expressão políticas —
onde, naturalmente, não teria viabilidade —, para o da eficácia
do regime e do governo na promoção do desenvolvimento econômico: é o
tempo do crescimento acelerado, batizado então de “milagre brasileiro” e
posto como organizador de um consenso passivo.
Deste
momento do ciclo autocrático burguês, há dois fenômenos a reter. De uma
parte, a construção do Estado a serviço dos monopólios não implicou
apenas a liquidação de práticas e instituições do pré-64 (pense-se, por
exemplo, na supressão da Federação pela sistemática tributária, no papel
dos legislativos etc.) que obstaculizavam ou reduziam a velocidade da
“modernização conservadora”; implicou, especialmente, tanto o
crescimento quantitativo de aparatos funcionais ao “modelo
econômico” que já tematizamos (e às suas consequências sociopolíticas,
sublinhe-se) quanto uma alteração qualitativa no seu rebatimento
na ordem estritamente econômica: conferiu-lhe um enorme poder de
definição macroscópica de políticas sociais abrangentes e um idêntico
poder para efetivamente implementá-las[9]. De outra parte, a sistemática do terrorismo de Estado conduziu as forças democráticas a uma residual política de resistência e compeliu o movimento democrático e popular a uma atividade que não pode ser denotada senão pelo termo molecular.
Dadas
estas condições, é flagrante que neste momento da sua evolução o ciclo
autocrático burguês tensionou ao limite o circuito Estado-sociedade.
Esta evidência emerge, prenunciando desdobramentos incontroláveis,
quando a única variável que legitimava o Estado e o regime apresenta
indicações inequívocas de reversão — quando, já em 1973, o “milagre”
começa a esgotar-se. Na crise do “milagre", que a partir daí só faria
aprofundar-se, inscrevem-se as determinações que, pela mediação da
resistência democrática e pela ação do movimento popular, desembocarão
na crise do regime autocrático burguês[10].
Esta
mediação torna possível — num período em que as lutas classistas dos
trabalhadores, nomeadamente do proletariado industrial, são
constrangidas a formas elementares (Frederico, 1979) — conferir ao que a
ditadura militar-fascista transformara em ritual um sentido sentido
específico: o processo eleitoral adquire uma significação peculiar, um
caráter plebiscitário em relação ao regime. No terreno mesmo da
manifestação esvaziada e ritualizada pela ditadura, a massa do povo que
tem acesso ao voto converte-o — a despeito de anos de terror que
instauram o circuito fechado do medo e do absenteísmo — em instrumento
eficaz de mobilização e luta (e, de fato, passando por cima de todas as
sugestões do “voto nulo”, então próprias ao radicalismo pequeno-burguês
de fachada socialista). O processo eleitoral de 1974, com este
significado, aliás surpreendente para boa parte de seus protagonistas e
analistas, derruiu qualquer pretensão de legitimação do autocratismo
burguês em sua configuração militar-fascista, explicitando que seu
futuro imediato tendia a comprometer-se numa rede crescente de fenômenos
de instabilidade[11].
Se 1968 marcou uma inflexão para cima do ciclo autocrático burguês, 1974 marcou-a para baixo:
abre o momento derradeiro da ditadura, centralizado pelo aprofundamento
da crise do “milagre” e por uma particular estratégia de sobrevivência
implementada pelo alto núcleo militar do regime — estratégia expressa
claramente por Geisel e sua equipe, autodenominada “processo de
distensão” e que, avançando no governo Figueiredo, constituirá o projeto de autorreforma com que o Estado forjado pela ditadura procurará transcendê-la[12].
Tal estratégia, reduzida a seus termos mais simples, visava à
recomposição de um bloco sociopolítico para assegurar a
institucionalização duradoura do sistema de relações econômico-sociais e
políticas estruturado a serviço dos monopólios (especialmente a
estruturação plasmada no Estado). Seu objetivo axial, assentado numa
“iniciativa da liberalização controlada e limitada”, consistia em
“instaurar no país a superestrutura política que considera adequada: uma
combinação estável de formas parlamentares limitadas com mecanismos
decisórios ditatoriais” (PCB, 1984, p. 25-26).
Na
implementação desta estratégia, o Estado ditatorial precisava operar
diretamente em dois planos e indiretamente num terceiro. Diretamente,
por um lado, necessitava enquadrar rigidamente todo o vasto aparelho
policial-militar repressivo, impedindo o seu acionamento por segmentos
corporativos localizados — em suma, era-lhe indispensável suspender o
arco da autonomia das facções do “partido militar”, subordiná-lo
inteiramente a um comando único e inquestionável. Por outro lado,
era-lhe igualmente necessário aniquilar todas as forças
político-organizativas que, na contestação radical do seu projeto,
poderiam introduzir elementos de problematização de longo curso na sua
intenção institucionalizante[13]. Não restam dúvidas de que a
ação estatal, neste plano da intervenção direta, obteve êxito — mesmo
que de alcance diverso (mais sucesso no primeiro que no segundo caso).
