quinta-feira, 7 de junho de 2018

O marxismo é herdeiro da filosofia: reflexões sobre Karl Korsch


por Fábio Alves dos Santos Dias
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I. Marxismo, reformismo e filosofia

Independentemente das nossas perspectivas acerca do que seria o verdadeiro método em Marx, qualquer estudo que tenha como meta compreender a história do marxismo notará como o seu desenvolvimento é repleto de caminhos e descaminhos (ANDERSON, 2004). Antes de todos aqueles que pretenderam segui-lo, Marx procurou fazer um acerto de contas com a filosofia hegeliana, impulsionado pela árida realidade de sua época – como podemos notar quando lançamos o olhar sobre os problemas materiais que enfrentou como redator da Gazeta Renana. Depois, na segunda geração de marxistas – formada em tempos de relativa estabilidade econômica e refluxo do movimento revolucionário –, há os teóricos da Segunda Internacional, que, de acordo com inúmeros críticos de gerações posteriores (como Lênin, Luxemburgo, Korsch e Lukács, entre outros), transformaram o marxismo no mais puro economicismo vulgar cujo produto final foi a recusa de seu conteúdo revolucionário e a adoção de uma atitude teórico-prática reformista. Em seguida, com a ascensão do imperialismo, da luta de classes e da Primeira Guerra Mundial, surgiram jovens intelectuais e líderes de instituições partidárias, tais como Lênin e Luxemburgo, que escreveram obras cujo conteúdo colocava a necessidade de vincular marxismo e práxis a partir dos textos políticos e econômicos de Marx e Engels, em meio a um contexto social de profunda ascensão da luta de classes na Europa.

Com a conquista do poder pelos bolcheviques em 1917, na Rússia, surgiu nos anos 1920 uma nova tendência no interior do pensamento marxista hoje denominada “marxismo ocidental”. Trata-se de uma corrente que se iniciou com Korsch. Este autor, que foi levado ao marxismo ao longo da Primeira Guerra Mundial, procurou, assim como Lênin e Luxemburgo, ler a tradição consolidada por Marx e Engels a partir da relação entre teoria e práxis. Korsch, porém, apoiando-se sobre sua erudição acadêmica, foi teoricamente além dos dois grandes líderes revolucionários do início do século XX, guinando o marxismo em direção à filosofia, redescobrindo o pensamento de Marx e Engels como herdeiro do idealismo alemão.

No início da década de 1920, o marxismo começou a tomar novos rumos. Em 1923 foi publicado originalmente no Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der Arbeiterbewegung[1] (Arquivo de História do Socialismo e do Movimento dos Trabalhadores) o ensaio de Karl Korsch (2008) intitulado Marxismo e filosofia. Como bem assinala Ricardo Musse na revista Margem Esquerda, este ensaio de Korsch inegavelmente significou uma novidade frente a tudo o que se fazia até então no interior do pensamento propagado tanto pelo movimento operário quanto pela filosofia. Isso porque retomou algo deveras esquecido do legado deixado por Marx e Engels: o debate em torno da relação entre marxismo e filosofia (cf. MUSSE, 2011, pp. 137-8).

Para Korsch, tanto os teóricos marxistas provenientes da Segunda Internacional como os filósofos profissionais oriundos do campo acadêmico estavam convictos da existência de um pleno divórcio entre o pensamento de Marx e a filosofia. Como indicam os textos de intelectuais daquele período, ora tal dissídio era interpretado como uma prova da força do marxismo – como é o caso do argumento dos teóricos do movimento proletário da época –, ora era percebido como uma fraqueza que comprovaria a irrelevância do marxismo para as cadeiras acadêmicas dignas de se denominarem filosofia, como é o caso dos filósofos acadêmicos da segunda metade do século XIX. Nas palavras do autor:

Persuadindo-se mutuamente de que o marxismo não possuía nenhum conteúdo filosófico próprio, os professores burgueses de filosofia acreditavam estar dizendo algo importante contra ele; de seu lado, os marxistas ortodoxos se persuadiam mutuamente de que o seu marxismo não tinha, em sua essência, nenhuma relação com a filosofia e, com isto, acreditavam estar dizendo algo importante a seu favor. (KORSCH, 2008, pp. 24-5)

Na visão de Korsch, ressaltar tal incompreensão da relação entre marxismo e filosofia propagada tanto pelos marxistas da Segunda Internacional quanto pelos denominados “professores burgueses de filosofia” seria de suma importância. Isto porque a partir da investigação acerca desta relação joga-se luz sobre outra questão fundamental, colocada na ordem do dia no interior do movimento revolucionário europeu contemporâneo ao autor marxista, principalmente após a Revolução Russa de 1917: a relação entre teoria e práxis política revolucionária.

