por Domenico Losurdo
Mais uma vez, pode ser útil uma comparação com a tradição liberal: partamos de um contemporâneo de Hegel. Para Von Humboldt, deve ser rechaçada com firmeza a visão de que o Estado deve se preocupar positivamente com o bem-estar dos cidadãos. Não, ele tem apenas a tarefa negativa de garantir a segurança e, portanto, a autonomia da esfera privada: “A felicidade a que o homem se destina não é senão aquela que lhe dá a sua força”, sua capacidade[2]. Contrariamente a tantas representações consolidadas, é essa visão liberal que — fazendo coincidir riqueza e mérito individual, atribuindo ao indivíduo a responsabilidade exclusiva de seu insucesso — desemboca na consagração ideológica do status quo, senão para as instituições políticas, pelo menos no que diz respeito às relações sociais e de propriedade. Justamente porque coloca em dúvida essa espécie de harmonia preestabelecida entre mérito e posição social do indivíduo, Hegel destaca as tarefas positivas da comunidade política para resolver ou atenuar o drama da miséria. Segundo a tradição do liberalismo político e econômico, o fim do direito e da vida em sociedade é “a tranquila segurança (Sicherheit) da pessoa e da propriedade”; esse objetivo não é posto em discussão por Filosofia do direito, que, porém, dele aproxima, significativa e polemicamente, a garantia ou a “segurança (Sicherheit) da subsistência e do bem-estar (Wohl) do indivíduo, isto é, do bem-estar (Wohl) particular” (Rph., § 230). Aquela “felicidade” que, segundo Humboldt, remetia apenas à iniciativa e à responsabilidade do indivíduo agora, após ter conquistado uma configuração menos intimista e mais material e objetiva, depois de ter se tornado Wohl, “bem-estar” ligado não a um indefinível estado de ânimo, mas, em primeiro lugar, à “segurança da subsistência”, esse Wohl não só constitui uma “determinação essencial” (V. Rph., III, p. 689-90) no plano da vida em uma sociedade, mas exige ser “tratado e realizado enquanto direito” (Rph., § 230).
A miséria já se configura em Hegel como uma questão social, que não é explicável simplesmente por suposta preguiça ou por outras características do indivíduo reduzido à miséria. Nítida é a diferenciação em relação a Locke. Segundo este último, o indivíduo pode sempre se dirigir à natureza para assegurar a sobrevivência. De fato, “por mais povoado que o mundo pareça”, há sempre terra pronta a dar frutos “em uma região interna ou despovoada da América” ou em outro lugar:
Ouvi dizer que, na Espanha, um homem pode arar, semear e colher despreocupado num terreno ao qual não tem outro direito senão aquele derivado do uso que dele faz. Aliás, os habitantes do lugar sã gratos àqueles que, doando o trabalho em terras incultas e, por isso, desertas aumentaram a provisão de trigo de que necessitavam.[3]
Então, o indivíduo deve recriminar apenas a si mesmo pela eventual miséria. Hegel parece responder a Locke quando afirma que “a natureza é fecunda, mas limitada”, e que, no âmbito de uma sociedade desenvolvida, não existem mais terras sem dono e “não se lida mais com a natureza externa” (V. Rph., IV, p. 494). Se em Locke a miséria não chama em causa ordenamento político-social, o contrário se dá em Hegel: não faz sentido reivindicar um direito em relação à natureza, mas “nas condições da sociedade, no momento que se depende dela e dos homens, a indigência adquire imediatamente a forma de injustiça cometida contra esta ou aquela classe”. Na sociedade civil desenvolvida, o homem não tem mais como referente a natureza, e a miséria não pode ser colocada na conta da natureza por meio da categoria de “desgraça” ou calamidade natural (V. Rph., IV, p. 609). Mais uma vez, fica evidente a superioridade ou, talvez, a maior modernidade de Hegel em relação à tradição liberal. Já falamos de Locke. Para Bentham, “a pobreza não é consequência do ordenamento social. Por que, então, recriminá-lo por ela? É uma herança do estado de natureza”[4]. Ao polemizar com o jusnaturalismo, Bentham ironiza o recurso à natureza para fundamentar direitos que fazem sentido apenas no âmbito da sociedade, mas agora a natureza desponta para apagar do âmbito do ordenamento social a responsabilidade pela miséria. E até Tocqueville denuncia como perigosa demagogia querer fazer a “multidão” acreditar que “as misérias humanas são obras das leis, não da providência”[5]. Aqui, providência é outro nome para natureza, serve para indicar um esfera independente das instituições políticas e das relações sociais que, assim, proclamam a própria inocência.