Existia,
porém, a requisição de uma intervenção direta: havia que conquistar —
e, para tanto, a pura coerção era inepta — para o projeto de
autorreforma segmentos ponderáveis da sociedade, contando ou não com a
mediação das representações políticas. E foi precisamente neste plano
que o projeto de autorreforma encontrou os maiores obstáculos: se, de
uma parte, poucos daqueles segmentos visados se reconheciam nas
representações políticas sancionadas pelo Estado, de outra o ritmo com
que se aprofundava a crise econômica (recorde-se que o II Plano Nacional de Desenvolvimento acabou inviabilizado) promovia realinhamentos políticos de importância, inclusive em suas hostes, potenciados por um fato novo:
a reinserção da classe operária, a partir das greves do ABC paulista,
na cena política. A implicação foi substantiva: imediatamente, a
reemergência do proletariado urbano, como tal, como ator demandante independente que feria a legalidade posta pelo Estado, deflagrou uma radicalização
na oposição democrática — que, então e aliás, inicia um giro explícito
de aproximação à classe operária. Concorrentemente, o movimento
democrático — que só parcialmente se reconhecia e se expressava na
oposição democrática, sendo muito mais amplo e capilar que ela — se
precipita: salta da ação que chamamos molecular, extravasa os seus
espaços de origem e permeia amplamente algumas das agências da sociedade
civil que, por esta saturação, ganham uma funcionalidade e uma
ressonância inéditas.
Eis por que, em seu último momento evolutivo, a autocracia burguesa é obrigada
a combinar concessões e gestos tendentes à negociação com medidas
repressivas. E nenhuma das duas modalidades, ou mesmo a combinação de
ambas, conduziu o seu projeto de autorreforma ao êxito — a
institucionalização geiselista foi de curto prazo, esboroando-se no
governo Figueiredo. Neste, a autocracia prossegue em seus intentos de
autorreforma, sob a versão aberturista, mas a crise econômica que leva o
país ao fundo do poço acentua os realinhamentos políticos — e já então,
por força da ação do movimento operário e popular, que passa à
ofensiva, deslocam-se do bloco de sustentação do regime até setores
monopolistas. Culmina a crise da autocracia burguesa e a dominação
burguesa é compelida a transitar por outros condutos — numa história que
escapa ao quadro de interesse do nosso estudo.
Entretanto, há dois componentes fundamentais
que percorrem o processo global da ditadura e que, se não forem
destacados, não permitem nem clarificar o fio condutor que une
visceralmente os distintos momentos da autocracia burguesa nem
compreender o seu estágio crítico.
O
primeiro diz respeito ao vetor que coesiona a tutela militar na
conformação do Estado ditatorial. Em todo o ciclo autocrático burguês, o
referencial político-ideológico da doutrina de segurança nacional foi o
parâmetro ideal recorrente. A sua amplitude e labilidade — Moreira
Alves (1987, p. 27), analisando um dos seus principais formuladores
brasileiros, chega a caracterizá-la como uma Weltanschauung — presidiu toda
a movimentação operada em torno e a partir do Estado. Num primeiro
instante do processo, foi ela que orientou estrategicamente a conquista
do Estado; em seguida, conformou um novo Estado e dirigiu-o.
Tanto no curso ascendente da autocracia burguesa, até 1973-1974, quando
no limbo da sua crise, a expressão doutrinária e prática da segurança
nacional permeou a intervenção do bloco que assumiu o poder. Não se
trata, esta doutrina, de uma referência específica de um ou outro
momento do ciclo autocrático burguês — antes, foi a sua representação
ideal constante e privilegiada, fornecendo a ligadura orgânica quer para
a repressão desenfreada, quer para a “distensão lenta, segura e
gradual”. Concretizando-se em formas precisas de ordenamento da economia
e do poder político, impregnando as instituições estatais, a doutrina
se inscreve na lógica imanente do Estado criado pela, para e na
autocracia burguesa. A implicação é cristalina: este Estado é incompatível com um processo substantivo de democratização[14].
O segundo componente a ser retido é que, também ao largo de todo o ciclo autocrático burguês, no campo da oposição democrática a hegemonia nunca escapou das mãos de correntes burguesas.
Ao longo do processo ditatorial, o fenômeno relevante a ser observado é
que, na sua contracorrente, não se engendraram núcleos democráticos
sólidos capazes de emergir, na crise da ditadura, com propostas social e
politicamente viáveis aptas a transcender os quadros da ordem
burguesa. Não acidentalmente, um dos máximos horizontes de um avançado
segmento democrático, com peso ponderável na oposição, tem sido o de uma
democratização habilitada a controlar o Estado (o mesmo Estado que caracterizamos na seção 1.2)[15].