Não é por menos que seu ensaio inicia-se com a seguinte frase: “a afirmação de que as relações entre o marxismo e a filosofia levantam um problema teórico e prático da mais alta importância não encontrou, até muito recentemente, mais do que uma limitada compreensão entre os intelectuais, burgueses ou marxistas” (KORSCH, 2008, p. 23). Logo em seguida, recorria à importante passagem do final do pequeno livro de Engels (Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã) no qual o proletariado é apresentado como o herdeiro da filosofia clássica alemã. Ao realizar isso, Korsch nada mais fez do que demonstrar que todos os eminentes filósofos da segunda metade do século XIX e marxistas do final deste mesmo século não puderam compreender a efetiva relação entre a obra fundada por Marx e a filosofia, porque deixaram de lado uma mediação fundamental para o entendimento da relação entre teoria e práxis revolucionária: a filosofia de Hegel[2].

Hegel, relembrava Korsch, desenvolveu sua produção filosófica num período da história do ocidente no qual a burguesia se constituiu como classe revolucionária e lutou pela derrubada do ancien régime. É neste aspecto que se encontra a grandeza do pensamento deste filósofo alemão que, como nenhum outro até então, conseguiu estabelecer conexões entre o movimento das ideias e o movimento revolucionário burguês, demonstrando que a revolução presente no pensamento (e note-se que se trata de uma revolução no pensamento levada a cabo pelo próprio conceito e não pela práxis humana sensível) “não se opera na quietude de um gabinete de estudo, afastado do campo árido das lutas concretas”, mas sim dentro da própria realidade concreta, pois a própria teoria, segundo Hegel, “é tomada como elemento real do processo social da revolução real” (KORSCH, 2008, p. 29).

É neste sentido que Korsch afirma ser a filosofia do idealismo alemão expressão teórica do movimento revolucionário da burguesia. Segundo o autor, a partir de meados do século XIX (época na qual a burguesia deixou de ser classe revolucionária para tornar-se a classe dominante) os filósofos burgueses abandonaram o papel de protagonistas intelectuais das lutas sociais, como fora Hegel, e transformaram-se em perpetuadores intelectuais da ordem existente, obscurecendo a relação entre filosofia e revolução.

Assim, Korsch evidenciava seu ponto de vista teórico sobre a condição da filosofia a partir da segunda metade do século XIX. Para o autor, a relação da filosofia com a práxis é tão íntima que a primeira é sempre expressão da segunda. Somente com isso em mente compreende-se, a partir da perspectiva do autor, a relação entre a incapacidade de os filósofos pensarem a filosofia no interior do complexo de transformação da vida social e o abandono do posto historicamente constituído de classe revolucionária pela burguesia devido à sua transformação em classe dominante. É nesse sentido que se pode compreender a seguinte passagem:

De fato, na segunda metade do século XIX, os intelectuais burgueses, ao mesmo tempo em que esqueciam a filosofia de Hegel, perderam completamente a visão “dialética” da relação entre a filosofia e o real, entre a teoria e a práxis, que fora, ao tempo de Hegel, o princípio vivificador do conjunto da filosofia e da ciência. (KORSCH, 2008, p. 25)

Diante da constituição da burguesia como classe dominante e reacionária, a filosofia, compreendida como expressão do movimento revolucionário desta classe, transformou-se em prostração diante da ordem existente e, com isso, abandonou toda sua antiga potencialidade crítica, que carregava dentro de si o desejo pela práxis. Não é por menos que os filósofos burgueses não conseguiram, ao longo do século XIX, perceber relação alguma entre a teoria de Marx e Engels e a filosofia: um pensamento tão alicerçado na práxis política revolucionária jamais poderia se relacionar com um saber que, diante das contingências históricas da classe que representava (burguesia), virara as costas para a possibilidade da transformação radical da realidade.