Agora tentemos reler as críticas que os ambientes liberais alemães, já no Vormärz,
dirigem à centralidade que Hegel confere às instituições políticas: tal
centralidade peca em querer remediar a miséria da massa, não fazendo
apelo ao “amor”, ou melhor, à “decisão voluntária, portanto, meritória”
do indivíduo, mas recorrendo ao Estado incapaz de “amor”, isto é,
recorrendo ao Estado a normas jurídicas passíveis apenas de endurecer a “generosidade” dos ricos. Também fora da Alemanha, não muito diferente é
o comportamento de Tocqueville, que se opõe com vigor à proclamação de
1848 do direito ao trabalho (infra, cap. X, § 5), o qual Hegel,
por sua vez, tranquilamente teoriza ao lado do “direito à vida” (Rph.,
I, § 118 A) e do direito que o indivíduo tem de “exigir sua
subsistência” (Rph., IV, § 604). É supérfluo aqui reiterar a modéstia ou
a inconsistência do programa político concreto que nasce dessa
indicação de fundo: trata-se da geral desproporção, já destacada, entre “método” e “sistema”. O importante é que, se para Tocqueville o
indivíduo na miséria pode apelar apenas a caridade, pública ou privada
que seja, para Hegel, ao contrário, é detentor de um preciso “direito”
ao qual corresponde uma precisa “obrigação da sociedade civil” (V. Rph.,
IV, p. 604).
A
negação da questão social é ainda mais radical no jornalismo neoliberal
dos nossos dias, que, não por acaso, também em tal negociação, acaba
unindo-se a Nietzsche. Hayek não se cansa de repetir que é absurdo falar
de justiça ou injustiça “social” diante de um estado de coisas que não é “resultado da vontade consciente” de alguém, diante de um estado de
coisas que, não sendo “deliberadamente produzido pelos homens, não tem
nem inteligência nem virtude, tampouco justiça ou qualquer outro
atributo dos valores humanos”[6]. Nietzsche, por sua vez,
polemizando com aqueles que falam de “profundas injustiças” no
ordenamento social, acusa-os de ter “imaginado responsabilidades e
formas de vontade que não existem de modo algum. Não é lícito falar de
injustiça em casos em que não estão presentes as condições preliminares
para a justiça e a injustiça”[7]. Assim como em Nietzsche, o protesto social, longe de remeter a condições objetivas e a uma real “injustiça”, remete ao ressentiment,
ao rancor que os falidos nutrem pelos melhores e mais afortunados,
também para Hayek, o que alimenta a demanda por “justiça social” são “sentimentos” nada elevados, como “o desprezo por pessoas que estão
melhor do que nós ou simplesmente inveja” e “instintos de rapina”[8].
A objetividade da questão social dissolve-se, dessa forma, na
responsabilidade individual e até na psicologia dos indivíduos que
sofrem com a condição de miséria.
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Notas:
[1] Friedrich Engels, “Die Lage der arbeitenden Klasse in England (1845), em MEW, v. II, p. 505.[2] Wilheim von Humboldt, “Ideen zu einem Versuch die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zy bestimmen”, cit., p. 117.[3] John Locke, Two Treatises of Civil Government, II, § 36.[4] Assim o discípulo e colaborador de Bentham, P. E. L. Arago, sintetizava fielmente o pensamento do mestre. Ver Jeremy Bentham, “Theorie des peines et des recompenses” (1811), em Œuvres de Jérémie Bentham (3. ed., org. Etienne Dumont, Bruxelas, Hauman, 1840), v. II, p. 201; ver Jeremey Bentham, “Principles of the Civil Code”, em The Works (org. John Bowring, Edimburgo, William Tait, 1838-1843), v. I, p. 309.
[5] Alexis de Tocqueville, “Souvenirs” (1850-1851), em Œuvres complètes (org. Jacob-Peter Mayer, Pari, Gallimard, 1951 e seg.), p. 84. “Existe entre os homens em qualquer sociedade em vivam, e independente das leis que eles tenham criado, certa quantidade de bens reais ou ideais que necessariamente não podem ser pertinentes senão a um pequeno número”. Idem, “Etat social et politique de la France avant et depuis 1789” (1836), em Mélanges, fragments historiques et notes sur l'Ancient Régime, la Revolution et l'Empire (Paris, Michal Lévy Frères, 1865), p. 18.
[6] Friedrich August von Hayek, Law, Legislation and Liberty (1982; as três partes que compõem a obra são respectivamente de 1973, 1976 e 1979); ed. it.: Legge, legislazione e libertà (trad. Pier Giuseppe Monateri, Milão, Il Saggiatore, 1986), p. 271 e 509.
[7] Friedrich Nietzsche, “Nachgelassene Fragmente 1887-1889)”, em Sämtilche Werke, Kritische Studienausgabe (org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Munique, Deutscher Taschenbuch, 1980) (+KSA), v. XIII, p. 73-4.
[8] Friedrich August von Hayek, Law, Legislation and Liberty, cit.; ed. it., p. 304.
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LOSURDO, D. Hegel e a liberdade dos modernos. Trad. Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 198-202.
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