Não
é por acaso, pois, que a crise da ditadura, alongando-se por mais de
uma década, configura um processo de transição que parece singular e
atípico: deu lugar a uma situação política democrática, nos
primeiros anos da década de oitenta, que vem se aprofundando, mas que
coexiste com um aparato estatal inteiramente direcionado para um sentido
incompatível com a sua manutenção, ampliação e consolidação. O impasse
de fundo aí contido — uma clara defasagem entre o Estado e o regime
político — seguramente não pode perdurar por muito tempo.
= = =
Notas:
[1] Praticamente todos os investigadores reconhecem a existência factual destes momentos e a maioria deles concede, procedentemente, destaque às mudanças ocorridas em 1968 e sinalizadas pelo Ato Institucional n.º (AI-5); ao que eu saiba, o estudioso que se dedicou a pesquisar mais detidamente as nuanças do processo da ditadura foi Moreira Alves (1987).
[2] Algumas poucas questões referentes à transição deflagrada com o fim do ciclo autocrático burguês serão tacitamente tratadas no seguimento.
[3] Componente ainda indevidamente avaliado, nesta rodada repressiva, foi a evicção de elementos democráticos nas corporações armadas. Mesmo que se possa problematizar o potencial democrático e nacional que certas análises reivindicam para as corporações militares no pré-64 (e nesta reivindicação coincidem autores tão distintos como Sodré, 1965 e Pedrosa, 1966), está claro que a depuração que nelas promoveram os golpistas foi extremamente significativa. Sobre o papel das corporações militares, cf. Oliveira (1976) e o ensaio de Dreifuss e Dulci, in Sorj e Tavares de Almeida, orgs. (1984); para uma panorâmica do período mais recente, cf. Stepan (1986).
[4] No andamento desta seção, centra-nos-emos nos processos, sem a referência a fatos, que podem ser verificados nas fontes bibliográficas já apontadas e nos periódicos da época.
[5] A tutela militar foi a alternativa mais eficiente para o controle do poder emergente em abril, dadas a natureza do pacto contrarrevolucionário e as tarefas da ditadura. Martins (1977, p. 215-6) pontualiza: “Não podendo compor-se legitimamente com a nação, formando uma coalizão hegemônica entre os seus subsetores, a classe [burguesa] teve que impor-se coercitivamente à nação [...]. A ditadura surgiu, assim, como a melhor solução possível para o macroproblema da reprodução do sistema de classes em sua globalidade. Dado esse passo, estava resolvido em nome de quem o poder estatal seria exercido. [...] Para que a solidariedade de base entre as classes, estratos e frações dominantes pudesse traduzir-se ao nível do controle efetivo do aparelho estatal, a nenhuma das partes integrantes do bloco no poder deveria ser concedido o privilégio de compor [...] os quadros da elite governamental. O homem do governo, para contar com a confiança de todos, tinha que ser, em princípio, o homem de ninguém: a vontade geral burguesa só preservaria intacta a sua pureza abstrata caso fosse encarnada por um tertius. Um tertius que, além de ser estranho, à classe. Essa dupla condição foi perfeitamente atendida pelas correntes militares e tecnoburocráticas que se converteram na elite governamental contrarrevolucionária”.
[6] É o período em que começam a proliferar organizações clandestinas de esquerda, muitas reclamando o legado marxista (algumas frutos de cisões no PCB). São precisamente os grupamentos que, no momento seguinte, o regime liquidará com invulgar barbarismo (na já extensa documentação sobre a repressão no Brasil, é de consulta obrigatória o trabalho apresentado por Arns, 1985). É larga a bibliografia sobre a diferenciação e o destino deste segmento da esquerda. O texto mais recente que aborda esta temática, com o cuidado que é peculiar à seriedade do autor, é o de Gorender (1987). Mas ainda está por fazer-se a análise — que o próprio Gorender não realizou nessa obra — dos condicionamentos e das razões profundas que levaram boa parte dos melhores lutadores do povo brasileiro a cometer equívocos tão grosseiros na avaliação das forças em confronto e das perspectivas do período 1967-1973.
[7] Com a sua certeira perspicácia, Florestan Fernandes (1975, p. 359), observou que “se já houve, alguma vez, um paraíso burguês, este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968”.