Neste mesmo sentido, ou seja, com base no abandono da práxis política revolucionária, Korsch ampliou sua crítica do campo intelectual burguês para o campo intelectual marxista. Ressaltou a equivalência do pensamento da burguesia que deixara de se constituir como classe revolucionária e o marxismo propagandeado no final do século XIX pelos intelectuais da Segunda Internacional.

Recorrendo ao livro de Lênin (2010), O estado e a revolução, Korsch traçava um paralelo entre a preocupação do revolucionário russo com a indiferença que adquirira para os pensadores marxistas a questão prática da destruição da máquina de estado burguês e o divórcio declarado por estes mesmos pensadores entre marxismo e filosofia. Em ambos os casos, tal indiferença e tal divórcio não poderiam ser explicados pela ótica do voluntarismo, pois não se tratava de uma mera opção por deixar de lado estas questões candentes ao marxismo de Marx e Engels, mas, sim, de um desvio político da diretriz revolucionária da Segunda Internacional que está associada ao viés reformista que adquirira a teoria marxista nas mãos desta direção do movimento operário[3]. Nas palavras de Korsch:

devemos nos perguntar se a relação mais geral que, segundo o arguto crítico Lênin, permite explicar a indiferença dos marxistas da Segunda Internacional frente à questão do estado não intervém igualmente no problema de que nos ocupamos – ou seja, se a indiferença daqueles mesmos marxistas em face da questão filosófica tem a ver com o fato de as questões gerais da revolução em geral os terem preocupado tão pouco (KORSCH, 2008, p. 35).

Tal concepção do abandono da práxis política revolucionária e sua relação com a indiferença dos teóricos marxistas da Segunda Internacional para com o estado e a filosofia significavam, conforme aponta Ricardo Musse, uma novidade presente no ensaio de Korsch. Sua teoria superava a posição inquisitória, voltada para a condenação moral da inépcia da Segunda Internacional frente ao marxismo enquanto doutrina que expressava o movimento revolucionário dos trabalhadores; concomitantemente, também trazia à tona uma explicação ao mesmo tempo lógica e histórica que nos abre importantes possibilidades para compreender o advento da interpretação reformista do legado de Marx e Engels.

Tomando como ponto de partida “a sangrenta repressão ao proletariado parisiense em junho de 1848, seguida pela liquidação de todas as organizações e tendências emancipadoras da classe operária” (KORSCH, 2008, p. 37), nosso autor procurava demonstrar que o reformismo dos teóricos da Segunda Internacional não era apenas o fruto de uma escolha feita deliberadamente ou de uma má leitura de Marx e Engels. Antes, o reformismo tinha uma base concreta alicerçada na própria contingência histórica daquele momento em que a teoria nada mais poderia ser do que expressão do refluxo das lutas operárias. Nesse sentido, afirmava Korsch:

por mais que se ativessem ao ABC da teoria marxista, [os membros da Segunda Internacional] não puderam conservar verdadeiramente o seu caráter revolucionário original: também o seu socialismo científico fora inevitavelmente transformado em algo diverso de uma teoria da revolução social. Durante o longo período em que o marxismo se propagou lentamente sem ter qualquer tarefa revolucionária a desempenhar na prática, os problemas revolucionários, para a grande maioria dos marxistas (...), deixaram de existir no plano teórico como problemas do mundo real (KORSCH, 2008, pp. 43-4).

O marxismo, nesse período de arrefecimento da luta de classes, transformou-se em uma ciência que desconhecia qualquer relação com a práxis revolucionária. Seus teóricos a concebiam como algo distante, relegada a um futuro longínquo ou, até mesmo, transcendente. Mesmo que os congressos das principais organizações proletárias (dentre elas a II Internacional e os partidos operários) afirmassem o contrário, o que ocorria efetivamente era a vitória do reformismo nas ações dos sindicatos (como se pode notar na tão famigerada separação entre luta política e luta econômica). Isto, por sua vez, refletia-se na própria teoria, por meio da fragmentação do saber numa soma de conhecimentos puramente científicos, ou seja, completamente autônomos diante da luta de classes. Para ilustrar tal fato, Korsch tomava como exemplo o eminente economista marxista da II Internacional, Rudolf Hilferding. Segundo o autor, quando o economista afirmava ser possível compreender cientificamente os fenômenos do desenvolvimento capitalista sem relacioná-los à luta de classes, ele acabava por fazer que sua teoria não desembocasse mais em práxis revolucionária, mas conduzisse “a toda uma série de tentativas de reforma que não ultrapassam em princípio o quadro da sociedade burguesa e do estado” (KORSCH, 2008, p. 42).

Com isso, tornava-se possível afirmar uma homologia entre a fragmentação do conhecimento em esferas especializadas e o reformismo das organizações operárias: assim como um sindicato não consegue conciliar luta econômica e luta política num período de declínio das ações revolucionárias, a teoria não consegue ver sua relação com a ação política emancipadora. Desta forma, o vínculo entre marxismo e filosofia se perdeu. Portanto, por força do contexto histórico específico do final do século XIX, o marxismo deixou de lado seu potencial revolucionário para se transformar numa força compromissada com a ordem existente.

II. Marxismo, revolução e filosofia


Quando Korsch estabeleceu o diálogo entre teoria e história da luta de classes, ele o fez a fim de demonstrar que a produção teórica não paira acima do real, não é uma esfera autônoma diante da sociedade e de seus conflitos[4]. A partir de sua leitura dos escritos do jovem Marx, evidencia-se que a teoria é uma força material, uma vez que sua origem não se encontra para além dos homens reais em processo de interação. Por isso, Korsch entendia que “é da essência do materialismo moderno conceber teoricamente e tratar praticamente as criações espirituais, tanto a filosofia como qualquer outra ideologia, como realidades” (KORSCH, 2008, p. 48).

Com base nisso, compreende-se a reviravolta causada no interior do marxismo quando o período reformista que tanto prejudicara o movimento operário começou a dar sinais de falência, sendo substituído por um novo período de lutas revolucionárias. Segundo Korsch, tal processo de passagem do reformismo para o embate revolucionário significaria uma nova etapa no âmbito da produção teórica: diante do proletariado ativo e combativo, os pensadores marxistas deveriam abandonar a visão reformista e retomar o marxismo revolucionário de Marx e Engels.

Com base na crítica de Lênin (2010) – e também de Luxemburgo (2005) –, Korsch demonstrava que, diante das novas jornadas revolucionárias do proletariado, a teoria reformista originada entre os intelectuais do período da história do marxismo reunidos em torno da II Internacional[5] já não podia mais dar conta da realidade imposta pela volta da ação revolucionária ao cenário histórico. Precisava, por isso, ser combatida para que as energias emancipadoras da classe operária em luta não se esvaíssem. Como afirmava nosso autor:
 
teóricos como Rosa Luxemburgo, na Alemanha, e Lênin, na Rússia, na realidade não fizeram e não fazem mais do que responder às exigências práticas do novo período revolucionário da luta de classes, rejeitando as tradições paralisantes do marxismo social-democrata [reformista] do segundo período, que pressionam “como um pesadelo” as próprias massas operárias, cuja situação social e econômica objetivamente revolucionária já há muito não corresponde mais àquelas doutrinas evolucionistas (KORSCH, 2008, p. 44).

De acordo com Korsch, Lênin teria feito aquilo que todos os intelectuais da II Internacional não conseguiram: fundamentar a teoria com base na revolução. Com esse espírito foi escrito O estado e a revolução, livro que gira em torno da obra de Marx e Engels sobre esta interessante relação (utilizando-se dos ensinamentos contidos no Manifesto do partido comunista [cf. MARX; ENGELS, 1998] e n’A guerra civil na França [cf. MARX, 2011]) a fim de afirmar a necessidade da revolução protagonizada pelo proletariado organizado em partido, com o objetivo de derrubar e destruir a máquina de estado burguesa.