[8] Na entrada dos anos setenta, a análise teórica privilegiou o “modelo político” configurado no pós-68. Na massa crítica produzida neste terreno e, naturalmente, levando em conta as demais experiências vitoriosas da contrarrevolução preventiva, fica em relevo a dificuldade para a caracterização dos Estados e regimes delas emergentes. O que tem predominado — descontadas as caracterizações obviamente frágeis (“regimes de legitimação restrita”, no caso de analistas acadêmicos; “regimes militares”, no caso de protagonistas políticos) — é a recusa a valer-se do instrumental crítico-analítico da tradição marxista, como o comprova a voga internacional das análises do “autoritarismo”, esta pérola do cretinismo sociológico, que serve para compreender tudo, de Franco (Linz) a Videla, Médici e Pinochet (Garreton), voga constatável, por exemplo, nas antologias organizadas por Stepan (1973), Collier (1982) e Cheresky e Chonchol (1986).
A noção de autoritarismo — na qual convergem influxos da psicologia e da psicologia social, e em que concorrem paradoxalmente matizes de liberalismo e anarquismo — tem funcionado como panaceia descritiva e compreensiva, que, pela sua indeterminação, é aplicável a qualquer “objeto” e vale para as mais díspares conjunturas históricas (cf. o exemplo de Tavares, 1982). Seu valor heurístico, a nosso ver, é muito assemelhado ao da noção de totalitarismo, convenientemente desmontada, entre outros, por Chasin (1977). Um primeiro passo para avaliar a inépcia da noção de autoritarismo encontra-se em Fernandes (1979a); uma resenha crítica dos empregos da noção encontra-se em Quartim de Moraes (1986).
Sem menosprezo de outros estudiosos que lavraram a seara do autoritarismo, no Brasil o laurel de instrumentalizar mais seriamente a noção — com a simultânea recusa de trabalhar com a categoria de fascismo — parece caber a Fernando Henrique Cardoso (Cardoso, especialmente 1972 e 1975). A crítica conclusiva da interpretação cardosiana, que não é pertinente retomar aqui, está em belo ensaio de Marques (1977), no qual se fundamenta o caráter fascista do Estado brasileiro pós-68.
É de valor observar que a caracterização rigorosa dos regimes políticos “autoritários” do Cone Sul, na década de setenta, é fonte de ampla polêmica, conforme registra Cueva (1983, p. 209), que parece aceitar para eles a categoria de fascismo, já que, na mesma obra, anuncia um ensaio (que não pudemos examinar) intitulado “A política econômica do fascismo na América Latina”.
[9] É de notar que as políticas sociais típicas da autocracia burguesa (não apenas repressivas, “negativas”, mas “positivas”, com intenção coesionadora, dirigidas para obter consenso) emergem ao mesmo tempo em que a ditadura transita da conquista do Estado à modelagem do seu Estado — não se pense apenas no I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), mas no largo elenco de programas anunciados (embora boa parte deles só anunciados) a partir de 1970.
[10] Na crise do “milagre” entrecruzam-se uma crise cíclica — potenciada inicialmente pela conjuntura internacional — e a crise estrutural do capitalismo no Brasil; daí, também, a extensão e a profundidade do processo aberto com o colapso do “milagre”. Análises diferenciadas sobre a crise do “milagre” encontram-se em Coutinho e Belluzo, orgs. (1982); a visão de seu principal estrategista aparece em Netto (1983).
[11] Moreira Alves (1987, p. 28) chama corretamente a atenção para o traço “intrinsecamente instável” do que denomina “Estado de Segurança Nacional”.
[12] Para uma apreciação do projeto de autorreforma no pós-79, cfr. PCB (1984).
[13] Nesta perspectiva, os dois passos são conjugados e da sua mútua consecução depende, em larga medida, o encaminhamento do projeto de autorreforma. Vê-se, pois, que lavram em equívoco aqueles que, apreciando o Governo Geisel, consideram que a brutal escalada contra a militância e a direção do PCB e, igualmente, contra o núcleo dirigente do PCdoB eram “provocações” do aparelho repressivo ao Presidente — a este só repugnavam os “excessos”.
[14] Da tese aqui sustentada — de que o Estado autocrático burguês foi um instrumento essencial para induzir à concentração e à centralização capitalistas, promovendo a emergência da oligarquia financeira e efetivando a integração entre os aparatos monopolistas e as instâncias estatais — não decorre a conclusão de que ele é imprescindível para manter a dominação burguesa que expressa a direção monopolista. Sobre este ponto, cf. Coutinho (1980, p. 112-118).
[15] É esta, em resumidas contas, a programática (aliás, inteiramente congruente com as teses sobre “autoritarismo” e “burguesia de Estado”) oferecida por Cardoso (1975).
= = =
NETTO, J. P. “O processo da autocracia burguesa”. In: Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. 8ª ed. São Paulo: Cortez, pp. 34-44.
= = =
NETTO, J. P. “O processo da autocracia burguesa”. In: Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. 8ª ed. São Paulo: Cortez, pp. 34-44.
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