Lênin, ao dar relevo em seus estudos à política revolucionária, conseguiu retomar a base em que se alicerçava a teoria de Marx e Engels ao criticar a tradição reformista da II Internacional, cuja característica mais recriminável, aos seus olhos, era considerar relevante para o marxismo tão somente o estudo da esfera econômica, como algo autônomo diante da luta de classes. Assim, o reformismo, segundo Lênin, desprezaria todas as outras esferas constitutivas da realidade, como a filosofia, por exemplo, restringindo a análise somente à defesa de melhorias econômicas por meio da ação reformadora do estado.

Por isso, O estado e a revolução de Lênin (2010) foi de grande valia para Korsch. Ao fazer valer o peso da política revolucionária na interpretação da obra de Marx e Engels, ou seja, ao retomar a relação que o marxismo estabeleceu entre teoria e práxis revolucionária, as ideias do autor serviram de inspiração para recolocar outra relação esquecida pelos intelectuais da II Internacional e intimamente ligada a esta: a que existe entre marxismo e filosofia.

Inspirado no debate em torno da relação entre os comunistas e o proletariado feito no Manifesto do partido comunista, Korsch afirmava que o marxismo é a expressão do movimento operário revolucionário. Ou seja, ressaltava a íntima relação entre teoria e práxis que faz do marxismo o legítimo herdeiro da filosofia clássica alemã. Mas, alertava o autor, no marxismo tal relação não se dá nos mesmos moldes da antiga dialética idealista de Hegel[6], em que o pensamento existe independentemente do ser, como uma essência autônoma que em seu movimento interno acaba por transformar também a realidade; e sim nos moldes da dialética materialista, em que o conjunto das ideias só pode surgir da mente de homens reais vivendo em intercâmbio entre si, ou seja, vivendo em sociedade. Deste modo, o marxismo, por ser expressão dos embates do proletariado com a ordem burguesa, somente pode ser considerado herdeiro do pensamento de Hegel caso se tenha em mente que ele o supera e o suprime, realizando o seu método numa nova base materialista, do mesmo modo que supera e suprime a própria ordem de onde surgiu tal pensamento: a sociedade burguesa. Imbuído desta ideia, escreveu o autor:

A consciência burguesa, que, necessariamente, se pretende autônoma em face do mundo, como pura filosofia crítica e ciência imparcial, do mesmo modo como o estado e o direito burgueses, que parecem situados autonomamente acima da sociedade – esta consciência deve ser igualmente combatida no plano filosófico pela dialética materialista revolucionária, a filosofia da classe operária, até que seja, ao fim desse combate, totalmente superada e suprimida no plano teórico, simultaneamente à total transformação, no plano prático, da sociedade existente e de suas bases econômicas. (KORSCH, 2008, p. 63)

Não é por menos que a teoria marxista, ao ser herdeira da dialética hegeliana, só pode realizar os seus anseios mais íntimos (estabelecer uma relação efetiva entre filosofia e realidade) superando-a a partir de uma abordagem materialista do método dialético, pois somente este pode expressar a luta revolucionária do proletariado contra a dominação burguesa. Como Marx e Engels afirmaram:

as proposições teóricas dos comunistas não se baseiam de forma alguma em ideias, em princípios inventados ou descobertos por esse ou aquele reformador do mundo. Elas são apenas expressões gerais de uma luta de classes existente, expressões de um movimento histórico que se desenrola sob os nossos olhos (MARX; ENGELS, 1998, p. 21).

Aqui, segundo Korsch, tratava-se de ressaltar o lugar do marxismo na luta de classes. Para o autor, o marxismo é uma teoria inseparável da práxis, pois nasceu em solo capitalista, como expressão da luta política revolucionária do proletariado e, por isso, constitui-se como uma força de transformação da ordem existente em sua totalidade. Portanto, o pensamento marxista não é considerado uma teoria pretensamente pura, intocada pela realidade efetiva, mas, pelo contrário, “uma teoria da revolução social que abrange, na sua totalidade, todos os domínios da vida social” (KORSCH, 2008, p. 46). Por isso, é possível estabelecer o engenhoso raciocínio da obra de Marx e de Engels como elemento teórico e prático da supressão não só de todas as ideologias (dentre elas a filosofia), mas também de todas as condições materiais que tornaram possível a existência dessas mesmas ideologias.

Desse modo, Korsch, apesar de considerar de extrema importância a transformação do modo de produção capitalista como projeto revolucionário, em momento algum colocou o mundo espiritual (as ideologias) como algo secundário. Para o autor, a transformação da base material, propiciada pelo movimento de tomada do poder do estado burguês e sua destruição, está relacionada imediatamente ao movimento de realização e superação da filosofia clássica alemã. Conforme nos mostra o Manifesto do partido comunista e mesmo O estado e a revolução, é tarefa do proletariado revolucionário destruir o estado burguês e, com isso, destruir todas as formas de estado, pois este “é o produto e manifestação do antagonismo inconciliável das classes” (LÊNIN, 2010, p. 27), a forma de organização jurídica de todas as sociedades baseadas na dominação do homem pelo homem.

Ora, se a base material é inseparável da base ideológica, pode-se afirmar que é tarefa do marxismo não apenas superar as bases ideológicas do capitalismo, mas toda a ideologia que foi, ao longo da história, a base espiritual da dominação material. Com isso, o marxismo, afirmava Korsch, não só procura superar a filosofia clássica alemã, mas a filosofia em geral, pois, para a teoria de Marx e Engels, não se trata nem de formar uma nova filosofia nem, como já afirmamos, de ignorá-la: trata-se sim de superá-la por meio da realização daquilo que ela mesma não pode cumprir devido ao fato de ser expressão da classe dominante: a revolução. Sobre isso, Korsch escreveu no início do ensaio:

Já Marx e Engels, que com firmeza e insistência sublinharam que o movimento operário alemão recolhera no “socialismo científico” a herança da filosofia clássica alemã, não entendiam por esta recolha que o socialismo científico ou o comunismo fosse essencialmente uma filosofia. Ainda mais: eles lhe atribuíam a missão de “superar” (aufheben) e “suprimir” (überwinden) definitivamente, no seu conteúdo e na sua forma, não apenas a filosofia idealista burguesa até então desenvolvida, mas, simultaneamente, toda filosofia em geral. (KORSCH, 2008, p. 23)

Neste aspecto, a ideia da herança em Korsch ganha em originalidade porque se encontra nas suas entrelinhas uma interpretação da teoria da história de Marx e Engels que nos mostra que o marxismo não se define pelo esquecimento do passado, mas como um acerto de contas com ele. Mas tal acerto de contas não pode se desenrolar como se fosse uma volta no tempo, pois se executa no momento presente (na ordem material e espiritual do capitalismo) e visa à construção de um novo futuro. É neste sentido que compreendemos o porquê de Korsch indicar que o marxismo precisa constituir-se como ciência (“socialismo científico”) e também o porquê de esta ciência não poder prescindir da filosofia. Ora, por ser expressão do movimento revolucionário do proletariado que tem como objetivo não mais substituir uma forma de dominação por outra qualquer, mas libertar os homens de qualquer forma de dominação, o marxismo precisa superar na teoria e na prática toda a filosofia do passado (a “filosofia em geral”), superando a filosofia que expressa a dominação em seu momento presente (a filosofia clássica alemã). Neste aspecto, o marxismo transforma-se em crítica da economia política, pois somente esta consegue superar na teoria e na prática o idealismo alemão, concebendo a filosofia como produto da consciência do homem que vive no mundo e que, ao mesmo tempo, é expressão deste mundo. Portanto, a realidade da base material e a base espiritual/ideológica já não podem mais se separar, mas precisam ser vistas como duas partes integradas da totalidade social. Nas palavras do autor, o marxismo:

reconheceu que todas as relações jurídicas e políticas, como todas as formas da consciência social, para serem compreendidas, não podem ser tomadas em si mesmas nem a partir do desenvolvimento geral do espírito humano (como o faziam a filosofia hegeliana e pós-hegeliana), porque elas têm suas raízes nas condições materiais de existência que constituem “a base material e a ossatura” do conjunto da organização social. A partir daí, uma crítica radical da sociedade burguesa não pode mais, como Marx escrevia em 1843, tomar qualquer forma de consciência teórica e prática: deve tomar aquelas formas que encontraram a sua expressão científica na economia política da sociedade burguesa. A crítica da economia política passa, assim, ao primeiro lugar, tanto na teoria quanto na prática. Contudo, esta forma mais profunda e mais radical da crítica revolucionária de Marx à sociedade não deixa de ser uma crítica de toda a sociedade burguesa e, pois, também de todas as suas formas de consciência (KORSCH, 2008, p. 56).

Considerações finais

Conforme vimos, Korsch pensava a relação entre marxismo e filosofia ao modo da Aufhebung [suprassunção]. Para o autor, afirmar que o marxismo é herdeiro da filosofia não significa que ele a continua, mas sim que ele a supera por meio de sua própria realização. O marxismo pensa, assim como o idealismo, que a história é resultado do movimento dialético, porém, ao contrário deste, recusa que a atividade provenha do conceito/Ideia/Espírito. A grandeza do marxismo, de acordo com Korsch, está em ter afirmado que a história é mobilizada pela atividade humana, pela práxis revolucionária de uma classe social que procura, por meio da luta política, transformar não só as ideologias que mantiveram a ordem embasada na dominação (inclusive a filosofia), mas também todas as condições objetivas que proporcionaram a existência delas. Portanto, segundo Korsch, a filosofia pode ser superada somente porque a teoria marxista é expressão da práxis política revolucionária do proletariado. Assim, a suprassunção da filosofia pelo marxismo significa também a abolição das relações materiais de produção capitalistas e de todas as relações materiais (e também ideológicas) que embasaram a dominação ao longo da história.

Por certo, conforme bem aponta Netto em seu escrito que apresenta o Marxismo e filosofia de Korsch, tal ponto de vista acerca da relação entre teoria e práxis é imediata e direta. Isso não poupa o seu ensaio de problemas teóricos e práticos. Embora a inspiração leniniana ressalte aspectos fundamentais do marxismo – como é o caso do reencontro com a práxis, da consciência como produto do ser e da redescoberta da dialética –, Korsch esqueceu algo que era caro ao próprio pensamento e atividade política de Lênin (para não citar Marx e Engels). Em seus estudos sobre o revolucionário russo, Korsch parece ignorar que a conquista e a destruição do estado é repleta de mediações extremamente complexas.

Como bem sabemos, nosso autor se contentou com a simples fórmula que afirma o marxismo como expressão do movimento revolucionário, sem nada dizer sobre este movimento, sua organização, sua tática etc. No âmbito teórico, tal identidade apressada e sem mediações tem consequências não menos graves, pois a abrupta relação que Korsch estabeleceu entre teoria e práxis não nos ajuda a compreender como se dá efetivamente a Aufhebung da filosofia na história.

Embora salientasse que a filosofia tem seu nascedouro na realidade, Korsch pouco entendeu sobre como se constitui o real, uma vez que nada disse sobre a atividade intransponível e sempre necessária de intercâmbio do homem com a natureza: o trabalho como produtor de valores de uso. Ao deixar de lado tal questão, nosso autor não pôde explicar efetivamente as mediações que levaram ao advento da filosofia, assim como as mediações que nos permitem pensar as possibilidades objetivas de sua suprassunção pelo marxismo. Em suma, diante da impossibilidade de debater a relação do homem com a realidade objetiva mediante a atividade trabalho, a formulação de Korsch acerca da redescoberta do marxismo como herdeiro da filosofia não escapava a certa abstração. Isso porque todo o desenvolvimento teórico que Korsch levou a cabo em torno dessa temática tão importante para combater o legado deixado pelo marxismo vulgar propagado pela II Internacional somente pode aparecer como obra de uma práxis político-revolucionária que surge e se desenvolve espontaneamente, sem qualquer explicação na base da concretude histórica do real. O resultado disso não poderia ser outro: a dissolução da particularidade da teoria na práxis.

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Notas
[1] Na apresentação do livro de Korsch editado pela Editora da UFRJ, Netto ressalta que esse arquivo ficou conhecido pelo nome de Grünsbergs Arquiv (Arquivo de Grünberg), fazendo referência ao seu editor Carl Grünberg, que fora professor da Universidade de Viena no final do século XIX e que assumira em 1924 o cargo de diretor do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Fora isso, neste periódico foram publicados textos de Lukács, dentre eles “Moses Hess e o problema da dialética idealista” (cf. NETTO, 2008, pp. 19-20).
[2] Sobre a relação entre Marx e Hegel, ver Korsch (2008, p. 25).
[3] Sobre a questão do reformismo na Segunda Internacional, ver a competente síntese elaborada por Ricardo Musse (2010, p. 140).
[4] Interessante notar que esta interpretação de Korsch, embora ressalte o peso da realidade objetiva como locus primário de desenvolvimento da filosofia, ainda não adquiriu o estatuto ontológico da análise de Marx tão reivindicado pelo Lukács de Para uma ontologia do ser social (2012) nem por Chasin em Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica (2009).
[5] Tais como Hilferding e, por que não citar, Bernstein que, com sua teoria social-democrata, pregava de maneira evolucionista, como tarefa do movimento operário, a execução de uma política de reformas econômicas para promover a constante melhoria das condições de vida da classe trabalhadora a fim de que, com o passar do tempo, se desse a transição para o socialismo. Cf. Luxemburgo (2005).
[6] Segundo Engels em Anti-Dühring: “Hegel era idealista, o que quer dizer que em vez de considerar as ideias do seu espírito como os reflexos mais ou menos abstratos das coisas e dos processos reais considerava, inversamente, os objetos e o seu desenvolvimento como simples cópias realizadas a partir da ‘Ideia’ que existia não se sabe onde desde antes do mundo.” (ENGELS, 1976, p. 30)
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Referências bibliográficas
ANDERSON, P. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo, 2004.
CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.
ENGELS, F. “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras escolhidas v. III. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, s/d.
______. Anti-Dühring. Lisboa: Dinalivro, 1976.
KORSCH, K. Marxismo e filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
LÊNIN, V. O estado e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social v. I. São Paulo: Boitempo, 2012.
LUXEMBURGO, R. Reforma ou revolução? São Paulo: Expressão Popular, 2005.
MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. Estudos avançados. São Paulo, Edusp, n. 34, v. 12, 1998.
MUSSE, R. “Marxismo e filosofia”. In: Margem esquerda. São Paulo: Boitempo, n. 17, 2011.
NETTO, J. P. “Apresentação”. In: KORSCH, K. Marxismo e filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
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Resumo: O presente artigo procura analisar como Karl Korsch, em seu ensaio Marxismo e filosofia, redescobriu a relação entre o pensamento de Marx e a filosofia de Hegel. Com base em Lênin e Marx, Korsch pôde perceber que o marxismo é herdeiro da dialética idealista de Hegel não no sentido de que ele a copiou, mas no de que ele a realizou apenas quando a superou. Procurando demonstrar tal argumento, verificamos dois momentos da história do marxismo do final do século XIX e início do XX: o arrefecimento da luta de classes e sua posterior ascensão. Consideramos tal movimento fundamental para compreender que a redescoberta do marxismo como herdeiro da filosofia hegeliana só foi possível por meio da formação e ascensão do proletariado como classe revolucionária.

Palavras-chave: Karl Korsch; Hegel; marxismo; filosofia; revolução.

The Marxism is heir of Philosophy: reflections on Karl Korsch

Abstract: This article aims to analyse how Karl Korsch, in his essay Marxism and philosophy, rediscovered the relationship between Marx´s thought and Hegel’s philosophy. Based on Lenin and Marx, Korsch could see that Marxism is heir of Hegel-s idealistic dialectic, not by copying it, but by overcoming it. To prove this , we see two moments in the history of the end of the nineteenth and early twentieth centuries: the cooling of class struggle and its subsequent rise. We consider such fundamental movement to understand that the rediscovery of Marxism as heir of Hegelian philosophy was only possible through the formation and rise of the proletariat as a revolutionary class.

Key words: Karl Korsch; Hegel; marxism; philosophy; revolution.
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SANTOS DIAS, F A. dos. “O marxismo é herdeiro da filosofia: reflexões sobre Karl Korsch”. In: Verinotio. n. 20, Ano X, out./2015.
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